sábado, 4 de maio de 2024

Slayers — Volume 02 — Capítulo 06

Capítulo 06: Que tal não aceitar todos os trabalhos que caem no nosso colo?
















A taverna era uma zona de guerra.

Ei, estou te vendo aí, saltando para conclusões. Isto não foi minha culpa, ok?

Era como uma cena saída direto do inferno, no entanto. Socando, chutando, mordendo. Tabelas derrubadas. Comida voando por toda parte, algumas ainda no prato.

Que desperdício trágico...

Veja, estávamos nessa pequena interseção aqui na Cidade Atlas e, embora o jantar não fosse ruim, os clientes eram podres. De verdade.

Mercenários, arruaceiros e vagabundos, aos montes. Existem certos lugares que apenas atraem esse tipo de pessoa naturalmente, e parecia que este era um desses casos. A pancadaria se tornara autossustentável neste ponto e não parecia que acabaria tão cedo.

Ah, lá vai outro pro chão.

Oh, e então não vá tendo ideias erradas, não sou nenhuma dessas coisas que acabei de dizer. Não sou mercenária, não sou arruaceira e certamente não sou uma vagabunda. Só queria boa comida. Este lugar recebe ótimas críticas, e uma briga, por acaso, estourou enquanto eu estava por aqui. Não tinha obrigação de participar. Sou uma pacifista, sabe? Então, como qualquer bom pacifista, fiquei agachada debaixo de uma mesa em um canto, mastigando um pouco de frango e assistindo ao show.

Como tudo isso começou, você pergunta? Bem, era a coisinha mais boba. Veja...

“Ei. Está sozinha, docinho?”

O cara que veio até mim escolheu fazê-lo enquanto eu estava sentada no balcão, polindo minha quarta tigela de sopa de macarrão. Ele era um ruivo e não lá muito bonito, embora penso que não estava sem o seu charme. Notei a espada bastarda¹ em suas costas como sua arma pessoal, e sua roupa consistia em uma túnica, calça, botas e armadura de couro. Resumindo, o típico mercenário.

Dei uma olhada para o cara uma vez e depois voltei para minha tigela agora vazia.

“Tenho um companheiro. Vou experimentar o frango refogado dessa vez, por favor.” respondi levianamente enquanto passava meu próximo pedido ao cozinheiro.

O homem ressoprou, depois resmungou para mim com um abanam do dedo. Acho que pensou que o fez parecer legal.

“Ei, não seja tão fria. Se esse seu companheiro está deixando uma gracinha como você por conta própria, não é alguém que valha a pena se preocupar, não é?” ele disse, colocando com todo descaro a mão no meu ombro.

Não ia me opor à parte ‘gracinha’ (sou extremamente graciosa, é claro), mas se eu desse uma chance para todos os caras que tentassem uma cantada como essa em mim, não duraria um mês.

“Então, qual é o seu nome?”

“...”

“Eu sou Lantz.”

“...”

“Vamos, diga algo.”

Apalpar.

Senti uma sensação estranha na minha bunda. Espere, ele acabou de fazer algo tão repulsivo? Minha mão se moveu antes que pudesse me dar conta, pegando uma bandeja próxima do balcão e acertando-a na sua cabeça. Estava esperando um ‘Thunk’ adequado, porém em vez disso consegui...

Crack!

Hã, foi mais alto do que eu esperava... Oh, merda, acertei ele com o canto da bandeja! Contudo isto foi legítima defesa! Juro! Quero dizer... Não foi?

“Blarghragh!” Lantz soltou um grito dramático, cambaleou de forma exagerada e bateu em uma mesa próxima.

Claro, havia pessoas sentadas naquela mesa.

“Ei! O que diabos pensa que está fazendo?”

Um deles empurrou Lantz com força, fazendo-o voar... Direto para outra mesa. Naturalmente, o mesmo tipo de confusão se repetiu ali.

E, em pouco tempo, todo o lugar começou a brigar.

Viu? Quando se analisa passo a passo, esse cara, Lantz, foi o verdadeiro responsável pela confusão! Fui uma vítima inocente das circunstâncias! Não concorda?

“Diga, Lina, por que a pessoa que começou tudo isso está escondida aqui?”

Uma voz familiar interrompeu de repente meus pensamentos e me virei para ver um cara loiro bonito usando um peitoral preto e uma espada longa. Ele estava agachado ao lado da mesa, olhando para mim com desconfiança. Este era meu companheiro de viagem mencionado (recentemente adquirido), Gourry.

“A pessoa que começou tudo isso? Do que está falando?” perguntei enquanto mordia um pouco de peixe frito.

Gourry não perdeu tempo e pegou um pouco da carne com osso que eu estava guardando no prato e deu uma mordida.

“Estou falando de você. Quem nocauteou aquele cara com a ponta de uma bandeja?”

“Você viu aquilo?”

“Quando eu estava voltando do banheiro.”

“Ei, sou a vítima aqui! Aquele cara começou a dar em cima de mim e então tocou minha maldita bunda! Minha bunda! E sem nem pagar!”

“Você deixa as pessoas pagarem por isso?”

“Não é o que estou dizendo!”

“Ao menos sabe o que está dizendo?”

“Claro que não!”

“Olha...” Gourry suspirou, colocando os dedos nas têmporas. “Poderia ter mostrado um pouco de moderação. Dessa forma, eu poderia ter lidado com tudo de uma maneira mais discreta.”

Voltei meu olhar para Gourry.

“Há momentos em que você absolutamente não deve mostrar moderação, nem por um segundo! Só está falando todo convencido porque nunca teve sua bunda acariciada por algum idiota esquisito!”

“Bem, acho que é verdade...” Gourry coçou a cabeça, parecendo perturbado por um momento antes de voltar sua atenção para a briga cada vez mais intensa. “Mesmo assim, não pode só deixar essa situação continuar.”

“O quê? Acha que se me metesse acalmaria as coisas?”

Quero dizer, é verdade que sair saltando com uma Bola de Fogo daria a todos algo maior com que se preocupar... No entanto eu tinha uma pequena ressalva em relação a esse plano: vim aqui para comer, não para ser presa.

“Sim, tem razão. É bem provável que só pioraria as coisas.”

“Então é melhor eu esperar aqui, viu?”

“Hmm...” Gourry ficou pensativamente em silêncio.

“Na verdade, talvez esteja certo. Devo fazer minha parte para tentar acabar com essa confusão... Ah, já sei!” levantei um dedo declarativo. “Que tal isso? De repente vou gritar e cair. Quando o fizer, você estará parado do meu lado, com a espada na mão, e dirá algo como, ‘Heh, fácil demais’. Aposto que todo mundo vai parar de brigar para ficar boquiaberto.”

Gourry fez uma careta para a ideia.

“E vai me inocentar do assassinato depois... Como, diga, por favor?”

“Eh, bom... Vamos descobrir um jeito.”

“Preciso de um plano melhor do que esse! Posso acabar preso!”

