quarta-feira, 1 de maio de 2024

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 11 — Capítulo 149

Capítulo 149: A diligência avançava

A diligência avançava, as rodas roncando pelo terreno. A grande carruagem de quatro cavalos estava abarrotada de passageiros, e o grupo de Angeline conseguiu encontrar um lugar na parte de trás.

O tempo estava bom e soprava uma brisa agradável, por isso a capota foi parcialmente aberta para permitir que os passageiros aproveitassem a luz do sol.

Miriam esticou os braços acima da cabeça, gemendo.

“Ahh... Talvez eu tenha bebido um pouco demais ontem à noite. Ainda estou me sentindo um pouco mal.”

“Só por conta daquele tiquinho de vinho? Você é muito mole, não é?”

“Pelos seus padrões, todo mundo é mole, Maggie. Sou uma garotinha delicada!”

“Você? Delicada?”

“Aw, não diga assim!”

“Deixando de lado Merry ser ‘delicada’ ou não, sigo com um pouco de sono também.” disse Anessa, esfregando os olhos.

Talvez elas tenham exagerado na festa de bebedeira da noite anterior, já que todas, exceto uma, acordaram com ressaca. Marguerite, que sem dúvida tinha bebido mais do que qualquer outra pessoa, era a única com ânimo hoje. Mesmo que o resto do grupo permanecesse apático e desanimado, a elfa estava se divertindo.

A cabeça de Angeline estava muito nebulosa. Depois de beber até se fartar com as amigas, também tomou mais algumas taças de vinho com Ishmael. Nesse ponto, já havia se tornado uma bebedora mais forte do que antes, mas seguia estando muito longe de bebedores realmente fortes como Sasha e Marguerite. A dor de cabeça latejante com a qual acordou havia acabado de diminuir. A carroça andava contra o vento, que carregava o cheiro de terra e grama em algum lugar ao longo da estrada à frente. Os aromas refrescantes pareciam aliviar seu estupor persistente e fazê-la se sentir melhor, mesmo que tudo o que havia acontecido na noite anterior seguisse um tanto confuso em sua mente.

Apesar do adiamento, estava se sentindo um pouco reprimida e descontou em Marguerite ao seu lado, beliscando suas bochechas.

“Agh!”

“É injusto que você seja a única de bom humor...”

“Me solta! Sua fraqueza não é culpa minha.” Marguerite beliscou Angeline de volta, levando a uma briga turbulenta.

Anessa, carrancuda, repreendeu as duas.

“Vamos, vamos. Não briguem no transporte público. Vocês estão sendo um incômodo.”

“Vocês são um bando barulhento...” Yakumo reclamou do banco de trás.

Angeline se virou para encarar Yakumo. Lucille estava sentada ao seu lado com os olhos fechados, os braços em volta do violão. Um momento atrás, estava bastante interessada no cheiro de Ishmael, porém se acalmou desde que a cobertura da frente foi aberta para deixar entrar a luz agradável do sol de outono. Ela estava tomando banho de sol ou cochilando agora.

“Também está com sono, Sra. Yakumo…?”

“Na verdade não. Não estávamos tão ansiosas para ir para Turnera como você, então não estou particularmente entusiasmada.”

“Mesmo quando pode rever o pai?”

“Você é quem quer vê-lo.”

“É claro que estou feliz, contudo Anne e Merry também. Maggie também.”

“Quem disse?” Marguerite interrompeu. “Não passam de sermões quando Bell está por perto.”

Angeline estufou as bochechas.

“O pai nunca dá sermões desnecessários.”

“Eu vou admitir isso, no entanto, uh... Vamos deixar por aí. Nunca chego a lugar nenhum discutindo sobre Bell com Ange.” Marguerite disse com um aceno de mão desdenhoso.

A boca de Angeline se moveu sem emitir qualquer som — era claro que havia algo mais que queria dizer, entretanto no final, segurou a língua e se acomodou confortavelmente em seu assento. Essas brigas não eram raras e nunca haviam chegado a uma resolução antes. Claro, Angeline sempre saía delas com a impressão de que havia vencido. Mas agora, não estava com disposição para isso, então decidiu deixar o assunto com a elfa só desta vez.

