Capítulo 11: Um Convidado Inesperado
Meio da tarde do último dia de avrel; Simon estava afundado no escuro palheiro do estábulo, confortavelmente à deriva num mar amarelo e áspero, apenas a cabeça acima das ondas. O pó de feno cintilava pela ampla janela enquanto ouvia sua própria respiração cadenciada.
Acabara de descer da galeria sombreada da capela, onde os monges cantavam os ritos do meio-dia. Os tons limpos e esculpidos de suas orações solenes o tocaram de uma forma que a capela, e os atos áridos dentro de suas paredes de tapeçaria, raramente o faziam... Cada nota tão cuidadosamente segurada e então liberada com todo amor, como um entalhador colocando delicados barquinhos de brinquedo em um riacho. As vozes cantantes envolveram seu coração em uma doce e fria rede de prata; a terna resignação de seus fios ainda o prendia. Fora uma sensação tão estranha: por um momento, se sentira todo emplumado e com batimentos cardíacos acelerados... Um pássaro assustado nas mãos de Deus.
Desceu correndo os degraus da galeria, sentindo-se de repente indigno de tamanha solicitude e delicadeza. Era desajeitado demais, tolo demais. Parecia que, com suas mãos rachadas de ajudante de cozinha, poderia, de alguma forma, desvirtuar a bela música, como uma criança poderia, sem querer, pisotear uma borboleta.
Agora, no palheiro, seu coração começou a se acalmar. Enterrou o corpo no fundo da palha mofada e sussurrante e, com os olhos fechados, ouviu o suave ressonar dos cavalos em suas baias abaixo. Pensou sentir o toque quase insensível das partículas de poeira enquanto elas caíam sobre seu rosto na escuridão silenciosa e sonolenta.
***
Poderia ter cochilado, não tinha certeza, mas a próxima coisa que Simon notou foi o som repentino e agudo de vozes abaixo dele. Rolando, nadou pela palha que fazia cócegas até a beirada do palheiro, até conseguir enxergar o estábulo lá embaixo.
Eram três: Shem Horsegroom, Ruben, o Urso, e um homenzinho que Simon imaginou ser Towser, o velho bobo da corte... Porém não tinha certeza, pois este não usava nenhuma roupa colorida e levava um chapéu que cobria boa parte do rosto. Todos haviam entrado pelas portas do estábulo como um trio de bobos cômicos; Ruben, o Urso, balançava uma jarra com um punho tão largo quanto uma perna de cordeiro. Os três estavam bêbados como pássaros em um arbusto de amoras, e Towser, se fosse de fato o velho bobo, cantava uma velha canção.
Jack leva a uma donzela
lá em cima da alegre colina.
Vai entonando uma canção
com o sol no alto.
Ruben entregou a jarra ao homenzinho. O peso o desequilibrou no meio do refrão, de modo que cambaleou um passo e depois caiu, seu chapéu voando. Era mesmo Towser; ao parar, Simon pôde ver seu rosto marcado e com a boca franzida começar a se enrugar, como se fosse chorar como um bebê. Em vez disso, começou a rir descontroladamente, encostado na parede com a jarra entre os joelhos. Seus dois companheiros caminharam cambaleantes até o bobo. Sentaram-se todos em fila, como pegas¹ em uma cerca.
Simon se perguntava se deveria se anunciar; não conhecia Towser bem, contudo sempre fora amigo de Shem e Ruben. Depois de um momento de reflexão, decidiu não o fazer. Era mais divertido observá-los sem que ninguém suspeitasse, talvez conseguisse pensar em uma peça para pregar! Acomodou-se de volta no secreto e silencioso sótão.
***
— Por São Muirfath e o Arcanjo... — disse Towser com um suspiro, depois de alguns momentos de tédio. Eu precisava muito disso!
Seu dedo indicador deslizou pela borda da jarra e o colocou na boca.
Shem Horsegroom estendeu a mão sobre a barriga larga do ferreiro e tomou o jarro para um gole. Limpou os lábios com as costas da mão curtida.
— Para onde você vai, então? — perguntou ao bobo da corte.
Towser soltou um suspiro. A vida de repente pareceu se esvair do pequeno grupo de bebedores; todos lançaram tristes olhares para o chão.
— Tenho alguns parentes... Parentes distantes, em Grenefod, na foz do rio. Talvez eu vá para lá, embora duvido que fiquem muito felizes com mais uma boca para alimentar. Talvez vá para o norte, para Naglimund.
— Mas Josua se foi. — disse Ruben, e arrotou.
— É, foi pra bem longe. — acrescentou Shem.
Towser fechou os olhos e descansou a cabeça contra a madeira áspera da porta do cercado.