“Vamos, é só uma parte da diversão!”

“Óbvio que não é!”

“Caramba, que estraga prazeres. Mas, hmm, nesse caso...”

Quando estava prestes a compartilhar minha próxima grande ideia, uma súbita rajada de vento soprou pela taverna e rapidamente acalmou o caos lá dentro. Viajando como uma onda que irradia da porta, ela silenciou os gritos e vaias do combate em sussurros chocados.

Gourry se levantou e olhou para a entrada da taverna, soltando um zumbido curioso. Intrigada com a comoção, também me levantei atrás dele e espiei para ver a origem da nova perturbação.

Na porta estava um homem que parecia estar envolto em escuridão. Seus cabelos eram longos e da cor do ébano, usava uma espécie de túnica preta feita de um material que não reconheci. Um lenço cobria sua boca e usava uma espécie de espada longa nas costas que não me era familiar.

O homem parecia ter mais ou menos a mesma idade de Gourry, não muito mais de vinte anos... Porém, em vez do ar evasivo de Gourry, tinha uma qualidade ameaçadora que me causou um arrepio na espinha. Foi precisamente isso que fez com que os outros clientes se calassem tão de repente.

Ficou bem aparente que aquele homem era um espadachim habilidoso, habilidoso o suficiente para que Gourry notasse sua presença. Em resumo: o cara era bonito o suficiente, contudo sem dúvida também era o tipo de pessoa que ia gostar de manter longe o tempo todo.

“Estou procurando guarda-costas.” disse o homem.

Sua voz era tal qual se esperaria, fria, no entanto nítida... Sim, como uma lâmina super afiada, você poderia dizer.

“Se você quer dinheiro e tem confiança em suas habilidades, então se apresente. Mestre Talim é o patrocinador. O trabalho paga bem.” ele continuou sem rodeios.

Hmm... Eu o daria um C menos em seu discurso, entretanto um A para maior clareza. Mesmo assim, o interior da taverna permaneceu silencioso e imóvel como um terreno baldio.

Veja, atualmente havia uma confusão acontecendo aqui na Cidade Atlas. O presidente do conselho dos feiticeiros da cidade, Halciform, o Branco, desapareceu há cerca de seis meses. Seus dois vice-presidentes, Talim, o Roxo, e Daymia, o Azul, lutavam por sua vaga desde então. Ao que parece, o Sr. Todo de Preto estava aqui recrutando gente para o lado de Talim.

É claro, não estou interessada em me envolver na luta pelo poder de outra pessoa, mas...

“Vou ouvi-lo.” falei, levantando-me.

“Espere, você está...”

A pessoa que interrompeu foi o idiota que começou a briga tocando minha bunda, o vil e maligno Lantz. Depois de sua abertura desfavorável descrita acima, passou a maior parte da luta sendo nocauteado de maneira semelhante. Seu rosto estava, portanto, em uma forma deplorável.

Aw, coitadinho! Hehehe...

Porém, embora Lantz tenha me interrompido, um olhar do homem de preto o silenciou.

“O que você está fazendo aqui?” ele perguntou.

Espere, então esse cara e Lantz se conhecem? Nossa, escolha amigos melhores! Vocês dois!

“M-Mestre Rod...” Lantz gaguejou. “Bem, é que... Mestre Talim me enviou para fazer uma pequena incumbência, e eu...”

“Se sua missão terminou, pode voltar agora.” respondeu o homem de preto sem rodeios.

Depois, sem dedicar mais um olhar a Lantz, voltou-se uma vez mais para mim. Senti outro arrepio percorrer minha espinha quando seus olhos sombrios olharam direto para os meus.

“Você é uma feiticeira?” ele perguntou.

No momento, estou usando uma roupa nova que acabei de comprar na cidade: uma túnica creme com um robe índigo e calças combinando. Também tenho uma bandana preta, minha espada no quadril e minhas ombreiras raspadas de tartaruga nos ombros, completadas com uma capa preta pendurada nelas. Tudo estava cravejado aqui e ali com amuletos de joias também, então, sim... Todo o traje meio que gritava ‘feiticeiro’.


Claro, conheci um idiota que pensou que eu era peixeira ou garçonete...²

“Você tem fogo em seus olhos. Qual o seu nome?”

“O que geralmente acontece é que o cara que está contratando se apresenta primeiro.” falei num tom alegre, embora já soubesse o seu nome.

Claro, por dentro, estava suando muito. O homem parecia o tipo de cara que pularia em você pela menor ofensa. Todavia não podia me deixar intimidar.

“Rod.” ele respondeu, mais prontamente do que esperei.

Soltei um suspiro silencioso. Esse cara era cansativo!

“Eu sou Lina.”

“Oh?”

Captei um leve tom de interesse em sua voz.

“Então você é Lina, não é? Ouvi os rumores.”

Ruins, presumi. Já sabe, Assassina de Bandidos e Rainha da Destruição e todo aquele dramalhão.

“Muito bem. Siga-me.” disse Rod, ao se virar.

Achei que deveria acompanhá-lo por enquanto.

“Vamos, Gourry?”

“O que, eu também?” ele perguntou enquanto se levantava sem cerimônia.

E assim que o fez... Rod saltou direto para nós, com a mão no punho da espada!

Tinha certeza de que iria desembainhar a espada, e estava certa de que não seria o único. Toda a taverna esperava que uma sangrenta luta de espadas começasse.

Todos, exceto, pelo que parecia, Gourry.

Ou estava alheio ao que estava acontecendo ou estava apenas se fazendo de bobo, porque no segundo em que Rod estava prestes a atacar, Gourry se abaixou, pegou do prato um bolinho frito que estive guardando e colocou-o na boca.

O ar de hostilidade que pairava sobre Rod diminuiu, embora ainda tivesse uma intensidade que estava muito além de um espadachim típico.

“Nada mal.” comentou.

“Bem, gosto de pensar que estou acima da média, ao menos.” Gourry deu uma modesta resposta à avaliação de Rod.

Ok, então... Meu garoto Gourry aqui pode ter falta de inteligência, bom senso, acuidade mental e sabedoria, entretanto também é um espadachim de primeira classe. Gostaria de pensar que estou acima da média com uma lâmina, mas sabia que não poderia me comparar a Gourry.

Rod foi capaz de perceber a habilidade de Gourry em um instante.

“Adoraria duelar com você algum dia.” disse ele.

“Porém o trabalho vem primeiro, certo?” Gourry respondeu alegremente.

“Exato. Primeiro o trabalho, depois a violência!” brinquei.

“Poderia escolher uma forma menos incendiária de mostrar apoio?” Gourry brincou de volta enquanto me batia na cabeça.

———

A Cidade Atlas era uma próspera cidade-castelo construída em torno do Castelo Vale, lar do Duque Litocharn, e era uma espécie de centro comercial. Ao meio-dia, suas ruas ficavam lotadas de barracas e carroças. Você sabe, o tipo de lugar divertido onde as pessoas adoravam brigar, onde ladrões e batedores de carteira corriam desenfreados e onde a justiça da multidão contra suspeitos de ladrões e batedores de carteira corria tão desenfreada quanto.

