Capítulo 31: Rumo ao Pico do Dragões em busca da lenda
A cidade agora estava horrivelmente em chamas. Chamas crepitavam, pessoas fugiam em pânico, gritos ecoavam e a destruição se espalhava.
“O que eles fizeram?” sussurrei, olhando congelada para a cena.
Embora escondido por todo o fogo e fumaça, o mazoku ainda devia estar por perto. Não conseguia acreditar que ele havia lançado um ataque tão indiscriminado só para me matar... Era inconcebível.
Ouvi outro rugido... Outro ataque, talvez. Acho que está planejando arrasar a cidade para me impedir de escapar. Ou talvez essa fosse a única maneira de seu poder funcionar. De qualquer forma, não posso deixar que continue.
Só havia uma maneira de manter a devastação no mínimo: tinha que levar o idiota para fora da cidade eu mesma! Então, é... Não era um plano que me deixava a vontade de pôr em prática, mas deixar uma cidade inteira pegar fogo por minha causa não ia me ajudar a dormir à noite.
Comecei a entoar um feitiço de voo em alta velocidade, uma manobra arriscada. Não seria capaz de lançar nenhum feitiço de ataque poderoso enquanto o usasse, o que significava que abriria mão de qualquer coisa que pudesse ferir um mazoku. Pior ainda, a barreira de vento que o feitiço produzia não me manteria a salvo de quaisquer um dos seus ataques que por acaso surgissem em meu caminho durante o voo. Porém o que uma garota poderia fazer? Não podia só usar minhas cartas na manga no meio da cidade, o que me deixa apenas a opção de uma fuga aérea. De jeito nenhum conseguiria sair dali a pé, afinal.
“Lei Asa!”
Envolvida por uma barreira de vento, decolei no ar. Logo avistei o mazoku disparando através da fumaça negra que cobria a cidade. Ele parou e pairou diante de mim. Espere aí... Este era um mazoku diferente do de antes! Tinha a pele da cor de uma vítima de afogamento, com um único olho grande no meio do rosto.
Há mais de um deles? Estão tentando me cercar?
Antes que pudesse reagir, o maldito disparou uma onda de choque negra na minha direção! Manipulei meu feitiço para realizar uma rápida esquiva e me levar para mais longe da cidade.
Contudo, antes que pudesse ir muito longe, outro mazoku apareceu para bloquear meu caminho! Argh! Dá um tempo, droga! O recém-chegado lançou uma lança brilhante de energia direto em mim assim que me avistou. Enquanto tentava fazer manobras evasivas...
Whoom!
“Geh!” tossi quando uma onda de calor e força me atingiu.
Maldição! Isso veio daquele atrás de mim?
Estava praticamente ilesa graças à minha barreira de vento, no entanto acabei me distraindo naquele instante. Quando olhei de novo para cima, a lança de energia estava a poucos centímetros de distância! Porcaria! Não conseguiria escapar a tempo! Ela passou sem dificuldade pela minha barreira de vento e...
Vwip! Com um pequeno som, a lança literalmente desapareceu diante dos meus olhos.
O que aconteceu? me perguntei, entorpecida por um segundo. Olhei para cima e vi que o mazoku que havia lançado a lança agora estava focado em algo atrás de mim. No momento seguinte, uma figura surgiu ao lado do mazoku, e seu corpo se despedaçou. Restou apenas a nova figura pairando ali...
Sacerdote Xellos, servo da Grande Besta.
Virei-me e vi que o mazoku que me perseguia também havia sumido. Xellos devia tê-lo destruído também. Ele surgiu do nada, neutralizou o ataque de energia e, sem esforço algum, matou os dois que me pinçavam.
Xellos era... Não, era muito mais poderoso do que imaginei.
Ele murmurou algo enquanto apontava para o chão abaixo. Minha barreira de vento me impedia de ouvi-lo, todavia presumi que estivesse me pedindo para pousar. Fez um leve aceno em resposta e desci pela fumaça até a avenida abaixo, que rodopiava com o calor. Xellos pousou ao meu lado um momento depois. Todos por perto já deviam ter fugido da cidade, pois não conseguia sentir mais ninguém ao nosso redor.
“Minha nossa... Pelo visto cheguei um pouco tarde demais. Que descuido da minha parte.” disse o sacerdote em um tom despreocupado, com o sorriso inalterado apesar da situação. “Estou começando a achar que o ataque naquela vila à beira da estrada foi só um plano para nos separar... Sério, nunca pensei que o Mestre Raltark se rebaixaria sendo o chamariz. Hahaha!”
“Não me venha com ‘hahaha’! Enfim, a gente precisa sair daqui. Não estou com nenhuma vontade de morrer assada... Aliás, você derrotou o Raltark?”
“Ah, aliás...” Xellos sorriu envergonhado enquanto corríamos lado a lado pela rua da cidade banhada pelo brilho alaranjado das chamas. “Receio que ele tenha me enganado... Que preocupante. Hahaha.”
“Isso não tem graça alguma!”
“Bem, depois de tudo... É um Sacerdote também. O que nos coloca no mesmo nível em termos de patente... Entretanto devo dizer que eu não fazia ideia de quantos deles estavam acampados nesta cidade. Tem tanta coisa acontecendo no mundo, não é?”
“Argh! Pare de falar como se fosse uma curiosidade divertida! Não pode pelo menos usar seu poder para apagar o incêndio? Aqueles mazokus enlouqueceram e começaram a atacar o lugar todo!” gritei.
Com isso, Xellos respondeu com um sorriso preocupado.
“Temo que meu conhecimento sobre magia de água e gelo seja...”
“Droga! Você é tão inútil em momentos como...” parei antes de terminar. Tinha visto um garoto caído à beira da estrada mais à frente. Havia uma mancha vermelha se espalhando pelo chão ao seu redor, como se tivesse sido atingido por um pedaço de entulho em chamas.
Devia ter por volta de onze ou doze anos. Cabelo preto levemente ondulado. Eu o reconheci. É... Era o garoto que tentou roubar minha bolsa na cidade.
“Ei! Você está bem?” corri até o menino e estendi a mão, porém...
Ah, não...
Seu corpo já estava frio. Levantei-me, deixando Xellos tomar meu lugar, ajoelhado ao lado do garoto.
“O coração não está batendo.” declarou.
“Eu sei disso!” gritei com raiva em resposta à sua aparente indiferença.
Rezei uma prece silenciosa pelo garoto falecido e comecei a andar novamente.
Meus dentes estavam cerrados. Tinha que... Tinha que dar um fim nesse absurdo. Contudo, apesar das minhas melhores intenções, os mazokus seguiam sendo poderosos demais para mim. O que significava...
