Capítulo 151: As nuvens finas espalharam a luz da manhã
As nuvens finas espalharam a luz da manhã em cores prismáticas luminosas pelo céu. O mundo abaixo ainda estava nebuloso, iluminado apenas pelos escassos pilares de luz que encontravam uma abertura entre as nuvens. Não estava especialmente frio, mas o suficiente para que a respiração saísse como nuvens de vapor branco. Mit balançou a mão, tentando sem sucesso apagar sua respiração persistente.
“Eles não vão embora...”
Belgrieve riu.
“Haha... Estranho, não é? Agora vamos para casa.”
A vista do topo da colina foi aos poucos ficando colorida pela luz do amanhecer. Belgrieve sempre gostou de ver essas mudanças acontecerem ao amanhecer e nos momentos que se seguiram. Terminada a patrulha matinal, era hora de Belgrieve voltar para casa. No pátio, encontrou Percival balançando a espada. Embora as manhãs já estivessem ficando frias, Percival usava apenas uma camisa fina por cima e seu corpo fumegava.
“Estamos de volta.”
“Ah, bem-vindo. Nada a relatar, presumo?”
“O mesmo de sempre.”
“Percy, você está treinando?” Mit perguntou.
Percival sorriu.
“Isso mesmo. Quer participar?”
“Sim.” Mit estufou o peito e correu para dentro de casa para pegar sua espada de madeira. Belgrieve o seguiu. Estava muito mais quente lá dentro e Belgrieve pendurou a capa na parede. As brasas fumegantes do fogo da noite anterior foram substituídas por um fogo ardente, sobre o qual estava pendurada uma panela borbulhante. Satie estava amassando a massa que havia sido deixada para descansar a noite toda quando eles chegaram e ela ergueu os olhos do trabalho para cumprimentá-lo.
“Bem vindo de volta. O pão vai demorar um pouco.”
“Isso é bom. Vamos praticar um pouco. Onde estão Kasim e Graham?”
“Saíram para meditar — Byaku também.”
Charlotte estava sentada ao lado das gêmeas no chão, onde pareciam estar brincando com seu novo dragão de brinquedo — uma visão comum nas manhãs dos últimos dias.
Belgrieve pegou sua espada e saiu de volta para encontrar Mit parado ao lado de Percival e brandindo sua espada de madeira como fazia todos os dias. Aos poucos, sua forma estava começando a se formar. Os três praticaram seus balanços por algum tempo. Quando terminaram, esfriaram e lavaram o rosto com a água fria e refrescante do poço.
“Pretende ir para a montanha hoje, certo?” Percival perguntou, enxugando o rosto com uma toalha.
“A maioria das coisas se acertou com a guilda e o campo, pelo menos por enquanto. Vou colher algumas frutas e vinhas.”
“Faz parte da preparação para o inverno?”
“Afinal, ficamos presos dentro de casa durante todo o inverno. No geral, me mantenho ocupado fiando fios ou tecendo cestos.”
“As coisas ficaram muito turbulentas no inverno passado. Eu me pergunto como será este ano.”
“Vai depender de Ange... Bem, elas não podem só tirar folga do trabalho todo inverno, então não acho que vão passar o tempo aqui conosco.”
Ainda assim, era de Angeline que estavam falando — todas as apostas estavam canceladas. Mesmo que ela não tenha deixado Orphen com essa intenção, era fácil imaginá-la aproveitando tanto a vida aqui que se esqueceria de si mesma até a primeira nevasca.
“Mesmo que isso aconteça, as estradas foram limpas, então ainda poderá voltar pela neve...”
“O quê, você quer tanto que Ange vá embora?”
“Claro que não. Porém há pessoas que contam com sua ajuda em Orphen. Não posso mantê-la aqui para sempre.” Belgrieve torceu ironicamente o cabelo.
Percival começou a rir.
“Que cara sério. Quando voltar, será você quem não irá quer que ela volte.”
“Eu... Na verdade não posso negar...”
Mit puxou a manga de Belgrieve.
“Também quero ficar com a mana para sempre.”
“Sim...” Belgrieve sorriu e deu um tapinha na cabeça do menino.
