Capítulo 06: O Marco nos Penhascos
A punição de Simon por seu mais recente delito foi a suspensão de seu novo aprendizado e o confinamento nos aposentos dos criados.
Por dias, percorreu os limites de sua prisão, da copa à lavanderia e vice-versa, inquieto como um peneireiro em cativeiro.
“Eu fiz isso comigo mesmo.” ele pensava às vezes. “Sou tão estúpido quanto o Dragão diz que sou.”
“Por que todos tem que se preocupar tanto comigo?” ele se enfurecia em outros momentos. “Qualquer um pensaria que sou um animal selvagem em quem não se pode confiar.”
Raquel, com uma espécie de misericórdia em mente, encontrou uma série de pequenas tarefas às quais Simon pôde se dedicar; os dias não passavam tão dolorosamente lentos quanto poderiam ter passado, mas para o jovem parecia apenas mais uma prova de que seria um cavalo de tração para sempre. Teria trazido e levado pesos até ficar velho demais para continuar trabalhando, depois seria levado para os fundos e golpeado na cabeça com o martelo lascado de Shem.
Até lá, os últimos dias de novender se arrastavam, e decimbre se esgueirava como um ladrão furtivo.
***
No final da segunda semana do novo mês, Simon recebeu de volta sua liberdade, por assim dizer. Foi proibido de ir à Torre do Anjo Verde e a certos outros lugares favoritos; foi-lhe permitido retomar o serviço para o doutor, porém recebeu tarefas adicionais à tarde, que o obrigavam a retornar pontualmente na hora do jantar aos aposentos dos serviçais. Embora mesmo essas visitas curtas eram um grande consolo. De fato, parecia que Morgenes estava cada vez mais confiando em Simon. O doutor o ensinou muitas coisas sobre os usos e cuidados com a fantástica variedade de bugigangas espalhadas pela oficina.
Desgraçadamente, também aprendia a ler. Era muito mais trabalhoso do que varrer o chão ou lavar alambiques e béqueres empoeirados, contudo Morgenes o conduziu com mão determinada, dizendo que, sem o domínio das letras, Simon jamais seria um aprendiz útil.
***
No Dia de São Tunath, 21 de decimbre, Hayholt fervilhava de atividade. O dia do santo era o último feriado importante antes de Aedonmansa, e um grande banquete estava sendo oferecido. As criadas colocavam ramos de visco e azevinho espinhoso em volta de dezenas de finas velas brancas de cera de abelha, todas elas deveriam ser acesas ao pôr do sol, quando suas chamas derramariam luz por todas as janelas, convocando o errante São Tunath da escuridão do solstício de inverno para abençoar o castelo e seus ocupantes. Outros criados empilhavam toras de piche recém-cortadas nas lareiras ou espalhavam juncos frescos pelo chão.
Simon, que fizera o possível a tarde toda para permanecer despercebido, foi descoberto e designado para ir até o doutor Morgenes e verificar se tinha algum óleo adequado para polir coisas, as tropas de Raquel haviam usado todo o suprimento disponível, dando um brilho ofuscante à Grande Mesa, e as obras no Salão Principal mal haviam começado.
Simon, que já havia passado uma manhã inteira nos aposentos do doutor lendo em voz alta, palavra por palavra, um livro intitulado Os Remédios Soberanos dos Curandeiros de Wran, ainda preferia infinitamente qualquer coisa que Morgenes pudesse querer dele aos horrores do olhar de aço de Raquel. Quase voou do Salão Principal, atravessou o longo salão da Chancelaria e saiu para o Salão Comum Interno, sob o Anjo Verde. Atravessou a ponte do fosso segundos depois como um falcão em voo; apenas alguns instantes se passaram antes que estivesse à porta do doutor pela segunda vez naquele dia.
O ancião demorou a responder à batida, no entanto Simon podia ouvir vozes lá dentro. Esperou o máximo que pôde, catando lascas compridas do batente desgastado pela ação do tempo, até que por fim o velho chegou. Morgenes vira Simon pouco antes, entretanto não fez nenhum comentário sobre seu reaparecimento. Parecia distraído ao conduzir o jovem para dentro; sentindo seu humor estranho, Simon o seguiu em silêncio pelo corredor iluminado por lampiões.
Pesadas cortinas cobriam as janelas. A princípio, enquanto seus olhos se adaptavam à escuridão do quarto, Simon não viu sinal de qualquer visitante. Então, distinguiu uma forma indistinta sentada em um grande baú de marinheiro no canto. O homem de manto cinza olhava para o chão, o rosto escondido, todavia o rapaz o conhecia.
— Perdoe-me, Príncipe Josua. — disse Morgenes. — Este é Simon, meu novo aprendiz.
Josua, o Manco, ergueu o olhar. Seus olhos claros... Seriam azuis? Cinzentos? O percorreram com um ar de indiferença, como um comerciante hyrka examinaria um cavalo que não pretendia comprar. Após um momento de inspeção, o príncipe voltou sua atenção para Morgenes tão completamente como se Simon tivesse acabado de desaparecer. O doutor fez um gesto para que o menino fosse esperar no fundo da sala.
— Alteza… — disse Morgenes ao príncipe. — Receio que não haja mais nada que eu possa fazer. Minhas habilidades como médico e boticário se esgotaram. — o velho esfregou as mãos em um gesto de nervosismo. — Perdoe-me. Você sabe que amo o rei e odeio vê-lo sofrer, mas... Há coisas em que pessoas como eu não devem se intrometer. Existem muitas possibilidades, muitas consequências imprevisíveis. Uma delas é a morte de um reino.
Agora Morgenes, que Simon nunca vira naquele estado de espírito, tirou um objeto preso a uma corrente de ouro de seu manto e o manuseou agitadamente. Pelo que Simon sabia, o doutor, que adorava desprezar a pretensão e a ostentação, também nunca usara joias de nenhum tipo.
— Homem, em nome de Deus, não estou pedindo que interfira na sucessão! — a voz calma de Josua era tensa como a corda de um arco.