“Bem, o que vai fazer agora?” perguntou Xellos, interrompendo meus pensamentos. “Não posso dizer que aconselharia permanecer nesta cidade...”
Já sei disso. Ficar aqui por mais tempo só pioraria as coisas... O que significa que meu próximo passo é óbvio.
“Preciso... Me reagrupar com os outros.” falei com a voz baixa. “Vamos sair da cidade nesse instante. E se não conseguir os encontrar...” fiquei em silêncio por um momento, então conclui de forma clara. “Vou encontrar a Bíblia Claire sozinha.”
Vwoosh! Um raio de luz de repente veio em minha direção, atravessando o vento e o fogo. “Ngh!”
Rapidamente desviei do raio e, com a mesma rapidez, vi um mazoku avançando em seu encalço. No entanto...
Bwush! Quase no mesmo instante em que chegou, Xellos lançou um ataque. Tenho dificuldade em descrever ao certo o que aconteceu, entretanto o resultado final foi, digamos, uma cabeça de mazoku pulverizada.
———
Quantos ele havia matado até então? Deviam ser mais de dez, porém já desisti de contar faz tempo.
Nós dois estávamos vagando pela cidade em busca de Gourry e os outros. Ainda não os tínhamos encontrado, e nossos inimigos continuavam a sair da toca enquanto isso.
Era absurdo acreditar que uma cidade tivesse tantos escondidos... Os caras que víamos eram quase do mesmo nível dos mazokus que já enfrentei, como Seigram e Vizea, embora Xellos fosse tão poderoso que os esmagava como insetos. Todos os que apareceram até então foram mortos com um único golpe. Estava começando a me sentir como a donzela de uma antiga saga heroica.
Depois de caminhar um pouco mais, Xellos parou de repente e me envolveu em sua capa com um floreio. Franzi o cenho, confusa, quando do nada...
Bwooooom! Uma série de explosões irrompeu ao nosso redor! O calor e a pressão extremos fizeram os prédios de ambos os lados ceder e o chão abaixo ferver com um brilho vermelho. Todavia, graças à proteção de Xellos, mal senti nada.
Quando a luz das explosões enfim desvaneceu, pude ver uma figura humana se aproximando a passos lentos, vinda de trás da onda de calor. Sua armadura prateada e sua lâmina nua brilhavam em vermelho à luz do fogo. Ele parou a uma curta distância de nós.
“Vocês arruinaram tudo...” disse uma voz familiar, imbuída de raiva.
A armadura que este homem usava era sem dúvida do Reino de Dils. Como eu suspeitava... Era o General Rashart. Seus olhos, ardendo de raiva, estavam fixos não em mim, mas em Xellos. Não devia estar nada satisfeito com a interferência em seu plano de assassinato.
“Acredito que este seja nosso primeiro encontro... General Rashart.” saudou Xellos com uma voz que poderia até ser chamada de amigável.
“Nosso primeiro... E nosso último!” respondeu Rashart, dando um passo à frente. “Por algum motivo, Sir Raltark me disse para ficar longe de você, porém...”
“As coisas foram longe demais para a paz ser uma opção, tenho certeza.” disse Xellos com seu sorriso de sempre, como se estivesse incitando o sujeito.
“Claro! Veremos quem sobrevive: o Sacerdote ou o General!”
Meu primeiro gostinho da hostilidade irradiada de Rashart me fez recuar às pressas. Um golpe colateral do poder que esses caras liberavam enquanto lutavam poderia ser mortal.
“Hrragh!” Rashart uivou. A lâmina em sua mão brilhou em roxo e mudou de forma.
Será que canalizou seu poder para uma espada mundana, transformando-a em uma arma mágica para matar mazokus?
“Hah!” Rashart gritou, disparando uma esfera negra de energia de sua mão em Xellos. Ele então saltou logo atrás dela, investindo direto contra seu oponente!
E Xellos... Não se esquivou! A esfera de Rashart o atingiu em cheio!
Fwoom!
Me abaixei o mais rápido que pude para desviar da explosão de luz negra e miasma que se seguiu. Tenho certeza de que Xellos não se deu ao trabalho de fazer o mesmo, pois sabia que poderia resistir. Rashart deve ter percebido isso por si mesmo, a explosão foi apenas uma distração.
Antes que se acalmasse, o general ergueu sua espada mágica e saltou para a frente, gritando.
“Morra, Sacerdote!”
Zing! Um som agudo soou em sincronia com seu grito de guerra.
Quando a fumaça se dissipou momentos depois, a visão que me recebeu foi...
Xellos, atravessado pela espada de Rashart? Não, foi...
Whunk... Algo voou em minha direção e se cravou no chão aos meus pés. Era parte da lâmina de Rashart. Ela se desfez ao vento enquanto eu observava, primeiro retornando à sua forma original antes de se desintegrar em uma pequena pilha de areia prateada. Xellos deve ter feito algo para quebrar a espada encantada pouco antes de perfurar sua forma corpórea.
“O quê?” Rashart ficou boquiaberto, depois puxou o que restava de sua arma, que havia se quebrado sem causar um único arranhão em seu oponente.
“Devo lhe contar?” perguntou o sacerdote com seu sorriso de sempre. “Por que o Mestre Raltark ordenou que não viesse atrás de mim?”
Antes que essas palavras terminassem de sair de sua boca... Vwomm!
“Graaah!” Rashart soltou um grito ecoante. Algo como uma broca, negra como a noite e alta como uma pessoa, surgiu do nada e o empalou!
“É porque... Você não tem chance contra mim sozinho.”
Vwomm!
“Graaaaah!” gritou Rashart quando uma segunda broca negra o atingiu, desta vez no peito.
“O Dragão do Caos criou um Sacerdote e um General para servirem como seus emissários... Contudo a Grande Besta criou apenas a mim.” disse Xellos casualmente. “Em outras palavras, a mesma quantidade de poder que o Dragão do Caos dividiu entre vocês... A Grande Besta imbuiu em mim. Sendo este o caso, para ter uma chance contra mim, vocês dois... General Rashart e Sacerdote Raltark, teriam que trabalhar juntos... Ou o próprio Dragão do Caos teria que aparecer.”
Vwomm! Uma terceira broca negra perfurou Rashart.
Claro... Naquele momento, enfim percebi a natureza do poder que Xellos possuía. Aquelas brocas pretas eram uma expressão disso... O poder de destruir um alvo sem nunca fazer contato físico. Xellos podia teletransportá-las pelo espaço, penetrar seu alvo com elas e liberar seu poder de dentro.
Isso, ou talvez... Aquelas brocas seriam de fato a verdadeira forma de Xellos no plano astral? Podia sentir arrepios por todo o meu corpo. Ele estava do meu lado por enquanto, no entanto, um dia, seria meu inimigo. Quando chegasse a hora... Seria possível derrotá-lo?