— No entanto o povo de Josua ainda mantém Naglimund sob controle, e terão compaixão por alguém expulso de casa pelos capangas de Elias. Ainda mais compaixão agora, quando dizem que Elias assassinou o pobre Príncipe Josua.
— Só que outros dizem que Joosuaa se tornou um traidor. — disse Shem, esfregando o queixo sonolento.
— Pfagh. — o pequeno bobo da corte cuspiu.
No sótão acima, Simon também sentia o calor da tarde de primavera, seu peso sonolento e arrastado. Isso emprestava à conversa lá embaixo um ar de insignificância, de distância... Assassinato e traição pareciam nomes de lugares distantes.
Durante a longa pausa que se seguiu, Simon sentiu suas pálpebras se fecharem inexoravelmente...
— Talvez não tenha sido uma coisa tão sábia de se fazer, irmão Towser... — Shem falava agora, o velho e magro Shem, tão magro e curtido quanto algo pendurado num defumador. — Provocar o Rei, quero dizer. Precisava cantar uma canção tão provocante?
— Hah! — Towser coçou o nariz com avidez. — Meus ancestrais ocidentais eram verdadeiros bardos, não velhos cambaleantes e coxos como eu. Teriam cantado uma canção para lhe arrepiar as orelhas, com razão! Dizem que o poeta Eoin-ec-Cluias certa vez compôs uma canção de fúria tão poderosa que todas as abelhas douradas do Grianspog desceram sobre o chefe Gormhbata e o picaram até a morte... Aquilo era uma canção!
O velho bobo da corte recostou a cabeça mais uma vez contra a parede do estábulo.
— O Rei? Meu Deus, não suporto nem o chamar assim. Eu estava com seu santo pai, homem e menino... Houve um Rei que se poderia chamar de Rei! Este não passa de um bandido... Nem metade do homem que seu... Pai John era...
A voz de Towser vacilou sonolenta. A cabeça de Shem Horsegroom caiu lentamente sobre o peito. Os olhos de Ruben estavam abertos, mas era como se olhasse para os espaços mais escuros entre as vigas. Ao seu lado, Towser se mexeu mais uma vez.
— Eu já lhe contei? — falou o velho de repente. — Já lhe contei sobre a espada do Rei? A espada do Rei John... Cravo Brilhante? Ele me deu, sabe, dizendo: ‘Towser, só você pode passar isso para meu filho Elias. Só você...!’ — uma lágrima brilhou na bochecha enrugada do bobo da corte. — ‘Leve meu filho para a sala do trono e entregue-o Cravo Brilhante’, ele me disse... E eu entreguei! Trouxe a espada na noite em que seu querido pai morreu... Coloquei em sua mão tal qual seu pai me disse para fazer... E ele a deixou cair! Deixou cair! — a voz de Towser elevou-se de raiva. — A espada que seu pai carregou em mais batalhas do que um cachorro vadio tem de pulgas! Mal consegui acreditar em tamanha falta de jeito, em tamanha... Falta de respeito! Está ouvindo, Shem? Ruben?
Ao lado, o ferreiro resmungou.
— Haah! Fiquei horrorizado, é claro. Peguei-a, limpei-a com as ataduras de linho e voltei a entregá-la; desta vez, ele a pegou com as duas mãos. ‘Ela escorregou.’ Foi como tentou disfarçar, como um idiota. Agora, ao segurá-la de novo, a expressão mais estranha passou por seu rosto, como... Como... — a voz do bobo da corte se perdeu.
Simon temia que o velho tivesse caído no sono, porém aparentemente o homenzinho estava apenas pensando, de um jeito lento e embriagado.
— A expressão em seu rosto... — continuou Towser. — Era como a de uma criança flagrada fazendo algo muito, muito perverso... Era justamente isso! Tenho certeza! Seu rosto empalideceu, abriu a boca... E me devolveu! ‘Enterre isto com meu pai’, foi o que me disse. ‘É a sua espada; deveria tê-la consigo.’... ‘Contudo ele queria que a entregassem a você, meu senhor!’, argumentei... No entanto ele me ouviu? Ouviu? Não. ‘Esta é uma nova era, velho.’, foi o que me falou. ‘Não precisamos nos deliciar com essas relíquias do passado’. Consegue imaginar a audácia de um homem assim?
Towser tateou ao redor até encontrar a jarra e a ergueu para um longo gole. Seus dois companheiros estavam de olhos fechados agora e respiravam com dificuldade, todavia o velho não prestou atenção, perdido em devaneios indignados.
— E então sequer fez a cortesia ao seu pobre pai morto de... Colocá-la ele mesmo na cova. Não... Nem a tocou! Obrigou o irmão mais novo a fazer isso! Obrigou Josua... — a cabeça calva de Towser assentiu. — Você pensaria que o queimava... Vê-lo devolvê-la... Tão rápido... Pirralho maldito... — a cabeça de Towser balançou mais uma vez, afundou-se no peito e não se levantou mais.
