sábado, 25 de maio de 2024

Slayers — Volume 02 — Capítulo 09

Capítulo 09: Quem está mexendo os pauzinhos aqui?

As ruas estavam desertas àquela hora. O céu estava escuro, com apenas uma luz fraca saindo dos prédios ao nosso redor. Gourry e eu caminhamos lado a lado, em silêncio, pela estrada.

O ar da noite estava frio. Tinha deixado minha capa na casa de Talim, então por enquanto estava usando a minha sobressalente. O problema é que tenho ombros muito finos, sabe, então não fico muito legal só de capa. É por isso que ontem — bem cedo esta manhã — no caminho de volta para nossa pousada, também peguei algumas ombreiras de couro, que estava usando agora.

Fiquei feliz por não ter deixado minha espada para trás também, mas aquelas grandes ombreiras de casco de tartaruga raspadas eram caras. Então, sim... Quando tudo ficasse resolvido, teria que voltar e pegá-las.

Uma estrada escura e solitária nos levou morro acima. Nossa única companhia era um feiticeiro de capa preta que caminhava, lançando Iluminação nos postes de luz...

“E... Onde você pode estar indo?” perguntou uma voz familiar e viscosa.

Gourry e eu paramos no meio do caminho. A única outra pessoa presente era o feiticeiro que acendia as lâmpadas. Espere, eu disse ‘pessoa’? Risca isso. Agora pude ver o cabelo prateado despenteado esvoaçando ao vento e os braços extraordinariamente longos que lançavam os feitiços.

Chamei-o com um pequeno sorriso no rosto.

“Está aqui para nos atrasar, Mestre Gio Gaia?”

“Não... Não quero te atrasar.” ele respondeu, virando-se devagar. Seus olhos verdes brilharam. “Vim para acabar com vocês.”

Com passos leves como uma brisa passageira começou a caminhar em nossa direção, a bainha de seu manto esfarrapado balançando atrás.

“Gourry. Prepare-a.” falei em voz baixa.

Sua resposta foi um aceno rápido.

Estava me referindo à Espada da Luz, é claro. Os ataques físicos nem sequer arranhariam mazokus puros como Gio e Seigram; feri-los com magia também poderia ser um desafio, já que alguns feitiços não funcionariam.

Porém além da destruição física que poderia causar, a Espada da Luz também era capaz de cortar diretamente a forma astral de um oponente. Em outras palavras, poderia destruir a existência fundamental de uma criatura, uma habilidade que a tornava bastante eficaz contra mazokus.

Quero dizer, claro, havia alguns mazokus que estavam fora do alcance da espada... Contudo, imaginei que funcionaria contra gente como Gio e Seigram.

“Acho que esse trabalho pode estar um pouco além do seu alcance.” disse com calma. “Talvez se estivesse com seu amigo de máscara branca...”

“Amigo de máscara branca? Quer dizer Seigram, o Sem Rosto?”

Sem rosto? O que isso deveria significar? Que não havia nada sob sua máscara, talvez?

“Ele está ocupado em outro lugar. No entanto se não acredita que sou capaz de derrotá-la... Por que não testamos e vemos?” Gio disse, deslizando em nossa direção sem fazer barulho.

“Pensaria duas vezes a respeito se estivesse no seu lugar.” levantei minha mão direita com a palma voltada para Gio, que observou em silêncio enquanto eu entoava.

“Onda Escavada!”

O chão sob os pés do mazoku explodiu de repente. Era esperado que a explosão não fosse machucá-lo, mas não era esse o objetivo, era apenas uma distração.

Gourry, com a Espada da Luz agora em mãos, mergulhou na crescente nuvem de poeira. No segundo que em que o fez, Duas Máscaras saltou para fora da nuvem. Parecia que não tinha notado Gourry.

“Lança Elemekia!” gritei, lançando outro feitiço logo após o primeiro.

Esta era uma lança mágica projetada para enfraquecer astralmente um oponente, e eu a joguei bem onde esperava que Gio pousasse. O mazoku evitou a lança parando no meio da descida.

“Pirralha!” gritou Duas Máscaras, me golpeando com a mão direita.

Uma náusea crescendo em meu estômago me disse para sair do caminho e não hesitei em ouvi-la.

Vrmm!

Algo zumbiu perto do meu ouvido como um inseto em alta velocidade. Isso fez alguns fios do meu cabelo voarem e rasgou a ponta da minha capa.

Minha náusea permaneceu... Uma onda de choque de miasma!

Agora aquilo é perigoso. Nem mesmo um gigante poderia sobreviver a um golpe frontal de uma coisa dessas. Se Gio tivesse atingido um dos meus membros, o miasma teria penetrado meu corpo através do ferimento e em pouco tempo acabaria com minha vida.