Com o corpo de Rashart ainda cravado em sua broca preta, Xellos enfim disse com um sorriso.
“Minha nossa. Desculpe a grosseria, mas nós não temos tempo a perder. É uma pena nos despedirmos tão logo depois de nos conhecermos... Hahaha.”
Sua risada era tão descontraída como sempre e, enquanto pairava no ar, ouvi uma voz familiar exclamar atrás de nós...
“O quê?”
Erk... Virei-me timidamente para ver quem era e, como temia, avistei ninguém menos que Gourry, Zel e Amelia.
Droga! Estava distraída demais com Xellos para notá-los chegando! Foi Zelgadis quem gritou, incrédulo, com o que estava vendo.
“Hã?” Xellos cantarolou, momentaneamente distraído também por nossos recém-chegados.
Quando me virei para a briga de mazokus, Rashart havia sumido... Deixando a broca preta de Xellos pairando sem adornos no ar.
“Ah, ele escapou usando uma distração tão passageira. Não é um General à toa, pelo visto.” disse o sacerdote dando de ombros, quase indiferente. Enquanto falava, a broca preta que havia cortado do nada se dissolveu em uma brisa passageira.
“O que aconteceu?” Zel rosnou. “E Xellos! O que... Que diabos você é?”
“Você é... Um mazoku?” Amelia sussurrou sem fôlego.
É, nenhuma surpresa com essas reações. Qualquer um com o mínimo de conhecimento de magia poderia dizer que o que tinham acabado de presenciar não era um feito de um ‘humano normal’...
Xellos lançou um olhar silencioso em minha direção.
Deixando a bagunça pra mim, hein?
Deixei escapar um suspiro suave e disse.
“Ok, vou contar tudo o que sei... Mas antes precisamos sair desta cidade.”
———
“Eu não gosto disso!” sussurrou Zelgadis em esperada objeção.
Nós cinco, incluindo Xellos, havíamos partido de Gyria e agora estávamos enfurnados em uma pequena cabana de caça que encontramos no sopé das colinas, a alguma distância da cidade. Foi lá que expliquei, aos trancos e barrancos, tudo o que nos levara à nossa situação atual.
Quando percebi com certeza que Xellos era um mazoku. Sua intenção de me levar à Bíblia Claire por algum motivo ainda desconhecido. O que aconteceu no palácio da Cidade de Gyria. Que o General Rashart era na verdade um mazoku. Que fui descuidada e acabei trancada em um quarto, onde tentaram me matar. Que um grupo de mazokus havia me encurralado com ataques indiscriminados. E, por fim, que Xellos tinha vindo me salvar.
Meus três aliados apenas ouviram minha história em silêncio. Na verdade, demorou bastante até que Zel por fim fizesse aquele primeiro comentário descontente.
“Então... Você já sabia desde o começo, Lina?” sussurrou Amelia com a voz rouca.
“Tinha uma vaga suspeita.”
“Gostaria que tivesse compartilhado essa suspeita conosco.” disse Zel, infeliz.
Quer dizer, o motivo de não ter contado foi porque eu sabia que eles nunca iriam entrar na brincadeira... Porém, sim, touché. O que fiz era equivalente a enganá-los. Não tinha desculpa.
“Agora...” falou Zel, desviando o olhar de mim para Xellos. “Qual é o seu verdadeiro objetivo aqui?”
O sacerdote, que estava sentado em um canto da cabana, respondeu da maneira usual.
“Isso... É um segredo.”
“Seu...” gritou Zel, levantando-se.
“Não!” eu o interrompi rapidamente.
“Por que não?” exigiu saber.
Hesitei por um minuto, depois respondi.
“Xellos é... Muito forte. É provável que seja mais forte do que todos nós aqui.”
Minhas palavras silenciaram Zelgadis por um momento. Ele continuou a encarar o sacerdote, contudo, ao fim, estalou a língua e sentou-se de volta.
“Então...” Amelia perguntou em voz baixa. “O que fazemos agora, Lina?”
“Vou tentar encontrá-la... A Bíblia Claire. Sei que é dar a Xellos justo o que quer, no entanto me recusar a fazê-lo não vai exatamente tirar os outros do meu pé... Então, por enquanto, é meu único recurso.” respondi, e então me calei.
“Não sou fã de dar aos mazokus o que eles querem.” disse Zel, contemplativo. “Entretanto abandonar agora seria como dar meia-volta e fugir, e também não gosto dessa ideia...”
“O mesmo aqui.” interveio Amelia. “Agora que sei que o Mestre Xellos... Aham! Agora que sei que Xellos é um mazoku, um agente das trevas, não posso apenas concordar em obedecer às suas ordens. Dito isso... Algo parece estar se formando ao seu redor, Lina. Preciso descobrir se é uma força do bem ou do mal, e assim determinar se devo ajudar ou impedir! Embora, se estiver tecnicamente apoiando uma conspiração demoníaca ao fazê-lo...” ali, ela cruzou os braços e mergulhou em pensamentos profundos.
“O que deixa sobrando...” foi Xellos quem quebrou o novo silêncio. “Mestre Gourry. O que pretende fazer?”
“Quem, eu?” Gourry coçou a bochecha, pelo visto surpreso por ter sido chamado para dar sua opinião. “Quer dizer, nada mudou de verdade...”
Uh, é claro que mudou!
“Você acha que nada mudou, Mestre Gourry?” gritou Amelia, avançando sobre ele. “Aquele homem é um mazoku! Um mazoku! Um ser que habita nas trevas, propagando medo e ruína! O inimigo mortal de todos os seres vivos! Um servo da destruição! Estamos viajando com algo mais vil do que qualquer verme!”
“Er, aí já é um pouco demais...” sussurrou Xellos.
Enquanto isso, o aparentemente imperturbável Gourry respondeu.
“Bem, eu meio que sabia que ele era um mazoku já tinha um tempo...”
...
“O quêêêê?” todos gritamos em choque.
“G-Gourry? Quando foi que percebeu?” perguntei.
“Bom... Acho que foi na primeira vez que o conheci.” disse ele como se fosse perfeitamente natural. “Não sei como explicar, mas tinha aquele cheiro característico... E só percebi, sabe?”
Cara... Você consegue ser astuto dos jeitos mais estranhos.
“E ignorou esse tempo todo?” gritei.
“Não ignorei. Contudo você estava fingindo que não se importava, então imaginei que tivesse um plano.”
Er... Eu não tinha como responder. Quero dizer, isso basicamente significava que ele confiava em mim, certo? Isso é... Muito legal da sua parte, Gourry!
