Capítulo 05: A Janela da Torre
Novendre estava se extinguindo no vento e na neve delicada; Decimbre aguardava paciente, com o fim do ano em seu rastro.
O Rei John, o Presbítero, adoeceu depois de chamar seus dois filhos de volta para Hayholt, e retornou ao seu quarto sombrio, outra vez cercado por sanguessugas, médicos eruditos e criados rabugentos e irritados. O Bispo Domitis chegou de Saint Sutrino, a grande igreja de Erchester, e fixou pé ao lado da cama de John, sacudindo o rei a qualquer hora para inspecionar a textura e o peso da alma real. O velho rei, continuando a enfraquecer, suportou tanto a dor quanto o bispo com estoicismo galante.
Na pequena câmara ao lado da do rei que Towser ocupou por quarenta anos, a espada Cravo Brilhante estava, oleada e embainhada, envolta em linho fino no fundo do baú de carvalho do bobo da corte.
***
A notícia se estendeu através da ampla face de Osten Ard: Preste John estava morrendo. Hernystir no oeste e a nortenha Rimmersgardia despacharam delegações imediatamente para o leito da sofrida Erkynlandia. O velho Duque Isgrimnur, companheiro de John à esquerda na Grande Mesa, trouxe cinquenta rimmerios de Elvritshalla e Naarved, toda a companhia envolta da cabeça aos pés em peles e couro para a travessia de inverno da Marca Gelada. Apenas vinte hernystiros acompanharam o filho do rei Lluth, Gwythinn, mas o ouro e a prata brilhantes que vestiam reluzia tanto que ocultava o pobre tecido de suas vestes.
O castelo começou a ganhar vida com a música de línguas há muito tempo não ouvidas, rimmerspakk, perdruinense e língua harcha. A fala ondulante da ilha de Naraxi flutuava no pátio, e os estábulos ecoavam com as cadências cantadas dos homens dos Thrithings... Os campestres, como sempre, mais confortáveis perto de cavalos. Acima destes e de todos os outros pairava o discurso monótono de Nabban, a língua articulada da Mãe Igreja e seus sacerdotes aedonitas, assumindo o comando como sempre das idas e vindas dos homens e suas almas.
No alto Hayholt e Erchester abaixo, esses pequenos exércitos de estrangeiros se juntavam e se separavam, na maior parte sem incidentes. Embora muitos desses povos fossem inimigos antigos, quase oitenta anos abaixo da tutela do Supremo Rei curaram muitas feridas. Vários litros de cerveja foram trocados no lugar de duras palavras.
Havia uma exceção preocupante a essa regra de harmonia, uma difícil de perder ou entender mal. Em todos os lugares em que se encontravam, sob os portões largos de Hayholt ou nos becos estreitos de Erchester, os soldados de libré verde do Príncipe Elias e os servos de camisa cinza do Príncipe Josua se acotovelavam e discutiam, espelhando em público a divisão privada dos filhos do rei. A Guarda erkyna do Preste John foi chamada para acabar com várias brigas feias. Por fim, um dos apoiadores de Josua foi esfaqueado por um jovem nobre de Meremund, um íntimo do herdeiro. Por fortuna, o homem de Josua não sofreu nenhum dano fatal, a punhalada foi um golpe de bêbado mal direcionado, e os partidários foram forçados a dar ouvidos às repreensões dos cortesãos mais velhos. As tropas dos dois príncipes retornaram a olhares frios e escárnios desdenhosos; o derramamento de sangue aberto foi evitado.
Esses foram dias estranhos em Erkynlandia, e em todo Osten Ard, dias carregados de medidas iguais de tristeza e excitação. O rei não estava morto, contudo parecia que logo estaria. O mundo inteiro estava mudando, como algo poderia permanecer o mesmo depois que o Preste John não estivesse mais sentado no Trono de Ossos do Dragão?
***
— Lunen: sonho... Jueses: melhor... Veirnes: melhor... Satedo: dia de mercado... Domingo: descanso!
Descendo as escadas rangentes, dois degraus de cada vez, Simon cantou a velha rima a plenos pulmões. Quase derrubou Sofrona, a Senhora do Linho, enquanto esta liderava um esquadrão de criadas carregadas de cobertores para dentro da porta do Jardim dos Pinheiros. Ela se jogou para trás contra o batente da porta com um pequeno grito enquanto Simon passava, então acenou com um punho magro contra suas costas que já se distanciavam.
— Eu vou contar para Raquel! — gritou. Suas pupilas abafaram o riso.
Quem se importava com Sofrona? Hoje era satedo, dia de mercado, e Judith, a cozinheira, dera a Simon dois centavos para comprar algumas coisas para ela, e uma moeda de cinco centavos, glorioso satedo, para gastar consigo mesmo. As moedas faziam um tilintar adorável e sugestivo em sua bolsa de couro enquanto saía em espiral pelos hectares de pátios longos e circulares do castelo, do portão do bastião interno para o mediano, quase vazio agora, já que seus moradores, os soldados e os artesãos, estavam em sua maioria de serviço ou no mercado.
No bastião exterior, os animais se aglomeravam no pátio comum, batendo miseravelmente uns nos outros no frio, vigiados por pastores que pareciam pouco mais alegres. Simon se movimentava ao longo das fileiras de casas baixas, depósitos e galpões para animais, muitos deles tão velhos e cobertos de hera nua do inverno que pareciam apenas crescimentos verrucosos nas paredes internas da Grande Torre.