Contudo a essa hora do dia, toda aquela agitação havia diminuído. Os comerciantes das barracas empacotavam suas mercadorias enquanto as meninas voltavam para casa, exibindo seus lindos novos enfeites de cabelo. E sentado acima de tudo, no topo da colina com vista para a cidade, estava o Castelo Vale. Ardendo em carmesim ao sol poente, era uma visão pitoresca.

Caminhamos pelas ruas em direção a ele, os prédios ficando cada vez mais altos à medida que avançávamos. Essa configuração era comum em cidades-castelo como a Cidade Atlas. As instalações públicas e outros enfeites aumentaram à medida que se aproximava do castelo. O perfil e a qualidade de vida eram, portanto, muito mais elevados aqui.

Quanto ao edifício do conselho dos feiticeiros, teve o privilégio de ficar bem próximo do castelo. Qualquer cidade grande como esta provavelmente tinha uma igreja, um conselho de feiticeiros e uma guilda de guerreiros, todos com alguma influência na política local, no entanto... O conselho de feiticeiros aqui, na Cidade Atlas, era especial. Embora não esteja na verdade no nível do Sacerdócio Saillune, era bastante influente. Às vezes até mais do que o senhor local, o Duque Litocharn.

Considerando tudo, não fiquei nem um pouco surpresa ao saber que havia brigas internas por algo tão prestigioso quanto o assento do presidente. É só que... Ok, olha, os feiticeiros deveriam viver suas vidas ‘buscando a verdade’, sabe? E, pra ser bem franca, sendo eu mesma uma feiticeira, achei toda essa busca aberta pelo poder um pouco desajeitada.

Hmm? Como exatamente estou buscando a verdade, você pergunta? Não se importe com isso!

À medida que a cidade começava a mergulhar na escuridão, feiticeiros a serviço do Duque Litocharn lançavam feitiços de Iluminação pelas ruas. Hmm... Dado que cheguei à taverna um pouco depois do meio-dia, isso significava que o almoço e a briga que se seguiu ocuparam cerca de metade do meu dia. Não foi uma tarde muito produtiva, né?

“Diga, Lina.” disse Gourry, baixando a voz para poder sussurrar para mim sem que Rod ouvisse. “O que te fez querer aceitar esse trabalho? Foi você quem disse que não estava interessada em trabalhar enquanto estivéssemos aqui.”

Ele estava certo. Eu pretendia que nossa estadia na Cidade Atlas fosse totalmente voltada para R&R³. Ainda estava bastante desgastada por causa de um certo incidente grave em que me envolvi não muito tempo atrás (sem qualquer culpa minha, veja bem). Assim, disse a Gourry com bastante firmeza que não estaria disposta a trabalhar enquanto estivéssemos na cidade. No entanto...

“Era a única maneira de sair de lá impune.” sussurrei de volta. “Além do mais, ainda não concordei com nada. Tudo o que disse foi que iria ouvi-lo. Então, quando o fizer, posso apenas dizer, ‘Ah, tudo bem. Obrigado, mas não, obrigado’.”

“Não tenho tanta certeza assim...” Gourry coçou a cabeça. “Dado o que ouvi sobre Talim, não acho que seja o tipo de cara que aceitaria um não como resposta.”

“Então lutamos para sair. Se chegar a esse ponto, contarei com sua força, Gourry.”

Ele me dirigiu uma carranca mal-humorada.

“Viajar com você não é um bom presságio para a expectativa de vida de uma pessoa, não é?”

“Claro que não.” respondi com um sorriso.

Porém aquele sorriso desapareceu rapidamente. Eu me virei atordoada. Não havia nada além de multidões de pessoas passando, ainda...

“Algo errado, Lina?” Gourry perguntou.

“Eu, uh, acabei de ter a sensação de que alguém estava nos observando...”

“Oh, também sentiu isso?” ele perguntou como se não fosse nada.

Ugh, vamos lá, cara...

“Vamos pegar o caminho de volta.” Rod murmurou.

———

Meu nariz foi recebido com um odor desagradável e meus ouvidos foram tratados com o som de um cachorro latindo em algum lugar próximo. No momento, estávamos em um beco atrás de uma fileira de casas de aluguel de tijolos sujas, onde os raios do sol mal penetravam. Estávamos a apenas uma rua da avenida principal, todavia a mudança na atmosfera foi bastante acentuada. Claro, isso era bastante típico em uma cidade grande como esta.

Parecíamos ser as únicas pessoas viajando pela rua úmida e estagnada. Era bastante óbvio por que Rod escolheu vir por aqui: ele também sentiu olhares atentos sobre nós. Ao se mudar para uma área deserta, estava tentando atrair o observador para um local aberto. Nada como balançar a isca...

Rod parou de repente e anunciou.

“Já chega.”

Sabia com quem Rod estava falando.

“Ele está dizendo a vocês, assassinos, para pararem com a brincadeira.” acrescentei em voz alta.

Senti movimento. Vários homens apareceram por trás dos edifícios próximos, saindo para a rua para bloquear nosso caminho. Me virei para ver vários outros nos cercando por trás também. Seu vestuário era tão ostensivo que praticamente os anunciava: ‘Senhoras e senhores, somos bandidos!’.

Espere um minuto...

Já senti alguns olhares sobre mim antes, no entanto um deles foi assustador o suficiente para me dar arrepios. Era óbvio que não veio de ninguém dessa ralé. Quem foi então? Tinha certeza de que não tinha sido apenas minha imaginação...

“Você está trabalhando para Talim?” um dos bandidos perguntou, me trazendo de volta à situação em questão.

“Bem, ainda não tínhamos resolvido isso, na verdade...” Gourry disse, fazendo-se de bobo.

“Tenho certeza de que eles pretendem matá-los de qualquer maneira.” disse Rod friamente.

Todos os assassinos responderam com uma risada debochada.

“Não há escapatória agora, então acho que vocês terão que me mostrar o que podem fazer.” disse o espadachim de preto para nós... Bom, pra ser mais específica, para Gourry.

Não há escapatória agora, hein? Que presunçoso da sua parte, senhor! Quem foi que nos trouxe para esta confusão em primeiro lugar?

“Desculpe, mas vou passar.” disse despreocupada. “Ainda não concordei em aceitar o seu trabalho, e lutar contra esses caras aqui e agora vai acabar por me atar. Então, se você inventou essa pequena armação, desculpe, porém não vou cair nessa.”

“Acha que eu armei isso?” Rod perguntou, olhando-me de cima a baixo com olhos frios. “Espero que você não aceite o trabalho.”

“Hã?”

“Afinal, não posso lutar contra meus próprios aliados.” disse ele, olhando além de mim, direto para Gourry.

Que assustador!