“Então parece que vai continuar acompanhando a Lina de qualquer maneira.” concluiu Amelia.
“Bom, sou seu guardião afinal!” respondeu Gourry, dando um tapinha na minha cabeça.
“Resta a questão do que o Mestre Zelgadis e eu faremos... E não podemos decidir até sabermos ao certo o que está acontecendo.” sussurrou Amelia, antes de lançar um olhar penetrante para Xellos. “Nesse caso, confesse, vilão! O que está aprontando?”
Era uma boa tentativa, mas sabia que Xellos não morderia a isca de jeito nenhum.
“Não posso responder à pergunta.” respondeu ele. (Como falei!)
“Aha, então há um motivo para não poder prestar contas! Talvez porque esteja usando Lina para o mal, hein?” ela então declarou triunfante, apontando o dedo de forma acusatória. “Não vou deixá-lo escapar impune! Se insistir em ficar quieto... Tenho algumas ideias para forçá-lo a falar!”
“E, por favor, quais seriam?” perguntou Xellos, em parte achando graça.
Amelia respondeu com um sorriso ousado.
“Se não desembuchar... Vou passar a noite toda sussurrando no seu ouvido: ‘A vida é maravilhosa!’, ‘O amor é a resposta!’ e ‘A gratidão é recompensa suficiente!’.”
“Ngeh!” Xellos grunhiu alarmado, pelo jeito bastante abalado pela ameaça de Amelia.
“Hah! Vocês, mazokus que se alimentam de emoções negativas, não toleram louvores às belezas da vida, não é mesmo?”
Na verdade, acho que até os não-mazokus também se incomodariam com isso...
“O-O Mestre do Inferno nunca me revelou os detalhes do seu plano!” Xellos confessou na mesma hora.
“Não revelou, hein?” perguntou Amelia com um olhar duvidoso.
“Eu juro! Quatro dos cinco servos do Lorde das Trevas Olhos de Rubi Shabranigdu... Lorde Mestre do Inferno, Lorde Mar Profundo, Lorde Dinastia e Dragão do Caos, criaram Sacerdotes e Generais para agir em seu nome. Todavia meu próprio mestre, Lorde Grande Besta, me criou sozinho. A maioria das ações recentes dos mazokus foram a mando do Lorde Mestre do Inferno. Ele costumava mandar seu Sacerdote de recados para cumprir suas ordens, mas, bem... Seus servos foram todos destruídos na Guerra das Encarnações há mil anos, entende? É um pé no saco. Hahaha.”
Por que você está rindo disso?
“Então a tarefa coube a mim, um servo do Lorde Grande Besta. Porém o Lorde Mestre do Inferno é um pouco estranho em alguns aspectos... E me manda fazer isso e aquilo, contudo nunca me disse qual era o objetivo final.”
“Faz sentido... Não se pode contar o que não se sabe.” disse Gourry, pelo visto acreditando em Xellos.
“O que vocês acham da sua história?” perguntou Amelia, virando-se para nós sem nem tentar esconder sua desconfiança.
“Não podemos confiar nela, no entanto duvido que consigamos extrair mais informações agora.” respondeu Zel.
“Certo, consegui entender algumas coisas do que Xellos já nos contou.” acrescentei.
“Tipo o quê?” perguntou Amelia, curiosa.
“Tipo aquele Dragão do Caos Gaav ter sido alienado do resto dos mazokus e estar atrás de mim por algum motivo.”
“Ah...” disse Xellos, erguendo a voz, surpreso. “E como, precisamente, chegou a essa conclusão?”
“Dragão do Caos é o único a quem você não se referiu como ‘Lorde’.”
“...”
Minha simples observação deixou Xellos sem palavras.
“Além do mais, também pareceu bem descortês na sua luta com Rashart mais cedo. Claro, não explica onde eu entro nessa história toda... E o que eu fizer em seguida pode mudar dependendo do que o Dragão do Caos estiver planejando.” continuei.
Não sabia se o Dragão do Caos estava apenas em maus lençóis com seus irmãos, se estava tramando algo ainda pior do que o resto da raça, ou se seu grande plano acabaria sendo um ponto positivo para nós, humanos... Como falei, meu comportamento a partir daí mudaria significativamente dependendo dessa informação.
Até pouco tempo, seus lacaios seguiam a política de ‘não machucar inocentes’, entretanto não significa de forma alguma que estivessem do lado da humanidade. Poderia ser que soubessem que qualquer coisa chamativa demais chamaria a atenção de seus inimigos... O Mestre do Inferno e Xellos. Ou talvez estivessem apenas tentando se aproximar da humanidade para explorá-la conforme necessário.
A situação anterior em Saillune e os acontecimentos atuais na Cidade de Gyria não pareciam armadilhas preparadas para me pegar, e sim planos para se infiltrar nos altos escalões de grandes reinos... Nos quais apenas acabei por me intrometer. Isso sugeria que o verdadeiro objetivo deles era escravizar o máximo de humanos possível. Dessa forma, quando chegasse a hora, por exemplo, quando uma guerra civil demoníaca eclodisse, poderiam usar os ditos humanos como peões de sacrifício.
“Pelo jeito a única maneira de chegar ao fundo disso é entrar na brincadeira.” sussurrou Amelia, com uma expressão de dor no rosto.
“É... Não gosto de fazer o trabalho sujo de um mazoku, porém detesto muito mais a ideia de fugir. E, sendo franco, também estou bem curioso para ver onde isso vai dar. Vou junto por enquanto.” acrescentou Zel de forma brusca.
“Obrigado, pessoal...”
“Não me entenda mal, Lina!” esclareceu Zel. “Disse que vou junto por enquanto, contudo assim que descobrirmos o que a facção de Xellos e o Dragão do Caos estão planejando... Não posso falar por Gourry, no entanto Amelia e eu podemos ter que nos opor a você.”
“É... Acho que faz sentido.” sussurrei.
O que faço se chegarmos em tal situação? Argh, não vá por aí, Lina! Não comece a inventar mais problemas pra se preocupar!
“De qualquer forma, não há outro caminho a não ser seguir em frente!” declarei. “Então desembucha, Xellos! Cadê a Bíblia Claire?”
“Ah, não está muito longe.” respondeu em seu tom casual de sempre. “Ela fica bem entre aqui e as Montanhas Katart... No Pico dos Dragões.”
———
Dizia-se que o Pico dos Dragões abrigava muitos dragões dourados e negros. Os registros do conselho dos feiticeiros da Cidade de Gyria mencionavam que, há muito tempo, todos alçaram voo por algum motivo e isso obscureceu o céu com preto e dourado.