Marguerite encostou-se nas paredes da carruagem e olhou para a paisagem distante. Miriam bocejou e abraçou os joelhos inquieta, enquanto Anessa tirava um livro de sua bolsa.

Que cena pacífica... Angeline pensou que esta jornada serena logo os levaria a Turnera, e o festival de outono não estaria longe quando chegassem. Ao mesmo tempo, adoraria ser mimada pelo pai o quanto quisesse e cozinhar com a mãe; ajudaria na colheita, brincaria com seus irmãos mais novos, provocaria Byaku e talvez lutasse com Percival e Graham. Sua cabeça estava cheia de todas as coisas divertidas que tinha pela frente. Angeline se lembrou da sacola cheia de doces, bonecas e livros que trouxera consigo. Mit, as gêmeas e Charlotte sem dúvida ficariam encantados. Também comprou vinho e bebidas destiladas, o que não seria nada mal com Kasim e Percival.

Ah, e não posso me esquecer desta vez – vou colher aqueles mirtilos-vermelhos. Angeline visitou o bosque no início da primavera, quando os matagais estavam repletos de folhas verdes profundas. Quando o outono chegasse, estariam cobertos de frutos pequenos e vibrantes. Poderia encher uma cesta inteira e os arbustos não pareceriam menos cheios de frutas. Ela ansiava pela montanha e pelo festival, e por ficar sentada em frente à lareira até altas horas da noite. Já podia imaginar as histórias que Graham contaria quando lhes contassem seus planos de ir para o leste. Suas histórias de aventura eram sempre muito interessantes e todos ouviam com muita atenção cada palavra que ele dizia. E com certeza suas histórias do Oriente seriam úteis em sua própria jornada.

Aparentemente, Seren deveria se estabelecer em Turnera antes do inverno; Angeline soube disso por meio de uma carta que chegou há pouco tempo. Seu costume era de apenas cartas simples, porém as missivas mensais de Belgrieve eram muito mais abrangentes, e ele a contava sobre sua vida cotidiana, junto a linhas e mais linhas de encorajamento. Às vezes, as cartas incluíam frases escritas por Satie, Percival e Kasim também. Certa vez, a carta chegou até acompanhada de uma flor prensada, cortesia de Charlotte.

Em qualquer caso, essa carta falava do estabelecimento da guilda, das várias instalações auxiliares e das bases que estavam sendo lançadas para novas indústrias, com Kerry liderando o trabalho. As muitas passagens longas sobre esses temas deixaram claro para Angeline que seu pai estava ansioso por tudo. Assim, Angeline se manteve atualizada com o que estava acontecendo em Turnera de forma geral. As cartas alimentaram sua saudade de casa, e só de imaginar todas essas mudanças a deixou ainda mais ansiosa para voltar.

Não demoraria muito até a chegada deles; ainda havia um pouco de jornada pela frente, todavia isso pouco importava para Angeline agora. Ajustando sua postura no assento, abraçou os joelhos, depois tirou as botas para arejar os dedos dos pés. Mesmo assim havia um longo caminho pela frente e queria descansar os pés enquanto tivesse oportunidade. Como se tratava de uma diligência de passageiros, estava repleto de conversas de todos os tipos de pessoas — homens e mulheres, jovens e velhos, e todos os outros tipos. Para onde todos estão indo? se perguntou.

Marguerite estava sentada na janela ao lado de Angeline. Um corredor estreito passava pelo centro da carruagem, separando-os de onde Anessa e Miriam estavam sentadas. Atrás das garotas, próximo ao corredor, Ishmael estava conversando com Yakumo do outro lado sobre uma coisa ou outra.

“Não, esse não é necessariamente o caso. Você tem muitos sonhos porque não está dormindo profundamente o suficiente. Os próprios sonhos de fato surgem com todas as formas de sono. O cerne da questão é se está lúcido o suficiente para reconhecê-los ou não.”