Parece que vou ter que levar esse cara a sério, afinal... E quanto mais a batalha durasse, mais em desvantagem eu estaria. Me apressei para disparar outro feitiço. Este conjurou pequenas bolas vermelhas de luz que enviariam vibrações em alta velocidade através de tudo o que atingissem, incitando explosões e destruição.

“Dam Blas!”

O chão se rompeu aqui e ali, gerando uma grande e curiosa cortina de fumaça. A fumaça obscureceu toda a área, o que significa que não sabia onde Gio estava. E embora os mazokus pudessem sentir a malícia e a hostilidade humanas, tanto Gourry quanto eu estávamos ocultando nossas presenças agora, o que significava que Gio também não deveria ser capaz de nos localizar.

Então, antes que ele pensasse em encher toda a área com ondas de choque de miasma...

“Aí está você!” gritei, lançando um feitiço aos meus próprios pés antes de pular e me agachar.

Uma onda de choque atravessou a fumaça, cortando onde eu estava momentos atrás.

“Aaaaah!” soltei um grito dramático, fingindo que o golpe na verdade tinha me atingido. Foi uma atuação apaixonante, se assim posso dizer. Para enganar um mazoku, você precisa fingir que dói!

“Hah! Idiota...” disse Gio Gaia, caindo no meu truque e saindo do esconderijo.

Ele provavelmente havia descartado Gourry como uma ameaça desde o início e, portanto, não ficou nem um pouco desconcertado por não estar em lugar nenhum agora. Não fazia ideia sobre a Espada da Luz... Que era justo o que eu queria.

Meu grito performativo não foi apenas para atrair Gio. Foi também um sinal para Gourry.

“Hmm? Onde ela está?” perguntou Duas Máscaras, olhando em volta enquanto um clarão branco de lâmina rasgava o ar sem fazer qualquer som. Então veio um grito agonizante.

“Gwaaaaah!”

Gourry havia decepado o longo e anormal braço direito de Gio. Uma esquiva reflexiva, no entanto, salvou a vida do mazoku bem na hora certa.

“Desgraçado!”

Duas Máscaras saltou para trás, atacando Gourry com o braço restante. Mesmo para um espadachim de seu calibre, a onda de choque que se aproximava estava muito próxima para ser evitada!

“Hahh!” ele exclamou.

Meus olhos se arregalaram. O mesmo aconteceu com Gio... Pois Gourry acabara de usar a Espada da Luz para dispersar a onda de choque, convertendo-a em uma brisa passageira e inofensiva.


“Impossível! Essa é a Espada da Luz? Não me contaram!” Gio gritou, congelado no local.

Sim, claro que não, seu idiota. As únicas pessoas nesta cidade que sabiam da nossa arma secreta éramos eu, Gourry e o Presidente Halciform. Quem achou que iria contá-lo?

Agora, havia outra coisa importante que Gio desconhecia: que não tenho nenhum traço de cavalheirismo em meu corpo. Não tinha qualquer intenção de esperar que se recompusesse após a revelação chocante.

“Lança Elemekia!” encantei, meu feitiço atingindo o mazoku desta vez.

“Gwaaaaah!” gritou Gio mais uma vez.

Lança Elemekia, que tinha como alvo a forma astral de um oponente, causaria uma exaustão incrível em um humano normal, deixando-o enfraquecido por algum tempo. Todavia contra os mazokus, que eram quase exclusivamente seres astrais, era como cortar todas as suas cordas.

Mesmo assim... Gio Gaia ainda não estava morto!

“Gourry!”

“Certo!”

Gourry atacou o mazoku, que saltou para longe no mesmo instante. A Espada da Luz brilhou na escuridão, entretanto errou por um fio.

“Na próxima vez que nos encontrarmos, vocês morreram!” Gio cuspiu antes de sair noite adentro, rápido demais para ser seguido por qualquer mero humano.

Gourry estalou a língua, embainhou a espada e caminhou até mim.

“Acho que ele fugiu. E com algumas palavras de despedida clichês também.” comentei.

A poeira começou a assentar ao nosso redor. Nossa luta causou bastante comoção. Não havia como os moradores locais não terem notado, porém ninguém de fato saiu para ver o que estava acontecendo. Talvez eles estivessem com muito medo de se envolver.

Pessoas inteligentes. Conveniente para nós, na verdade. Agora...

Ah, espere. Parecia que uma pessoa havia aparecido, um homem sozinho no topo da colina, com o cabelo ruivo brilhando a luz dos postes de luz.

“Ei, Lantz?” Gourry chamou.