Ouvir tal conversa deixou Simon tremendamente envergonhado, contudo não havia para onde ir sem que se advertira ainda mais sua presença.
— Peço que não se ‘intrometa’ em nada, Morgenes. — continuou Josua. — Apenas me de algo que facilite os últimos momentos do velho. Se ele morrer amanhã ou no ano que vem, Elias ainda será o Supremo Rei, e eu ainda serei o suserano de apenas Naglimund. — o príncipe balançou a cabeça. — Pelo menos pense no antigo vínculo que compartilhou com meu pai… Você, que foi seu curandeiro e estudou e registrou sua vida por dezenas de anos!
Josua levantou a mão para assinalar uma pilha de folhas soltas de livros empilhadas sobre a escrivaninha desgastada pelas traças.
“Escreveu sobre a vida do rei?” Simon se perguntou. Esta foi a primeira vez que ouvia falar de tal obra. O doutor parecia cheio de segredos naquela manhã.
Josua seguia tentando convencê-lo.
— Não poderia ter um pouco de piedade? Ele é como um leão idoso acuado, uma grande fera sendo arrastada por chacais! Doce Jesuris, que injustiça...
— Mas, Alteza... — Morgenes começara a falar com dificuldade quando os três presentes na sala perceberam o som de passos correndo e vozes no pátio lá fora. Josua, pálido e com os olhos febris, levantou-se com a espada desembainhada com tamanha rapidez que parecia ter apenas aparecido em sua mão esquerda. Uma forte pancada fez a porta tremer. Morgenes, avançando, foi contido por um silvo do príncipe. Simon sentiu o coração disparar, o medo óbvio de Josua era contagioso.
— Príncipe Josua! Príncipe Josua! — alguém chamou. As batidas recomeçaram.
O filho do rei embainhou a espada com um movimento brusco e passou pelo Doutor Morgenes para o corredor da oficina. Ele abriu a porta, revelando quatro figuras em pé na varanda do pátio. Três eram seus próprios soldados de libré cinza; O último, que se ajoelhou diante do príncipe, vestia uma túnica branca brilhante e sandálias. Sonolento, Simon o reconheceu como São Tunath, tema há muito falecido de inúmeras pinturas religiosas.
O que aquilo poderia significar...?
— Oh, Vossa Alteza... — disse o santo ajoelhado, e parou para recuperar o fôlego.
A boca de Simon, que começara a se curvar para cima em um sorriso ao perceber que se tratava apenas de mais um soldado, vestido para representar o papel do santo nas festividades daquela noite, congelou ao ver a expressão aflita no rosto do jovem.
— Vossa Alteza... Josua... — repetiu o soldado.
— O que foi, Deornoth? — perguntou o príncipe. Sua voz estava tensa.
Deornoth olhou para cima, o cabelo escuro e áspero de soldado emoldurado pelo brilho branco de seu capuz. Naquele momento, ele tinha os olhos de um verdadeiro mártir, arrasados e conscientes.
— O rei, Senhor, vosso pai, o rei... O Bispo Domitis disse... Que ele está morto.
Sem fazer barulho, Josua passou pelo homem ajoelhado e atravessou o pátio, com os soldados trotando atrás. Após um momento, Deornoth também se levantou e o seguiu, com as mãos entrelaçadas como um monge à sua frente, como se o sopro da tragédia tivesse transformado a impostura em realidade. A porta balançou indolentemente com um vento fresco.
Quando Simon se virou para Morgenes, o doutor os observava, com os olhos velhos brilhando e marejados.
***
Assim foi como o Rei John, o Presbítero, morreu no Dia de São Tunath, em idade bastante avançada. Amado, reverenciado e tão parte da vida de seu povo quanto a própria terra. Embora fosse esperado há muito tempo, a tristeza de sua partida alcançou e tocou todos os países dos homens.
Alguns dos mais velhos se lembravam de que fora no Dia de Tunath, no ano da fundação de 1083, exatos oitenta anos atrás, quando o Presbítero John matara o dragão Shurakai e cavalgara de volta em triunfo pelos portões de Erchester. Quando essa história foi recontada, não sem alguns enfeites, cabeças balançaram sabiamente. Ungido por Deus como Rei, disseram, como revelado por aquele grande feito, e então levado de volta ao seio do Redentor em seu aniversário. Deveria ter sido previsto, disseram.
Era um triste solstício de inverno e época de festividade de Aedon, embora pessoas afluíssem a Erchester e ao Castelo vindas de todas as terras de Osten Ard. De fato, muitos moradores locais começaram a reclamar dos visitantes que vinham ocupar os melhores bancos da igreja, e o mesmo acontecia nas tavernas. Havia um ressentimento considerável com os forasteiros fazendo tanto alvoroço em torno do seu rei: embora tivesse sido o senhor de todos, John fora mais como um simples senhor feudal para os cidadãos de Erchester. Em seus dias mais jovens e robustos, adorava sair entre o povo, exibindo uma bela figura, todo em armadura reluzente e a cavalo. Os cidadãos da cidade, pelo menos nos bairros mais pobres, frequentemente falavam com orgulho familiar e possessivo do ‘nosso velho lá em Hayholt’.
Agora ele havia ido, ou pelo menos se fora do alcance de almas tão simples. Pertenceria aos escribas, aos poetas e aos padres.
***
Nos quarenta dias entre a morte e o sepultamento do rei, o corpo de John permaneceu no Salão de Preparação em Erchester, onde os sacerdotes o ungiram em óleos raros, o esfregaram com resinas herbáceas pungentes das ilhas do sul e o envolveram do tornozelo ao pescoço em linho branco, recitando orações de piedade avassaladora. O Rei John foi então vestido com uma túnica simples, do tipo usado por jovens cavaleiros em seus primeiros votos, e delicadamente colocado sobre um esquife na sala do trono, com finas velas negras acesas ao redor.