Além dos dragões deimos que viviam estritamente nas Montanhas Katart, os dragões dourados e os dragões negros eram as duas espécies mais poderosas de dragões. Um grande número deles se aglomerava por acaso neste pico relativamente pequeno.
Sempre me perguntei por quê. Não era como se este fosse o único lugar onde pudessem viver. Eu mesma já havia encontrado alguns dragões dourados e negros em outros lugares. Alguns feiticeiros teorizavam que os habitantes do Pico dos Dragões mantinham os mazokus das Montanhas Katart sob controle, contudo, dadas as lendas sobre o poder avassalador dos mazokus... Creio ser difícil acreditar que se encolhessem de medo dos dragões.
Então, por que os dragões se uniram ali? A resposta pelo visto era que estavam protegendo a Bíblia Claire. Isto, claro, levantava a questão de se estariam dispostos a entregá-la a um bando desorganizado com um mazoku como Xellos a reboque... No entanto, de uma forma ou de outra, não saberíamos até chegarmos lá.
Até então, tínhamos evitado as principais vias em nosso caminho para o Pico dos Dragões e, no momento, estávamos passando por uma vasta floresta sem nome ao pé da montanha. Não se podia nem chamar o caminho estreito que percorríamos de estrada. Não era muito mais do que uma trilha de caça.
Muitos galhos ao longo do caminho haviam sido claramente cortados, o que significava que os humanos também tinham que usar essa rota... Entretanto me perguntava quem. Caçadores? Ou talvez pelos supostos mensageiros enviados da Cidade de Gyria?
“A propósito, Xellos...” chamei-o por trás enquanto caminhávamos, abrindo caminho pela grama alta e galhos baixos. “Se vocês, mazokus, sabem que os dragões têm a Bíblia Claire, por que os deixam ficar com ela? Existe algum motivo para não poderem entrar no Pico dos Dragões?”
“Ah, de jeito nenhum. Nunca me disseram por que a deixamos lá, mas... Um livro de tecnologias mágicas sobrenaturais é essencialmente inútil para nós. Confiamos apenas em nossos poderes inatos, entende? Sendo o caso, talvez nunca tenha sido considerado que valesse a pena começar uma briga por ela.” ele respondeu sem sequer se virar.
“Porém você estava em uma missão para queimar os manuscritos, certo? Também disse que, mesmo que eles não fossem uma ameaça para um mazoku como você, poderiam ser para os de patente inferior.”
“Apenas nas mãos de humanos...” continuou Xellos enquanto quebrava um galho que bloqueava seu caminho. “Dragões têm poderes mágicos muito superiores aos dos humanos, é verdade. Então, se usassem as informações contidas na Bíblia Claire, de fato poderiam representar uma ameaça aos mazokus. Porém, talvez instintivamente, ou por fé em suas próprias habilidades, eles não façam nenhuma tentativa de usar ferramentas, muito menos de armazenar ou transmitir tecnologias mágicas. Nesse aspecto, são semelhantes a nós. A maior parte do conhecimento da Bíblia Claire é um proverbial elefante branco¹ para os dragões... Apenas o vigiam para que não caia em mãos humanas imprudentes, contudo não é de utilidade para os próprios dragões.”
“Hmm, ainda assim...”
“Ei!” Gourry me interrompeu. Seu nariz estava se contraindo. “Estão sentindo cheiro de queimado também?”
“Hã?”
No momento certo, o grupo parou e farejou o vento. Havia um leve cheiro se espalhando pelo aroma verde das árvores...
“Você tem razão!” sussurrou Amelia, e...
Bwoosh! Um uivo se elevou ao nosso redor e, com ele, as árvores explodiram em chamas!
“O quê?” o grupo gritou em uníssono enquanto o calor das chamas nos envolvia. Apenas Xellos permaneceu ali, imperturbável.
“Entendo... Então está recorrendo a tais meios agora, hein?” sua fala foi acompanhada do movimento de seus olhos pousando em um senhor idoso parado ali perto.
“Raltark?” Amelia e eu gritamos ao mesmo tempo.
Entendo... O cara estava planejando nos assar vivos. Essa conflagração foi astuciosamente iniciada a uma boa distância para que Xellos só percebesse quando fosse tarde demais.
“Hmm... É uma medida um tanto desesperada, é verdade.” disse o velho com um tom de autorrecriminação enquanto serpenteava devagar por entre as árvores para se aproximar de nós. “Não gostei de vê-lo frustrar todos os meus planos... Assim quis marcar um ponto decisivo para o nosso lado. Primeiro... Acho que vou acabar com aquela garota ali!” disse Raltark, olhando em minha direção.
“O que está acontecendo aqui?” gritei para Raltark em voz alta. Se Xellos não conseguia explicar as coisas, talvez esse cara conseguisse. “Por que estão tentando me matar? Pelo menos me conte! Dependendo da sua resposta, posso até concordar com você!”
“Senhorita Lina!” gritou Xellos em tom de reprovação.
Ah, cala a boca. Essa coisa de ‘cale a boca e faça o que digo’ não é nenhum tipo de superioridade moral!
Raltark manteve os olhos em Xellos enquanto me respondia.
“Você se lembra de um da nossa espécie chamada Mazenda, não é?”
“Lembro.”
“Ela veio até nós com uma informação, embora eu não saiba como a descobriu... ‘O Mestre do Inferno está tramando algo. Está prestes a colocar uma grande conspiração em ação. Não sei ao certo por quê, contudo depende de uma humana chamada Lina Inverse.’.”
Espere um minuto, não me diga...
“Espere aí! Quer dizer que a única razão pela qual estão tentando me matar é por causa de uma conspiração que o Mestre do Inferno armou, cujos detalhes sequer sabem? Isso é loucura!”
“Loucura não é o termo ideal... Muita cautela, se preferir. Embora suponho que seja mais ou menos a mesma coisa da sua perspectiva.” admitiu Raltark.
Você está brincando comigo... Que azar uma garota tem que ter para tentarem matá-la por ‘excesso de cautela’?
É verdade que, pra começo de conversa, a vida humana não tinha valor algum para os mazokus. Isto não era diferente de eles dizerem: ‘Este verme pode ser a larva de um inseto venenoso, então é melhor esmagá-lo agora’. Só que o fato de o esmagador ter um bom motivo não servia de consolo para o esmagado!
Sem se importar muito com meu monólogo interno irritado, Raltark continuou seu discurso tranquilo.
“Não acreditamos exatamente nela no início, no entanto Kanzel, que estava em uma operação em Saillune, relatou a chegada de alguém com o seu nome. Essa deveria ter sido a extensão de suas interações, entretanto... Kanzel decidiu que a eliminaria, por precaução. Como todos sabemos, ele encontrou seu fim por causa do trabalho. Todavia Kanzel, pensamos, foi morto? Por uma mera humana?”