“Contudo a sua avaliação está correta.” Rod continuou em um tom casual. “Vou me livrar deles por conta própria.”

Um murmúrio de excitação percorreu o grupo de assassinos. Um homem contra dez... Era fácil dizer, no entanto impossível de conseguir sem uma disparidade monumental de habilidade. Mesmo assim, tive a sensação de que Rod poderia conseguir. Poderia obter uma boa leitura da habilidade de uma pessoa apenas observando sua postura e, para ser honesta...

Esses assassinos eram simplesmente péssimos! O rival de Talim, Daymia, deve ter sido quem os contratou, mas caramba, que merda hein! É provável que não sejam mais competentes do que soldados novatos, se muito.

Ao completar minha avaliação, apontei para Rod e me dirigi aos assassinos.

“Vocês ouviram o homem! Se querem nos matar, terão que matá-lo primeiro!”

“Droga... Isso é severo.” disse Gourry estremecendo.

Ele com certeza percebeu que esses caras não eram páreo para Rod também. Não teria ficado tão calmo sobre todo o caso de outra forma.

“Malditos! Não nos subestime!” um dos homens gritou.

E com apenas aquela frase banal e sem brilho, atacou Rod. Seguindo seu exemplo, talvez, os outros assassinos sacaram suas armas. Rod os observou atentamente enquanto pegava a espada nas costas, e também saiu correndo.

Um assassino cruzou as lâminas com o vendaval negro que era Rod e, nem um momento depois, sua cabeça girou no ar. Despertado rudemente para o poder de seu inimigo, o homem por trás da primeira vítima estremeceu... Era tarde demais. Rod passou por ele e, sem mais nem menos, o homem estava morto. Os assassinos restantes ficaram abalados com razão.

“Tch! Retirada!” um dos homens gritou lá de trás.

Alguns podem argumentar que essa foi uma atitude covarde, porém também foi provavelmente a ideia mais inteligente que qualquer um desses idiotas teve o dia todo. Todavia, quando o assassino nas costas se virou para correr, um homem com uma espada bastarda e um rosto coberto de vergões bloqueou seu caminho.

Era Lantz, o idiota da taverna.

“Geh...”

Todos os assassinos congelaram no lugar. Um deles tentou atacar Lantz, no entanto foi derrotado após uma ou duas trocas sem dificuldade.

Hã, não esperava que esse perdedor fosse de fato decente...

Rod, que já havia eliminado seus próprios atacantes imediatos, se juntou a Lantz. A partir daí foi um massacre unilateral. A coisa toda acabou antes que Gourry ou eu pudéssemos fazer um comentário. Rod usou seu cachecol sem cerimônia para limpar o sangue de sua espada, depois lançou um olhar interrogativo para Lantz.

“Um grupo de homens saiu da taverna depois de você. Parecia que estavam te seguindo.” Lantz se explicou antes que Rod pudesse perguntar. “Acabei seguindo-os e descobri que estava certo. Entretanto tenho certeza de que você não precisava da minha ajuda...”

“Não precisei.” disse Rod sem rodeios.

Lantz ficou surpreso por um segundo, mas decidiu não insistir no assunto. Em vez disso, se virou para olhar para mim e para Gourry com desdém.

“Ainda assim, Mestre Rod...” ele começou. “Acha mesmo que a senhorita Tampinha e o senhor Pomposo aqui serão úteis?”

S-S-Senhorita Tampinha?

“Lantz...” Rod sibilou antes que eu pudesse me opor.

Um arrepio visível percorreu o corpo de Lantz.

“Fui eu quem os recrutou.”

Em outras palavras, questionar nossa capacidade seria questionar o julgamento de Rod. Percebendo seu erro, Lantz empalideceu.

“De-Desculpe, Mestre Rod...”

“Não importa.” Rod respondeu em seu típico tom severo enquanto começava a andar mais uma vez sem lançar outro olhar a Lantz.

Nós o seguimos, é claro, e atrás de nós pude ouvir o som distinto de Lantz estalando a língua. Me virei com as mãos nos quadris. Estava prestes a dizer para que cuspisse se tivesse algo a dizer, porém antes que pudesse pronunciar as palavras...

Blub!

O chão sob meus pés se transformou!

“O-O que diabos é isso?” Lantz gritou.

Ele já havia afundado até as canelas. A rua abaixo de nós, como pode ver, se transformou de repente em um mar de lama.

“Parece que este é por sua conta, Lina.” disse Gourry com indiferença enquanto também afundava na lama.

“Sim, já sei.” respondi.

Aliás, Rod estava observando com calmo interesse enquanto também afundava na lama. Eu, contudo, voltei meus olhos para o novo ator em cena.

“Oho... Uma feiticeira, hein?”

Quem falava era um homem flutuando no ar, com o céu escuro acima. Ele usava uma capa preta com capuz, um amuleto de joias em volta do pescoço e ombreiras lindamente trabalhadas, inspiradas nas cabeças dos daemons. Embora, devo dizer, fosse meio pálido... Em outras palavras, quase o seu arquétipo de feiticeiro.

“Então, deixe-me adivinhar: você enviou aqueles caras atrás de nós para ver o que poderíamos fazer, certo?”

“Correto. E estes serviram bem ao seu propósito.” disse o feiticeiro com um sorriso.

“Suplicar aos befemotes... Espíritos da terra... Para converter o solo em lama e nos manter no lugar enquanto ataca de cima... Não é um plano ruim. Pena que estou aqui.” comentei, olhando para o cara.

Eu mesma estava casualmente no topo do mar de lama, cortesia de um feitiço de Levitação. Lancei-o no momento em que senti o chão mudar sob meus pés, e isso me impediu de afundar como os outros.

“Sua presença é irrelevante. Todos os que se opõem ao Lorde Daymia cairão diante de Caluath, o feiticeiro!”

“Não prometa coisas que não pode cumprir.” respondi, flutuando no ar antes de lançar outro feitiço. “Lei Asa!”

Num piscar de olhos, estava bem ao lado de Caluath.

“O quê?” ele gritou surpreso.

Lei Asa era um feitiço que criava uma barreira de vento ao redor de seu lançador para permitir o voo em alta velocidade. Não era muito popular hoje em dia porque era mais difícil de controlar do que a Levitação e não era especialmente prático, entretanto faz meu gosto. É bastante útil em certas situações.

Caluath estava nesse momento ocupado mantendo seu feitiço que transformou o chão em lama e seu próprio feitiço de Levitação. E como nem mesmo os feiticeiros mais poderosos conseguiam realizar mais de dois feitiços ao mesmo tempo, isso significava que suas mãos já estavam ocupadas e eu não tinha nada com que me preocupar.

No entanto, estava tão focada em controlar meu feitiço Lei Asa que o melhor que provavelmente consegui reunir foi um feitiço de Iluminação. Feitiços ofensivos estavam fora de questão. Mas, pelo menos, nos colocava em pé de igualdade.

O feiticeiro se virou para mim...

“Morra, garota atrevida!”