Enquanto o corpo do Preste John jazia em câmara ardente, o Padre Helfcene, chanceler do rei, ordenou que fosse aceso o grande fogo no topo da fortaleza rochosa em Wentmouth, algo feito apenas em tempos de guerra e grandes acontecimentos. Poucos vivos conseguiam se lembrar da última vez que a imponente torre da tocha fora acesa.
Helfcene também ordenou que uma grande cova fosse cavada em Swertclif, nos promontórios a leste de Erchester, com vista para o Kynslagh, o topo ventoso da colina onde ficavam os seis túmulos cobertos de neve dos reis que haviam conquistado Hayholt antes de John. O tempo estava péssimo para cavar, o solo congelado pelo inverno, mas os trabalhadores de Swertclif estavam orgulhosos e suportaram o ar cortante, os hematomas e a pele ferida pela honra da tarefa. Grande parte do frio mês de eneror passou antes que a escavação fosse concluída e a cova fosse coberta com uma vasta tenda de lona vermelha e branca.
Os preparativos em Hayholt prosseguiram em um ritmo menos deliberado. As quatro cozinhas do castelo brilhavam e fumegavam como fundições movimentadas enquanto uma horda de ajudantes de cozinha suados preparava os assados fúnebres, as carnes, o pão e as hóstias do festival. O senescal Peter Tigela Dourada, um homem pequeno e feroz de cabelos loiros, estava em todos os lugares ao mesmo tempo como um anjo vingador. Com igual facilidade, ele provou o caldo fervendo em tonéis gigantes, procurou poeira nas rachaduras da Grande Mesa, chance mínima, já que aquele era o domínio de Raquel, e lançou imprecações aos servos apressados. Todos concordavam, era seu melhor momento.
***
O grupo de luto se reuniu em Hayholt, vindo de todas as nações de Osten Ard. Skali Nariz Afiado de Kaldskryke, primo não amado do Duque Isgrimnur, chegou de Rimmersgardia com dez parentes desconfiados e barbudos. Dos três clãs que entre eles governavam os selvagens e relvados Thrithings, vieram os Marchthanes de suas casas reinantes. Curiosamente, os membros dos clãs deixaram a inimizade de lado por uma vez e chegaram juntos... Um símbolo de seu respeito pelo Rei John. Dizia-se até que, quando a notícia da morte de John chegou aos Thrithings, os chefes dos três clãs se encontraram nas fronteiras que guardavam tão zelosamente uns dos outros; Chorando juntos, eles beberam juntos durante toda a toda em saúde a alma de John.
Do Sancellan Mahistrevis, o palácio ducal em Nabban, o Duque Leobardis enviou seu filho Benigaris com uma coluna de legionários e cavaleiros de cota de malha, totalizando quase cem homens. Ao desembarcarem dos navios de guerra, cada um dos três com o martim-pescador dourado de Nabban a vela, a multidão no cais irrompeu em exclamações cheias de admiração. Alguns aplausos respeitosos foram até erguidos para Benigaris quando ele passou, montado em um alto palafrém cinza, mas muitas pessoas sussurravam que, se aquele era o sobrinho de Camaris, o maior cavaleiro da era de John, então era um fruto da árvore de seu pai e não de seu tio. Camaris fora um homem poderoso e imponente, ou assim diziam aqueles com idade suficiente para se lembrarem do cavaleiro... E Benigaris, para falar a verdade, parecia estar um pouco gordo demais. Porém já fazia quase quarenta anos que Camaris-sá-Vinitta se perdera no mar: muitos dos mais jovens suspeitavam que sua estatura havia crescido um pouco nas memórias dos velhos e fofoqueiros.
Outra grande delegação também veio de Nabban, apenas um pouco menos marcial que a de Benigaris: o próprio Leitor Ranessin navegou para o Kynslagh em um belo navio branco, em cuja vela azul brilhavam a Árvore branca e o Pilar dourado da Mãe Igreja. A multidão à beira do cais, que havia saudado Benigaris e os soldados nabbanos com um pouco de frieza, como se em vaga lembrança dos dias em que Nabban lutara com Erkynlandia pelo domínio da nação, saudou o Leitor com um grito alto e acolhedor. Os reunidos no cais avançaram, e foi necessária a força combinada dos guardas do rei e do Leitor para contê-los; ainda assim, uns dois ou três estavam tão amontoados que caíram no lago gelado, e somente um resgate rápido os salvou do congelamento.
***
— Isto não é como eu gostaria. — sussurrou o Leitor para seu jovem ajudante, Padre Dinivan. — Quer dizer, olhe só para esta coisa vistosa que me enviaram. — ele gesticulou para a liteira, uma esplêndida criação em madeira de cerejeira entalhada e sedas azuis e brancas.
Padre Dinivan, vestido em um preto simples, sorriu.
Ranessin, um homem esguio e bonito de quase setenta anos, franziu a testa, irritado, para a liteira que o aguardava, e então gentilmente acenou para um nervoso oficial da Guarda de Erkynlandia.
— Por favor, leve isto embora. — disse ele. — Agradecemos a gentileza do Chanceler Helfcene, mas preferimos caminhar perto das pessoas.
O veículo ofensivo foi retirado em seguida, e o Leitor dirigiu-se para a escadaria lotada de Kynslagh. Enquanto fazia o sinal da Árvore, polegar e mindinho unidos como galhos em forma de gancho, com os dedos médios em posição vertical, a multidão que se acotovelava abriu aos poucos um corredor ao longo da grande escadaria.
— Por favor, não ande tão rápido, Mestre. — disse Dinivan, abrindo caminho e gesticulando. — Você vai ultrapassar seus guardas.
— E o que o faz pensar... — Ranessin permitiu que um sorriso travesso se formasse em seu rosto tão rapidamente que ninguém além de Dinivan viu. — Que não é justo o que estou tentando fazer?