Após o café da manhã, todos começaram a trabalhar em suas próprias tarefas. Charlotte levou Mit e as gêmeas junto para a casa de Kerry, enquanto Byaku saiu para ajudar na agricultura. Kasim e Percival foram até o rio com varas de pescar, Graham sentou-se com o orbe e quebrou a cabeça com sequências de feitiços, e Satie se ocupou em cozinhar e limpar. Belgrieve, por sua vez, saiu de casa com uma cesta pendurada nas costas e um lanche nas mãos.
As nuvens finas de antes desapareceram quando o sol nasceu, deixando nada além do céu azul acima. Belgrieve atravessou as planícies e entrou na floresta. Algumas das árvores eram perenes, contudo muitas ficaram vermelhas e logo espalhariam suas folhas. Algumas delas já estavam nuas, deixando uma lacuna azul na copa da floresta. As terras florestadas recebiam muito mais luz solar agora do que no verão. Os cogumelos cresciam onde quer que houvesse sombra, no entanto alguns estavam maduros demais e já haviam estourado. Um pássaro próximo voou do matagal e subiu ao céu, cantando alto. Olhando para cima, Belgrieve notou um galho enrolado em vinhas de akebia, com seus frutos pendurados tentadoramente abaixo.
“Não vai acontecer.” murmurou, dando um leve chute com a perna de pau contra o chão. Subir em árvores não era seu forte. Coletar frutas em lugares tão altos sempre foi o trabalho de Angeline. A garota era ágil e conseguia subir com grande velocidade em qualquer árvore, e sempre que estava por perto, os dois sempre voltavam com uma cesta cheia de uvas da montanha e frutas akebia.
É isso mesmo... Foi nessa época do ano que a encontrei pela primeira vez... Já estava no meio do outono, pouco antes do festival de outono. Naquela época, ele procurava ervas selvagens a pedido do Velho Caiya, o boticário. Entretanto foi há muito tempo — Caiya faleceu e Angeline cresceu. Belgrieve soltou um suspiro profundo, envolvendo seu rosto em vapor gelado. O fato de que cada pequena coisa o lembrava de Angeline o fez esboçar um sorriso melancólico. Acho que estou me sentindo sozinho, afinal... Poderia fazer o que quisesse em relação ao dever e à responsabilidade, mas se fosse honesto consigo mesmo, sempre ficaria mais feliz por tê-la por perto.
“Sou um pai sem esperança.” murmurou. Sua mão coçou a cabeça antes de se recompor e retomar sua jornada. O terreno subia gradual e Belgrieve pretendia se aventurar mais acima na montanha hoje. Tendo passado grande parte de seu tempo trabalhando em escritório este ano, ansiava por estar cercado por árvores por um tempo. De vez em quando, pegava frutas e uvas ou vinhas que estavam ao alcance de sua mão e as colocava na cesta. Sua caminhada continuou sua subida, sempre atento ao ambiente. Procurar alimentos por conta própria era um trabalho divertido, para ele. Quando conduzia as crianças pela floresta, precisava estar sempre atento a elas, por esse motivo nunca poderia se permitir relaxar assim.
Encontrando uma clareira, Belgrieve aproveitou a oportunidade para recuperar o fôlego. Sentou-se em uma pedra próxima e bebeu um gole de água de seu cantil. De lá, podia ver a fumaça da chaminé à distância desta posição privilegiada.
“Juntei uma boa quantidade de vinhas... E agora...” quando começou, pretendia subir mais longe e procurar mirtilos-vermelhos também, porém pensou melhor agora.
“Não... Vou esperar.”
Era um trabalho melhor realizado quando Angeline estava por perto. Além de querer realmente comer alguns, ela estava bastante ansiosa para escolhê-los ela mesma. Se continuasse por sua conta hoje e trouxesse alguns para casa, Angeline acabaria comendo antes que pudesse procurá-los por conta própria, e talvez acabasse diminuindo a alegria que sentia.
Estes serão seus primeiros mirtilos-vermelhos em anos. Querer deixá-la se divertir tanto quanto possível é muito arrogante da minha parte? Belgrieve se perguntou.