Quando Simon desceu a escada do palheiro, sem fazer barulho, os três homens já roncavam como cães velhos diante de uma lareira. Passou por eles na ponta dos pés, parando gentilmente para tampar o jarro, para que nenhum deles o derrubasse com um braço jogado pelo sono, e saiu para a luz do sol inclinada sobre o pátio.
“Tantas coisas estranhas aconteceram este ano.” pensou enquanto jogava pedrinhas no poço no centro do pátio. “Seca e doença, o príncipe desapareceu, pessoas queimadas e mortas em Falshire...” mas, de alguma forma, nada disso parecia muito sério.
“Tudo acontece com outra pessoa.” Simon decidiu, meio feliz, meio arrependido. “Tudo acontece com estranhos.”
***
Ela estava encolhida no assento da janela, olhando através dos vidros delicadamente gravados para algo lá embaixo. Não ergueu os olhos quando o ouviu entrar, embora o arrastar de suas botas nos pisos o anunciasse de forma bem clara; parou por um momento na porta, com os braços cruzados sobre o peito, porém ela ainda não se virou. Seus passos recomeçaram e então parou, olhando por cima do ombro da garota.
Não havia nada para ver na área comum além de um ajudante de cozinha sentado na borda da cisterna de pedra, um jovem de pernas longas e cabelos desgrenhados, com uma bata manchada. Fora isso, o pátio estava vazio, exceto por ovelhas, fardos sujos de lã vasculhando o chão escuro em busca de grama nova.
— O que houve? — perguntou ele, pousando a mão larga no ombro da jovem. — Você me odeia agora, a ponto de ir embora sem dizer uma palavra?
A garota balançou a cabeça, captando por um instante um raio de sol nos cabelos. Sua mão se aproximou daquela em seu ombro e a agarrou com dedos frios.
— Não! — respondeu, mantendo o olhar no acre deserto abaixo. — Porém odeio as coisas que vejo ao meu redor.
Ele se inclinou para a frente, contudo ela rapidamente soltou a mão e a levou ao rosto, como se para protegê-lo do sol da tarde.
— Que coisas? — perguntou o homem, com uma pitada de exasperação na voz. — Você preferiria estar de volta a Meremund, vivendo naquela prisão com correntes de ar que meu pai me deu, com o cheiro de peixe envenenando o ar até mesmo das varandas mais altas? — sua mão segurou o queixo da jovem, virando-o com firmeza e gentileza até poder ver seus olhos raivosos e lacrimejantes.
— Sim! — disse a menina, e empurrou a mão para longe, todavia agora sustentava seu olhar. — Sim, preferia. Ali pode-se sentir o vento, e consigo ver o oceano.
— Ah, meu Deus, garota, o oceano? Você é a dona do mundo conhecido e ainda assim chora porque não consegue ver a maldita água? Olhe! Olhe ali! — seu dedo apontou para além das muralhas do Hayholt. — O que é aquilo então, o Kynslagh?
A jovem olhou para trás com desprezo.
— Aquela é uma baía, a baía de um Rei, que espera passivamente que este navegue ou nade nela. Nenhum Rei é dono do mar.
— Ah. — Elias se jogou em um pufe, com as pernas compridas abertas para os lados. — E o pensamento por trás de tudo isso, suponho, é que também está presa aqui, hein? Que bobagem! Sei por que está chateada.
A garota se virou para longe da janela, com o olhar atento.
— Sabe? — perguntou, e sob o desprezo vislumbrou um pequeno sopro de esperança. — Diga-me por quê, então, pai.
Elias riu.
— Porque está prestes a se casar. Não é nenhuma surpresa! — o Rei se aproximou. — Ah, Miri, não há nada a temer. Fengbald é um fanfarrão, entretanto é jovem e ainda um pouco tolo. Com a mão paciente de uma mulher no trabalho, aprenderá boas maneiras em breve. E se não aprender... Bem, seria um verdadeiro tolo se maltratasse a filha do Rei.
O rosto de Miriamele endureceu em uma expressão de resignação.
— Vejo que não entende. — seu tom era inexpressivo como o de um cobrador de impostos. — Fengbald não me interessa mais do que uma pedra em meu sapato. É com você que me importo... E é você quem tem algo a temer. Por que se exibe para eles? Por que zomba e ameaça velhos?
— Zomba e ameaça? — por um momento, o rosto largo de Elias se contorceu em um rosnado feio. — Aquele velho filho da puta canta uma canção que me acusa de ter matado meu próprio irmão, e diz que eu zombei dele? — o Rei se levantou de repente, dando um empurrão raivoso na almofada com o pé, que a fez girar pelo chão. — O que tenho a temer? — perguntou de repente.