Dinivan praguejou baixinho, contudo logo depois se arrependeu de sua fraqueza. O Leitor havia ganhado um passo à sua frente, e a multidão se aproximava. Por sorte, o vento do cais agora ganhava vida e Ranessin foi forçado a diminuir o ritmo, agarrando com a mão livre o chapéu. Este parecia quase tão alto, fino e pálido quanto Sua Santidade. O Padre Dinivan, vendo o Leitor começar a se inclinar um pouco contra o vento, avançou com dificuldade. Quando alcançou o homem mais velho, tomou-lhe um cotovelo e segurou com firmeza.
— Perdoe-me, Mestre, no entanto o Escritor Velligis jamais entenderia se eu o deixasse cair no lago.
— Claro, meu filho! — Ranessin assentiu, continuando a traçar o sinal da Árvore no ar, de cada lado da longa e larga escadaria. — Fui descuidado. Você sabe o quanto detesto essa pompa desnecessária.
— Mas, Leitor... — argumentou Dinivan em um tom amável, erguendo as sobrancelhas espessas num olhar de falsa surpresa. — Você é a voz mundana de Jesuris Aedon. Não vai dar certo subir as escadas como um seminarista.
Dinivan ficou decepcionado quando isso provocou apenas um leve sorriso no Leitor. Por um tempo, eles subiram em passos silenciosos, o jovem mantendo seu abraço protetor no braço do mais velho.
“Pobre Dinivan...” pensou Ranessin. “Se esforça tanto e é tão cuidadoso. Não que ele não me trate, o Leitor da Mãe Igreja, com certa falta de respeito. Claro que sim, porque eu permiti... Para o meu próprio bem. Todavia não estou de bom humor hoje, e ele pôde perceber.”
Foi a morte de John, é claro, entretanto não apenas a perda de um bom amigo e um bom rei: foi uma mudança, e a Igreja, na pessoa do Leitor Ranessin, não podia se dar ao luxo de confiar em mudanças tão facilmente. É claro que também foi a despedida... “Apenas neste mundo.” o Leitor lembrou a si mesmo com firmeza, de um homem de bom coração e boas intenções, embora John de fato tivesse sido, às vezes, excessivamente direto no cumprimento dessas intenções. Ranessin devia muito a John, porque a influência do rei desempenhou um papel importante na elevação do antigo Bispo de Stanshire aos altos cargos da igreja e, ao cargo de Leitor que nenhum outro erkyno havia ocupado em cinco séculos. O rei faria muita falta.
Por fortuna, Ranessin nutria esperanças por Elias. O príncipe era sem dúvida corajoso, decidido, ousado... Características estas raras nos filhos de grandes homens. O futuro rei também era temperamental e um tanto descuidado, porém... Duos wulstei¹, esses eram defeitos que se curavam, ou pelo menos amenizavam com responsabilidade e bons conselhos.
Ao chegar ao topo das escadas de Kynslagh e entrar com sua comitiva, que se esforçava para avançar, na Trilha Real que circundava as muralhas de Erchester, o Leitor prometeu a si mesmo que enviaria um conselheiro confiável para ajudar o novo rei e, claro, para ficar de olho no bem-estar da Igreja, alguém como Velligis, ou mesmo o jovem Dinivan... Não, não se separaria de Dinivan. De qualquer forma, Ranessin encontraria alguém para neutralizar os jovens nobres sanguinários de Elias, e aquele idiota, o Bispo Domitis.
***
O primeiro dia de ferruero, véspera de Elysiamansa, o Dia da Senhora, amanheceu brilhante, frio e claro. O sol mal havia escalado os picos escarpados das montanhas distantes quando uma multidão lenta e solene começou a entrar na capela de Hayholt. O corpo do rei já jazia diante do altar em um esquife coberto com tecido dourado e fitas de seda preta.
Simon observava os nobres em suas vestes ricas e sombrias com fascínio ressentido. Viera direto das cozinhas para o coro abandonado, ainda com a camisa manchada de molho; Mesmo agachado, escondido nas sombras, sentia vergonha de estar tão malvestido.
“E eu, o único servo aqui.” pensou. “O único de todos que vivia no castelo com o nosso rei. De onde são todos esses elegantes lordes e damas? Reconheço apenas alguns... O Duque Isgrimnur, os dois príncipes e alguns outros.”
Certamente havia algo de errado, que aqueles sentados na capela abaixo estivessem tão esplêndidos em suas sedas funerárias enquanto ele carregava o fedor da copa como um cobertor, contudo errado de que maneira? Os servos do castelo deveriam ser bem-vindos entre os nobres? Ou o próprio Simon era culpado por ousar se intrometer?
“E se o Rei John estiver observando?” sentiu um arrepio ao pensar nisso. “E se ele estiver em algum lugar, observando? Será que contará a Deus que entrei escondido usando uma camisa suja?”
O Leitor Ranessin entrou por fim, trajado com todo o rigor de suas vestes sagradas de ofício, pretas, prateadas e douradas. Na cabeça, usava uma coroa de folhas sagradas de ciyan e segurava um incensário e uma vara feitos de ônix negro. Fazendo sinal para a multidão se ajoelhar, iniciou as orações iniciais do Mansa-sea-Cuelossan: a Missa dos Defuntos. Enquanto pronunciava os versos em seu rico, embora ainda levemente acentuado, nabbaneo, e incensava o corpo do rei morto, pareceu a Simon que uma luz brilhou no rosto do Preste John, que pôde ver por um instante como o rei devia estar quando cavalgou pela primeira vez, com os olhos brilhantes e as marcas da batalha, para fora dos portões da recém-conquistada Hayholt. Como gostaria de tê-lo visto então!
Quando as numerosas orações terminaram, a comitiva de nobres levantou-se para cantar o Cansim Falis; Simon contentou-se em pronunciar as palavras. Quando os enlutados se sentaram de volta, Ranessin começou a falar, surpreendendo a todos ao abandonar o nabbaneo para usar a língua campestre ocidental que John havia tornado a língua comum de seu reino.