“É uma boa hora para voltar.”
Belgrieve tomou outro gole de água e olhou para o azul indomável. Ao longe, viu um milhafre mergulhando bruscamente sobre alguma presa desavisada.
○
As estradas recém-pavimentadas sem dúvida tornaram muito mais fácil viajar. A distância que percorriam era difícil de avaliar até chegarem às estradas escarpadas e ainda não reformadas no caminho para Turnera. Em comparação com as estradas planas pelas quais gostavam de andar até agora, que eram suaves o suficiente para um passageiro tirar uma soneca à tarde, a carruagem balançava tanto que era difícil relaxar.
As obras na estrada foram realizadas simultaneamente em Rodina e Turnera. Entre esses dois projetos havia um trecho de estrada indomável, onde dormir era a menor das suas preocupações. Se tentassem falar, a carruagem poderia dar uma guinada repentina e fazê-los morder a língua, de modo que todos mantiveram suas declarações ao mínimo. Mas isso não durou muito e logo estavam andando no trecho da estrada confortável mais uma vez que estava sendo construída a partir de Turnera.
Algum dos meus amigos faz parte da equipe de construção? Angeline se perguntou. Foi uma temporada movimentada, então era provável que todos tivessem voltado para casa para ajudar no início do outono.
De qualquer forma, Turnera estava perto. O grupo deixou Rodina de manhã cedo com a expectativa de chegar antes do meio-dia. Quando ficaram na pousada de Rodina na noite anterior, Angeline estava tão animada que não conseguiu dormir, e o amanhecer chegou enquanto seguia se revirando na cama. O balanço suave da carroça a embalou num sono inadvertido até que recebeu um tapinha no ombro, despertando-a de volta.
“Hã?”
“Whoa!” Miriam ficou surpresa. “F-Foi tão surpreendente?”
“Eu... Cochilei?” Angeline perguntou.
Anessa sorriu.
“Você estava num sono profundo, com uma expressão feliz no rosto.”
“Ugh...” Angeline coçou a cabeça timidamente.
Marguerite, que estava olhando pela janela, virou-se para ela.
“Estamos quase lá. Veja — a floresta ficou toda vermelha.”
Angeline espiou pela janela por cima do ombro de Marguerite. A grama caída balançava por todas as colinas ao longo da estrada que possuía uma leve inclinação. Os picos distantes acima da copa carmesim das árvores brilhavam a luz do sol, refletindo a cor azul do céu acima. A visão nostálgica e o cheiro da fumaça da chaminé a saudaram.
Angeline deu um leve beliscão a própria bochecha.
“Estou em casa...”
Só de ver a paisagem de sua terra natal já bastava para enchê-la de alegria. Estava ausente há apenas meio ano, porém estava tão feliz que não sabia o que fazer consigo mesmo. Ela ficou surpresa por ter conseguido resistir cinco anos antes disso.
Mesmo quando Angeline voltou ao seu lugar, seguia estando tão inquieta que sentiu que poderia sair da carruagem a qualquer momento, contudo elas ainda tinham um longo caminho a percorrer. Tentando se consolar por enquanto, se resignou a abraçar Miriam. A garota era macia e, convenientemente, estava sentada bem ao seu lado.
“Eep.” Miriam gemeu. “O que você está fazendo?”
“Hehehe...” Angeline enterrou o rosto na suavidade de Miriam e se aninhou. Miriam se contorceu com cócegas, no entanto Angeline a segurou com firmeza e não estava disposta a deixá-la escapar.
“Pare com isso!”
“Fique parada...”
Anessa suspirou.
“O que pensa que está fazendo?”
Marguerite e Helvetica riram de suas travessuras.
“Mas não é Merry que você quer que seja indulgente com você, certo?”
“Não estou tentando fazer com que sejam indulgentes comigo...”
Estou tentando conter minha vontade de fugir, ela quis dizer, entretanto estava emocionada demais para articular e, depois de tropeçar nas palavras, desistiu e agarrou Miriam de novo.
“Eep!”
“Tão macio...”
A luta continuou até que Sasha espiou pela janela. Como queria andar a cavalo hoje, assumiu a liderança desde que deixaram Rodina pela manhã.