O sol brilhava através das nuvens nas esculturas que enxameavam a poderosa face calcedônia do Portão Nearulagh. Reduzindo a velocidade de seus passos para um trote, desviou de poças olhando boquiaberto para as intrincadas representações da vitória do Rei John sobre Ardrivis... A batalha que por fim colocou Nabban sob a mão real. Simon ouviu o tumulto de cascos rápidos e o guincho estridente das rodas da carroça. Olhou para cima horrorizado e se viu diante dos olhos brancos e revirados de um cavalo, lama escorrendo de baixo de seus cascos enquanto ele mergulhava pelo Portão Nearulagh. Simon se atirou para fora do caminho e sentiu o vento em seu rosto enquanto o cavalo passava trovejando, a carroça puxada atrás balançando com força. Teve um breve vislumbre do condutor, vestido com uma capa escura com capuz forrada de escarlate. Os olhos do homem o percorreram enquanto a carroça passava rapidamente... Eles eram pretos e brilhantes, como os cruéis globos de botão de um tubarão; embora o contato tenha sido passageiro, Simon sentiu quase que o olhar do condutor o queimava. O garoto cambaleou para trás, agarrando-se à pedra que cobria o portão, e observou a carroça desaparecer ao redor da trilha do bastião externo. Galinhas cacarejavam e batiam as asas em seu rastro, exceto aquelas que foram esmagadas e ensanguentadas nos sulcos da carroça. Penas enlameadas caíam no chão.
— Ei, garoto, você não está ferido, está? — um dos porteiros tirou a mão trêmula de Simon das esculturas e o colocou de volta na posição vertical. — Vá em frente então.
A neve rodopiava no ar e grudava derretendo em suas bochechas enquanto ele descia a longa colina em direção a Erchester. O tilintar das moedas em seu bolso agora tocava em um ritmo mais lento e de joelhos bambos.
— Aquele sacerdote é mais louco que uma cabra. — Simon ouviu o porteiro dizer ao seu companheiro de portão. — Ele não é o homem do príncipe Elias...
Três crianças pequenas seguindo sua mãe trabalhadora pela trilha úmida da colina apontaram para Simon de pernas longas enquanto passava, rindo da expressão em seu rosto pálido.
***
A Avenida Principal era toda coberta com peles costuradas que se estendiam pela ampla passagem de prédio a prédio. Em cada cruzamento havia grandes marcos de pedra para fogueiras, a maioria, mas certamente não todas, de suas fumaças subindo por buracos na cobertura do telhado. A neve que caía pelos buracos da chaminé chiava e sibilava no ar quente. Aquecendo-se nas chamas ou passeando e conversando, enquanto examinavam furtivamente os bens expostos em todos os lados, o povo de Erchester e Hayholt se misturava com os dos feudos externos, entrando e saindo da ampla fileira central que se estendia por duas léguas inteiras do Portão Nearulagh até a Praça da Batalha, no extremo oposto da cidade. Preso na multidão, Simon sentiu seu ânimo reviver. O que lhe importava um sacerdote bêbado? Afinal, era dia de mercado!
Hoje, o exército habitual de comerciantes e vendedores ambulantes de voz estridente, provincianos de olhos arregalados, jogadores, batedores de carteira e músicos foi engrossado pela soldadesca das várias missões enviadas ao rei moribundo. Rimmerios, hernystiros, warinstenos ou perdruinos, sua arrogância e trajes brilhantes capturaram o olhar de Simon. Seguiu um grupo de legionários de Nabban vestidos de azul e ouro, admirando sua postura e ar de superioridade, entendendo sem palavras a maneira despreocupada como se insultavam. Cada vez se aproximava mais, esperando ter uma visão clara das espadas curtas embainhadas no alto de suas cinturas, quando um deles, um soldado de olhos brilhantes usando um bigode fino e escuro, se virou e o viu.
— Ei, irmãos! — disse com um sorriso, agarrando o braço de um de seus companheiros. — Olhe ali! Um ladrãozinho furtivo, aposto, e alguém que está de olho na sua bolsa, Turis!
Os dois homens se posicionaram para encarar Simon, e o pesado e barbudo chamado Turis lançou ao jovem um olhar severo.
— Se tocasse minha bolsa, eu o mataria. — rosnou.
Seu domínio da língua westerling não era tão bom quanto o do primeiro homem; e parecia não ter o humor do outro também.
Três outros legionários agora tinham vindo para se juntar ao primeiro par. Eles gradualmente se aproximaram até que Simon se sentiu como uma raposa sendo acurralada.
— O que houve, Gelles? — um dos recém-chegados perguntou ao companheiro de Turis. — Hué fauge? Te roubaram algo?
— Nai, nai... — Gelles riu. — Estava apenas me divertindo com Turis. O Magricelo aqui não fez nada.
— Eu tenho minha própria bolsa! — Simon disse indignado. Ele a desamarrou do cinto e agitou-a nos rostos sorridentes dos soldados. — Não sou ladrão! Vivo na casa do rei! Seu rei!
Todos os soldados riram.
— Heá, escutem só! — Gelles gritou. — Nosso rei, ele diz, tão ousado!
Simon podia ver agora que o jovem legionário estava bêbado. Parte, mas não toda, de seu fascínio se transformou em desgosto.
— Heá, rapazes... — Gelles balançou as sobrancelhas. — ‘Mulveiz-nei cenit drenisend’. — eles dizem. — Vamos tomar cuidado com esse cachorro, e deixá-lo dormir!
Outra explosão de risos se seguiu. Simon, com o rosto vermelho, prendeu sua bolsa e se virou para ir embora.
— Adeus, rato do castelo! — um dos soldados gritou zombeteiramente. Simon não se virou nem falou, apenas saiu correndo.
Havia passado por um dos montes de fogo e saído de baixo dos toldos da Avenida Principal quando sentiu uma mão em seu ombro. Girou, pensando que os homens nabbanos tinham retornado para insultá-lo ainda mais, porém em vez disso encontrou um homem gorducho com um rosto rosado e endurecido pelo tempo. O estranho usava o manto cinza e a tonsura de um padre mendicante.
— Perdão, meu rapaz. — ele disse, com um forte sotaque de hernystiro. — Só queria descobrir se você estava seguro, se aqueles caras goirach lhe fizeram mal.
O estranho estendeu a mão para Simon e deu um tapinha nele, como se estivesse verificando se havia alguma ferida. Seus olhos de pálpebras pesadas, com rugas ao redor marcando as curvas de um sorriso frequente, ainda assim continham algo: uma sombra mais profunda, preocupante, embora não assustadora. Simon percebeu que estava encarando, quase contra sua vontade, e recuou.
— Não, obrigado, padre. — começou a dizer, seguindo os padrões de formalidade. — Estavam apenas se divertindo às minhas custas. Não me fizeram nenhum mal.