— Se não sabe, pai... Você que passa tanto tempo perto daquela cobra vermelha, Pryrates, e suas diabruras... Se não consegue sentir o que está acontecendo...
— O que, em nome de Aedon, está querendo dizer? — perguntou o Rei. — O que acha que sabe? — sua mão bateu na coxa com um estalo. — Nada! Pryrates é meu servo capaz, e fará por mim o que ninguém mais pode.
— Pryrates é um monstro e um necromante! — gritou a princesa. — Está se tornando o instrumento da vontade dele, pai! O que aconteceu com você? Está mudado. — Miriamele emitiu um som angustiado, tentando enterrar o rosto em seu longo véu azul, então saltou para passar correndo com os pés calçados em sapatilhas de veludo para dentro de seu quarto. Um momento depois, empurrou a pesada porta atrás de si.
— Malditas sejam as crianças! — Elias praguejou. — Menina! — gritou, caminhando em direção à porta. — Não ve que não entende nada! Não sabe nada sobre o que o Rei é chamado a fazer. E não tem o direito de ser desobediente. Eu não tenho filho! Não tenho herdeiro! Há homens ambiciosos ao meu redor, e preciso de Fengbald. Você não vai me impedir!
Ele ficou parado por um longo momento, mas não houve resposta. Bateu com a palma da mão na porta e as madeiras estremeceram.
— Miriamele! Abra a porta! — só o silêncio lhe respondeu. — Filha... — tornou a dizer, inclinando a cabeça para a frente até tocar a madeira inflexível. — Apenas me de um neto, e lhe darei Meremund. Cuidarei para que Fengbald não a impeça de ir. Poderá passar o resto da vida olhando para o oceano.
Sua mão se ergueu e limpou algo do rosto.
— Eu mesmo não gosto de olhar para o oceano... Me faz lembrar da sua mãe.
Mais uma vez ele bateu na porta. O eco floresceu e morreu.
— Eu te amo, Miri... — disse o Rei, com uma doce voz.
***
A torre no canto da muralha oeste havia recebido o primeiro bocado do sol do entardecer. Outra pedra caiu pela cisterna, seguindo centenas de outras até o esquecimento.
“Estou com fome.” pensou Simon. “Não seria má ideia...” refletiu. “Ir até a despensa e implorar algo para comer a Judith.”
O jantar só seria servido daqui uma hora, e estava desconfortavelmente ciente de que não comera nada desde o início da manhã. O único problema era que Raquel e sua equipe estavam limpando o longo corredor do refeitório e os aposentos ao lado do refeitório, a mais recente batalha na extenuante campanha de primavera de Raquel. O melhor seria, se possível, evitar o Dragão e quaisquer palavras que ela pudesse ter a oferecer sobre o assunto de implorar por comida antes do jantar.
Após um momento de consideração, durante o qual enviou mais três pedras poço abaixo, Simon decidiu que seria mais seguro ir sob o Dragão do que tentar passar ao seu redor. O refeitório ocupava toda a extensão do andar superior, ao longo do paredão da torre de menagem central do castelo; levaria muito tempo para contornar a Chancelaria e chegar às cozinhas do outro lado. Não, os depósitos eram o único caminho.
Provou uma corrida rápida desde o pátio comum, atravessando o pórtico oeste do refeitório, e passou despercebido. Um cheiro de água com sabão e o barulho distante de esfregões apressaram seus passos enquanto se abaixava para o andar inferior escuro e para as salas de estoque que ocupavam a maior parte da área abaixo dos refeitórios.
Como este andar ficava uns bons seis ou sete braços abaixo do topo das muralhas do bastião interior, apenas um tênue raio de luz refletida entrava pelas janelas. As sombras profundas tranquilizavam Simon. Devido à grande quantidade de materiais combustíveis, tochas quase nunca eram trazidas para esses cômodos... Havia pouca chance de ser descoberto.
Na grande câmara central, grandes pilhas de barris e tonéis com faixas de ferro estavam empilhadas até o teto, uma paisagem sombria de torres arredondadas e passagens estreitas. Qualquer coisa podia ser armazenada nesses barris: vegetais secos, queijos, pedaços de tecido de anos passados, até mesmo armaduras como peixes brilhantes em barris de óleo escuro como a meia-noite. A tentação de abrir alguns e ver que tesouros jaziam secretamente escondidos lá dentro era muito forte, mas Simon não tinha alavanca para destrancar os barris pesados e bem fechados... Nem ousava fazer muito barulho com o Dragão e suas legiões limpando e polindo logo acima como condenados.
No meio da sala comprida e sombria, abrindo caminho entre torres de barris que se inclinavam como arcobotantes de catedral, Simon quase caiu em um buraco na escuridão.