E um conjunto de Flechas Flamejantes apareceu na sua frente!

O quê? Sem chance!

“Ah!” gritei enquanto me esquivava dos projéteis que se aproximavam.

Elas eram fracas o suficiente para que pudesse desviá-las com facilidade, alterando a força da minha barreira contra o vento, porém fiquei chocada demais para pensar direito.

“Heh. O que há de errado, garota? Parece bastante surpresa.” Caluath disse com uma risada estridente, suas ombreiras rindo junto.

Espere um minuto. Ombreiras não costumam ri, não é? A menos que...

“Isso mesmo.” proclamou triunfantemente. “Estas não são meras ombreiras. São coisas vivas!”

Seres vivos? Aqueles daemons em seus ombros? Sabia que os daemons podiam usar alguma magia de nível médio, e suas cabeças eram mais ou menos do tamanho das que estão nos ombros de Caluath agora. Contudo... Onde diabos estavam seus corpos, então? Os daemons eram um pouco menores que os humanos, todavia não havia dúvida de que não eram pequenos o suficiente para caber sob a capa desse cara.

“Estes não são daemons ordinários, sabe? São quimeras que Lorde Daymia fez como presente para mim. Pequenos escravos encantadores, não são? Eles me permitem manter três feitiços ao mesmo tempo!” Caluath explicou, convencido.

De todas as coisas para se gabar! Eesh...

Tudo o que isto implicava era que era um completo dependente dos daemons para fazer qualquer coisa. O feitiço transformando o chão em lama, Levitação e qualquer feitiço que ele usasse para atacar, era um feitiço para ele e suas duas quimeras. Se não o tivesse explicado, eu teria presumido que sua habilidade era incrível... Caras assim realmente arruínam meu humor.

“Luz, apareça!” gritei, lançando um feitiço de Iluminação em Caluath.

A Levitação não permitia muita agilidade, então imaginei que não seria capaz de evitá-lo.

“Gah!” gritou Caluath, provando que meu palpite estava certo.

A bola de luz que lancei deve tê-lo cegado.

“P-Pra onde foi a garota?” Caluath gemeu.

“Skyeek!” o daemon em seu ombro direito gritou.

“Acima de mim?”

Caluath devia ter entendido a língua que falava. Ele se virou para olhar para cima, embora sua visão seguisse estando comprometida.

Bater!

Caí bem no rosto dele. Depois de usar Iluminação para cegá-lo, usei Lei Asa para voar acima de sua cabeça... E então me desfiz do feitiço.

Splat!

Deixei o feiticeiro cair em seu próprio lamaçal, de cabeça. Sua metade superior afundou, enquanto fiquei vitoriosamente em cima de sua parte traseira saliente. Veja, já comecei a recitar meu próximo feitiço na descida.

“Flecha Congelante!”

Atirei a flecha abaixo de zero que conjurei direto para o chão, congelando a lama em um instante. Um único arrepio percorreu o feiticeiro abaixo de mim antes que congelasse no lugar. Os daemons frontais em seus ombros, aparentemente derrotados com a mesma facilidade, foram forçados a abandonar seus feitiços, devolvendo assim o mar de lama à terra firme.

Para uma entrada tão dramática, Caluath caiu com bastante facilidade. O mais provável é que sua ruína ocorreu por pensar que ser capaz de lançar vários feitiços ao mesmo tempo o tornava invencível. Todo mundo sabe que não se trata do número de feitiços; é sobre como você os usa!

“Molezinha.”

Virei-me para encarar os outros três e... Oh.

“Sim, ótimo. Incrível. Agora... Acha que poderia fazer algo sobre isso, por favor?” Lantz perguntou.

Ele e os outros rapazes seguiam enterrados até a cintura no chão congelado, batendo os dentes.

———

Que deliciosos rolinhos de cordeiro Loania! Carne temperada à perfeição num refogado de vegetais verdes, complementada por um delicioso e perfumado vinho de mel diluído. E esses camarões moule fritos? É de matar!

O jantar preparado para nós foi um verdadeiro banquete de luxo. Se eu não estivesse aqui a negócios, e se Rod e Talim não estivessem por perto, estaria no paraíso dos porcos.

Talim, o Roxo, sentado à cabeceira da mesa, era um sujeito corpulento nos primeiros anos de velhice. Títulos como ‘o Roxo’ e ‘o Azul’ eram títulos transmitidos pelos conselhos de feiticeiros, junto com mantos e capas de cores apropriadas, para aqueles que ocupavam posições importantes ou haviam prestado grandes serviços. Não era um sistema de classificação, então não havia a ‘melhor cor’ para se ter.

Se você me permitir sair um pouco pela tangente aqui, uma vez eu mesma recebi um título de cor do conselho de feiticeiros local como convidada especial. Ao participar de eventos oficiais do conselho, é esperado que se compareça com o manto que recebeu, contudo... O inferno que eu aceitaria isso.

Por que, você pergunta? Nem morta seria vista com aquela roupa estúpida. Era rosa! Muito rosa!

Quando o trouxe para casa, minha irmã caiu na gargalhada às minhas custas.

“Lina, a Rosa? Sabe o que os homens dizem sobre uma garota que usa rosa!” ela provocou.

Cala a boca! A culpa não é minha! Não a escolhi!

O conselho me garantiu que era ‘uma cor adequada para uma garota tão encantadora’. Mas falando sério, que tipo de praticante de magia negra quer andar por aí vestindo rosa? Como não podia jogar as vestes na cara deles e sair furiosa, coloquei meu melhor sorriso tenso e, ah, tão graciosa quanto pude os aceitei na hora, porém...

Ah, estou divagando. A questão é que o roxo de Talim também era uma verdadeira obra de arte. Nada contra o roxo, claro, no entanto tem que ser na pessoa certa. Garotos esbeltos e misteriosos poderiam conseguir se destacar. Todavia aquele velho gordo enfiando comida na boca, vestido com aquelas vestes roxas deslumbrantes? Bem, tudo o que posso dizer é que não foi exatamente uma visão apetitosa.

Talim era completamente careca, com olhos redondos que piscavam sem parar. Mas o pior de tudo é que estava fumando um charuto! No jantar! Talvez o estivesse tomando no lugar do vinho.


Tudo que eu queria era gritar, “Não fume enquanto as pessoas estão comendo!” em seguida, acertá-lo com um Bram Blazer ou algo do tipo para dar ênfase. Porém mal consegui me conter. Nossa, como cresci!

Sua história sobre o conflito com Daymia desde o desaparecimento do presidente não era muito diferente dos rumores que circulavam pela cidade. A principal diferença em seu relato foi que, em vez de um confronto mútuo, este alegou que era Daymia quem estava provocando uma briga e, portanto, estava apenas contratando mercenários para sua proteção pessoal.

“Só quero vocês dois como guarda-costas, senhorita.”

Havia um pouco de ceceio em sua língua e sua voz era mais aguda do que você esperaria com base em sua aparência. A forma como pronunciou ‘guarda-costas’ foi notável em particular.