— Bom, está bem, muito bom... Ah, me perdoe, não me apresentei. Sou o irmão Cadrach ec-Crannhyr, da Ordem vilderivana. — falou dando um pequeno sorriso autodepreciativo. Seu hálito cheirava a vinho. — Vim com o príncipe Gwythinn e seus homens. Quem é você?
— Simon. Moro em Hayholt. — respondeu fazendo um gesto vago em direção ao castelo.
O frade voltou a sorrir, sem dizer nada, então se virou para ver um hyrka passar, vestido com cores brilhantes e díspares e levando um urso com focinheira em uma corrente. Quando a dupla passou, Cadrach voltou seus olhos pequenos e afiados para Simon.
— Há alguns que dizem que os hyrkas podem falar com os animais, já ouviu alguma vez? Especialmente seus cavalos. E que os animais entendem perfeitamente.
O frade deu de ombros com atitude zombeteira, como se quisesse mostrar que um homem de Deus não acreditaria em tal absurdo.
Simon não respondeu. Ele, é claro, também tinha ouvido tais contos sobre os selvagens hyrkas. Shem Horsegoom jurou que as histórias eram pura verdade. Os hyrkas eram vistos com frequência no mercado, onde vendiam belos cavalos a preços exorbitantes e confundiam os moradores com truques e quebra-cabeças. Pensando neles, em especial na sua reputação desonesta, Simon abaixou a mão e pegou sua bolsa de couro, tranquilizando-se ao sentir as moedas dentro.
— Obrigado pela sua ajuda, padre. — enfim disse, embora não conseguisse se lembrar de ter visto o homem fazendo algo útil. — Preciso ir agora. Tenho que comprar algumas especiarias.
Cadrach o olhou por um longo momento, como se tentasse se lembrar de alguma coisa, uma pista que poderia estar escondida no rosto de Simon. Por fim, disse.
— Gostaria de lhe pedir um favor, jovem.
— O quê? — Simon perguntou, desconfiado.
— Como mencionei, sou um estranho em seu Erchester. Talvez poderia ser gentil o bastante para me guiar por um tempo, só para me ajudar. Você poderia então seguir seu caminho, tendo feito uma boa ação.
— Oh. — Simon se sentiu um tanto aliviado. Seu primeiro impulso foi dizer não, era tão raro que tivesse uma tarde livre no mercado. Porém com que frequência poderia falar com um monge aedonita da pagã Hernystir? Além do mais, esse irmão Cadrach não parecia o tipo que só queria lhe dar um sermão sobre pecado e condenação. Voltou a olhar para o homem, contudo o rosto do monge era ilegível.
— Bem, acho que sim. Certo. Vamos... Você quer ver as dançarinas de Nascadu na Praça da Batalha...?
***
Cadrach se provou um companheiro interessante. Embora não parava de falar, contou a Simon sobre a fria jornada de Hernysadharc a Erchester com o Príncipe Gwythinn, e fez piadas recorrentes sobre os transeuntes e seus vários trajes exóticos. Ainda assim, parecia contido, sempre observando algo, mesmo enquanto ria de suas próprias histórias. Ambos vagaram pelo mercado por boa parte da tarde, olhando para as mesas de bolos e vegetais secos que ficavam contra as paredes das lojas da avenida principal, sentindo os cálidos aromas das padarias e dos vendedores de castanhas. Vendo o olhar melancólico de Simon, o frade insistiu que parassem e comprassem uma cesta de palha rústica de nozes torradas, que gentilmente pagou, dando ao homem castanho de cara de rachado uma peça extraída sem jeito de um bolso em sua batina cinza. Depois de queimarem dedos e línguas tentando comer as nozes, eles admitiram a derrota e ficaram assistindo a uma discussão cômica entre um comerciante de vinhos e um malabarista bloqueando a porta de sua loja de vinhos enquanto esperavam que sua compra esfriasse.
Em seguida, pararam para assistir a uma peça de Jesuris sendo encenada por marionetes para um bando de crianças gritando e adultos fascinados. Os bonecos balançavam e se curvavam. Jesuris em sua túnica branca sendo perseguido pelo Imperador Crexis usando chifres de cabra e uma barba, e balançando uma longa lança com ponta de farpa. Por fim, Jesuris foi capturado e pendurado na Árvore da Execução; Crexis, sua voz alta e estridente, saltou cutucando e atormentando o Salvador pregado na árvore. As crianças, muito excitadas, gritavam insultos ao saltitante Imperador.
Cadrach cutucou Simon.
— Está vendo? — perguntou, apontando um dedo grosso para a frente do palco de marionetes. A cortina que pendia do palco até o chão ondulava, como se estivesse em uma brisa forte. Cadrach voltou a cutucar Simon.
— Você não diria que esta é uma bela representação de Nosso Senhor? — ele perguntou, sem tirar os olhos do pano esvoaçante. Acima, Crexis dançava e Jesuris sofria. — Enquanto o homem apresenta seu show, o Manipulador permanece invisível; nós o conhecemos não pela vista, mas pelas maneiras como seus bonecos se movem. E de vez em quando a cortina se move, o que o esconde de sua fiel audiência. Ah, contudo somos gratos até mesmo por esse movimento atrás da cortina... Gratos!
Simon o olhou fixamente; Cadrach desviou o olhar do show de marionetes e encontrou seu olhar. Um sorriso estranho e triste franziu o canto da boca do frade; pela primeira vez o olhar em seus olhos pareceu combinar.
— Ah, rapaz... — ele disse. — E o que você deveria saber sobre assuntos religiosos, afinal?
***
Os dois caminharam por mais algum tempo antes que o irmão Cadrach enfim se despedisse com muitos agradecimentos ao jovem por sua hospitalidade. Simon continuou a caminhar sem rumo muito depois que o monge se foi, e os pedaços de céu que podiam ser vistos através da tenda do telhado foram adquirindo uma tonalidade sombria antes que se lembrasse de sua missão.
Na barraca do comerciante de especiarias, Simon percebeu que sua bolsa havia sumido.