“Ange! Estamos quase lá!”
“Eu sei. Estou feliz.”
“Sasha, poderia ir em frente e informar Seren que estamos chegando?”
“Entendido, mana!” Sasha gritou antes de galopar pela estrada.
Angeline soltou Miriam e fez beicinho.
“Tão injusto... Todas aquelas pessoas que sabem andar a cavalo estão trapaceando.”
Helvetica pareceu surpresa.
“Oh, você não é boa em montar, Ange?”
Angeline assentiu.
“Sou meio... Ruim com cavalos.”
“Hehe... Então até você tem algumas falhas.”
“Essa garota não passa de falhas.” brincou Marguerite, cutucando Angeline na bochecha.
Angeline agarrou seu pulso e puxou. Como Marguerite já estava desequilibrada, foi capturada sem dificuldade e mantida no lugar de Miriam, lutando para resistir.
“Pare!”
“A atrevida Maggie. Tome isto e isto!”
“Agh!”
Angeline fez cócegas em Marguerite. Não importa o quanto chutasse e se debatesse, a elfa não conseguia escapar de Angeline.
“Nada bom...” Anessa murmurou. “Ela está enlouquecendo de alegria.”
A carruagem seguiu em frente enquanto elas brigavam e, por fim, passou pelos portões da vila. Angeline sabia que havia trovadores nômades na praça porque já conseguia ouvir suas alegres melodias.
Helvetica espiou a multidão fervilhante.
“Oh querida, o festival já começou?”
“Não, ainda não... Chega muita gente antes do festival. Ainda mais, aposto, agora que as estradas foram trabalhadas.” explicou Angeline. Seguia estando inquieta, mas soltou Marguerite. Enfim libertada, a elfa ajeitou suas roupas desgrenhadas e recuperou o fôlego.
A carruagem entrou na praça da cidade, onde começou a desacelerar. Do lado de fora, ouviram alguém gritar em voz alta.
“Senhora Helvetica está aqui!”
Angeline não podia esperar mais. Antes mesmo que a carruagem parasse, abriu a porta e saltou, fazendo com que os olhos dos espectadores se arregalassem.
“Hã? É uma carruagem de Bordeaux, mas Ange saiu!”
“Sempre chamativa.”
“Bem-vinda de volta, Ange.”
Rostos familiares a cumprimentaram por sua vez.
“Voltei!” Angeline exclamou, acenando com as mãos e olhando em volta. Como os vendedores ambulantes haviam se instalado, pensou ter visto alguém de sua família, porém nenhum deles estava por perto.
“Quão impaciente. Acalme-se um pouco.” Anessa a repreendeu enquanto descia da carruagem e batia na nuca de Angeline.
Angeline se virou, mordendo o lábio.
“Quero dizer...”
“Já sei. Eu entendo que está feliz.”
“Srta. Angeline!” gritou a mascate de cabelo azul, correndo para cumprimentá-las.
“Oh!” Angeline agarrou a mão estendida da mulher. “Já faz um tempo... Você está bem?”
“Sim, graças a vocês! Senti sua falta — eu mesma cheguei ontem.”
“Hã, ontem? Então viu o pai?”
“O encontrei ontem. Não o vi por aí hoje.”
“Entendo...” Angeline olhou para a barraca da mulher. “Hum... Vou dar uma boa olhada no que tem aí mais tarde.”
A vendedora assentiu com um sorriso brilhante no rosto.
“Claro. Estarei esperando!”
Yakumo e Lucille desceram da carruagem, logo seguidas por Ishmael, de aparência abatida. As orelhas caídas de Lucille balançavam enquanto dedilhava seu instrumento.
“Oh, é uma festa! Deixe os bons tempos rolarem!”
“Este é um lugar tão bom quanto qualquer outro para desembarcar. Estou com fome... Hey, Ange, que tal encontrarmos algo para comer aqui?” Yakumo sugeriu.
“Estou bem... Vou comer em casa.”
“Oh? Entendi. Muito bem, comprarei algo antes de passar por lá.”