“Ele pode enviar assassinos atrás de mim de vez em quando, contudo é claro, não vou descer ao seu nível.”

Tive minhas dúvidas a respeito...

“É claro que, quando assumir como presidente, lidarei com ele da forma adequada... Bem, essa formulação pode dar uma impressão errada. Sério, vou só tirar sua posição.”

“No entanto e se Daymia for eleito presidente?” perguntei claramente, entretanto Talim apenas riu de mim.

“Oh, não será. Serei o próximo presidente, não há dúvida a respeito. Não posso negar que sua magia é bastante poderosa. Uma margem justa melhor que a minha, até. Também é o segundo filho de uma família nobre, então é muito bem relacionado. Mas é, você sabe...” Talim parou ali para abaixar a voz e apontou para sua cabeça. “Um pouco estranho neste departamento.”

“Ahh...” devolvi uma vaga resposta.

Gourry, que parecia não se importar com nada disso, estava singularmente focado em separar cada pimentão verde de seu refogado de legumes. Acho que não posso culpá-lo, mas vamos lá. Rod, por sua vez, ficou ao lado de Talim, observando Gourry em silêncio com sua hostilidade habitual. Pra ser honesta, era exaustivo ser a única adulta na sala.

“Os feiticeiros deveriam levar suas pesquisas a sério, porém ele trata tudo como uma espécie de jogo.”

“Aposto que suas orelhas estão queimando.” interrompeu Gourry de repente.

Por que essa foi a única parte que decidiu prestar atenção? Chutei-o por baixo da mesa com toda a força que pude, mas Gourry nem piscou. Apenas continuou tirando os pimentões verdes do jantar. Havia algo quase admirável em sua determinação.

Talim continuou, parecendo não notar nenhuma de nossas travessuras.

“Ele afirma estar pesquisando a imortalidade quando, na verdade, apenas se trancou para brincar com seus homúnculos e quimeras. Brincar com a vida para se divertir... É uma vergonha para a nossa profissão, sinceramente!” disse Talim, aparentando uma genuína preocupação com a questão.

“Imortalidade, hein?” repeti em voz baixa.

Muitas pessoas estavam desesperadas pelos segredos da imortalidade. Há quinhentos anos, o soberano do próspero Principado de Letidius ofereceu uma enorme recompensa por todo o país para saciar a sua busca pela vida eterna. Colocou o país num frenesim, com pessoas cometendo todo o tipo de atrocidades em nome do seu soberano. No final, a guerra civil e a invasão levaram sua nação à ruína, e tudo o que o cara tinha para mostrar era sua cabeça em uma lança.

Tudo aconteceu durante um período de dois anos, e o caso foi tão feio que os feiticeiros passaram a chamá-lo de ‘Idade das Trevas’. Espero não ter de dar exemplos, porém aparentemente houve algumas experiências públicas e muito desagradáveis realizadas durante esse período. Quero dizer, pense sobre isso. Depois de administrar a alguém um suposto elixir da imortalidade, qual é a maneira mais fácil de testar se funcionou? Todos os tipos de experimentos foram realizados, nenhum destes bem-sucedidos.

Dizem que há alguns feiticeiros que viveram mais de duzentos anos, todavia os registros são irregulares. Alguns até dizem que há aqueles que fizeram pactos com mazokus para a vida eterna, contudo o que eles conseguem é apenas uma falsa imortalidade. A entropia é a lei do universo, pura e simples, e tentar contorná-la com magia é uma tarefa tola.

Então, resumindo a história, com base no que ouvi sobre ele até agora, esse vice-presidente Daymia não era alguém com quem queria me associar por vontade própria.

“A comissão eleitoral do conselho também sabe disso. Eles nunca o nomeariam como presidente.”

“Ahh...”

Eu não pude fazer muito além de acenar com a cabeça em resposta. O que havia para dizer?

“Quanto a mim, estudo a linguagem que os feiticeiros usam.” disse o vice-presidente Talim, mudando de repente o assunto.

Oh, merda... Está prestes a começar a se gabar? Você ve caras assim o tempo todo! Aqueles que aproveitam qualquer desculpa para começar a se vangloriar! Então continuam para todo o sempre, até o ouvinte implorar para acabar com seu sofrimento!

“Obviamente, grande parte da magia requer ferramentas e rituais, no entanto o elemento mais importante do lançamento de feitiços são as palavras que governam as leis de causa e efeito. Sendo mais específico, o encantamento. Entretanto como é que meras palavras têm tanto poder, a capacidade de tornar mundano o impossível? Esse é o meu campo de pesquisa.”

Ah, inferno. O cara estava claramente ganhando força para uma palestra de longa duração, então decidi tentar levar as coisas em uma direção diferente.

“Então, o que o Presidente do Conselho, Halciform, estava estudando? Antes de desaparecer, quero dizer.” interrompi com força.

Um choque percorreu o corpo de Talim.

Hã?

Essa sem dúvida não era a reação de alguém furioso por ter sido interrompido. Ele parecia genuinamente abalado.

“Ah, o presidente... Sim, o presidente...” Talim hesitou.

“Estava pesquisando... A vida. Sim, estava pesquisando a vida.” disse ele, num claro fingimento.

Era óbvio que Talim estava escondendo alguma coisa.

“A propósito, você tem certeza de que deveria espalhar toda essa sujeira sobre o funcionamento interno do conselho?” perguntei, observando Talim de perto. “Na verdade, ainda não concordamos em aceitar seu trabalho.”

“Não importa.” disse o vice-presidente com um leve aceno de mão. “É claro, se você não aceitar minha oferta, vamos fingir que nunca aconteceu.”

“Hã?” eu me peguei balindo.

“Não pode conseguir um bom trabalho das pessoas se estiver constantemente manipulando-as com a cenoura e a vara. É importante para mim que vocês queiram fazer isso.”

Hmm...

Esperava que ele tentasse forçar o trabalho em mim um pouco mais. Para ser honesta, estava meio preparada para que isso se transformasse em uma briga. Todavia, quer Talim de fato quisesse dizer o que disse ou não, seu comportamento perfeitamente razoável tirou um pouco o fôlego de minhas velas.

“A questão é que, embora já esteja envelhecendo, ainda não estou pronto para morrer. Estou mesmo procurando guarda-costas qualificados, então espero uma resposta entusiástica.” declarou, lançando-me uma piscadela estranha do outro lado da mesa.

Brrr!

Quase cuspi meu ensopado de porco da boca.

———

A escuridão tomou conta da cidade enquanto Gourry e eu caminhávamos pelas ruas agora vazias.

Se formos um pouco mais para o centro da cidade, encontraremos pousadas e bares que atendem aos viajantes, o distrito da luz vermelha e outras áreas ainda bem iluminadas na calada da noite. No momento, porém, estávamos no meio de um bairro residencial. Com todas as janelas das casas escuras, parecia que todos estavam dormindo.