Seu coração começou a bater três vezes mais rápido enquanto tentava se lembrar. Sabia que a tinha sentido balançando em seu cinto quando ele e Cadrach pararam para comprar nozes, embora não conseguia evocar nenhuma lembrança de tê-la sentido depois naquela tarde. No entanto, quando quer que tivesse desaparecido, o fato é que havia sumido agora, junto com não apenas sua própria moeda, como também o dinheiro confiado a ele por Judith!
Procurou pelo mercado em vão até que os buracos do céu ficaram pretos como uma chaleira velha. A neve que mal havia sentido antes parecia muito fria e molhada quando retornou, de mãos vazias, para o castelo.
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Pior do que qualquer surra, como Simon descobriu quando chegou em casa sem especiarias ou dinheiro, foi o olhar de decepção que a doce, gorda e polvilhada de farinha Judith lhe deu. Raquel também usou o mais injusto dos truques, punindo-o com nada mais doloroso do que uma expressão de desgosto por sua infantilidade e uma promessa de que ele ‘trabalharia duro’ para ganhar o dinheiro de volta. Até Morgenes, a quem Simon recorreu na esperança de simpatia, pareceu um pouco surpreso com o descuido do jovem. Apesar de poupado de uma surra, nunca se sentiu tão mal ou com mais pena de si mesmo.
***
O domingo chegou e passou, um dia escuro e lamacento em que a maioria do pessoal em Hayholt parecia estar na capela fazendo uma oração pelo Rei John. Isso, ou dizendo a Simon para ir embora. Ele tinha exatamente o tipo de sensação áspera, irritada, de chutar coisas pelo chão que poderia ser amenizada visitando Morgenes ou saindo além das muralhas para fazer alguma exploração. O doutor, no entanto, se encontrava ocupado, trancado com Inch, trabalhando em algo que disse ser grandioso, perigoso e com probabilidade de pegar fogo; portanto Simon não seria necessário para nada. O clima lá fora era tão frio e sombrio que, mesmo em sua miséria, não conseguia se convencer a sair por aí. Em vez disso, passou a tarde interminável com o gordo aprendiz do fabricante de velas, Jeremias, atirando pedras de uma das torres do muro do bastião interno e discutindo de forma desanimada se os peixes no fosso congelavam durante o inverno ou, se não, para onde eles iam até a chegada da primavera.
O frio lá fora, assim como o tipo diferente de frio nos aposentos dos criados, seguia prevalecendo no dia seguinte quando se levantou, fazendo-o se sentir fraco e desagradável. Morgenes também parecia de mau humor e sem reação, então, quando Simon terminou suas tarefas no consultório do doutor, roubou um pouco de pão e queijo da despensa e foi ficar sozinho.
Por um tempo, andou deprimido pelo Salão dos Arquivos no bastião mediano, ouvindo os sons secos e semelhantes aos zumbidos de insetos que os sacerdotes escrivãs faziam ao copiar. Mas depois de uma hora começou a sentir como se fosse sua própria pele que as penas dos escribas estavam arranhando e arranhando e arranhando...
Decidiu pegar sua comida e subir as escadas da Torre do Anjo Verde, algo que não fazia desde que o tempo começou a mudar. Já que Barnabas, o sacristão, ficaria tão feliz em expulsá-lo quanto ir para o Céu, resolveu ignorar a rota da capela para a torre, tomando seu próprio caminho secreto para os andares superiores. Amarrando sua refeição firmemente em seu lenço, ele partiu.
***
Caminhando pelos corredores da Chancelaria, que pareciam intermináveis, passando de uma passagem coberta para um pátio aberto e de volta para um abrigo, esta parte do castelo era pontilhada de pequenos quintais fechados. Supersticioso, Simon evitou olhar para a torre. Eminentemente esbelta e pálida, ela dominava o canto sudoeste do Hayholt como uma bétula em um jardim de pedras, tão impossivelmente alta e delicada que, do nível do solo, quase parecia estar em uma encosta distante, quilômetros e quilômetros além do muro do castelo. De pé abaixo, podia ouvi-la estremecer ao vento, como se fosse uma corda de alaúde bem apertada em alguma estaca celestial.
Os quatro primeiros andares da Torre do Anjo Verde não se diferenciavam muito de nenhuma das outras centenas de estruturas variadas do castelo. Os antigos mestres de Hayholt haviam coberto sua base fina com paredes externas e ameias de granito, se por desejo legítimo de maior segurança ou porque a estranheza da torre era inquietante, ninguém sabia. Acima do nível do muro do pátio circundante, a estrutura de contenção parava; a torre se projetava nua para cima, uma bela criatura albina escapando de seu casulo monótono. Varandas e janelas em estranhos padrões abstratos eram cortadas na superfície brilhante da pedra, como os dentes de peixe-baleia esculpidos que Simon costumava ver no mercado. No pináculo da torre brilhava um clarão distante de cobre-ouro e verde: o próprio Anjo, com um braço estendido como se estivesse em um gesto de despedida, o outro protegendo os olhos enquanto olhava para a distância a leste.
A enorme e barulhenta Chancelaria estava ainda mais confusa do que o normal hoje. Os lacaios de batina do Padre Helfcene corriam de um lado para o outro de uma câmara para outra, ou se amontoavam para discussões trêmulas no ar frio e salpicado de neve dos pátios. Vários, carregando papéis enrolados e expressões distraídas, tentaram comandar Simon para fazer recados no Salão de Arquivos, porém o jovem blefou para passar, anunciando estar em uma missão para o Doutor Morgenes.
Na antecâmara da sala do trono, ele parou, fingindo admirar os vastos mosaicos enquanto esperava o último dos sacerdotes da Chancelaria correr para a capela. Quando chegou seu momento, abriu a porta e deslizou para dentro da sala do trono.
As enormes dobradiças rangeram, para depois ficarem em silêncio. Os próprios passos de Simon produziram um impressionante eco, que depois pararam, desaparecendo por fim no silêncio profundo. Não importa quantas vezes tenha entrado escondido nesta sala... Por vários anos tinha sido, até onde sabia, o único residente do castelo que ousava entrar... Nunca parecia menos do que inspirador.