Recuando com o coração batendo forte de surpresa, rapidamente viu que, em vez de um mero buraco, era uma escotilha que se abria no chão à sua frente, com a porta aberta e recuada. Com cuidado, podia contornar apesar da estreiteza do caminho... Contudo por que estava aberto? Evidente que pesadas portas de escotilha não se abriam por conta própria. Sem dúvida, uma das governantas havia trazido algo de um depósito mais abaixo e não conseguira suportar o peso e fechar a porta.
Com apenas um instante de hesitação, Simon desceu a escada para a escotilha. Quem poderia dizer que coisas estranhas e excitantes poderiam estar escondidas no cômodo abaixo?
O espaço abaixo era mais escuro do que o cômodo acima, e a princípio não conseguia ver absolutamente nada. Seu pé, tateando, encontrou algo abaixo; ao ir cedendo o peso aos poucos, a sensação adquiriu a solidez de um piso de tábuas familiar. Quando tirou o outro pé da escada, no entanto, não encontrou resistência alguma, apenas seu aperto firme no degrau da escada o impediu de cair e perder o equilíbrio. Ainda havia espaço aberto abaixo da escada... Outra escotilha para um andar ainda mais abaixo. Manobrou o pé oscilante até encontrar a borda da escotilha inferior e, em seguida, avançou para a segurança do piso do cômodo do meio.
A escotilha acima dele era um retângulo cinza na parede de escuridão. À sua luz fraca, viu com decepção que aquela área era pouco mais que uma despensa: o teto era muito mais baixo que o do cômodo superior, e as paredes se estendiam para trás a apenas alguns braços de distância de onde estava. Este pequeno espaço se encontrava abarrotado até as vigas com barris e sacos, com apenas um pequeno corredor que se estendia até a parede oposta, separando os produtos secos inclinados.
Enquanto examinava o espaço com desinteresse, uma tábua rangeu em algum lugar, e ouviu o som cadenciado de passos na escuridão abaixo.
“Oh, Deus do Céu, quem será? E o que eu fiz agora?”
Que estupidez da sua parte não pensar que a escotilha pudesse estar aberta porque alguém seguia estando lá embaixo nos cômodos inferiores! Tinha feito aquilo de novo! Amaldiçoando-se silenciosamente por ser um idiota, deslizou para o corredor estreito entre as mercadorias embaladas. Os passos lá embaixo se aproximavam da escada. Simon se enfiou de volta no corredor, em um espaço entre dois sacos de pano liso e mofados que cheiravam e davam a impressão de estarem cheios de linho velho. Percebendo que ainda seria visível para qualquer um que se afastasse da escotilha e entrasse no caminho, agachou-se, apoiando o peso com o máximo cuidado em um baú com nervuras de carvalho. Os degraus pararam e a escada começou a ranger quando alguém subiu. Simon conteve a respiração. Não fazia ideia de por qual razão estava tão assustado de repente; se fosse pego, isso significaria apenas mais punição, mais dos olhares severos e comentários ásperos de Raquel... Por que então se sentia como um coelho farejado por cães de caça?
O som de subida continuou, e por um momento pareceu que quem quer que fosse continuaria subindo para o cômodo acima... Até que o rangido constante parou. O silêncio cantava nos ouvidos de Simon. Houve um rangido, depois outro, mas ele percebeu, com uma sensação pesada no estômago, que os ruídos estavam voltando. Um baque abafado quando a figura invisível desceu da escada para o chão, e novamente houve silêncio, porém desta vez a própria quietude pareceu pulsar. Os passos lentos se aproximaram pelo estreito corredor, até parar bem em frente ao esconderijo escolhido às pressas por Simon. Na penumbra, pôde ver botas pretas de bico fino, quase perto o suficiente para tocar; acima pendia a bainha preta de um manto escarlate. Era Pryrates.
Simon agachou-se entre os produtos secos e rezou para que Aedon parasse seu coração, que parecia retumbar como um trovão. Sentiu seu olhar ser atraído para cima contra a vontade até que olhou por entre os sacos que o escondiam. Através da estreita abertura, pôde ver o rosto sombrio do alquimista; por um momento, pareceu que Pryrates olhou direto em seus olhos, e quase lhe escapou um grito de terror. Um instante depois, percebeu que não era bem assim: os olhos envoltos em sombras do sacerdote vermelho estavam focados na parede acima da cabeça de Simon. Parecia estar escutando.
“Saia.”
Os lábios de Pryrates não se moveram, contudo Simon ouviu a voz tão claramente como se tivesse sido sussurrada em seu ouvido.
“Saia. Agora.”
A voz era firme, no entanto razoável. Simon se sentiu envergonhado de sua conduta: não havia nada a temer; era uma tolice infantil agachar-se ali no escuro quando podia se levantar e se revelar, admitir a piadinha que tinha pregado... Entretanto ainda assim...