Enquanto Angeline pensava em deixar as malas em casa, Sasha e Seren saíram de um prédio desconhecido.
“Angeline!” Seren disse, correndo. “Vocês todos vieram!”
“Oh...” Angeline deu um tapinha gentil na cabeça da garota. “Já se acostumou com Turnera, Seren? Vai morar aqui agora?” perguntou.
Seren sorriu.
“Sim, parece que vou passar o inverno aqui este ano. Sir Belgrieve está me ajudando muito, e todos os outros também. De uma forma ou de outra, acho que ficarei bem.”
“Entendo. Que bom.” disse Angeline, e estava falando sério. Ela olhou para o novo prédio. Era a mansão de Seren e o novo centro do governo em Turnera. Era um edifício esplêndido, com paredes caiadas, de estilo arquitetônico diferente de qualquer outro edifício da vila. Ocorreu a Angeline que poderia passar muito mais tempo com Seren se ficasse no inverno. A ideia tornava-se cada vez mais tentadora e a sua determinação vacilava. Começou a se perguntar se poderia adiar o retorno a Orphen até a primavera.
Helvetica saiu da carruagem em seguida.
“Seren, parece que está se saindo bem. Você está gerenciando sua carga de trabalho corretamente?”
“Sim, mana — de alguma forma, com a ajuda de todos.”
Pensando bem... Nas cartas de seu pai, ele mencionou fundar e gerenciar a guilda ao lado de Seren. Talvez ela pudesse encontrá-lo aqui agora.
“É verdade — o pai está aqui?” Angeline perguntou.
“Sir Belgrieve? Não, ele mencionou subir a montanha hoje.”
“Hã? Não está?” Helvetica choramingou, com os ombros caídos.
Angeline encolheu os ombros. Ficou um pouco decepcionada por não encontrar o pai no momento em que havia chegado, logo depois de uma viagem tão longa, contudo não havia nada que pudesse fazer a respeito.
“Se subiu a montanha, é provável que esteja de volta à noite.”
“Hmm, pensei que poderia aprender outra lição com o Mestre.” disse Sasha, com os braços cruzados.
“Meu tio-avô ainda está por aí. Provavelmente.” Marguerite sugeriu, casualmente cruzando as mãos atrás da cabeça.
“Oh! Então vamos até Graham!”
Seren balançou a cabeça.
“Calma, Sasha. Vocês acabaram de chegar aqui.” Angeline e suas amigas riram dela.
Mudando de assunto, Angeline virou-se para Helvetica.
“Estou indo para casa... Posso pegar minhas coisas?”
“Certo, tenho certeza que quer ver sua mãe. Vou preparar um chá, então volte mais tarde.”
“Ok!”
Enquanto descarregavam as carruagens, Lucille — que deveria estar fazendo compras — aproximou-se de Angeline e sussurrou em seu ouvido.
“Tenho certeza disso agora. O senhor Ishmael tem um cheiro diferente.”
“Sério...? No entanto o que há de errado nisso?”
“Meu nariz é bom o suficiente para farejar diferenças de mana... Costumava ser sutil, entretanto acho que a diferença está aumentando cada vez mais. Essa pessoa é mesmo o Sr. Ishmael?”
“Bom, ele se lembrou de todas as coisas que fizemos em nossa aventura juntos...”
“Bem... Pode ser apenas minha imaginação. Porém tenha cuidado, Ange. Como disseram uma vez as pessoas do passado, ‘prepare-se para o pior’.”
“Sim... Vou manter o aviso em mente.”
Lucille trotou de volta até os vendedores. Angeline lembrou como Ishmael se tornou bastante assustador na noite anterior à partida de Orphen, contudo balançou a cabeça. O homem estava apenas bêbado na hora. Não deve haver mais do que isso.
Angeline e os membros de seu grupo foram para sua casa com as malas penduradas nas costas. Só de olhar para as sebes e arbustos no caminho para casa a deixou tranquila. A sensação de voltar para casa estava em seus ossos agora.
“Ainda o mesmo.” disse Marguerite. “Bom, acho que não é nenhuma surpresa.”