No mês passado, após a inesperada recuperação do Rei John, Raquel e sua trupe de ajudantes enfim tiveram permissão para passar pelo limite proibido; elas se entregaram a um ataque de duas semanas contra anos de poeira e areia, em cacos de vidro e ninhos de pássaros e teias de aranhas há muito perdidas para seus ancestrais de oito patas. Contudo mesmo completamente limpo, com suas lajes esfregadas, suas paredes lavadas e alguns, embora não todos, dos estandartes sem sua armadura de poeira, apesar da limpeza implacável e infatigável, a sala do trono emanava uma certa antiguidade e quietude. O tempo aqui parecia limitado apenas ao passo medido da antiguidade.
***
O estrado ficava na extremidade mais distante da grande sala, em uma poça de luz que descia de uma janela figurada no teto abobadado. Sobre ela, o Trono de Ossos do Dragão se erguia como um altar estranho... Desocupado, cercado por partículas brilhantes e dançantes de poeira, ladeado pelas estátuas dos Seis Supremos Reis de Hayholt.
Os ossos do trono eram enormes, mais grossos que as pernas de Simon, polidos de modo que brilhavam opacos como pedra reluzente. Com algumas exceções, foram cortados e ajustados de tal forma que, embora seu tamanho fosse evidente, era difícil adivinhar em qual parte da poderosa carcaça do grande verme de fogo eles já haviam se abrigado. Apenas o encosto do trono, uma grande estrutura de sete côvados de costelas amarelas curvas atrás das almofadas de veludo do rei, alcançando muito acima da cabeça de Simon, podia ser reconhecido imediatamente pelo que era... Isso e o crânio. Empoleirados no topo do grande assento, projetando-se o suficiente para servir como um toldo, se mais do que uma fina película de luz solar penetrasse na sala do trono sombreada, estavam a caixa craniana e as mandíbulas do dragão Shurakai. As conchas dos olhos eram janelas pretas quebradas, os dentes eram espinhos curvos tão longos quanto as mãos de Simon. O crânio do dragão era da cor de pergaminho velho e coberto de pequenas rachaduras, contudo havia algo vivo nele... Terrivelmente, maravilhosamente vivo.
Na verdade, havia uma aura surpreendente e sagrada em toda esta sala que ia muito além da compreensão de Simon. O trono de ossos pesados e amarelados, as enormes figuras negras guardando o assento vazio em uma câmara alta e deserta, tudo parecia preenchido com algum terrível poder. Todos os oito habitantes da sala, o ajudante de cozinha, as estátuas e o enorme crânio sem olhos pareciam prender a respiração.
Esses momentos roubados encheram Simon de um êxtase silencioso, quase temeroso. Talvez os reis de malaquitas esperassem com paciência negra e pétrea que o garoto tocasse a mão de um plebeu blasfemo no assento de ossos de dragão, esperaram... Esperaram... E então, com um barulho horrível de rangido, eles ganhariam vida! Ele estremeceu de um prazer nervoso com suas próprias imaginações e deu um passo leve para a frente, examinando os rostos escuros. Seus nomes tinham sido tão familiares uma vez, quando eram um absurdo encadeado em uma rima infantil, uma rima que Raquel... Raquel? Seria mesmo? Uma rima que lhe ensinara quando era um macaco risonho de quatro anos ou mais. Será que ainda se lembrava?
Se sua própria infância parecia tão distante, se perguntou de repente como deveria ser para o Preste John, que superara tantas décadas? Impiedosamente clara, como quando Simon se lembrava das humilhações passadas, ou suave e insubstancial, como histórias do passado glorioso? Quando você era velho, suas memórias eclipsavam seus outros pensamentos? Ou você as perdia... Sua infância, seus inimigos odiados, seus amigos?
Como era aquela velha canção? Seis reis...
Seis reis governaram nos amplos salões de Hayholt
Seis mestres caminharam por entre seus poderosos muros de pedra
Seis túmulos nos alcantilados sobre a profunda baía do Kynslagh
Seis reis ali dormiriam até o último dia da Juízo Final.
É isso!
Fingil, o primeiro, nomeado o Rei Sanguinário
Que voou desde o Norte em uma vermelha asa de guerra
Hjeldin, seu filho, o horroroso Rei Louco
Saltou para a sua morte da torre desde o alto do capitel
Ikferdig, o seguinte, o Rei Queimado
Encontrou o dragão de fogo na escuridão da noite
Três reis nortenhos, todos mortos e frios
O Norte não governa mais no altivo Hayholt
Aqueles eram os três reis rimmerios que se encontravam à esquerda do trono. Não era Fingil aquele de quem Morgenes havia lhe contado, o líder do terrível exército? Aquele que matou os sitha? No lado direito dos ossos amarelados o restante devia ser...
O Rei Garça Sulis, chamado Apóstata
Deixou Nabban, mas em Hayholt encontrou seu destino
O Sagrado Rei hernystiro, velho Tethtain
Que entrou pela porta para não voltar a sair
E por último, Eahlstan, o Rei Pescador, de ciências muito conhecedor
O dragão ele acordou, e em Hayholt ele morreu...
“Ahah!” Simon olhou para o rosto triste e contraído do Rei Garça e se regozijou. “Minha memória é melhor do que a maioria das pessoas pensa... Melhor do que a da maioria dos cabeças-ocas!” claro, agora havia finalmente um sétimo rei em Hayholt, o velho Preste John. Simon se perguntou se alguém adicionaria o Rei John à canção algum dia.
A sexta estátua, mais próxima do braço direito do trono, era a favorita de Simon: o único nativo de Erkynlandia que já havia se sentado no grande trono de Hayholt. Ele se aproximou para olhar nos olhos profundos do Santo Eahlstan, chamado Eahlstan Fiskerne porque provinha do povo pescador de Gleniwent, chamado de O Mártir por também ter sido morto por Shurakai, o dragão de fogo, a criatura destruída pelo Preste John.
Ao contrário do Rei Queimado do outro lado do trono, o rosto do Rei Pescador não foi esculpido em uma torção de medo e dúvida: em vez disso, o escultor trouxe fé radiante para as feições de pedra, deu aos olhos opacos a ilusão de ver coisas distantes. O artesão morto há muito tempo tornou Eahlstan humilde e reverente, porém, também o tornou ousado. Em seus pensamentos secretos, Simon imaginava com frequência que seu próprio pai pescador poderia ter essa aparência.