“Onde você está? Mostre-se.”
Assim que a voz calma em seu ouvido finalmente o convenceu de que nada seria mais simples do que ficar de pé e falar, estava pegando os sacos para se levantar... Quando os olhos negros de Pryrates percorreram por um breve momento a fenda escura pela qual Simon espiava, e o toque superficial matou qualquer pensamento de se levantar como uma geada repentina murcha uma rosa. O olhar de Pryrates tocou os olhos ocultos de Simon e uma porta se abriu no coração do garoto; a sombra da destruição preencheu aquela porta.
Aquilo era a morte... Simon sabia disso. Sentiu o frio desmoronar do solo da sepultura sob seus dedos retorcidos, o peso da terra escura e úmida em sua boca e olhos. Não havia mais palavras agora, nenhuma voz imparcial em sua cabeça, apenas um puxão, algo intocável que o arrastava para a frente por frações de centímetros. Um verme de gelo enrolou-se em torno de seu coração enquanto lutava, aquilo era a morte esperando... Sua morte. Se fizesse um som, o mais leve tremor ou suspiro, nunca mais veria o sol. Fechou os olhos com tanta força que suas têmporas doeram; cerrou os dentes e a língua contra a necessidade urgente de respirar. O silêncio sibilava e martelava. O puxão se intensificou. Simon sentiu como se estivesse afundando aos poucos nas profundezas esmagadoras do mar.
Um uivo repentino foi seguido pela maldição assustada de Pryrates. O aperto intangível e sufocante havia desaparecido; os olhos de Simon se abriram a tempo de ver uma forma cinzenta e esguia passar deslizando, saltar sobre as botas de Pryrates e correr em direção à escotilha, onde mergulhou na escuridão. A risada surpresa do sacerdote ecoou baixinho na sala abarrotada.
— Um gato...?
Após uma pausa de meia dúzia de batimentos cardíacos, as botas pretas se viraram e voltaram pelo corredor. Em um instante, Simon ouviu as tábuas da escada rangendo. Continuou sentado rígido, a respiração superficial, todos os sentidos alarmados. Suor frio escorria em seus olhos, todavia não levantou a mão para enxugá-lo... Ainda não.
***
Por fim, depois de muitos minutos e os sons da escada terem desaparecido, Simon se levantou dos sacos de proteção, equilibrando-se sobre pernas fracas e trêmulas.
“Louvado seja Jesuris e abençoado seja aquele gatinho cinzento e disperso! Mas o que faço?”
Ele ouvira a escotilha superior se fechar e o som de passos de botas no chão acima, mas isso não significava que Pryrates tivesse ido muito longe. Seria arriscado até mesmo levantar a pesada porta e olhar; se o sacerdote seguisse estando no depósito, as chances eram grandes de que ouvisse. Como poderia sair?
Sabia que deveria apenas ficar onde estava, esperando no escuro. Mesmo que o alquimista estivesse no andar superior agora, eventualmente precisaria terminar seu trabalho e partir. Este parecia de longe o plano mais seguro, porém parte da natureza de Simon se rebelou. Uma coisa era ficar assustado, e Pryrates o assustava profundamente, outra coisa era passar o dia inteiro trancado em um cômodo escuro e sofrer as punições inerentes, quando o sacerdote quase certamente estava voltando para seu ninho na Torre de Hjeldin.
“Além do mais, acho que ele não conseguiria me fazer sair... Conseguiria? O que houve é que estava tão apavorado que quase me entreguei...”
A lembrança do cãozinho com o dorso quebrado lhe veio à mente. Engasgou e passou longos momentos respirando fundo.
E o gato que o salvara de ser pego... Pego? A imagem dos olhos negros como aguilhões de Pryrates não o abandonava: não era produto de nenhuma fantasia assustadora. Para onde o gato tinha ido? Se tivesse pulado para o andar de baixo, sem dúvida estaria preso e nunca encontraria o caminho de volta sem a ajuda de Simon. Era uma dívida de honra.
Enquanto se movia para a frente sem fazer nenhum barulho, pôde ver um brilho fraco vindo da porta no chão. Haveria uma tocha acesa lá embaixo? Ou talvez houvesse alguma outra saída, uma porta que se abrisse para um dos pátios inferiores?
Após alguns momentos ouvindo em silêncio próximo a escotilha aberta, certificando-se de que ninguém o surpreenderia desta vez, Simon pisou com cautela na escada e começou a descer. Uma lufada de ar frio balançou sua túnica e arrepiou seus braços; mordeu o lábio inferior e hesitou, depois continuou.