“Então o quê? Significa que todo mundo sonha todas as noites, ainda que não consiga se lembrar?”

“Correto. Diz-se que os sonhos são um pastiche de imagens criadas pelo processo de organização das memórias. Contudo, se dormirmos um sono profundo, então só permaneceremos inconscientes desse processo. Os sonhos chegam até nós em momentos de sono superficial, e só podemos reconhecê-los quando nosso cérebro ainda está meio acordado.”

“Hmm, interessante...”

“É por esse motivo que é raro acordar todo revigorado logo após um sonho. É um sinal de que não dormiu direito.”

“Sim, costumo sonhar depois de acordar uma vez e adormecer de novo... Então a razão pela qual tenho sonhos tão estranhos depois de beber é porque não estou dormindo bem.”

“Eu imagino que sim. No final das contas, não podemos de fato sonhar de forma consciente se não estivermos parcialmente acordados. É um grande enigma.”

“Isso pareceu meio inteligente.” disse Yakumo, provocando-o.

“Haha... No entanto me faz pensar, de vez em quando — estamos acordados neste exato momento? Talvez tudo esteja acontecendo dentro de uma realidade ilusória, e talvez eu esteja a apenas um momento do despertar. A realidade que percebemos não é tão estável quanto pensamos que é. Talvez fosse necessário apenas um leve empurrão para fazê-la desmoronar.”

“Já ouvi algo semelhante antes.” disse Yakumo, exalando uma nuvem de fumaça. “Era uma história da minha terra natal, Keatai. Nela, um homem sonha em se tornar uma borboleta, voando livre pelo mundo até se deparar com um homem adormecido — ele mesmo. Quando acordou, perguntou a si mesmo se havia se tornado uma borboleta em seu sonho ou se ele próprio era apenas um homem dentro do sonho de uma borboleta.”

Angeline se recostou no encosto da cadeira e deixou a conversa passar por um ouvido e sair pelo outro. Nos últimos dias não tinha tido nenhum pesadelo. Houve momentos em que acordava com a leve consciência de que estava sonhando, mas depois não conseguia se lembrar do que sonhou. No mínimo, não tinha acordado com a angústia e a dor que acompanharam a praga dos pesadelos de não muito tempo atrás.

Estou apenas desgastada? Angeline se perguntou. Se estivesse apenas exausta, dormiria um sono profundo uma noite inteira sem sonhos e acordaria bem na manhã seguinte. Porém, quando havia algo em que estava pensando muito, seus pensamentos ficavam dispersos, e mesmo quando seu corpo estava dormindo, era como se sua mente ainda estivesse correndo. Talvez tenha sido isso que levou a esses sonhos estranhos.

Entretanto, se esse é o processo de organização das memórias, então com certeza só poderia ter visto imagens que já estavam na minha cabeça. Contudo esses pesadelos... Angeline não levou esse pensamento adiante. Mesmo considerá-lo lhe dava uma dor de cabeça latejante.

Angeline não conseguia se recordar ao certo do que eram os sonhos, todavia tinha certeza razoável de ter visto coisas que na verdade não haviam acontecido com ela antes. Dado que não conseguia se lembrar deles com clareza, era possível que estivesse apenas vendo coisas que havia lido em um livro uma vez, ou que suas imaginações mais loucas se confundissem com lembranças reais.

Não... E se for como o que Yakumo disse sobre os sonhos serem um mundo em si? Se, por alguma razão, imagens além de suas próprias memórias estivessem fluindo em sua cabeça, talvez fossem eventos que realmente haviam acontecido antes, em outro tempo ou lugar.

Huh... Angeline cruzou os braços. Ainda não conseguia se lembrar de nada com clareza, no entanto sentia como se tivesse descoberto algo agora há pouco. Ela se sentiu sutilmente estranha, como se tivesse um pequeno osso preso no fundo da garganta.