Olhando fixamente, o garoto sentiu uma frieza repentina em sua mão. Estava tocando o braço de osso do trono! Um ajudante de cozinha tocando o trono! Ele afastou os dedos, imaginando o tempo todo como até mesmo a substância morta de uma fera tão ardente podia ser tão fria, e cambaleou um passo para trás.
Por um momento de cortar o coração lhe pareceu que as estátuas começaram a se inclinar em sua direção, sombras se estendendo na parede de tapeçaria, e retrocedeu. Uma vez constatado que nada se movia, se endireitou com a dignidade que pôde, curvou-se para os Reis e o Trono, recuando pelo chão de pedra. Procurando com a mão... “Calma, calma.” pensou consigo mesmo. “Não aja como um tolo assustado.” por fim encontrou a porta para a sala de espera das audiências, seu destino original. Com um olhar cauteloso para a cena tranquilizadoramente imóvel, deslizou para fora do cômodo.
Atrás da pesada tapeçaria da sala de espera, veludo vermelho grosso bordado com cenas de festivais, uma escada dentro da parede subia para uma latrina no topo da galeria sul da sala do trono. Repreendendo-se pelo nervosismo de momentos atrás, subiu a escada. No topo, era uma questão bastante simples se espremer para fora da longa fresta da janela da latrina até chegar ao muro que corria por baixo. Todavia o atalho se mostrou um pouco mais difícil agora do que quando esteve aqui pela última vez em setiendre: as pedras estavam escorregadias devido a neve e havia uma brisa insistente. Por sorte, a borda do muro era larga; Simon saltou com cuidado.
Agora vinha a parte que mais gostava. O canto desde muro saía a apenas cinco ou seis pés da ampla balaustrada da torre do quarto andar da Torre do Anjo Verde. Parando, quase conseguia ouvir o som das trombetas, o choque dos cavaleiros lutando nas plataformas abaixo dele enquanto se preparava para saltar através do vento forte...
Se seu pé escorregou um pouco quando pulou, ou sua atenção foi distraída pela escaramuça imaginária ocorrendo abaixo, Simon caiu feio na borda da torre. Seu joelho golpeou com força contra as pedras e quase deslizou para trás e para fora, o que o teria jogado duas longas braças no muro baixo na base da torre ou no fosso. A percepção repentina do perigo estimulou seu coração a um galope aterrorizado. Conseguiu deslizar para baixo no espaço entre os merlões verticais da torre, rastejando no espaço entre os merlões verticais da torre para deslizar para baixo no chão de tábuas compridas.
Começava a nevar enquanto se sentava, sentindo-se terrivelmente tolo, e abraçando seu joelho latejante. Doía como pecado, traição e deslealdade; se não tivesse consciência de quão infantil já devia parecer, teria chorado.
Por fim, se levantou e mancou para dentro da torre. Uma sorte, de qualquer forma: ninguém viu sua aterrissagem dolorosa. Sua desgraça era só sua. Tateou seu bolso, o pão e o queijo estavam bastante achatados, mas ainda comestíveis. Um pequeno consolo.
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Subir escadas com seu joelho dolorido demandou um esforço, porém não adiantava entrar na Torre do Anjo Verde, o edifício mais alto de Erkynlandia, talvez de todo Osten Ard, e então não subir mais alto do que os muros principais de Hayholt.
A escada da torre era baixa e estreita, os degraus feitos de uma pedra branca, limpa e lisa, diferente de qualquer outra no castelo, escorregadia ao toque, contudo segura sob os pés. O povo do castelo dizia que esta torre era a única parte da fortaleza sitha original que permaneceu inalterada. O Doutor Morgenes disse uma vez a Simon que aquilo não era verdade. Se isso significava que a torre havia realmente sido alterada, ou apenas que outros remanescentes imaculados da antiga Asu’a ainda permaneciam, o doutor... Em seu estilo enlouquecedor, não diria.
Tendo subido por vários minutos, Simon pôde ver pelas janelas que já estava mais alto do que a Torre de Hjeldin. A coluna abobadada um tanto sinistra onde o Rei Louco havia encontrado sua morte há muito tempo olhava para o Anjo Verde através da extensão do telhado da sala do trono, como um anão ciumento olharia para seu príncipe quando ninguém estivesse olhando.
A pedra que ficava na parte interna da escada era diferente aqui: uma cor fulva suave, traçada com desenhos minúsculos e intrigantes em azul-celeste. Desviando sua atenção da Torre de Hjeldin, parou por um momento onde a luz de uma janela alta brilhava na parede, no entanto quando tentou seguir o curso de um dos delicados pergaminhos azuis, sua cabeça ficou tonta e desistiu.
Por fim, quando parecia que estava subindo dolorosamente por horas, a escada se abriu para o piso branco brilhante do campanário, também construída com a incomum pedra da escada. Embora a torre se estendesse por mais quase cem côvados, afinando até o próprio Anjo empoleirado no horizonte nublado, a escada terminava aqui, onde os grandes sinos de bronze pendiam fileira por fileira das vigas abobadadas como frutas verdes solenes. O campanário em si estava aberto de todos os lados para o ar frio, de modo que quando os sinos do Anjo Verde cantavam de suas janelas altas em arco, todo o campo podia ouvir.
Simon ficou de costas apoiada em um dos seis pilares de madeira escura, lisa e sólida que se estendiam do chão ao teto. Enquanto mastigava sua crosta de pão, olhou para a vista oeste, onde as águas do Kynslagh deslizavam eternamente contra o enorme muro de Hayholt. Embora o dia estivesse escuro e os flocos de neve dançassem enlouquecidos diante dele, Simon ficou surpreso com a clareza com que o mundo abaixo se estendia aos seus olhos. Muitos pequenos barcos surfavam nas ondas do Kynslagh, homens em capas pretas curvados sobre seus remos, impassíveis. Mais além, pensou que podia distinguir vagamente o lugar onde o rio Gleniwent saía do lago no início de sua longa jornada até o oceano, um curso sinuoso de quase 100km, passando por cidades portuárias e fazendas. Fora de Gleniwent, nos braços do próprio mar, a ilha Warinsten guardava a foz do rio; além de Warinsten, a oeste, não havia nada além de incontáveis léguas de oceano inexploradas.