“Faz apenas meio ano. Não vai mudar muito... Bem, o caminho está bem mais organizado.” observou Anessa.
“Sim, e a mansão de Seren é tão bonita. Eu me pergunto como é por dentro.” Miriam se perguntou.
O tempo estava esplêndido, com apenas algumas pequenas nuvens no céu. Elas ainda podiam ouvir a música na praça. O povo errante estava animado; a maioria tocava um instrumento ou dançava ao som da música. Tê-los por perto sempre tornava o festival mais divertido.
Os aromas misturados de gado, palha e fumaça, entre outras coisas, eram característicos do ar de Turnera, e Angeline ficou encantada em deleitar-se com isso. Estava mais gelado do que em Orphen ou Bordeaux, no entanto fazia com que cada respiração parecesse revigorante.
Embora esperasse ver todos os seus amigos e familiares esperando por ela em casa, ainda sentia que algo estaria faltando.
“Pai... Se apresse e volte para casa.” murmurou. Não importa o que acontecesse, ver o pai sempre foi o melhor para Angeline.
Angeline deu uma risadinha. É estranho — somos nós que estamos visitando, contudo agora somos nós que vamos esperar o retorno do pai. Angeline refletiu sobre o que diria quando Belgrieve por fim voltasse. “Bem-vindo ao lar” era a coisa certa a dizer ao receber alguém que havia saído, mas pareceu estranho para Angeline.
“Não... Não está exatamente ‘fora de lugar’, porém...”
Quero que meu pai me receba em casa, e não o contrário.
“Sobre o que está resmungando?” Marguerite cutucou-a nas costas.
“Não... Não é nada.”
“Phew, o ar com certeza está bom e limpo.” disse Miriam, esticando as costas enquanto caminhavam.
“Mesmo que esta não seja minha casa, é calmante, de alguma forma...” disse Anessa.
Angeline olhou em seu rosto.
“Sério? É quase a sua terra natal agora, não é?”
“Huh, hmm, bem... Talvez...?” Anessa disse, coçando timidamente a bochecha. Miriam riu dela.
Angeline olhou para a montanha próxima. Eu me pergunto em que parte o pai está? Angeline se perguntou. Seus olhos permaneceram na floresta tingida em tons vívidos de outono, e de repente se lembrou dos mirtilos-vermelhos.
Acho que sairei logo pela manhã. Vou levar Char, Mit, Hal e Mal. São tantos miritlos-vermelhos que você pode colher quantos quiser e nós encheremos todas as nossas cestas. Só de pensar nisso sua expressão suavizou.
Elas conversaram à toa o tempo todo. Em pouco tempo, uma casa familiar estava à vista. A roupa suja tremulava no varal do quintal e, perto do poço, Angeline viu sua mãe curvada e trabalhando em alguma coisa. Ela foi movida por uma alegria avassaladora e praticamente voou para o lado da mãe, apesar das pesadas malas nas costas.
Satie ouviu passos fortes e se virou. Assim que chegou ao quintal, Angeline jogou a bagagem de lado e se agarrou a Satie.
“Mãe! Estou em casa!”
“Whoa!” Satie ficou atordoada com o ataque repentino, mas conseguiu manter o equilíbrio sem cair e abraçou Angeline de volta, sorrindo. “Que garota travessa. Não me surpreenda assim.” Sua mão esfregou com suavidade as costas de Angeline e com a outra acariciou a cabeça da filha.
As duas tinham quase a mesma altura, porém Angeline ainda se sentia segura em seus braços. Ela riu e acariciou sua mãe com a bochecha.
Satie sorriu.
“Bem-vinda ao lar, Ange. Você tem se comportado bem?”
“Sim! Então, sabe, quero dizer, há muitas coisas sobre as quais quero falar...”
“Tudo bem. Não precisa se apressar. Todo mundo está fora agora. Vai ficar por aqui desta vez?”
“Não sei. Estarei aqui até o festival acabar, pelo menos... O pai também saiu?”
“Sim. Ele partiu para a montanha com um almoço embalado, então acho que estará de volta à noite... Sério, saindo no pior momento possível.”
Anessa olhou para as duas paradas uma diante da outra.