— Deve-se lembrar... — entoou Ranessin. — Que quando o último prego foi cravado na Árvore da Execução, e nosso Senhor Jesuris foi deixado pendurado em terrível agonia, uma nobre mulher de Nabban chamada Pelippa, filha de um poderoso cavaleiro, o viu e seu coração se encheu de compaixão por Seu sofrimento. Ao cair da escuridão naquela Primeira Noite, enquanto Jesuris Aedon pendia moribundo e solitário, pois Seus discípulos haviam sido açoitados no pátio do Templo, ela veio até Ele com água, que Lhe deu mergulhando seu rico lenço em uma tigela de ouro e, em seguida, levando-a aos Seus lábios secos.
— Enquanto lhe dava de beber, Pelippa chorou ao ver a dor do Redentor. Ela disse: ‘Pobre homem, o que fizeram com você?’. Jesuris respondeu: ‘Nada que o pobre homem não tenha nascido para fazer.’.
— Pelippa voltou a chorar, dizendo: ‘É terrível o suficiente que já o tenham pendurado apenas por suas palavras, porém até o colocaram de cabeça para baixo para lhe causar maior humilhação.’, e Jesuris, o Redentor, disse: ‘Filha, não importa de que lado eu esteja pendurado, de cabeça para baixo ou de costas, ainda estou olhando diretamente para o rosto de Deus, meu Pai.’.
— Então... — o Leitor baixou o olhar para a assembleia. — Como foi dito por nosso Senhor Jesuris, assim podemos dizer que é com nosso amado John. As pessoas comuns na cidade abaixo de nós dizem que John, o Presbítero, não se foi, mas permanece para zelar por seu povo e seu Osten Ard. O Livro de Aedon promete que agora mesmo ele ascendeu ao nosso belo Céu de luz, música e montanhas azuis. Outros... Nossos irmãos, súditos de John em Hernystir, dirão que foi se juntar aos outros heróis nas estrelas. Não importa.
— Seja o que for, aquele que um dia foi o jovem John, o Rei, esteja ele entronizado em montanhas brilhantes ou campos estelares, sabemos disso: está feliz contemplando o rosto de Deus...
Quando o Leitor terminou de falar, com lágrimas nos olhos, e as orações finais foram recitadas, o grupo reunido deixou a capela.
Simon observou em silêncio reverente enquanto os criados do Rei John, vestidos de preto, iniciavam seus últimos serviços em seu nome, espreitando como besouros ao redor de uma libélula caída, vestindo-o com suas vestes reais e equipamentos de guerra. Sabia que deveria ir embora, aquilo era mais do que esgueirar-se e espionar; Beirava a blasfêmia, contudo não conseguia se mover. O medo e a tristeza haviam sido substituídos por uma estranha sensação de irrealidade. Tudo parecia um espetáculo ou uma peça teatral, os personagens movendo-se rígidos em seus papéis, como se seus membros estivessem congelando, descongelando e congelando novamente.
Os servos do rei morto o vestiram com sua armadura branca como gelo, prendendo suas manoplas dobradas em seu cinturão, no entanto deixando seus pés descalços. Vestiram uma túnica azul-celeste sobre o corselete de John e puxaram um manto carmesim brilhante sobre seus ombros, movendo-se o tempo todo tão devagar quanto vítimas de febre. Sua barba e cabelo foram presos em tranças de guerra, e o diadema de ferro que significava o domínio de Hayholt fora colocado em sua testa. Por fim, Noah, o idoso escudeiro do rei, trouxe o anel de ferro de Fingil que estivera escondendo; os sons repentinos de sua dor quebraram o silêncio envolvente. Noah soluçava tão amargamente que Simon se perguntou como conseguiria enxergar através das lágrimas para colocar o anel no dedo branco do rei.
Por fim, os besouros de pano preto içaram o Rei John de volta ao seu esquife. Envolto no manto dourado, foi carregado para fora do castelo pela última vez, três homens de cada lado. Noah seguiu atrás, carregando o capacete de guerra com crista de dragão do rei.
Nas sombras do sótão acima, Simon soltou o que pareceu o equivalente a uma hora de respiração presa. O rei havia ido.
***
Quando o Duque Isgrimnur viu o corpo do Preste John passar pelo Portão Nearulagh e a procissão da nobreza começou a se formar atrás dele, uma sensação lenta e envolta em névoa o dominou, como um sonho de afogamento.
“Não seja tão idiota, velho.” disse a si mesmo. “Ninguém vive para sempre, ainda que John parecesse capaz de consegui-lo.”
O engraçado era que, ainda quando estavam lado a lado no inferno estridente da batalha, as flechas dos Thrithings com penas negras sibilando como os próprios relâmpagos de Udun, Isgrimnur sempre soube que John morreria na cama. Ver o homem em guerra era ver um homem ungido pelo Céu, intocável e imponente, um homem que ria enquanto a névoa de sangue escurecia o céu. “Se John tivesse sido um rimmerio...” Isgrimnur sorriu para si mesmo. “Sem dúvida teria sido um urso de camisa. Todavia está morto, e isso é o mais difícil de entender. Olhe para eles, cavaleiros e lordes... Também pensaram que ele duraria para sempre. Assustados, a maior parte deles.”
Elias e o Leitor haviam tomado seus lugares logo atrás do esquife do rei. Isgrimnur, o Príncipe Josua e a Princesa Miriamele, filha única de Elias com seus belos cabelos louros, seguiam de perto. As outras famílias importantes também haviam tomado seus lugares, sem as habituais cotoveladas por posições favoráveis. Enquanto o corpo era carregado pela Trilha Real em direção aos promontórios, o povo comum seguia na retaguarda, uma enorme multidão silenciada e intimidada pela procissão.
Sobre um leito de largas varas compridas na base da Trilha Real, repousava o barco do rei, o Flecha do Mar, no qual, dizia-se, havia chegado à Erkynlandia há muito tempo, vindo das ilhas Westerling. Era apenas uma embarcação pequena, com não mais de cinco varas de comprimento; O Duque Isgrimnur ficou feliz ao ver que suas madeiras haviam sido laqueadas há pouco tempo, até brilharem sob a fraca luz do sol de ferruero.