“Alguém matou Mazenda logo depois, e a organização na qual a enviamos para se infiltrar se desfez... Foi revelado seu envolvimento neste evento também, e decidi que queria conhecê-la cara a cara. Encontrei Seigram, que ardia em ódio por você, e o fundi com um humano que sentia o mesmo... Mas fiquei surpreso ao encontrar Sir Xellos ao seu lado. Comecei a me perguntar se as informações de Mazenda eram precisas, afinal...”
“Mestre Raltark, posso humildemente interromper sua tentativa de nos fazer perder tempo?” Xellos disse baixinho, interrompendo-o.
Tinha razão, não era hora para uma história longa. As chamas que cobriam a área se aproximavam cada vez mais de nós, vindas do vento. Talvez os mazokus fossem cultos o suficiente para ficarem conversando em um inferno de chamas, mas o resto de nós não podia se dar ao luxo de ficar por ali.
“Nossa, acho que me arrastei um pouco. De qualquer forma, não tenho intenção de deixar a garota ir.”
Como se fosse um sinal, outra figura emergiu das chamas atrás de Raltark...
Era o General Rashart. Da última vez que o vi, estava vestido com a armadura prateada característica de Dils, porém agora trajava uma armadura vermelha escura com o estilo de um dragão. A lâmina nua em sua mão também era maior do que a espada mágica que empunhara antes. Esta deve ser a verdadeira forma do General.
“Nos encontramos de novo, General. Não parece muito bem, está com a saúde debilitada?” Xellos provocou.
A raiva brilhou nos olhos do General, contudo este permaneceu em silêncio, parado ao lado de Raltark.
Claro, as chamas estavam se aproximando o tempo todo. O calor ainda não era insuportável, só que estava piorando a cada segundo. Adoraria voar para o céu, no entanto não havia como escaparmos com Raltark e Rashart nos observando. Teríamos que esperar Xellos enfrentá-los.
“Com o Mestre Rashart nessas condições, acho que vocês dois não vão conseguir me derrotar, mesmo juntos.” continuou provocando.
“Estou bem ciente!” concordou Raltark inalterado. “Esperava que pudéssemos pelo menos mantê-lo ocupado enquanto a garota assa até a morte.”
“Receio que não posso permitir que isso aconteça... Agora, por favor, cuidem da Srta. Lina!” disse Xellos ao resto da nossa equipe, sem tirar os olhos dos nossos dois inimigos.
Uma sensação sombria, não era bem miasma e tampouco hostilidade, preencheu a área, resistindo ao calor sufocante.
Aqui vamos nós... pensei. E um segundo depois, os três mazokus se foram. Devem ter escolhido lutar onde suas formas reais residiam, no lado astral da realidade, em vez de aqui, no material.
“Pessoal! Vamos logo enquanto os três estão em seu próprio mundinho!” eu me recompus.
“Mas como, Lina?” gritou Amelia em resposta. “Não temos tempo para apagar todo esse fogo, e flutuar acima com Levitação vai nos cozinhar vivos! Você é a única que pode usar o feitiço Lei Asa!”
“Não se preocupe! Se construirmos uma barreira dupla de vento para todos, com um pequeno feitiço de frio lançado dentro para garantir, e depois usarmos Levitação junto, devemos conseguir sair intactos.”
“Entendo... Como o que fizemos em Sairaag, hein?” sussurrou Zelgadis em resposta.
Exato. Só que naquela época, esperávamos um ataque e usamos magia defensiva também...
“O que devo fazer?” perguntou Gourry.
“Só fique parado e mantenha um olho nos arredores, cara. Aposto que Raltark e Rashart trouxeram mais do que apenas um incêndio para nos pegar. Podem ter lacaios por perto. Gostaria de alguém de prontidão para feitiços de ataque...”
“Então esse é o seu trabalho, Lina.” disse Amelia com uma piscadela. “O repertório de magia negra mais forte aqui é o seu. Vou cuidar da barreira e do resfriamento. Mestre Zelgadis será o responsável por reforçar a barreira e nos mover, ok?”
“Certo!” respondeu Zelgadis.
Amelia começou seu cântico. Em questão de segundos, uma barreira de vento bastante grande nos envolveu. Zel lançou seu próprio feitiço para fortalecê-la.
Não havia sinais de novos inimigos até agora, porém sabia que não podíamos nos dar ao luxo de baixar a guarda. Logo, respondendo ao controle de Zel, a bolha de vento começou a subir... Levando todos nós com ela. Flutuamos lentamente sobre as chamas na direção do Pico dos Dragões.
Olhando de cima, podíamos ver que a conflagração já havia consumido uma grande faixa da floresta. Droga... Esses caras não sabiam o significado de contenção?
Por fim, nossa bolha chegou ao coração do inferno, contudo o feitiço de resfriamento de Amelia nos impediu de sentir o calor. Esperava que tudo corresse bem dali em diante, no entanto...
“Eles estão aqui!” Gourry gritou quando três figuras apareceram no topo da floresta em chamas!
As figuras estavam pairando no ar, cercando silenciosamente nossa barreira de vento. Preciso mesmo dizer? São mazokus. Um estava vestido com o que parecia ser um pano branco esfarrapado e uma máscara preta; o outro parecia uma névoa azul fina com um rosto azul sem traços característicos; e o último tinha a forma de um humano, embora tivesse corpo transparente como água ou gelo. Todos pareciam peixes pequenos, entretanto apenas se comparados a Xellos e sua laia... Ainda podiam representar uma séria ameaça aos humanos.
Em termos de números, quatro contra três, tínhamos a vantagem. Em uma batalha normal nossas chances seriam muito boas... Todavia, naquele momento, eu era a única que de fato podia lutar. Zel e Amelia estavam ocupados mantendo nossa barreira, nos mantendo em movimento e vivos. Gourry tinha uma arma que canalizava a vontade de seu portador em uma lâmina de luz capaz de cortar magia e mazokus, é só que... Por mais lendária que fosse, seguia sendo uma espada. Não havia muito que pudesse fazer para impedir ataques de fora da nossa barreira.
Aha, claro... Era por isso que os amiguinhos de brincadeira do Xellos se sentiam confortáveis em nos deixar ali. Sabiam que seríamos torrados se ficássemos, ou pegos se tentássemos escapar. Mazokus espertos. Só destruir nossa barreira já seria o suficiente para nos jogar no fogo lá embaixo. Estaríamos mortos com certeza.
Temos que superar isso de algum jeito! Uma coisa de cada vez, Lina!
Fixei meus olhos no mazoku branco à nossa frente e comecei a entoar...