“Elas realmente não se parecem com mãe e filha...”
“Sim.” Miriam concordou. “São mais como irmãs.”
“Hey, Satie. Nós também estamos aqui.” disse Marguerite, interrompendo sem tato o reencontro. “Tem alguma coisa para comer?”
Todas ajudaram a trazer suas malas enquanto estavam se reconectando. Fazia apenas meio ano, porém esse período estava repleto de vários acontecimentos e não faltavam assuntos para conversar. O principal problema passou a ser por onde começar.
Exultante com sua volta para casa, Angeline esvoaçou quase como se seus pés não estivessem tocando o chão, e até abraçou Byaku quando este voltou do campo, ganhando uma carranca desagradável dele. Por fim, chegou a hora do almoço e Kasim e Percival voltaram da pescaria. Logo se juntaram a eles as crianças que tinham ido cuidar das ovelhas, e a casa em pouco tempo se encheu de energia. Angeline falou sobre o que estava ansiosa para fazer durante a estadia e, sem perder o ritmo, puxou Charlotte, Mit e as gêmeas para um abraço. Ela estava simplesmente dominada pela alegria.
Hal e Mal gritaram de alegria em seu abraço.
“Ange é tão forte!”
“Incrível!”
“Hehe, contemple o meu poder de irmã mais velha...”
“Mesmo assim, Bell está no alto da montanha, hein?” Marguerite disse. “É raro que tenha ido sozinho.”
“Bell tem estado envolvido com o trabalho da guilda nos últimos tempos.” disse Kasim. “Talvez só precise se livrar de alguma frustração reprimida?” Kasim assentiu. “Aposto. Tenho certeza de que precisa respirar de vez em quando.”
“Meninos...” Satie repreendeu. “Se acham que é tão sério, por que não lhe oferecem uma mão de vez em quando?”
Os dois homens desviaram os olhos envergonhados.
Pela primeira vez em muito tempo, todos se sentaram à mesa entre amigos que conseguiam acompanhar a energia uns dos outros. Mesmo que a refeição não tivesse sido preparada pelo pai de Angeline, qualquer coisa tinha um sabor delicioso para Angeline quando comia em casa. Curiosamente, a comida que Satie preparava muitas vezes se assemelhava à culinária de Belgrieve em termos de tempero. Quando apontou isso, sua mãe sorriu e coçou a bochecha.
“Bem, foi Bell quem me ensinou a cozinhar, no começo... E já moramos juntos há algum tempo. Acho que pode dizer que ele teve um efeito sobre mim.”
Percival e Kasim sorriram.
“Claro, ele te ensinou... No entanto naquela época, as coisas que você fazia nem podiam ser chamadas de comida.”
“Você só fervia tudo sem mexer, então o ensopado ficava sempre queimado, e quando servia, raspava o fundo, então os pedaços nojentos carbonizados flutuavam com todas as coisas boas.”
“Hey, por que vocês idiotas se lembram disso tão claramente?”
Em meio a essas brincadeiras, Yakumo e Lucille apareceram.
“Perdoe a intrusão. O que foi? Já estão de volta ao ritmo normal das coisas?”
“Vocês também estão aqui?” Percival pareceu surpreso ao vê-las, contudo não perdeu o ritmo e continuou fatiando o pão para distribuir pela mesa.
Yakumo deu um sorriso irônico ao encontrar uma cadeira próxima.
“Ange nos persuadiu. Meu Deus, não pensei que voltaria aqui tão cedo...”
“Hehehe... É o destino em ação. Está com fome?”
“Até alguns momentos atrás. Já compramos algumas coisas antes de chegarmos aqui.”
“Isso é muito bom...” Lucille estendeu um filé de porco assado embrulhado em papel. Seu aroma flutuou pela cozinha.
Mit e as gêmeas aplaudiram. Ainda que tivessem uma refeição pela frente, as crianças adoravam carne.
Miriam inclinou a cabeça.
“E o Sr. Ishmael?”
“Ele foi conversar com um mascate. Eu disse a ele como chegar aqui, então acho que chegará mais cedo ou mais tarde.”