De qualquer forma, não adianta refletir sobre isso agora. Angeline bocejou alto — o sol do início da tarde a embalava em um estado sonolento.

As montanhas em Turnera já estarão cobertas de folhas vermelhas... Angeline seguia imaginando aquelas florestas outonais que havia explorado com seu pai tantas vezes, mesmo enquanto adormecia em um sono pesado.


O penetrante céu azul sobre uma floresta pintada em amarelos e vermelhos vivos era uma evidência de que o outono estava em pleno andamento. Ele enfeitou essas terras mais cedo do que em qualquer outro lugar do ducado, mas isso era o esperado para os residentes de Turnera. A chegada da estação marcou o início da colheita do trigo semeado na primavera, bem como da batata e do feijão. Os campos que haviam permanecido em pousio durante o verão foram agora cultivados outra vez para o plantio da safra de trigo de inverno; os aldeões já tinham terminado de semear alguns campos. Os currais onde as ovelhas passariam o inverno foram preparados. Agora fazia frio ao amanhecer e ao anoitecer, e não era mais prudente sair de casa vestido com roupas leves.

Os mascates chegavam cedo graças às melhorias feitas nas estradas. Rumores sobre uma nova masmorra perto de Turnera já eram levados pela brisa, e aqueles com ouvidos aguçados o suficiente para ouvi-los estavam vindo para reivindicar com antecipação as oportunidades de negócios emergentes que tal situação apresentava. Belgrieve teve dificuldade para lidar com todos esses visitantes, porém Seren interveio para administrar essas questões com pouca dificuldade. Mesmo contra esses comerciantes astutos, que tinham visão suficiente para se aventurar no meio do nada em busca de oportunidades, Seren não cedeu nem um centímetro. A garota mais do que se equiparava a esses vendedores de língua astuta — na verdade, os superava em muito — e aqueles que vinham com motivos ocultos e desonrosos eram impiedosamente rejeitados em favor de negociações sérias com comerciantes mais francos. A nítida natureza branda de Belgrieve não lhe convinha para tais negociações, contudo só podia admirar os talentos de Seren e agradeceu sua ajuda. Com ela por perto, ninguém iria tirar vantagem de Turnera.

“Este ano... As pessoas poderão entrar e sair durante o inverno?” Belgrieve murmurou, examinando uma pilha de contratos a sua frente.

“Na verdade, não vi o quão forte a neve aqui pode ficar, então não posso ter certeza. Suspeito que as caravanas mercantes maiores devam conseguir.” respondeu Seren.

Belgrieve olhou-a, assustado.

“Perdoe-me, eu disse isso em voz alta?”

“Hehe... Eu te ouvi alto e claro.”

Belgrieve coçou a cabeça timidamente.

“Isso é problemático...”

Quanto mais velho fico, mais falo sozinho...

A construção da guilda ainda não estava completa. A mansão do senhor era a principal prioridade, então o trabalho na guilda foi adiado. Entretanto, o trabalho administrativo da guilda era realizado no escritório. Seren trouxe consigo todos os tipos de materiais de referência, então acabou sendo um arranjo bastante eficiente. E a razão pela qual Seren assumiu este posto em primeiro lugar foi a masmorra, então não era de forma alguma estranho para ela estar envolvida na administração da guilda. A mente de Belgrieve ficou tranquila por ter ao seu lado alguém tão talentoso em tarefas administrativas assim.

Dessa forma, Belgrieve se viu olhando pela janela. Com o tempo tão bom, seus instintos o incentivaram a cuidar do plantio ou da colheita como todos os outros em Turnera. Seus esforços se concentraram no cultivo de vegetais que pudessem sobreviver sob a neve durante o inverno. A montanha também era abundante nesta época do ano, e não havia um único dia que não houvesse trabalho que pudesse fazer lá fora.

Seren riu de sua inquietação palpável.

“Parece que está ansioso para pegar uma pá, Sir Belgrieve.”

“Sim, bem... Trabalhei ao ar livre durante a maior parte da minha vida.”