“Deuses, como John amava aquele barco!” Isgrimnur se lembrava. A realeza lhe deixara pouco tempo para o mar, mas o Duque se lembrou de uma noite agitada, trinta anos ou mais atrás, quando John se encontrava tão forte que nada pôde evitar que ele e Isgrimnur, um jovem naquela época, tomassem o Flecha do Mar e partissem no Kynslagh açoitado pelo vento. O ar estava tão frio que doía. John, com quase setenta anos, gritava e ria enquanto o Flecha do Mar se sacudia nas altas ondas. Isgrimnur, cujos ancestrais haviam chegado à terra firme muito antes de sua época, agarrara-se com toda firmeza à borda da embarcação e rezara aos seus muitos deuses antigos e ao seu único novo.
Agora, os servos e soldados do rei deitavam o corpo de John no barco com suma ternura, baixando-o sobre uma plataforma que havia sido preparada para receber o esquife. Quarenta soldados da Guarda Real pegaram as longas varas e as colocaram nos ombros, erguendo o barco e levando-o para a frente.
O rei e Flecha do Mar conduziram a vasta companhia por meia légua ao longo dos promontórios acima da baía; finalmente, chegaram a Swertclif e ao túmulo. A tenda que o cobria havia sido removida, e o buraco parecia uma ferida aberta ao lado dos seis túmulos solenes e arredondados dos antigos senhores de Hayholt.
De um lado do buraco, erguia-se uma enorme pilha de turfa cortada e um monte de pedras e madeira bruta. Flecha do Mar foi depositado no outro lado do túmulo, onde a terra havia sido cavada em um ângulo raso. Quando o barco parou, as casas nobres de Erkynlandia e os servos de Hayholt se aglomeraram para colocar algum pequeno objeto no barco ou túmulo como um símbolo de amor. Cada uma das terras sob sua Suprema Custódia também havia enviado alguma peça valiosa, para que o Preste John pudesse levá-los consigo para o Céu... Um manto de seda preciosa da ilha de Risa, de Perdruin, uma Árvore de Pórfiro branco, de Nabban. O grupo de Isgrimnur trouxera de Elvritshalla, em Rimmersgardia, um machado de prata de fabricação Dverning com pedras preciosas azul-montanha no cabo. Lluth, o rei de Hernystir, enviara do Taig, em Hernysadharc, uma larga lança de freixo, toda incrustada de ouro vermelho e com uma ponta dourada.
***
O sol do meio-dia parecia estar muito alto no céu, e o Duque Isgrimnur teve a impressão de que embora recorresse livre pela cúpula azul-acinzentada do céu, seu calor permanecia.
O vento soprava mais forte, sibilando pelo topo do penhasco. Isgrimnur levava as botas de guerra pretas e surradas de John. Não conseguia encontrar forças em seu coração para olhar para os rostos brancos que espreitavam da multidão como vislumbres de neve na floresta densa.
Ao se aproximar do barco, olhou uma última vez para seu Rei. Embora mais pálido que o peito de uma pomba, John parecia tão severo, elegante e cheio de vida adormecida que Isgrimnur se pegou preocupado com seu velho amigo, deitado ao vento, sem cobertor. Por um momento, quase sorriu.
“John sempre dizia que tenho o coração de um urso e a inteligência de um touro.” Isgrimnur se repreendeu. “E se está frio aqui em cima, imagine como será para ele na terra congelada...”
Isgrimnur se movia com cuidado, contudo com agilidade, pela íngreme rampa de terra, usando uma das mãos para se firmar quando necessário. Ainda que suas costas doessem muito, sabia que ninguém suspeitava; não era velho demais para se orgulhar disso.
Tomando os pés de John, o Presbítero, um de cada vez, calçou as botas. Elogiou silenciosamente as mãos habilidosas da Casa de Preparações pela facilidade com que sua tarefa foi realizada. Sem olhar outra vez para o rosto do amigo, rapidamente pegou a mão e a beijou, depois se afastou, sentindo-se ainda mais estranho.
De repente, pareceu-lhe que não era a casca sem vida de seu rei que estava sendo condenada ao solo; A alma esvoaçou livre como uma borboleta recém-desabrochada. A flexibilidade dos membros de John, o rosto tão familiar em repouso, como o vira inúmeras vezes quando o rei lhe roubava uma ou duas horas de sono na calmaria da batalha, tudo isso o fazia sentir como se tivesse abandonado um amigo vivo. Sabia que John estava morto, segurara a mão do rei enquanto seus últimos suspiros lhe escapavam, ainda assim, sentia-se um traidor.
Estava tão possuído por seus pensamentos que quase esbarrou no Príncipe Josua, que se movia com dificuldades ao seu redor a caminho do túmulo. Isgrimnur ficou chocado ao ver que Josua carregava a espada de John, Cravo Brilhante, sobre um pano cinza.
“O que acontece aqui?” perguntou-se Isgrimnur. “O que ele está fazendo com a espada?”
Quando o Duque chegou à primeira fileira da multidão e se virou para observar, sua inquietação aumentou: Josua havia depositado Cravo Brilhante no peito do rei e cerrara as mãos de John em volta da empunhadura.
“Isso é loucura!” pensou o Duque. “Aquela espada é para o herdeiro do rei... Tenho certeza que John teria desejado que Elias a tivesse! E mesmo que Elias tivesse escolhido enterrá-la com o pai, por que ele mesmo não a coloca na sepultura? Que loucura! Ninguém mais estranha tal coisa?”
Isgrimnur olhou de um lado para o outro, no entanto não viu nada nos rostos ao seu redor além de tristeza.
Elias então desceu, passando lentamente pelo irmão mais novo, como um participante de uma dança majestosa, como de fato era. O herdeiro do trono curvou-se sobre a borda do barco. O que enviou com o pai ninguém pôde ver, mas todos notaram que, embora uma lágrima brilhasse na bochecha de Elias quando se virou, os olhos de Josua estavam secos.