As ruas também estavam escuras, é claro. Havia lâmpadas ao longo da estrada com Iluminação lançada sobre elas, contudo foram reduzidas para prolongar sua longevidade. No geral, a lua cheia no alto fornecia mais luz.

Eu dei uma resposta vaga a Talim quando saí de sua residência. Disse que pensaria no trabalho, no entanto apenas não consegui demonstrar algum interesse real nele. Na verdade, o que mais me incomodou foi que, quando contei a Talim quem eu era, não houve reação sua.

Não é como se esperasse um tratamento especial ou algo do tipo. É só aquilo... Não quero me gabar nem nada, mas sou muito famosa. Ok, talvez ‘infame’ é uma palavra melhor para isso. Rumores a meu respeito dizem que lancei um Dragon Slave, seja de propósito ou não, destruindo paisagens naturais, que transformou praias em enseadas de morte em nome de ‘experimentos mágicos’. E sim, o fato de todos os rumores a meu respeito serem verdadeiros torna tudo ainda pior! Então você pensaria que o vice-presidente de um conselho de feiticeiros em uma cidade grande como esta deveria pelo menos ter ouvido falar de mim. Porém ele não demonstrou o menor reconhecimento quando ouviu meu nome!

O mais provável é que não tenha acreditado em mim. Talvez estivesse pensando algo como, ‘Ela está apenas fingindo ser alguém famoso, contudo contanto que seja boa, é tudo que me importa’.

Sempre que eu mencionava o Presidente do Conselho Halciform, Talim parecia bastante abalado, então posso dizer que havia mais do que aparentava sobre o que estava acontecendo aqui... No entanto não me intrometi mais porque nunca tive a intenção de aceitar o trabalho.

Enquanto refletia sobre tudo, alguém me agarrou pela nuca. Era Gourry.

“Uh, a pousada é por ali.” disse ele em tom condescendente. “Você sabe, mesmo que eles diluam para as crianças, álcool é álcool. Engolir porque tem um gosto bom ainda vai te deixar bêbado.”

Ei, quem está bêbado?

“Quem cê tá xamandu de bebadu?” perguntei.

Ok, ok, talvez estivesse falando um pouco arrastado, entretanto ainda estava me mantendo! A única razão pela qual tomei o caminho errado foi porque estava pensando muito. Dito isto, apesar de ele próprio ter bebido bastante vinho de verdade, Gourry andava e falava à perfeição e ereto.

“Apenas me siga, ok?” ofereceu.

Arrotei afirmativamente e o segui, mantendo meus olhos fixos em suas costas. Todavia, depois de apenas alguns passos, bati direto nele.

“Ei, não pare...”

Quando comecei a reclamar, senti a familiar escuridão da noite assumir um tom sinistro. Virei meus olhos na mesma direção que Gourry estava encarando e vi que uma sombra havia ultrapassado a lua. Não era uma nuvem... E sim duas figuras sentadas no topo de um telhado próximo, bloqueando a luz da lua.

A presença ameaçadora deles me deixou sóbria no mesmo instante.

“Que izzu...”

Ok, talvez ainda estivesse com a língua um pouco enrolada. Mas não estava bêbada, juro!

No mínimo, posso assegurar-lhe que as duas silhuetas agachadas no telhado não eram uma alucinação induzida pelo álcool. E sua aura ameaçadora... Não sei como explicar para quem nunca conheceu um ser mágico antes. Formigou como um calafrio, como um odor desagradável.

“Mazokus, hein?” Gourry sussurrou.

Um deles estava com as pernas bem abertas, a capa ondulando ao vento. Ele usava uma máscara feita de pedra de alabastro, como uma versão branca das máscaras diabólicas usadas em Masque, e um lenço preto que escondia tudo, menos os olhos. Talvez porque estivesse iluminado pela lua, mas além dos olhos de sua máscara, o mazoku parecia nada mais do que a silhueta de uma capa balançando na escuridão.

Uma figura escura, mais ou menos humanoide, estava agachada ao seu lado. Este outro usava a metade esquerda de uma máscara branca que parecia ser feita de peças entrelaçadas sobre uma máscara preta inexpressiva que cobria todo o rosto.

Ok... Estava tudo se encaixando. Devia ser quem estava nos observando pouco antes dos assassinos de Daymia atacarem esta tarde.

Farfalhar...

Longos cachos de cabelo preto dançavam ao vento na cabeça do mazoku usando duas máscaras. Apontou para nós com uma mão extraordinariamente longa.

“Convidados de Talim?” disse em uma voz que só poderia ser descrita como ‘pegajosa’.

Uma gema verde montada na metade branca de sua máscara brilhou por um instante. Esse era o olho?

“Parece que você ainda não aceitou a oferta de emprego dele. Tome cuidado para não o fazer... Se quiser deixar a cidade viva, claro.”

“Ouça-nos. Ou não, se assim o desejar. Mas saibam que sua decisão mudará o curso de suas vidas.” disse aquele com máscara toda branca.

Em contraste com o amigo, sua voz suave quase parecia majestosa. Se fosse um sacerdote de igreja, aposto que teria muitas seguidoras.

Soltei um bufo em resposta.

“Ah, pur favo! Voxes naum podem nus dize o qui faze...”

Intimidados pela minha força (eu acho), os dois mazokus recuaram.

“Ela está tentando dizer: ‘Ah, por favor. Vocês não podem nos dizer o que fazer’.” traduziu Gourry com seriedade.

O das duas máscaras estalou a língua e disse.

“O que você aconselha, Lorde Seigram? Não podemos conversar com bêbados...”

“Não é motivo de preocupação, Gio. Nossa missão era emitir um aviso e nada mais. Terminamos aqui.” Máscara Branca, o mazoku chamado Seigram, aparentemente... Disse com desgosto.

Gio Duas Máscaras suspirou e depois se voltou para nós.

“Então... Fiquem fora disso. Entenderam?”

“Ele disse: ‘Fikiem fura dizzu. Intenderaum?’.” Gourry traduziu com toda seriedade.

Obrigado! Isso foi totalmente desnecessário! Comecei a me perguntar se talvez Gourry estivesse um pouco bêbado, afinal.

“Agora, considerem-se avisados.” disse o mazoku. Depois disso, ambos subiram no ar e se mesclaram a escuridão. Assim que o miasma fervilhante de sua presença se dispersou, a brilhante luz branca da lua retornou.

“Hehe... Eh precizu couragem pa comezar uma briga cum a grandi Lina...”

“Ela disse: ‘Hehe... É preciso coragem para começar uma briga com a grande Lina’.” disse Gourry, traduzindo meu monólogo para ninguém em particular.

Ele está bêbado! Está com toda certeza bêbado!

———

Nós dois descansamos profundamente naquela noite. Depois de levantar, acordei Gourry no quarto ao lado e descemos para desfrutar de um café da manhã leve enquanto discutíamos nosso próximo passo.

“Então, quem acha que eram aqueles caras? Acha que Daymia está criando mazokus ou algo do tipo?”