“Entendo. Me desculpe por tê-lo mantido escondido aqui por tanto tempo.”

“De jeito nenhum. Esta é minha responsabilidade também...”

A perspectiva de ter comerciantes indo e vindo sem parar exigia o estabelecimento de um sistema adequado para gerenciar todos. O que cobriria o descarregamento de materiais monstruosos, o estoque de bens necessários para aventureiros e assim por diante. Seren havia avisado que seria melhor se a guilda cuidasse desses assuntos. Em Bordeaux e Orphen, isso proporcionou um pouco de estabilidade à gestão da guilda. Era diferente de como a guilda central lidava com as coisas, todavia Turnera estava completamente livre de sua influência, então não havia nada que os impedisse de adotar sua própria maneira de fazer as coisas.

Belgrieve sabia que estava fora de seu ambiente quando se tratava de tais coisas, então estava quase aceitando tudo sem objeções. Podia pelo menos entender a lógica por trás de tais decisões, então estava fazendo o possível para estudar. Uma parte sua ficou feliz ao descobrir que seguia tendo muito a aprender na sua idade; outra parte precisava de uma pausa. De toda forma, cabia a ele cuidar do trabalho que tinha pela frente.

Finalmente, ele terminou; arquivou a papelada que estava preenchendo junto com os documentos que referiu para preenchê-la. Seu corpo estava rígido depois de ficar sentado por tanto tempo. Belgrieve revirou os ombros e massageou as pálpebras para aliviar a tensão de ficar olhando letras minúsculas por tanto tempo, percebendo que estava aos poucos começando a ficar hipermetrope¹. Vou precisar de óculos qualquer dia desses...

Uma das criadas de Seren trouxe um serviço de chá e serviu um prato de doces.

“Por favor, sirva-se.”

“Ah, obrigado...”

Seren sentou-se em frente à Belgrieve e escolheu um dos doces para si.

“Já é outono, né? Acha que Angeline estará aqui para o festival?”

“Ela disse que sim, embora esteja tão ocupada que eu não recebi uma única carta sua... Ela sempre teve uma tendência um pouco travessa, então acho que pode aparecer de repente do nada para nos surpreender.” explicou Belgrieve.

Isso arrancou uma risada divertida de Seren.

“Para alguém tão forte e confiável, Angeline sem dúvida tem um lado fofo. Eu realmente gosto desse seu lado.”

“Haha... Eu também. Ela nunca se desfez desse lado infantil... Talvez esteja apenas sendo honesta consigo mesma.”

A combinação de chá e doces provou ser bastante agradável, embora Seren logo percebesse que cada gole de chá quente embaçava seus óculos, o que a fez os remover para limpar as lentes com um lenço.

“Não demorará muito até o festival.” refletiu Seren.

“Sim, o tempo voa.”

“Eu deveria ajudar com os preparativos...”

“Não precisa fazê-lo. De qualquer forma, não há muito que precisamos fazer para nos preparar para o festival em si.” disse Belgrieve.

Seren pareceu um tanto surpreso.

“Sério?”

“Sim. Levamos a estátua para fora da igreja e preparamos um banquete... Para ser franco, outras tarefas sazonais levam mais tempo do que a preparação para o festival. Afinal, a festa é grande parte uma celebração da colheita e de todo o trabalho necessário para a preparação para o inverno.”

“É assim mesmo...? Quando visitei Turnera pela primeira vez, participei junto com minha irmã. Obrigado por mediar para nós.”

“Todos ficaram encantados por ter vocês. Eles disseram que realmente ajudou a animar as festividades.”

“Hehe! É bom saber. Minha irmã mais velha insistiu muito para que viesse desta vez também... Não acho que ela fará algo muito escandaloso desta vez...” Seren suspirou enquanto colocava os óculos de volta.

Belgrieve riu, percebendo como as irmãs se davam bem.

“É estranho... Tudo começou com Angeline me salvando, e agora aqui estou, servindo como responsável de Turnera.” murmurou Seren, com as mãos ocupadas com a xícara de chá.