O grupo então fez mais uma prece. Ranessin, com as vestes esvoaçando na brisa do lago, borrifou o Flecha do Mar com óleos sagrados. Em seguida, o barco foi baixado com cuidado pela pendente até o buraco, com os soldados trabalhando em silêncio com suas pesadas varas até que enfim estivesse a uma braça de profundidade na terra. Acima, as vigas foram erguidas em um grande arco e os operários colocaram as turfas, uma sobre a outra. Por fim, enquanto as pedras eram erguidas para completar o marco de John, o cortejo fúnebre se virou e retornou a passos lentos pelos penhascos acima do Kynslagh.
***
O banquete fúnebre naquela noite no grande salão do castelo não foi uma reunião solene, mas sim uma ocasião corajosa e alegre. John estava morto, é claro, porém sua vida fora longa, muito além da maioria dos homens, e deixara para trás um reino rico e em paz, e um filho forte para governar.
As lareiras estavam acesas; as chamas bruxuleantes lançavam sombras estranhas e saltitantes nas paredes enquanto servos suados entravam e saíam apressados. Os convivas agitavam os braços e gritavam brindes ao velho rei que se fora e ao novo que seria coroado pela manhã. Os cães do castelo, grandes e pequenos, latiam e remexiam nos restos descartados e fuçavam na palha que cobria o chão. Simon, pressionado a carregar uma das pesadas jarras de vinho de mesa em mesa, aos gritos e aos salpicos dos foliões barulhentos, sentia-se como se servisse vinho em algum inferno barulhento dos sermões do Padre Dreosan. Os ossos espalhados pelas mesas e estalando sob os pés poderiam ser os restos mortais de pecadores, atormentados e depois rejeitados por aqueles demônios risonhos.
Ainda não coroado, Elias possuía a aparência de um rei guerreiro. Sentou-se à mesa principal, cercado pelos jovens nobres que gozavam de seu favor: Guthwulf de Utanyeat, Fengbald, o Conde de Falshire, Breyugar de Westfold e outros. Cada um usando um pouco do verde de Elias sobre o negro de luto, cada um competindo para fazer o brinde mais alto, a piada mais áspera. O futuro rei presidia todos os seus esforços, recompensando os favoritos com suas gargalhadas. De vez em quando, inclinava-se para dizer algo a Skali de Kaldskryke, parente de Isgrimnur, que se sentara à mesa de Elias por convite expresso. Embora fosse um homem grande, com rosto de falcão e barba loira, Skali parecia um pouco sobrecarregado ao lado do príncipe herdeiro, especialmente quando o Duque Isgrimnur não recebera nenhuma honra semelhante. Algo que Elias disse então o atingiu; Simon viu o rimmerio sorrir, depois cair numa gargalhada e bater sua taça de metal contra a do príncipe. Elias, com um sorriso feroz, virou-se e disse algo a Fengbald; Que também se juntou à alegria.
Em comparação, a mesa à qual Isgrimnur estava sentado com o Príncipe Josua e vários outros era muito mais discreta, parecendo combinar com o humor das vestes cinzentas do príncipe. Apesar de os outros nobres se esforçarem ao máximo para puxar conversa, Simon pôde ver, ao passar, que as duas figuras principais não estavam interessadas. Josua olhava para o vazio, como se estivesse fascinado pelas tapeçarias que cobriam as paredes. O Duque Isgrimnur também não respondia à conversa à mesa, contudo seus motivos não eram mistério. Até Simon podia ver o olhar furioso do velho Duque para Skali Nariz Afiado e como suas mãos enormes e nodosas puxavam distraidamente a franja de sua túnica de pele de urso.
A ofensa de Elias a um dos cavaleiros mais fiéis de John não passou despercebida em outras mesas: alguns dos nobres mais jovens, embora corteses o suficiente para não fazer alarde, pareceram achar graça no desconforto do Duque. Sussurravam por trás das mãos, sobrancelhas erguidas para sinalizar a magnitude do escândalo.
Enquanto Simon cambaleava no lugar, espantado com o barulho, a fumaça e suas próprias observações confusas, uma voz soou de uma mesa nos fundos, xingando-o e pedindo mais vinho, incitando-o a voltar à vida agitada.
***
Mais tarde, naquela noite, quando Simon enfim encontrou a chance de descansar um momento em uma alcova sob uma das tapeçarias gigantes, notou que um novo convidado se sentara à mesa principal, espremido entre Elias e Guthwulf em um banquinho alto. O recém-chegado estava vestido com um escarlate nada fúnebre, com debrum preto e dourado enrolado na bainha de suas mangas volumosas. Ao se inclinar para sussurrar no ouvido de Elias, Simon o observava com um fascínio impotente. O homem era desprovido de cabelos, sem sobrancelhas ou cílios, no entanto suas feições eram as de um jovem. Sua pele, esticada sobre o crânio, era notavelmente pálida mesmo sob a luz alaranjada e cintilante; seus olhos eram fundos e tão escuros que pareciam apenas pontos negros brilhantes sob as sobrancelhas nuas. Simon conhecia aqueles olhos... Eles o fitaram com raiva por trás da capa com capuz do carroceiro que quase o atropelou no Portão Nearulagh. O garoto estremeceu e o encarou. Havia algo repugnante, mas cativante, naquele homem, como uma serpente.
— Ele tem uma aparência horrível, não é? — disse uma voz ao seu lado.
Simon se sobressaltou. Um jovem, de cabelos escuros e sorridente, estava na alcova atrás dele, com um alaúde de freixo aninhado em sua túnica cinza-pombo.
— Eu... Eu sinto muito! — gaguejou Simon. — Você me pegou de surpresa.
— Não era minha intenção. — riu o outro. — Só vim ver se poderia me ajudar um pouco.
O desconhecido tirou a outra mão de trás das costas e mostrou a Simon uma taça de vinho vazia.
— Oh... — disse Simon. — Sinto muito... Estava descansando, senhor... Sinto muito...
— Paz, amigo, paz! Não vim para lhe causar problemas, porém se não parar de se desculpar, ficarei chateado. Qual é o seu nome?
— Simon, senhor.