Turnera não era uma vila grande. A casa de Belgrieve ficava um pouco afastada, mas também significava que não havia nada por perto e era difícil não notar.
A conversa girou em torno de suas respectivas memórias e viagens ao longo do ano passado. Quando suas barrigas ficaram cheias, todos ajudaram a limpar a mesa e seguiram caminhos separados. Sasha implorou a Graham por uma luta, então o velho elfo partiu para a praça da vila com sua grande espada; Mit, Charlotte e as gêmeas o seguiram. Kasim dirigiu-se ao canteiro de obras do salão da guilda para ajudar a mover madeira pesada com sua magia. Yakumo e Lucille queriam dar uma olhada nisso e o acompanharam. Por sua vez, Miriam estava deitada de costas no chão, segurando uma almofada nos braços, Anessa cuidava do arco, Percival e Marguerite sentaram-se com um tabuleiro de xadrez entre eles e Byaku voltou a tecer uma cesta que havia ficado pela metade.
Angeline estava tão ansiosa pelo retorno de Belgrieve que não queria sair de casa, porém seu entusiasmo também estava começando a esgotá-la. Ficar sentada a deixava sonolenta, todavia se adormecesse agora, perderia a chance de dizer, “Estou em casa”. Então balançou a cabeça e saiu para tomar um pouco de ar fresco. Encostada na cerca do quintal, olhou distraída para as fileiras de casas.
O sol havia mergulhado um pouco e sua luz estava perdendo um pouco de seu calor. A luz lançada na montanha começava a ficar tingida de vermelho. De pouco em pouco nuvens finas surgiram do norte, e agora era como se um fino véu tivesse sido lançado sobre o céu azul. Ela podia ver nuvens ainda mais escuras mais ao norte. Aquelas nuvens estavam se aproximando e, lentamente, o véu ficou mais espesso e pairou pesadamente no alto. O vento estava úmido e frio; parecia que a chuva estava por vir. Nesta época do ano, uma boa tempestade derrubaria todas as folhas das árvores, pensou Angeline.
Satie saiu correndo para o quintal.
“O tempo está mudando. Ange, me ajude a pegar a roupa.”
“Sim mãe.”
Sua família era grande, então havia muito para trazer. Enquanto corria pelos varais, Anessa e Miriam saíram de casa para ajudar, enquanto Byaku correu de volta para recuperar os implementos agrícolas que havia deixado de fora.
“Agh, o vento está tão frio.” disse Miriam enquanto enfiava uma pilha de roupa suja em uma cesta, que Anessa pegou.
“Vai ficar muito desagradável lá fora... Todos deveriam estar voltando agora.”
A praça da cidade ficou em silêncio. Os menestréis do povo errante pararam de tocar suas canções enquanto o vento gelava suas mãos. Angeline rezou para que o clima voltasse a aquecer a tempo para o festival de outono.
Enquanto trazia a roupa lavada correndo para dentro e os vegetais que haviam sido colocados para secar, ouviu alguém vindo atrás dela na estrada.
“Que bela casa. Posso sentir a gentileza e o calor.”
Angeline se virou assustada. Lá estava Ishmael, seu cabelo desgrenhado balançando ao vento.
“Senhor Ishmael?”
“Um convidado?” Satie perguntou, suas mãos parando por um momento.
“Sim, este é o Sr. Ishmael. Lutamos juntos no Umbigo da Terra e ele nos guiou de lá para a capital.”
Ishmael curvou educadamente a cabeça.
“É um prazer. Ouvi tudo sobre você através de Angeline.”
“O prazer é todo meu. Parece que você cuidou da nossa Ange. Obrigado.” disse Satie, embora tivesse uma expressão um tanto perturbada no rosto.
“O que há de errado, mãe?”
“Não é nada...” Satie olhou para a bolsa de Ishmael e inclinou a cabeça. “Hmm, você trouxe algumas ferramentas encantadas?” “Hã? Ah, sim, afinal sou um mago. Sempre tenho algumas comigo. Por exemplo, isto aqui...” Ishmael enfiou a mão na bolsa para tirar algo. Ele estava segurando um galho de maçã com folhas frescas ainda crescendo.
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