Belgrieve encolheu os ombros.

“É assim que a vida funciona. Nunca teria imaginado acabar desempenhando o papel de mestre da guilda, aliás.”

“Pff!” Seren bufou, não conseguindo conter o riso. “Ahahaha... Desculpe... Você tem razão. Pode ter acabado sendo o mais incomodado entre nós dois, pensando bem.”

Belgrieve riu.

“Pois é!”

Se a vida tivesse corrido como esperava, não estaria aqui nesta suíte luxuosa agora. Estaria lá fora com todos os outros cultivando os campos, com as mãos e as roupas cobertas de terra, ou talvez conduzindo as crianças da vila para forragear nas montanhas e trazer de volta as bênçãos abundantes da natureza, para a alegria de crianças e adultos. Alguns dos produtos colhidos seriam secos e preservados para uso futuro, mas também saborearia os frescos. Depois, os seus pensamentos voltaram-se para as memórias de Angeline a brincar toda animada entre os canteiros de amoras silvestres e depois para a forma como a sua filha se tinha tornado a heroína não só de Estogal, mas de todo o império. Foi graças a ela que ele desfrutou desta amizade com a Casa Bordeaux e que se reuniu com seus velhos amigos.

De alguma forma, tudo voltou para aquela montanha. Belgrieve olhou pela janela de novo. Foi por volta desta estação também... Ao contrário da brisa fria do outono, a floresta estava em chamas com folhas vermelhas. Naquele outono, naquela montanha... Se eu não tivesse encontrado Angeline naquela época...

“Tenho certeza de que algo mudou para mim no momento em que encontrei Ange. A vida tem sido só surpresas para mim... Porém adorei cada momento e sou grato a ela por tudo.”

“Posso dizer o mesmo. Na verdade tive a sorte de conhecer todo mundo em Turnera.” disse Seren.

Os dois ficaram sentados em um silêncio contemplativo por algum tempo naquela mesa. Suas xícaras ainda estavam quentes o suficiente para que o vapor quente se espalhasse pelo ar antes de desaparecer.

O som distante do canto de um galo despertou Belgrieve.

“Agora, é hora de sair para trabalhar.”

“Sim, desculpe por atrasá-lo. Estou ansiosa para ver quando Angeline retornar. Tenho certeza de que terá muitas histórias novas para contar.”

“Sim, tenho certeza — e ficará emocionada em compartilhá-los com todos nós, sem dúvida.” Belgrieve sorria sem reservas quando saiu do escritório.


“Pai, olha! Há tantos deles!” Angeline correu com uma cesta cheia de mirtilos-vermelhos, nem parecendo se importar quando alguns caíram da beirada e se espalharam a seus pés.

Belgrieve sorriu e afagou cabeça da filha.

“Vamos, calma... Não há necessidade de pressa.”

Angeline ergueu sua cesta com uma postura de triunfo, estufando o peito. A julgar pelas manchas vermelhas de suco ao redor de sua boca, a garota já havia comido alguns pelo caminho.

Belgrieve cutucou sua testa provocativamente.

“Você comeu alguns, não foi?”

“Não!” Angeline protestou, contudo estava claramente alegre enquanto segurava sua cesta. “Comeremos bem esta noite!”

“Hey, não vai comer tudo isso, vai?”

“Não me canso delas!”

“Vai ficar com dor de barriga se comer muitos de uma vez. Aproveite-as com moderação.”

“Ugh... Tudo bem.” Angeline resmungou, um pouco descontente, no entanto não reclamou enquanto empurrava a cesta para o pai e corria de volta para o matagal com uma cesta vazia. Este bosque de mirtilos-vermelhos ficava no meio da floresta, entretanto em uma clareira rochosa e inclinada, com bastante luz solar, graças à falta de árvores altas ao redor, o que também explicava a ampla luz solar do outono que fazia as frutas vermelhas brilharem como pedras preciosas.