O rosto de Lantz estava pálido, por motivos que não consegui identificar.

“Onde... Onde vocês estiveram?” ele perguntou com a voz trêmula.

“Há algo errado? O que aconteceu? Você está agindo de forma estranha.” comentei, me aproximando.

Lantz deu um passo para trás assustado.

“Vocês... Vocês foram para a casa de Daymia?”

“Hã?”

Gourry e eu trocamos um olhar. Por um segundo, pensei que Lantz tivesse percebido que havíamos nos unido ao Presidente Halciform... Contudo isso não explicaria a forma como estava agindo.

“Aconteceu alguma coisa?” cutuquei.

“Eu perguntei se estavam lá! Agora me responda!” Lantz rugiu em resposta à minha pergunta. No entanto ele não parecia zangado... Parecia assustado.

“Sim, estávamos. Mas...”

“Tudo bem!” ele gritou, sua voz falhando outra vez. “Então foram vocês que fizeram isto?”

“Isto?”

Estava perguntando se havíamos salvado Halciform? Só não conseguia imaginar por que ficaria tão assustado com isso...

“Do que está falando?” perguntei. “O que está acontecendo na casa de Daymia? Como disse, estávamos lá... Porém não fizemos nada. Saímos pouco depois. Agora estamos aqui para tratar de outros assuntos.”

Eu estava mentindo sem qualquer descaro, contudo a verdade só complicaria as coisas neste momento. Minha principal prioridade no momento era apenas fazê-lo se acalmar.

“Você não... Fez nada?” Lantz perguntou, piscando de repente. Parecia ter saído de um transe.

“Juro. Quero dizer. Apenas olhe nos meus olhos.”

Encontrei seu olhar e nos encaramos por um tempo. Fiquei impressionada com a vontade de fazer aquela piada de ‘desviar o olhar de repente’, contudo realmente não parecia o momento certo. Fiz o meu melhor para me conter.

“Vamos. Fale comigo. O que aconteceu na casa de Daymia?” perguntei, nossos olhares ainda ligados.

Lantz soltou um suspiro profundo antes de enfim responder.

“Não sei como explicar aquilo... Apenas venha comigo, ok?”

Gourry e eu trocamos outro olhar e depois assentimos firmemente um para o outro.

“Ok, vamos lá.”

———

A residência de Daymia estava em silêncio ao luar. Meu corpo foi atormentado por uma tensão gélida. O lugar não parecia diferente do que era na noite anterior. Pelo menos, não fisicamente. No entanto agora havia uma energia escura pairando sobre o lugar que não existia antes. O que aconteceu aqui?

“Essa atmosfera... É bastante incrível.” sussurrou Gourry sem notar. Pude ver o suor escorrendo em sua testa.

“Tudo bem... Vamos entrar. Não que esteja entusiasmada com a ideia...” falei, incentivando o grupo a prosseguir. Podia ouvir Lantz engolir em seco ao meu lado.

Nós três passamos pelo portão aberto. O ar... Pesado, pegajoso e frio, parecia aderir ao meu corpo. De alguma forma, parecia ainda mais intenso aqui do que na rua.

Hostilidade enjoativa, tristeza, desespero... Esse ar sombrio era um amálgama de tudo isso e muito mais. Era miasma.

A porta da frente não estava trancada, então a abri. Um odor rançoso emanava da casa, como o fedor de carne podre.

“Guh...” gemi.

“Que raio é aquilo? Eu poderia entender o cheiro de sangue, mas...” Gourry sussurrou para ninguém em particular, franzindo o nariz.

“Por aqui.” Lantz acenou.

Com uma careta desconfortável, ele nos conduziu para dentro da mansão. O cheiro horrível só piorou à medida que avançávamos.

“Vocês desapareceram ontem à noite...” começou Lantz de repente, talvez falando para se distrair do medo. “Tínhamos acabado de acabar com aquelas bestas e estávamos prestes a comemorar quando percebemos que os dois não estavam lá. Achamos que se os tivessem pegado, teriam deixado os corpos para trás... Porém como era perigoso andar por aí à noite, decidimos esperar até o nascer do sol para procurá-los. Então, esta manhã, eu e Mestre Rod nos separamos para procurar. Devíamos nos encontrar na casa do Mestre Talim por volta do meio-dia para trocar notas sobre o que havíamos encontrado. Chegou o meio-dia, contudo o Mestre Rod nunca chegou.”

“Quer dizer que Rod se foi?” perguntei surpresa.

Obviamente, sabíamos que série específica de travessuras nos mantinha afastados, contudo o fato de Rod ter desaparecido também...

“Eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Então decidi continuar procurando, agora pelos três... E quando pensei na casa de Daymia já era noite. Imaginei que poderiam ter vindo aqui por algum motivo e talvez se meteram em problemas, foram capturados ou até mesmo mortos. Então pensei que Mestre Rod poderia ter percebido o que aconteceu primeiro, vindo aqui por conta própria e se metido no mesmo problema... Então passei por aqui. No entanto não havia sinais de vida. Apenas aquela sensação estranha pairando sobre o lugar. E quando entrei... Estava assim.” disse Lantz, olhando em volta demonstrativamente.

Estávamos em um dos muitos corredores estranhos e sinuosos que havíamos atravessado na noite anterior. Algumas das portas que ladeavam o corredor estavam agora abertas e fui tomada pelo impulso de espiar uma delas.

“Guh! Que diabos é isso?”

O chão estava encharcado com um líquido de cores bizarras. Fragmentos de incontáveis frascos de cristal estavam espalhados pelo quarto, pontilhados com pedaços de carne contorcidos.

Uma criatura parecida com um gato, sem olhos ou pelo, estava no chão. A coisa soltou um uivo baixo, arranhando o ar com seus membros anormalmente curtos.

Uma criatura parecida com um morcego branco como a neve caiu entre o que pareciam ser intestinos espalhados. Suas asas com veias espasmavam aos trancos e barrancos.

Também vi um cachorrinho com olhos e escamas de cobra, um pássaro com uma massa de tentáculos crescendo em seu estômago e outras esquisitices. Era como um circo dos horrores, do tipo para onde talvez levasse uma criança se realmente quisesse deixá-la traumatizada para o resto da vida.

“O que... O que são essas coisas?” Gourry gritou em meu ouvido, me trazendo de volta aos meus sentidos.

“Quimeras de Daymia!” me peguei gritando de volta.

Reconheci um estranho conjunto de ferramentas reunidas em uma mesa no canto. Tinha visto a mesma coisa no prédio do conselho de feiticeiros em outro reino. Lá, pelo que me lembrei, eles estavam fazendo mini dragões para servirem como animais de estimação e guarda-costas. Nada como as criações distorcidas espalhadas por aqui.

“Vamos... Não é isso que estamos aqui para ver.” Lantz me incentivou.

Não iria discutir. Não gosto de me demorar em coisas que podem fazer uma garota perder o almoço.

À medida que avançávamos pelo corredor, entretanto, nos deparamos com uma cena estranha após a outra. Às vezes eu nem tinha certeza do que estava vendo. Uma porta aberta revelou uma criatura parecida com um slime cheia de várias armas e armaduras. Outra era uma sala abarrotada de cadáveres de mercenários, agora convertidos em múmias armadas. E então...

“Hã? O que era aquela voz?” perguntei, parando de frio.

“Que voz?” Gourry ecoou.

Parecia uma risada... Embora fosse fraca e distante.

“Risada, certo?” Lantz perguntou com a voz rouca.

“Ouviu ela também?” perguntei de volta.

Todavia Lantz balançou a cabeça.

“Não... É só... O que eu vi...” um arrepio percorreu-o. “Ele riu.”

“Espere, o que você viu?”

Por alguma razão, Lantz não me respondeu.

———

Não foi nenhuma surpresa que Lantz nos levou até a mesma porta grande que Gourry e eu havíamos arrombado na noite anterior. A mesma porta que levava à vasta sala com o poderoso destruidor de runas. A mesma porta pela qual saímos esta manhã.

A risada familiar estava ficando cada vez mais alta. Sua fonte estava além desta porta: Daymia, o Azul. Já havíamos ouvido uma risada estranha na primeira vez que o conhecemos, mas parecia ainda mais bizarro agora.

“Este é o lugar?” perguntei.

Lantz apenas me respondeu com um aceno silencioso.

“Aqui vamos nós.” proclamou Gourry, avançando e forçando a porta aberta sem precisar de uma deixa.

Risadas loucas saíram pela fresta da porta que se abria devagar. Gourry deu um passo para dentro e olhou ao redor, seus olhos parando em uma direção específica. Era um ponto cego para mim, então não consegui ver o que estava olhando.

“O que no inferno...” Gourry murmurou.

Olhei para Lantz.

“Vou ficar aqui. Não há dinheiro que me oferecesse que poderia me convencer a olhar aquela coisa de novo.” disse ele, acenando para mim com uma expressão de desgosto.

Fui até a frente de Gourry para ver o que o deixava tão congelado... E lá estava, caído no chão.

Soltei uma exclamação muda e depois parei, sem fôlego.

Era uma enorme massa de carne. Sua superfície, composta de órgãos sinuosos, pulsava e se contorcia sem fim.