Acariciou seu joelho dolorido e decidiu, por ora, não se sentar, já que teria de se levantar depois. Puxou o gorro para baixo sobre as orelhas, que estavam ficando vermelhas e ardendo com o vento, e começou a comer um pedaço de queijo esfarelado. À sua direita, mas muito além dos limites de sua visão, estavam os prados e colinas salientes de Ach Samrath, as fronteiras mais externas do reino de Hernystir e o local da terrível batalha que Morgenes havia descrito. À sua esquerda, através do amplo Kynslagh, se estendiam os Thrithings... Pastagens vastas que pareciam não ter fim. Apesar de elas acabarem, é claro. Além ficavam Nabban, a Baía de Firranos e suas ilhas, e o país pantanoso de Wran... Todos lugares que Simon nunca tinha visto e provavelmente nunca veria.
Ficando por fim entediado com o imutável Kynslagh e as imaginações do inacessível Sul, Simon mancou para o outro lado do campanário. Visto do centro da sala, onde nenhum detalhe da terra abaixo era visível, a escuridão das nuvens, sem características, era um buraco cinza no nada, e a torre era momentaneamente um navio fantasma à deriva em um mar vazio e enevoado. O vento uivava e cantava ao redor das janelas abertas; os sinos zumbiam fracamente, como se a tempestade tivesse levado pequenos espíritos assustados para o interior de suas peles de bronze.
Simon alcançou o parapeito baixo e se inclinou para olhar a confusão louca dos telhados do Hayholt abaixo. A princípio, o vento puxou como se quisesse pegá-lo e jogá-lo, como um gatinho brincando com uma folha morta. Sua mão fortaleceu o aperto na pedra molhada, e logo o vento diminuiu. Um sorriso foi desenhando em seu semblante, desse ponto de vista, a magnífica mistura de telhados de Hayholt... Cada um com altura e estilo diferentes, cada um com sua floresta de chaminés, telhados e domos... Parecia um quintal cheio de animais estranhos e quadrados. Eles se esparramavam meio em cima um do outro, lutando por espaço como porcos em sua alimentação.
Mais baixo apenas que as duas torres, a cúpula da capela do castelo dominava o bastião interior, janelas coloridas cobertas de granizo. Os outros edifícios da torre, as residências, o refeitório, a sala do trono e a chancelaria, estavam todos empilhados e espremidos com adições, evidências mudas da diversa ocupação do castelo. Os dois pátios externos e a enorme parede de cortina, descendo concentricamente colina abaixo, estavam igualmente desordenados. O próprio Hayholt nunca se expandiu além do muro externo; as pessoas que se aglomeravam construíam para cima ou dividiam o que já tinham em porções cada vez menores.
Além da torre, a cidade de Erchester se estendia em rua após rua descuidada de casas baixas, envoltas em um manto de montes brancos; apenas a catedral se erguia do meio delas, ela própria diminuída pelo Hayholt e por Simon em sua torre celeste. Aqui e ali, uma pena de fumaça subia para se despedaçar no vento.
Além dos muros da cidade, Simon conseguia distinguir os contornos escuros e polidos pela neve do antigo cemitério pagão, um lugar de má reputação. As colinas além corriam quase até a borda da floresta; acima de sua humilde congregação, a alta colina chamada Thisterborg se erguia tão dramaticamente quanto a catedral em Erchester, de teto baixo. Simon não conseguia vê-los, mas sabia que Thisterborg era coroada com um anel de pilares de pedra polidas pelo vento que os moradores chamavam de Pedras da Cólera.
E além de Erchester, além do cemitério e das colinas, do Thisterborg coberto de pedras, ficava a Floresta. Aldheorte era seu nome... Oldheart... E se estendia para fora como o mar, vasta, escura e desconhecida. Os homens que viviam em seus arredores, até mantinham algumas estradas ao longo de suas bordas externas, porém muito poucos se aventuravam para dentro além de suas periferias. Era um país grande e sombrio no meio de Osten Ard; não enviava embaixadas e recebia poucos visitantes. Colocado contra sua eminência, até mesmo o enorme Circoille, o emaranhando bosque de Hernystir no oeste, era um mero bosquezinho. Havia apenas uma Floresta.
O mar a oeste, a floresta a leste; o norte e seus homens de ferro, e a terra dos impérios despedaçados ao sul... Olhando para a face de Osten Ard, Simon esqueceu seu joelho dolorido por um momento. De fato, por um tempo, o próprio Simon foi rei de todo o mundo conhecido.
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Quando o sol de inverno encoberto ultrapassou o topo do céu, ele enfim se moveu para partir. Esticar a perna provocou um suspiro de dor: o joelho havia enrijecido durante a longa hora em que permanecera no parapeito. Era óbvio que não conseguiria descer do campanário por seu árduo caminho secreto. Teria que arriscar a sorte contra Barnabas e o Padre Dreosan.
A longa escadaria era um tormento, mas a vista da janela da torre afastara seus outros arrependimentos; ele não sentia tanta pena de si mesmo quanto poderia sentir. O desejo de ver mais do mundo ardia em seu interior como uma pequena fogueira, aquecendo-o até a ponta dos dedos. Pediria a Morgenes que lhe contasse mais sobre Nabban, as Ilhas do Sul e os Seis Reis.
No quarto andar, onde fizera sua entrada original, ouviu um som: alguém descendo com pressa a escada abaixo dele. Por um momento, ficou parado, imaginando se teria sido descoberto. Não era estritamente proibido estar na torre, porém não tinha um bom motivo justificar sua presença; o sacristão presumiria culpa. Era estranho, contudo... Os passos estavam diminuindo. Se de fato fosse Barnabas ou qualquer outra pessoa não hesitariam em subir e pegá-lo, em arrastá-lo pela nuca até lá embaixo. Simon continuou descendo a escada em caracol; cauteloso a princípio; depois, apesar do joelho latejante, cada vez mais rápido, à medida que sua curiosidade o dominava.