Angeline se abaixou sem dizer uma palavra para colher as frutas e jogá-las na cesta. Havia muitas espalhadas para que pudesse ser qualificado como uma caça ao tesouro, todavia era o tipo de trabalho que uma criança poderia desfrutar. Talvez não tenha prejudicado seu entusiasmo por poder comer algumas frutas sempre que quisesse, com o rosto brilhando sempre.

Belgrieve comeu um dos mirtilos-vermelhos, abrindo-a entre os dentes e aproveitando a sensação de mastigar as pequenas sementes dentro. A onda inicial de acidez potente instantaneamente deu lugar à doçura suave, incitando-o a tomar outro. Esta foi uma das maiores delícias da temporada por um bom motivo.

Ao contrário de Belgrieve, que precisava ter cautela ao navegar no mato com sua perna de pau, Angeline conseguia se locomover com agilidade e encher uma cesta muito mais rápido do que ele, fato que parecia encantá-la. Às vezes ela comparava sua cesta com a de Belgrieve e ria triunfante.

“Vamos fazer geleia?”

“Poderíamos. Nós os secamos da última vez.”

“Vamos precisar de muitos potes, então.”

O enlatamento era uma forma eficaz de preservar os frutos durante o inverno. Além das geleias, também armazenavam vegetais cozidos e cogumelos em conserva em óleo dessa maneira. A maior parte disso era feita em potes de barro, mas às vezes usavam garrafas de vidro compradas de vendedores ambulantes. A visão de todos aqueles potes e jarras de conservas alinhados na prateleira fez Angeline se sentir praticamente rica.

À medida que a noite se aproximava, os dois transferiram os mirtilos-vermelhos de suas cestas para a maior, pendurada no ombro de Belgrieve. E com isso, desceram a montanha. O sol se punha à sua frente, lançando longas sombras ao longo da trilha atrás deles.

Angeline estava balançando uma vara que pegou no caminho enquanto marchava na frente de seu pai, que a seguia devagar. Os dois haviam escalado a montanha juntos tantas vezes antes que Angeline conhecia bem o caminho.

“Ah, Ange. Não é por aí.”

Mesmo assim, ela cometia erros ocasionais. O aviso de Belgrieve impediu Angeline de vagar por uma trilha de animais.

“Sério?” ela perguntou, virando-se para seu pai.

“Sim. Esse caminho foi feito por animais selvagens.” Angeline olhou para frente e para trás entre a trilha do animal e aquela que deveriam seguir antes de voltar para o lado de Belgrieve e apertar sua mão.

Galhos carmesins assomavam no alto e a escuridão estava se espalhando rapidamente. A atmosfera da floresta estava mudando em relação ao que era quando chegaram ao início do dia, e isso a deixou um pouco ansiosa.

Belgrieve sorriu.

“Podemos nos perder se não tomarmos cuidado. Agora vamos embora.”

“Sim...” Angeline apertou sua mão e olhou para ele. “Vamos fazer geleia quando chegarmos em casa?”

“Claro. Precisaremos fazer muito, ou comeremos tudo antes da primavera.”

“Você acha que a primeira neve chegará em breve?”

“Não tenho certeza sobre isso.”

Sempre que acontecia a primeira nevasca da estação, Angeline se divertia colocando uma camada da camada superior e macia de gelo em uma tigela, que regava com geleia de mirtilo para comer. Mesmo assim, ainda amava mirtilos frescos mais do que qualquer outra coisa.

Em pouco tempo, eles desceram da montanha. O céu ficou roxo e não havia mais sombras a seus pés. O frio desceu do céu sobre eles e o vento fez sua pele arrepiar. Não muito longe, ela podia ver colunas de fumaça flutuando preguiçosamente no ar, saindo de chaminés por toda a vila, à medida que se aproximavam.

O festival de outono estava chegando e, não muito depois, o inverno chegaria.



Notas:
1. Hipermetropia é uma condição do olho em que a luz é focada na parte posterior da retina, ao invés da própria retina. Isto faz com que a pessoa veja desfocados os objetos a curta distância, enquanto os objetos distantes são vistos sem problema.

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