“Explosão Ragna!” entoei, lançando meu feitiço na névoa azul. Olhar para o da frente foi apenas uma finta.
Meu movimento foi perfeito. Cinco pilares de escuridão surgiram do ar ao redor do mazoku azul e envolveram seu corpo em tentáculos de plasma negro. Ele recuou, depois se dissolveu na escuridão e desapareceu. Um otário a menos!
Os outros dois entraram em ação, ambos conjurando múltiplas lanças de luz, que lançaram direto em mim! Zing! As luzes penetraram sem problemas pela barreira de vento! Eu me movi o mais rápido que pude para evitá-las...
“Wagh!”
Mas escorreguei e caí! Por sorte, isso fez com que as lanças voassem em segurança sobre a minha cabeça.
Ugh... Deixe-me esclarecer, é difícil se equilibrar dentro de uma bolha gigante.
Desviar ia ser complicado.
De qualquer forma, comecei meu próximo cântico. Enquanto me levantava... Uma figura azul apareceu na minha frente! Seria o mazoku de antes? Deve ter fingido ser derrotado, desaparecendo apenas para reaparecer dentro da barreira e me pegar de surpresa! A palma de sua mão direita erguida começou a brilhar com uma luz mágica...
Slash! Quando me dei conta, o mazoku azul foi dividido ao meio pela vertical!
“Ngyaaah!” com um verdadeiro estertor, ele se estilhaçou no ar e desapareceu.
Obviamente meu salvador era ninguém menos que Gourry! Após sacar a Espada da Luz em algum momento, empunhou-a para dar cabo do inimigo.
“Faltam dois! Vamos fazer acontecer, Lina!”
Assenti e continuei meu cântico. Desta vez, estava mirando no branco à minha frente.
“Dragon Slave!” gritei.
Uma luz vermelha pálida se aglutinou à frente do mazoku e... Bwoosh! Uma explosão poderosa abalou nossa barreira de vento.
Porém não tinha acabado! Tinha certeza de tê-lo visto desaparecer uma fração de segundo antes de a luz vermelha se concentrar em um único ponto. É provável que tenha escapado para o plano astral bem a tempo.
Enquanto isso, o mazoku transparente tentava passar por baixo da nossa barreira. Suponho que seu plano era lançar uma daquelas lanças de energia por baixo.
“Sem chance!” gritou Gourry.
A Espada de Luz perfurou a parte inferior da barreira, disparando sua lâmina de luz contra o mazoku transparente. Ele se esquivou do ataque com bastante facilidade, contudo Gourry o havia expulsado de debaixo de nós com sucesso. Do meu lado, estava trabalhando no meu próximo cântico para quando o mazoku branco reaparecesse. Assim que me preparei, sua forma reapareceu... Dentro da barreira, logo atrás de Amelia!
Merda! Está atrás dela em vez de mim! Esperava que tentasse destruir nossa barreira!
Gourry sentiu sua presença e se virou bruscamente. Talvez percebendo que não chegaria a tempo se corresse, apontou a espada para o mazoku, mas nada mais. Amelia estava logo atrás do alvo. Se voltasse a disparar a Espada da Luz agora, a atingiria também. É claro, me encontrei na mesma situação com o meu feitiço.
Amelia olhou para o mazoku, uma lança de luz tinha acabado de ser conjurada bem diante dos seus olhos, quando...
Vwomm! Um barulho indescritível soou, e a cabeça do mazoku branco explodiu. A lança mágica desapareceu junto com ela.
Não tenho certeza do que tinha acontecido nesse momento. Olhei para fora da barreira e vi o mazoku transparente flutuando ali, tão confuso quanto nós.
Agora!
“Dragon Slave!” gritei, engolindo o último de nossos atacantes em uma explosão de carmesim.
Rmmmmm... Hrr... Por fim, o rugido que sacudia a barreira se acalmou.
“Phew...” exalei aliviada. “Acho que conseguimos...”
“Lina, quem eliminou aquele branco?” perguntou Gourry.
“Deve ter sido Xellos!” respondi. “Aposto que teve um momento livre em sua batalha contra Raltark e Rashart, e conseguiu nos dar uma mão do plano astral...”
Um aliado valioso, de fato. Se estivesse me protegendo sem segundas intenções, ficaria genuinamente grata...
De todo jeito, nossa barreira de vento atravessou em segurança o inferno turvo enquanto navegávamos em direção ao Pico dos Dragões.
———
“Ainda não chegou, hein?” sussurrou Amelia, entediada.
“Ainda não chegou!” sussurrei de volta.
O céu estava limpo. O sol da manhã estava quente. Diante de nós estendia-se a grande floresta, recém-chamuscada pela conflagração. Atrás de nós, ficava um forno de carvão em ruínas, do tamanho de uma cabana, e o Pico dos Dragões.
Sim, nós quatro tínhamos chegado à base da montanha.
Três dias haviam se passado desde nossa batalha na floresta. Uma chuva forte caíra naquela noite e apagara o fogo, no entanto também nos forçara a nos abrigar sob a proteção de uma árvore. Partimos na manhã seguinte e chegamos aqui na tarde do outro dia.
Todavia Xellos seguia desaparecido. Cansados de esperar, saíamos para procurá-lo e resmungávamos sobre como ele não estava em lugar nenhum. Sabia que era improvável que viesse andando de qualquer maneira, e que reclamar não o faria aparecer mais rápido... Entretanto não havia muito mais o que fazer em um mar de nada além de grama e árvores. Estávamos entediados.
Se quiséssemos, poderíamos ter matado o tempo dando uma caminhada, pescando ou caçando. Embora não sabíamos onde o inimigo poderia estar à espreita, e não parecia sensato só vagar por aí.
“Ainda não chegou?” perguntou Gourry, saindo do forno de carvão.
“Não!” respondi, continuando a olhar fixa para a floresta com Amelia.
Ele se aproximou de mim e se juntou à nossa maratona de encaradas, perguntando.
“Você acha que aqueles caras o mataram?”
“Não é impossível. Nenhuma das opções é boa para nós... Argh. Acho que está na hora de começarmos a discutir nosso próximo passo...” sussurrei, soltando um suspiro solitário.
“E aí, Lina, por que não subimos o Pico dos Dragões sem Xellos?”
“E fazer o quê?”
“Pedir para a gente ver a Bíblia Claire, talvez?”
“É, claro. Os dragões estão protegendo a Bíblia Claire. Desafio você a subir lá e dizer: ‘Me dá!’. Já te dou uma dica... Eles não vão simplesmente dizer: ‘Claro, por que não?’.”
“Mas se explicarmos a situação...”
Hahhh... Soltei outro suspiro profundo.