“Quais caras?” Gourry perguntou, parecendo confuso enquanto segurava o garfo a meio caminho da boca.

Hah! Uma abertura!

Minha mão direita se moveu como um raio. Espetei uma tira de frango cozido em seu prato e ela desapareceu em minha boca antes que alguém soubesse o que aconteceu.

“Ahh! Ei!” Gourry saiu de seu estupor, elevando a voz a um grito agudo.

“A culpa foi sua por baixar a guarda!”

“Ok, se é assim que você quer jogar... Tome isso!”

“Ah! Meu precioso ovo frito!”

Isso foi imperdoável! O estrondo de um trovão ressoou atrás de mim enquanto eu mostrava o dedo do meio para ele. (Oh, Lina! Você é tão grosseira!)

“Gourry, seu patife! Só porque somos companheiros de viagem não significa que pode roubar ovos da grande guerreira-feiticeira Lina Inverse! Mesmo que o mundo possa te perdoar, eu nunca o farei!”

“Já considerou que toda a sua arrogância pode estar apenas compensando um egoísmo fundamental?”

“Cale a boca! Se é assim que vai ser... Tome isso! E isto!”

“Ei! Minha salsicha! Então... Tome isso! E isto!”

“Com licença, senhor, senhorita...”

“Seu bruto! Ainda não terminei! Tome!”

“Urgh! Um movimento diabólico! Agora é minha vez! Meu chocante ataque de dois níveis! Finta!”

“Monstro! Demônio! Bem, se chegar a esse ponto...”

“Senhor? Senhorita?”

“Receba! Meu movimento secreto final! Hah!”

“Maldita seja! Nunca vai conseguir meu último pedaço de frango! Tome isso!”

“Senhor! Senhorita!”

Silêncio.

Gourry e eu saímos do nosso frenesi, bem no meio de facas e garfos travados sobre a mesa. O estalajadeiro olhava para nós com uma expressão muito tensa.

“Vocês poderiam, por favor, comer sua refeição em paz?”

Um pedaço de frango caiu dos nossos talheres trancados na mesa com um estrondo.

———

“Então, sério, quem acha que eram aqueles caras?” tentei perguntar mais uma vez depois que mudamos nossa discussão para o quarto de Gourry.

“Sério, quais caras?” ele perguntou de novo do outro lado da pequena mesa.

“Uh, os dois mazokus que encontramos ontem à noite? Dã.”

“Mazokus?”

Oh qual é...

“Você sabe, os caras assustadores que apareceram quando voltávamos da casa de Talim?”

“Oh!” Gourry exclamou, batendo palmas. “Não me lembro de nada assim.”

Erk! Quase caí da cadeira.

“Bem, sabe, quando bebo demais, apago totalmente. Não consigo me lembrar de nada daquele ponto em diante. As pessoas dizem que não pareço nem um pouco bêbado quando estou desse jeito. Então, no que diz respeito à noite passada, minha memória para na hora do jantar. Tudo depois fica em branco.”

“Seu tom soa quase orgulhoso...”

Ha, eu sabia que estava bêbado demais! Sem opção, contei a Gourry os acontecimentos da noite anterior.

“Hã? Isso aconteceu mesmo?”

“Claro que sim.”

“Hmm, realmente não me lembro de nada. Mas tenho que admitir... É impressionante que eu possa beber tanto que apago, porém mesmo assim permaneço consciente.”

“Não admire sua própria estupidez. Além do mais, está nos desviando do caminho.”

“Hmm...” Gourry colocou a mão pensativamente no queixo. “Bem, acho que o cenário mais provável é que os mazokus sejam assassinos contratados por Daymia.”

“Acho que sim. De qualquer forma, esse é o padrão usual.”

“Espere, isso significa...” Gourry começou com um estremecimento.

“Pode apostar.” falei, levantando-me da cadeira. “Não ia aceitar o trabalho antes, contudo se recusar agora, vai parecer que fui assustada por alguns mazokus bobos. Portanto, vamos aceitar o trabalho!”


———

A cidade fervilhava de vida. O mercado estava aberto agora, o que significava que as lojas e as ruas estavam lotadas de gente.

Argh! Tão irritante! De onde toda essa gente saiu? Eles dificultam a caminhada! Sem falar em respirar! Abram caminho, idiotas!

Saímos da avenida principal para uma rua menos movimentada e soltei um suspiro de alívio. Claro, ‘lotado’ é relativo, ainda havia muita gente aqui também. Certamente um número suficiente deles para que nós dois tivéssemos dificuldade em nos encontrar de novo se nos separássemos.

“O que diabos tantas pessoas estão fazendo aqui? Tem uma festa ou algo assim?” murmurei.

“Quero dizer...” Gourry disse. “Estamos aqui também.”

“Eu sei! Só queria desabafar.” respondi, continuando a resmungar para mim mesma enquanto caminhava para a direita de Gourry.

À medida que avançávamos, no entanto, detectei alguém se aproximando pela lateral. Não havia nenhum sinal de hostilidade ou má intenção, mas era óbvio que estavam focados em mim.

“Por favor.” chamou a voz de uma garota.

Eu me virei na direção dela. A garota estava toda vestida de branco, o cabelo da cor do sol poente. Seus olhos estavam focados para frente, embora não fizesse nenhum movimento além de falar novamente.

“Por favor, fique fora disso.”

“Hã?” fiquei boquiaberta, descobrindo que estava diminuindo a velocidade até parar.

“O que há de errado, Lina?” Gourry perguntou.

“Bem... Eu só...”

Me virei outra vez, porém a garota já havia sumido. Me apressei em averiguar a área e a vi do outro lado de uma multidão de pessoas. Ela olhou para mim e fez uma reverência com um estranho tipo de desespero nos olhos.

“Espere!”

Tentei segui-la, contudo já era tarde demais. Ela havia desaparecido há muito tempo na multidão. Tudo o que pude fazer foi ficar ali e olhar.

Colidir!

Ao fazer isso, alguém bateu em mim.

“Ei! Não pare no meio da estrada, camarão!”

“Camarão?”

Whack!

Soltei um chute sem hesitação nas bolas do velho idiota que esbarrou em mim, depois voltei a olhar para a multidão.

Você não odeia quando idiotas estragam uma boa atmosfera misteriosa?



Notas:
1. A espada bastarda, também conhecida como espada de uma mão e meia, é uma espada medieval, que possui esse nome por não se encaixar exatamente nem no grupo de espadas de duas mãos, nem do de espadas de uma mão, tendo tamanho intermediário, e sendo balanceada para poder ser usada com a espada em uma mão e o escudo em outra mão. Uma espada bastarda costuma ter 1,10m a 1,20m de comprimento.
2. Referência ao momento em que Gourry mal interpreta sobre o meio de trabalho da Lina no capítulo 01.
3. R&R são a abreviatura de Rest and Recreation, o que traduzido seria descanso e relaxamento.

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