Hiss! Uma parte da bolha nojenta se projetou, produzindo uma cobra pequena e carnuda. Porém antes mesmo de estar meio formada, ela se arqueou em direção a outro bulbo de carne, que a picou e rasgou. Quando o espetáculo horrível terminou, ambos afundaram de volta na massa maior. Esse processo grotesco se repetia num ciclo contínuo por toda a massa gigante de carne. E com cada cobra devorada, a risada de Daymia ficava mais alta.

Daymia... Cujo rosto estava colado no centro do pedaço de carne era a fonte do riso.

“Raugnut Rushavna...” sussurrei, o suor escorrendo pelas minhas têmporas.

Ouvi esse nome pela primeira vez em um palácio estrangeiro. Dils Rwon Gyria, Rei Dils II de Gyria, também conhecido como o Rei Resoluto... Vinte anos atrás, ele liderou cinco mil de seus guerreiros de elite em uma missão para matar o Lorde das Trevas do Norte, a suposta fonte de todo o caos do mundo. Dizia-se que ele e seus soldados nunca mais retornaram, que todos foram mortos pelo mesmo ser que foram derrotar.

Mas, na verdade, um homem regressou: o próprio Rei Dils.

Seus guardas o encontraram na sala de audiências no dia seguinte... Uma grande massa de carne sentada no trono. Enquanto devorava as cobras que saíam de seu próprio corpo, o caroço implorou aos soldados na voz do próprio rei: “Matem-me”.

Na verdade, a massa miserável era o Rei Resoluto, transformado por uma maldição sombria.

Um dos soldados, com pena, desceu a espada sobre a coisa desumana... Porém tudo o que causou foi uma agonia maior para seu antigo soberano. Incapazes de salvá-lo ou acabar com sua miséria, seus homens leais apenas o trancaram, sem contar uma palavra sobre seu destino a ninguém.

Ainda hoje dizem que quando a noite cai, a voz triste do Rei Dils pode ser ouvida gemendo ao vento, implorando pela morte. Aqueles afetados por esta maldição sombria só podem morrer quando o responsável pela maldição fosse morto... E agora Daymia era sua última vítima.

Tive que conter a vontade de vomitar.

Nenhum humano era capaz de usar esse feitiço. O que significava que quem fez isso com Daymia deve ter sido... Seigram da máscara branca.

———

O ar fresco nunca foi tão doce.

Saímos da mansão de Daymia, correndo para encher os pulmões do lado de fora.

“Então... Quer me dizer o que foi tudo aquilo?” Lantz perguntou depois de alguns minutos. “A julgar pela sua expressão, você sabe de alguma coisa, não é?”

“Sim, mais ou menos.” respondi indiferente. Não foi apenas o luar que fez Gourry e Lantz parecerem pálidos. “Essa coisa é... Bem, costumava ser Daymia, o Azul. A maldição de um mazoku o condenou a essa forma.”

“Está me dizendo... Que era... Uma pessoa?” Lantz disse, sua voz ficando mais alta a cada pausa dramática. “Está me dizendo... Que estamos enfrentando um mazoku... Que pode transformar as pessoas naquilo?”

Parecia que Lantz tinha acabado de perceber a verdadeira natureza daquilo que estávamos enfrentando, e tal verdade o deixou em pânico.

“E-Espere um minuto!” ele chorou. “E vocês querem se envolver com essa maldita coisa?”

Eu não iria negar.

“Sim. A razão pela qual nos envolvemos em toda essa confusão, em primeiro lugar, é porque dois mazokus nos incitaram a entrar nessa briga.”

“D-Do-Dois?” os olhos de Lantz se arregalaram. “Tem que estar brincando comigo! Eles vão te matar! Será que ficaram loucos?”

“Claro que não.”

“Tem certeza?” Gourry murmurou, não convencido pela minha pronta resposta.

Lantz apenas olhou para nós, horrorizado.

“Só... Quem são vocês?” ele perguntou. “Quero dizer, imaginei que fossem mais do que apenas um mercenário e feiticeira comuns, no entanto...”

Verdade seja dita, era justo o que éramos. Pelo menos um mercenário e uma feiticeira. Pode esquecer a parte do ‘comuns’.

Estava prestes a responder, mas Lantz me impediu.

“Não, não me diga! Não me importo! Estou fora!” Lantz gritou, recuando com pressa. “Não diga mais uma palavra, porque não quero ouvir! Chame-me de covarde se quiser; não dou a mínima! Porém vocês deveriam seguir meu exemplo! Ninguém vai culpá-los por recuar agora. Ser morto não vai ajudar ninguém! Ok? Então, basta deixar pra lá! Estou fora!”