“Olha, Gourry... Acha mesmo que os dragões vão aceitar uma explicação ingênua e direta como: ‘Um mazoku chamado Xellos nos disse para dar uma olhada na Bíblia Claire porque ele tem um plano estranho em andamento, então aqui estamos’?”
“Bom... A maioria das pessoas aprecia a honestidade.”
“Ah, dá um tempo...”
Se continuássemos esperando e Xellos nunca aparecesse, poderíamos acabar nos fazendo de bobos e vagando por aí. Mas mesmo assim, duvidava que a facção do Dragão do Caos só ignorasse toda essa história de ‘vamos matar a Lina’.
“Vamos esperar mais um dia e...” Amelia começou a sussurrar, quando naquele momento...
Whoosh! Houve uma rajada de vento atrás de nós, e uma sombra bloqueou o sol por um instante. Foi seguida pelo som de asas batendo.
Olhei para cima e vi um brilho dourado gigante... Um dragão dourado? Ele estava descendo lentamente em nossa direção. Ouvindo a comoção, Zelgadis também emergiu do forno.
Era pequeno em termos de dragões, porém ainda poderoso o suficiente para honrar o epíteto dos dragões dourados de “lordes dos dragões”. Tinha um corpo que seria preciso uma espada enorme para arranhar, uma mente inteligente que conhecia as línguas de muitas criaturas, além de muitos feitiços poderosos, e um sopro laser capaz de partir um enorme dragão vermelho em dois de uma só vez...
O dragão esticou o pescoço, avaliando-nos.
“O que o traz aqui?” sussurrei, e a criatura magnífica focou o olhar em mim.
“É o que eu gostaria de saber, humanos.” disse o dragão em nossa própria língua. Sua dicção não era das melhores, todavia, para ser justa, a coisa estava trabalhando com uma fisiologia totalmente diferente.
“Wow!” exclamou Gourry, o único chocado com o fato. “Você ouviu? O dragão falou!”
“Claro que ouvi!” devolvi uma resposta cortante ao idiota boquiaberto.
“Oh? É incomum um dragão falar?” disse o dragão, parecendo mais apegado à reação de Gourry do que à de qualquer outra pessoa.
Gourry coçou a cabeça e respondeu.
“Bem, nunca vi um falar antes... Como aprendeu a falar a língua humana?”
“Hah! Nós, dragões, vivemos muito. Aprendemos as línguas de outras criaturas como uma forma de nos entreter ao longo de décadas.”
Gourry meditou por um tempo nas palavras do dragão dourado e então falou.
“Então vocês só fazem isso para matar o tempo?”
“Bem... Preferimos as palavras. Agora, humanos, o que estão fazendo aqui? Vimos vocês vagando por aí nos últimos dias. Os carvoeiros usam este lugar de vez em quando, entretanto vocês não se parecem com eles. Se não têm nada a fazer aqui na montanha dos dragões, preferimos que se retirem.”
Com isso, nosso grupo trocou um olhar. Vejamos... Como explicamos a situação?
“Hmm... Estamos esperando alguém.” falei antes que qualquer outra pessoa, especificamente Gourry, pudesse falar. “Nos separamos de um companheiro nosso... Então esperávamos que ele aparecesse aqui em algum momento.”
“E escolheu este lugar como seu ponto de encontro?”
“É, bem... Não aqui pra ser exato. Nunca definimos um ponto de encontro. Só imaginamos que ele acabaria aparecendo se ficássemos por aqui...”
“É verdade?”
“É sim!” gritou uma voz familiar por trás do dragão dourado.
“Xellos!” gritei quando o sacerdote de túnica preta apareceu.
“Sinto muito por tê-los feito esperar.”
“Você está bem? O que aconteceu com os outros dois?”
“Não conseguimos resolver o assunto. Arrastou-se por um tempo e, no final, os dois escaparam de mim... Pensei em persegui-los, mas não podia correr o risco de cair em uma armadilha, podia? Hahaha.”
Espere... Quer dizer que estavam lutando esse tempo todo? Até agora?
“Agora, tenho um favor para lhe pedir.” disse Xellos, virando-se para o dragão dourado.
“Temos um pequeno assunto para discutir com o seu líder...”
“O que é?”
“Ah, deixe-me ver... Gostaria de reservar essa informação para o dragão mais antigo possível. Milgazia está bem?”
“O ancião? Você conhece o ancião?”
“Ah... Pode-se dizer que somos velhos conhecidos. Se contar a ele que Xellos está aqui, tenho certeza de que entenderá.”
“Hmm... Quem é você?” perguntou o dragão dourado, talvez percebendo que Xellos não era humano.
“Isto é...” disse Xellos, pressionando um dedo contra os lábios. “Um segredo.”
Ah, seu ataque secreto!
O dragão dourado pareceu confuso por um momento antes de enfim ceder.
“Muito bem. Vou repassar seu pedido ao ancião. Espere aqui.”
O dragão então abriu as asas outra vez e voou em direção ao cume.
“Você conhece um dragão figurão?” perguntou Gourry.
Xellos respondeu com um sorriso radiante.
“Bom, nos conhecemos há muito tempo. Ele é bastante resoluto.”
“Wow. Vejo que tem amigos em posições importantes, hein?”
“Apesar da minha aparência, vivi muito tempo.”
“Diga, qual a sua idade?”
“Hahaha. Ora, ora, Mestre Gourry, não se deve perguntar a idade de uma dama.”
E desde quando você é uma dama?
A conversa absurda continuou por um tempo, Xellos desviando de nossas perguntas a cada momento, quando de repente...
Whoosh! Whoosh! O ar ao nosso redor se tornou agitado. Olhei para cima e congelei com a visão.
O céu acima de nós estava manchado de dourado e preto. Centenas, milhares de dragões dourados e negros voavam acima, se debatendo.
Em pouco tempo, um deles desceu em nossa direção. Era grande, significativamente mais longo do que aquele com quem havíamos conversado antes, e tinha pelo menos o dobro do seu volume. Devia ter mil anos, ou talvez muitos milhares...
E, por fim, pousou... Não na nossa frente, e sim na frente de Xellos. Seus olhos ardiam com um desdém cauteloso. Parecia saber exatamente o que Xellos era.
“Faz um bom tempo, não é, Mestre Milgazia?” cumprimentou o mazoku, alegremente.
“Sim, de fato!” respondeu o dragão dourado com desprezo. “Porém certamente não o suficiente para o meu gosto... Desde a Guerra da Encarnação, não é, Sacerdote Xellos?”
Notas:
1. A expressão ‘elefante branco’ refere-se a algo valioso, mas que gera mais problemas do que benefícios devido ao seu custo de manutenção ou uso.
***
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