A escada por fim terminava no enorme salão de entrada da torre. O salão era mal iluminado, suas paredes envoltas em sombras e tapeçarias desbotadas de temas provavelmente religiosos, contudo há muito obscurecidos. Simon parou no último degrau, ainda oculto na escuridão da escada. Não havia som de passos, nem de qualquer outra coisa. Caminhou o mais silenciosamente possível pelo piso de lajes, cada arranhão acidental de botas sibilando em direção ao teto de nervuras de carvalho. A porta principal do corredor estava fechada; a única iluminação vinha das janelas acima do lintel.
Como poderia, quem quer que estivesse na escada, ter aberto e fechado a porta gigante sem que ele percebesse? Havia ouvido os passos leves com muita claridade e se preocupara com o rangido que as grandes dobradiças fariam. Virou-se para examinar outra vez o portal do corredor.
Lá. Debaixo da franja da tapeçaria de prata manchada pendurada na escada, projetavam-se duas pequenas formas arredondadas... Sapatos. Ao olhar com mais atenção agora, pôde ver como as dobras da velha tapeçaria se projetavam para fora onde alguém se escondia atrás dela.
Equilibrando-se em um pé como uma garça, tirou primeiro uma bota, depois a outra, sem fazer qualquer som. Quem poderia ser? Talvez o gordo Jeremias o tivesse seguido até ali para pregar uma peça? Bem, se fosse assim, Simon logo lhe mostraria o que é bom.
Com os pés descalços quase silenciosos sobre as pedras, atravessou o corredor até parar sorrateiro diante do calombo suspeito. Por um instante, estendendo a mão para a beirada da tapeçaria, lembrou-se da coisa estranha que o Irmão Cadrach dissera sobre cortinas enquanto assistiam ao espetáculo de marionetes. Hesitou, depois sentiu vergonha da própria timidez e afastou a tapeçaria.
Em vez de se abrir para revelar o espião, a enorme tapeçaria se soltou de seus suportes e se afundou como um cobertor monstruoso e rígido. Simon teve apenas um vislumbre momentâneo de um rostinho pequeno e assustado antes que o peso da tapeçaria o derrubasse no chão. Enquanto jazia xingando e se debatendo, emaranhado, uma figura vestida de marrom passou correndo com pressa.
Simon podia ouvir quem quer que fosse lutando com a pesada porta enquanto ele próprio lutava contra o tecido empoeirado e envolvente. Ao fim, se soltou e rolou para se levantar, atravessando o salão num salto para pegar a pequena figura antes que ela escapasse pela porta entreaberta. Segurou firme um gibão áspero. O espião foi capturado, meio para dentro, meio para fora.
Simon estava furioso agora, principalmente pela vergonha.
— Quem é você? — rosnou. — Seu espião!
Seu cativo não disse nada, apenas lutou com mais força para se libertar. Quem quer que fosse, não era grande o suficiente para se soltar do aperto de Simon.
Lutando para puxar a figura resistente de volta pela porta, tarefa essa nada fácil, Simon se assustou ao reconhecer o pano cor de areia que segurava. Devia ser o jovem que estivera espionando a porta da capela! Simon deu um puxão forte e fez a cabeça e o ombro do jovem passarem pelo batente para que pudesse encará-lo.
O prisioneiro era pequeno e suas feições eram finas, quase afiladas: havia algo que lembrava um pouco uma raposa no nariz e no queixo, mas não de forma desagradável. Seu cabelo era tão escuro quanto a asa de um corvo. Por um momento, pensou que pudesse ser um sitha, devido à sua altura. Tentou se lembrar das histórias de Shem sobre não largar o pé de um duende e, assim, ganhar um caldeirão de ouro, porém antes que pudesse gastar qualquer parte do seu tesouro onírico, viu o suor do medo e as bochechas avermelhadas e decidiu que não se tratava de uma criatura sobrenatural.
— Qual é o seu nome? — perguntou.
O jovem capturado tentou se soltar de novo, contudo estava obviamente cansado. Depois de um momento, parou de resistir.
— Seu nome? — perguntou Simon, desta vez em um tom mais suave.
— Malaquias. — o jovem se virou ofegante.
— Bem, Malaquias, por que está me seguindo?
Ele deu uma leve sacudida no ombro do jovem, para lembrá-lo de quem havia capturado quem.
O jovem se virou e o encarou, carrancudo. Seus olhos eram bastante escuros.
— Eu não estava te espionando! — respondeu com veemência.
Quando o rapaz desviou o rosto mais uma vez, Simon foi tomado pela sensação de ter visto algo familiar no rosto daquele Malaquias, algo que deveria reconhecer.
— Quem é você então? — perguntou Simon, e estendeu a mão para virar o queixo do rapaz em sua direção. — Trabalha nos estábulos... Trabalha em algum lugar aqui em Hayholt?
Antes que pudesse virar o rosto para olhá-lo mais uma vez, Malaquias subitamente colocou as duas mãos no meio do peito de Simon e deu um empurrão com uma força surpreendente. Ele perdeu a firmeza no aperto do gibão do jovem e cambaleou para trás, caindo em seguida de bunda no chão. Antes mesmo que pudesse tentar se levantar, Malaquias passou correndo pela porta, fechando-a atrás de si com um rangido alto e reverberante de dobradiças de bronze.
Simon ficou sentado no chão de pedra, seu joelho dolorido, nádega dolorida e dignidade mortalmente ferida... Quando o sacristão Barnabas entrou, vindo do salão da Chancelaria, para investigar o barulho. Parou como se estivesse atordoado na porta, olhando de Simon, descalço, no chão, para a tapeçaria rasgada e amassada em frente à escada, e então voltou a encará-lo. Barnabas não disse uma palavra, no entanto uma veia começou a pulsar em cada têmpora, e sua testa se franziu até que seus olhos se tornaram meras fendas.
Simon, derrotado e humilhado, só conseguiu sentar e balançar a cabeça, como um bêbado que tropeçou na própria jarra e caiu em cima do gato do Lorde Prefeito.
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