E ele saiu correndo. Apenas uma vez, Lantz se virou para gritar. “Vocês me ouviram? Não façam isso!” antes de desaparecer na noite.

Gourry e eu ficamos ali em silêncio enquanto o víamos partir. Não tinha qualquer intenção de criticar o cara. Na verdade, teria ficado mais chateada se tivesse se mantido firme e insistido em lutar conosco.

Quero dizer, Lantz era um lutador decente, contudo estávamos enfrentando mazokus. Nem ele nem Gourry podiam usar magia, e havia apenas uma Espada da Luz disponível. Em outras palavras, não importa quão bom o cara fosse, literalmente não havia como nos ajudar na batalha que estava por vir.

“Diga, Lina...” Gourry sussurrou enquanto olhava para a escuridão onde Lantz havia fugido. “Como os mazokus estão envolvidos nisso, de novo?”

“Hã?” encarei-o por um minuto inteiro antes de me pegar gritando. “Oh!”

Presumi o tempo todo que os mazokus estavam trabalhando para Daymia, entretanto...

Talim, o Roxo!

Olhei para trás, na direção em que Lantz havia corrido: em direção à casa de Talim.

“Temos que parar Lantz!” gritei.

“Hã?” Gourry olhou para mim, em evidente confusão.

“Ele está com problemas!” respondi e saí correndo.

“Ei! Por que está dizendo que Lantz está com problemas?” Gourry perguntou enquanto corria ao meu lado.

“Por que acha? Aposto que Talim, o Roxo, é quem está por trás de tudo!”

“O quê?” Gourry parou por um segundo, perplexo, e então se apressou em voltar a correr. “O que está dizendo?”

“O cara é muito mais cruel do que imaginei. Acho que ele fez com que Daymia selasse o Mestre Halciform, planejando acabar com seu rival quando quisesse. No entanto enquanto Daymia estivesse escondido dentro do destruidor de runas, nem mesmo aqueles dois mazokus poderiam alcançá-lo... Então Talim decidiu usar mercenários humanos para acabar o trabalho.” expliquei enquanto corria.

Falar e correr ao mesmo tempo era meio difícil, mas se não atualizasse Gourry agora, poderia acabar lutando sem entender de todo a situação... E a ignorância pode atrasá-lo em um momento crucial. Então continuei... Apenas esperando que estivesse realmente ouvindo.

“Primeiro ele contratou Rod, que depois nos encontrou. Mas não estávamos interessados em aceitar o trabalho, então Talim enviou seus mazokus para nos provocar. Talvez tenha pensado que qualquer um que os mazokus pudessem intimidar para se retirar não seria de muita utilidade de qualquer maneira...”

“E nós fizemos justo o seu joguinho, certo?”

“Exato!” amaldiçoei internamente. “Ele criou aqueles homúnculos e quimeras em segredo e depois os enviou para sua própria casa para nos testar. Então enviou Máscara Branca, o mazoku que Gio chama de Seigram, o Sem Rosto, para nos atrair para a casa de Daymia. Sua intenção era fazer parecer que Daymia armou as coisas... Tudo para que cortássemos a ponta solta em seu lugar.”

“Porém então Daymia lançou sua armadilha sobre nós.”

“Sim, isso não fazia parte do seu plano. Contudo graças a essa reviravolta conseguimos encontrar o presidente e libertá-lo. Talim deve ter descoberto o que aconteceu de alguma forma e, temendo que seu esquema pudesse ser exposto, decidiu ‘cuidar’ das testemunhas... Você e eu, mais Daymia... Agora que o destruidor de runas se foi.”

“No entanto Halciform também está com problemas!”

“Não... Talim deve ter tido um motivo para selá-lo em vez de matá-lo. Portanto, mesmo que a situação tenha mudado, é provável que o presidente não corra qualquer perigo imediato. Só que Lantz é uma história diferente.” expliquei. Ainda não tínhamos alcançado o cara. Afinal, ele conhecia a cidade melhor do que nós e talvez estivesse usando atalhos e rotas secundárias. “Lantz não percebeu que Talim é o verdadeiro mentor aqui. Então, o que acontecerá quando voltar correndo e explicar a situação? Talim não precisa mais de Lantz e agora este sabe demais. Vai matá-lo na primeira oportunidade!”

“Eu tenho que dizer, Lina...”

“O quê?”

“Essas suas ‘deduções perspicazes’ parecem mudar por capricho.”

Urk!

Meus pés bateram um no outro e caí dramaticamente. Então...

Wham!

“Urgggh...”

Droga, Gourry! Não me pise!