Em vez de ser interrompido por outro patamar logo abaixo, a descida cuidadosa de Simon continuou por alguns instantes. A princípio, a única luz subia abaixo dele, como se estivesse descendo por algum tipo de gargalo. Por fim, a iluminação tornou-se mais geral e, logo depois, sua exploração tateante para baixo encontrou o solo. Tocou a madeira com os dedos dos pés em um dos lados da escada: havia encontrado o chão. Ao descer, viu que não havia mais passagem abaixo, que o degrau inferior da escada repousava ali. A única fonte de luz na câmara, e com a escotilha superior agora fechada, a única fonte de iluminação, era um retângulo estranho e brilhante que brilhava contra a parede oposta, uma porta como envolta em névoa pintada na parede com uma luz amarelada e intermitente.
Simon, para conter o espanto, fez o sinal da Árvore enquanto olhava ao redor. O resto da câmara continha apenas um estampo quebrado e algumas outras peças de mobília descartada. Embora as sombras alongadas do cômodo deixassem muitos cantos obscuros, Simon não conseguia ver nada que interessasse a um homem como Pryrates. Movendo-se em direção a reluzente forma na parede com as mãos estendidas, silhuetas de cinco dedos delineadas em âmbar surgiram. O retângulo brilhante brilhou de repente, depois desapareceu rapidamente, lançando um manto de escuridão absoluta sobre tudo.
Simon estava sozinho na escuridão. Não havia som algum, exceto o do próprio sangue pulsando em seus ouvidos como um oceano distante. Deu um passo cauteloso para a frente; o som do sapato raspando o chão preencheu o vazio por um instante. Deu mais um passo, e depois mais um; seus dedos estendidos sentiram a pedra fria... E algo mais: estranhas e tênues linhas de calor. Em seguida se ajoelhou ao lado da parede.
“Agora sei como é estar no fundo de um poço. Só espero que ninguém comece a atirar pedras de cima.”
Ao se sentar para ponderar o que faria em seguida, ouviu um leve sussurro de movimento. Alguma coisa o atingiu no peito, e ele soltou um grito de surpresa. Ao seu grito, o toque desapareceu, no entanto retornou um momento depois.
Algo cutucava suavemente sua túnica... E ronronava.
— Gato! — sussurrou.
“Você me salvou, sabia?” Simon esfregou a forma invisível. “Vai com calma. É difícil dizer qual lado é qual quando fica se contorcendo tanto. É verdade, você me salvou, e vou te tirar desse buraco em que se meteu.”
— Claro, me meti no mesmo buraco também. — disse Simon em voz alta. Tomou a forma peluda e a colocou dentro da túnica. O ronronar do gato ficou mais grave enquanto se acomodava em sua barriga quente. — Sei o que era aquela coisa brilhante. — sussurrou. — Uma porta. Uma porta mágica.
Também era a porta mágica de Pryrates, e Morgenes o esfolaria por sequer chegar perto dela, mas sentia uma certa indignação teimosa. Afinal, aquele também era o seu castelo, e os depósitos não pertenciam a nenhum sacerdote arrogante, por mais assustador que fosse. De qualquer forma, se subisse a escada e Pryrates ainda estivesse lá... Bem, nem mesmo o orgulho de Simon, que havia retornado, lhe permitia se iludir sobre o que aconteceria depois. Então, era ficar sentado no fundo de um poço escuro como breu a noite toda, ou...
Estendeu a palma da mão na parede, deslizando-a pelas pedras frias até encontrar outra vez os traços de calor. Traçou-os com os dedos e descobriu que correspondiam aproximadamente à forma retangular que vira antes. Colocando as mãos espalmadas no meio, empurrou, porém encontrou apenas a resistência impassível da pedra sem argamassa. Empurrou outra vez, com toda a força que pôde; o gato se mexeu inquieto sob sua camisa. Novamente, nada aconteceu. Enquanto se inclinava ofegante contra o local, sentiu até os pontos quentes esfriarem sob suas mãos. Uma visão repentina de Pryrates, esperando no escuro acima como uma aranha, um sorriso se espalhando pelo rosto ossudo, fez o coração de Simon disparar.
— Oh, Elysia, Mãe de Deus, abra! — murmurou, desesperançado, o suor do medo deixando suas palmas escorregadias. — Abra!
A pedra ficou subitamente morna, depois quente, forçando Simon a se afastar. Uma fina linha dourada formou-se na parede à sua frente, correndo como um fluxo de metal derretido ao longo da horizontal até que ambas as extremidades caíssem e depois se juntassem de novo. A porta estava lá, brilhando, e Simon só precisou levantar a mão e tocá-la com um dedo para que as linhas ficassem mais brilhantes. Rachaduras de verdade se tornaram visíveis, percorrendo toda a extensão da silhueta. Colocou os dedos cuidadosamente em uma das bordas e puxou; uma porta de pedra se abriu para fora sem fazer nenhum som, preenchendo o cômodo de luz.