Olhei para cima e vi que ele estava um pouco à minha frente agora, coçando a cabeça enquanto corria sem sair do lugar.

“Olha, desculpe. Não consegui parar a tempo...”

“Você não conseguiu, hein?” me levantei e comecei a correr de novo. “Escute! Quando as circunstâncias mudam, as conclusões que tira também podem mudar! Estas ainda nem são deduções; são apenas inferências!”

Gourry inclinou a cabeça enquanto corria.

“Na verdade não entendo a diferença, mas... Acho que saberemos mais quando chegarmos à casa de Talim, certo?”

“Com certeza! Vamos, se apresse!”

Com uma sensação desconfortável afundando em meu peito, corri pela estrada escura.

A noite ainda era uma criança na Cidade Atlas.

———

“Ei...”

Parei no lugar, ficando em silêncio. Gourry fez o mesmo.

A porta da frente da mansão de Talim estava aberta e atrás dela...

A casa parecia um túmulo. O cheiro sufocante de sangue permeava o ar ao nosso redor. Os mercenários jaziam no que só poderia ser chamado de oceano daquela substância. Coloquei a mão sobre a boca para suprimir mais bile subindo. Já tinha visto muitas batalhas, porém nunca me acostumaria com o fedor insuportável de sangue fresco.

É verdade que seria mais preocupante se algum dia me acostumasse... Ou pior, passasse a gostar.

Os mercenários no terreno eram os guarda-costas contratados por Talim. Aqui e ali, entre eles, jaziam os enormes homúnculos contra os quais havíamos lutado na noite anterior. Ele tinha... Matado todos agora que não lhes eram mais úteis?

“Onde está Lantz?” Gourry falou, me trazendo de volta à realidade.

“Vamos continuar!” respondi, entrando. Minhas botas faziam sons enervante sob meus pés, fazendo parecer que estava andando na lama.

Viramos uma esquina do corredor, passando pela porta escancarada do saguão... E aí parei.

Lantz estava no chão, deitado entre todos os móveis tombados e cadáveres de mercenários. Ele apertava a barriga e gemia, contudo pelo menos isso significava que ainda respirava. E colocando-se sobre ele...

Era Rod, coberto de sangue. O homem virou seus olhos negros como a noite em nossa direção.

“Parece que enfim podemos lutar.”

Sabia exatamente o que queria dizer. Rod estava conversando com Gourry.

“O que aconteceu aqui?” perguntei.

“Eu não poderia lutar com você como seu aliado.” respondeu Rod, sacudindo a espada e espalhando gotas de sangue pelo chão. Sua lâmina brilhava com um leve tom púrpura no brilho fraco dos feitiços de Iluminação lançados nas arandelas que revestiam a parede.

“Entendo. E então...” Gourry disse. Havia uma raiva silenciosa em sua voz.

“Então deixei Talim e me juntei ao Halciform.”

O quê?

Meus olhos se arregalaram. Isso significava que quem estava por trás de tudo aquilo era...

Por quê?

“Entendo. Que bela maneira de viver. Sem moral, apenas aprimorando sua habilidade com uma lâmina por qualquer meio necessário...” Gourry disse, deslizando na minha frente. Ele ainda não havia desembainhado sua própria espada.

O olhar de Rod caiu sobre mim.

“Se você precisar de mais motivos para lutar comigo, posso matar a garota.” ofereceu.

“Não há necessidade.” recusou Gourry.

Dei um passo para trás, intimidada pela aura que irradiava de Gourry.

“Lina, lance um feitiço de cura em Lantz. E...”

“Entendi. Não vou interferir, não importa o que aconteça.” respondi com um aceno firme.

Corri até o lado de Lantz. Estaria mentindo se dissesse que não estava preocupada com a possibilidade de Rod se virar e me derrubar, embora este parecesse completamente focado em Gourry agora.

Lantz estava com uma ferida grave, no entanto não estava além da salvação. Coloquei a mão em seu ferimento e comecei a entoar um feitiço de Recuperação.

“Quer lutar aqui?” Gourry perguntou.

“Em qualquer lugar.” Rod respondeu sem rodeios.

Gourry pegou o punho da espada. Uma súbita e poderosa tensão inundou o saguão, dominando até mesmo o forte cheiro de sangue.

Engoli em seco de forma audível e retomei meu encantamento.

Gourry desembainhou! Rod avançou! Duas faixas prateadas de luz se cruzaram.

Gourry, desviando a lâmina de Rod, aproximou-se. Rod recuou e redirecionou sua lâmina para outro golpe. Sua espada tinha vantagem em termos de alcance, todavia Gourry interrompeu seu ataque para repeli-lo. A espada de Rod então mudou de direção no meio do golpe. Gourry bloqueou o golpe inesperado, travando suas lâminas. Ele seguiu deslizando sua lâmina ao longo da de Rod, canalizando o impulso para um novo golpe, só que... Não foi rápido o suficiente. Rod se inclinou para trás para se esquivar.