Seus olhos levaram um momento para se acostumarem à onda de luz. Atrás da porta, um corredor de pedra se inclinava e desaparecia em uma esquina, esculpido direto da rocha áspera do castelo. Uma tocha queimava em uma arandela logo ali dentro; fora isso que o deslumbrara tanto. O garoto se levantou, e sentiu um peso confortável dentro de sua camisa, o gato.
Teria Pryrates deixado uma tocha acesa se não planejasse retornar? E o que era aquela estranha passagem? Simon se lembrou de Morgenes dizendo algo sobre as antigas ruínas sitha sob o castelo. De fato se tratava de uma construção de pedra antiga, contudo rudimentar e crua, diferente da delicadeza polida da Torre do Anjo Verde. Resolveu fazer uma rápida inspeção: se o corredor não levasse a lugar nenhum, teria que subir a escada, afinal.
As paredes de pedra áspera do túnel estavam úmidas. Enquanto Simon caminhava pela passarela, pôde ouvir um som surdo e estrondoso através da própria rocha.
“Devo estar abaixo do nível do Kynslagh. Não é de admirar que as pedras, até mesmo o ar, tudo esteja tão úmido.”
Como se para pontuar esse pensamento, sentiu água entrando pelas costuras dos sapatos.
Agora o corredor fazia uma nova curva, continuando sua descida. A difusa luz da tocha da entrada era complementada por alguma nova fonte. Ao dobrar uma última esquina, chegou a um piso nivelado e alargado que terminava a uns dez passos de distância em uma parede de granito escarpado. Outra tocha ardia ali em seu suporte.
Dois buracos escuros surgiam na parede à sua esquerda; no final, logo além deles, havia o que parecia ser outra porta, quase nivelada com o fim do corredor. Água espirrava perto dos seus sapatos enquanto avançava.
Os dois primeiros espaços pareciam ter sido algum tipo de câmara... Celas, provavelmente. Mas agora portas estilhaçadas pendiam das dobradiças; a luz bruxuleante da tocha não revelava nada lá dentro além de sombras. Um odor úmido de decomposição pairava nesses buracos desocupados, e ele rapidamente os ultrapassou para ficar diante da porta no final. O gato escondido lhe fez cosquinhas com garras gentis enquanto examinava as vigas pesadas e vazias sob a luz oscilante.
O que poderia haver além? Outra câmara apodrecida, ou um corredor que levava ainda mais para dentro da pedra corroída pela água? Ou seria talvez a sala do tesouro secreto de Pryrates, escondida de todos os olhares curiosos... Bem, da maioria dos olhares curiosos...?
No meio da porta, havia uma placa de metal fixada: Simon não conseguia dizer se era um trinco ou uma tampa de olho mágico. Quando tentou, o metal enferrujado não se moveu, e saiu com manchas vermelhas cobrindo os dedos. Olhando ao redor, viu um pedaço de dobradiça quebrada ao lado da porta aberta à sua esquerda. Pegou-a e forçou o metal até que, com um rangido relutante, a placa se inclinou para cima em uma dobradiça endurecida pela ferrugem e sal. Depois de uma rápida olhada pelo corredor e um momento de silêncio, atenta a passos, inclinou-se para a frente e olhou para o buraco na porta.
Para sua grande surpresa, havia um punhado de juncos queimando em um suporte de parede na câmara, porém qualquer pensamento inebriante e aterrorizante de ter encontrado o depósito secreto de Pryrates foi rapidamente dissipado pelo chão úmido e coberto de palha e pelas paredes nuas. Havia algo no fundo da câmara, no entanto... Um feixe escuro de sombra.
Um ruído metálico fez Simon se virar, surpreso. O medo o invadiu enquanto olhava em frenesi ao redor, esperando a qualquer momento ouvir o som de botas pretas no corredor. O barulho voltou; Simon percebeu, com espanto, que vinha da câmara além da porta. Voltando o olhar cautelosamente para o buraco, fitou as sombras.
Alguma coisa se movia na parede do fundo, uma forma escura, e, enquanto ela se inclinava lentamente para o lado, o som áspero e metálico ecoou de novo no pequeno espaço. A forma sombria ergueu a cabeça.
Engasgando, Simon saltou para trás do olho mágico como se tivesse levado um tapa no rosto. Num instante de turbilhão, sentiu a terra firme tremer sob seus pés, sentiu que havia revirado algo familiar para encontrar corrupção rastejante por baixo...
A coisa acorrentada que o encarara... A coisa com os olhos assombrados... Era o Príncipe Josua.
Notas:
1. Pega ou pega-rabuda é uma ave da família Corvidae (corvos), uma das espécies de ave mais inteligente do mundo.
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