Os dois espadachins se distanciaram outra vez.

Meus olhos mal conseguiam acompanhar suas idas e vindas. Tinha dito a Gourry antes que não iria interferir... Mas a dura verdade é que não poderia, mesmo que quisesse. Qualquer coisa que eu fizesse só iria atrasá-lo.

Os dois lutadores entraram em confronto de novo. Gourry bloqueou um golpe alto de Rod, e Rod em seguida retirou o golpe e mudou para uma punhalada. Ele colocou Gourry na defensiva. Seus ataques vieram como um redemoinho, e Gourry mal conseguiu bloquear e desviar de todos eles.

E ainda assim... Rod parecia ser o mais desesperado dos dois lutadores. Apesar de estar na defensiva, Gourry parecia estar guardando forças para retaliar. O próprio Rod parecia perceber esse fato, e era por esse motivo que não podia se dar ao luxo de desistir nem por um segundo.

E finalmente...

“Hah!”


Gourry liberou toda a energia que estava acumulando! Porém isso o deixou vulnerável por um momento. Rod não deixou de tirar vantagem desse instante... E foi justo o que Gourry estava esperando!

Ele varreu sua lâmina para cima enquanto Rod descia sobre ele com a intenção de matar. Nenhum dos espadachins estava em posição de bloquear.

Eles vão se matar!

Eu tinha certeza disso, contudo...

Clink! Houve um barulho metálico distinto. A espada de Rod mudou de repente de trajetória e Gourry saltou para a esquerda. Os dois homens se encararam em silêncio.

A espada de Rod, entretanto, agora era mais curta. Estava quebrada... Não, cortada ao meio. Era isso que Gourry pretendia. Deve ter percebido que, se tivesse mirado em Rod, este poderia estar disposto a morrer para levar Gourry junto consigo.

Rod percebeu o que havia acontecido, no entanto, avançou ainda mais, mudando de postura. Gourry saltou para trás no mesmo instante, embora a lâmina do seu oponente o tenha atingido. A mancha de sangue que começava a se espalhar pelo buraco na manga do braço da espada contava a história.

“Parece que levei a pior nesse negócio.” disse Gourry com um sorriso indomável.

“Nunca conheci um oponente contra quem pudesse lutar com todo o meu coração...” Rod disse com um sorriso próprio.

Eu nunca tinha visto o homem sorrir antes. Foi um sorriso de contentamento que parecia totalmente inapropriado dado as circunstâncias.

“Vamos.”

Gourry agarrou sua espada com as duas mãos e enfrentou seu oponente uma vez mais. Rod se curvou para frente e preparou sua espada de gume único contra um ombro.

Gourry correu. Rod disparou. Lâmina colidiu com lâmina, espírito com espírito... E um momento depois, os espadachins se separaram de novo.

Mas... Gourry perdeu o equilíbrio! Talvez o ferimento no braço da espada o tenha deixado fraco demais para uma defesa adequada, ou talvez tenha escorregado em uma poça de sangue. De qualquer forma, Rod saltou em sua direção.

Gourry, por sua vez, não estava em posição de bloquear ou esquivar. E então apenas caiu para frente, chutando o chão. Ele estava se jogando de cabeça em Rod.

Rod baixou a espada, cravando-a profundamente no ombro esquerdo de Gourry... Ou melhor, teria o feito se ela ainda estivesse inteira. Porém a lâmina quebrada, que balançou instintivamente como sempre, apenas arranhou as ombreiras de escamas de Gourry.

Enquanto isso, o impulso de ataque de Gourry cortou direto o flanco de Rod.

“Você é... Bom...” Rod deu um sorriso satisfeito, olhando para Gourry... Para o guerreiro que o matou... Com um olhar não muito diferente de adoração.

Ele ficou ali, com sangue escorrendo de seu ferimento. Sua mão, ainda agarrada à espada, pendia flácida ao seu lado.

“Gostaria de enfrentá-lo de novo algum dia...” disse Rod, sua expressão brilhando com uma inocência infantil, apesar da sombra da morte pairando sobre ele.

“Eu passo.” respondeu Gourry sem rodeios, com o rosto encharcado de suor.

“Que pena...”

Lá, a força pareceu deixar o corpo de Rod de uma só vez. Seu corpo caiu com força sobre um joelho, contudo não se mexeu mais. E assim o espadachim de preto expirou, ainda apoiado em sua espada larga.

***

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