O garoto virou a jarra apressadamente e encheu a taça do homem. O estranho colocou a taça em um nicho, reajustou a pegada no alaúde e enfiou a mão na túnica para retirar outra taça, e a ofereceu com uma reverência.
— Aqui! — disse ele. — Eu ia roubar isto, Mestre Simon, contudo em vez disso acho que vamos beber à saúde um do outro e à memória do velho rei. E, por favor, não me chame de ‘senhor’, pois não o sou.
Ele bateu a taça contra o jarro até Simon servir novamente.
— Pronto! — disse o estranho. — Agora, me chame de Sangfugol... Ou, como o velho Isgrimnur diz, “Zong-vogol”.
A excelente imitação do sotaque do rimmerio pelo estranho trouxe um pequeno sorriso ao rosto de Simon. Depois de olhar furtivamente ao redor em busca de Raquel, pousou a jarra e virou a taça que Sangfugol lhe dera. Forte e amargo, o vinho tinto ainda escorria por sua garganta ressecada como chuva de primavera; quando abaixou a taça, seu sorriso se alargou.
— Você faz parte da... Comitiva do Duque Isgrimnur? — perguntou Simon, limpando os lábios com a manga.
Sangfugol riu. A alegria parecia aflorar com facilidade em seu rosto.
— Comitiva! Que palavra para um menino que serve vinho! Não, sou o harpista de Josua. Moro em sua fortaleza em Naglimund, no Norte.
— Josua gosta de música?
Por algum motivo, esse pensamento surpreendeu Simon, e se serviu de outra taça.
— Ele parece tão sério.
— E é sério... Todavia não significa que não goste da harpa ou alaúde. É verdade que são as minhas canções melancólicas que mais lhe agradam, entretanto há momentos em que pede a Balada do Tom das Três Pernas ou algo assim.
Antes que Simon pudesse fazer outra pergunta, ouviu-se uma explosão de alegria vindo da mesa principal. Simon virou-se e viu que um bêbado Fengbald havia derrubado um jarro de vinho no colo de outro homem, que torcia a camisa, enquanto Elias, Guthwulf e os outros nobres zombavam e gritavam. Apenas o estranho careca de túnica escarlate se mantinha distante, com olhos frios e um sorriso tenso, mostrando os dentes.
— Quem é esse? — Simon voltou-se para Sangfugol, que havia terminado seu vinho e segurava o alaúde junto ao ouvido, dedilhando as cordas enquanto girava delicadamente as cravelhas. — Quero dizer, o homem de vermelho.
— Sim. — disse o harpista, — Eu te vi observando-o quando subi. Um sujeito assustador, não é? Aquele é Pryrates, um sacerdote nabbano, um dos conselheiros de Elias. Dizem que é um excelente alquimista, embora pareça bastante jovem para o ser, não é mesmo? Sem mencionar que não parece uma prática adequada para um sacerdote. Na verdade, se ouvir com atenção, poderá ouvir também sussurros de que é um feiticeiro: um praticante da magia negra. Se prestar mais atenção ainda...
Nesse momento, como se quisesse demonstrá-lo, a voz de Sangfugol baixou drasticamente; Simon teve que se inclinar para a frente para ouvir. Percebeu, enquanto cambaleava de leve, que acabara de beber uma terceira taça de vinho.
— Se ouvir com muita, muita atenção... — continuou o harpista. — Ouvirá as pessoas dizerem que a mãe de Pryrates era uma bruxa, e seu pai... Um demônio!
Sangfugol fez soar uma corda de alaúde, e Simon deu um pulo para trás, surpreso.
— Mas, Simon, não se pode acreditar em tudo o que ouve... Ainda mais de menestréis bêbados. — concluiu Sangfugol com uma risada e estendeu a mão. Simon a encarou, com expressão estúpida.
— É para apertar, meu amigo. — sorriu o harpista. — Gostei de conversar com você, porém temo que precise retornar à mesa, onde outros aguardam impacientes que os divirta. Adeus!
— Adeus... — Simon agarrou a mão de Sangfugol e observou o harpista atravessar a sala com a agilidade de um bêbado experiente.
Quando Sangfugol voltou a se sentar, os olhos de Simon pousaram em duas das criadas encostadas na parede do corredor, do outro lado da sala, abanando-se com seus aventais e conversando. Uma delas era Hepzibah, a novata; a outra era Rebah, uma das ajudantes de cozinha.
Simon notou que o sangue lhe começava a ferver. Seria tão fácil atravessar a sala e falar com elas. Havia algo naquela Hepzibah, um atrevimento nos olhos e na boca quando ria... Sentindo-se mais do que um pouco tonto, adentrou a instância, o rugido de vozes elevando-se ao seu redor como uma inundação.
“Um momento, um momento...” pensou, sentindo-se corar de repente e assustado. “Como posso só chegar e falar, elas não saberão que as estive observando? Não saberiam...”
— Ei, seu preguiçoso! Traga-nos mais um pouco desse vinho!
Simon se virou e viu o conde Fengbald, de rosto vermelho, acenando com uma taça da mesa do rei. No corredor, as criadas se afastavam. Simon correu de volta à alcova para pegar seu jarro e o tirou de um emaranhado de cães brigando por uma costeleta. Um filhote, jovem e magricelo, com uma mancha branca no focinho marrom, ganiu lamentosamente na periferia da multidão, incapaz de competir com os cães maiores. Simon encontrou um pedaço de pele gordurosa em uma cadeira abandonada e jogou para o cachorrinho. Este abanou o rabo enquanto engolia o petisco, depois seguiu Simon nos calcanhares enquanto ele carregava o jarro pela sala.
Fengbald e Guthwulf, o conde de Utanyeat, de queixo comprido, estavam envolvidos em uma espécie de luta de pulsos, com as adagas desembainhadas e cravadas no tampo da mesa, uma de cada lado dos braços dos combatentes. Simon contornou a mesa o mais agilmente possível, servindo vinho do jarro pesado nas taças dos espectadores que gritavam e tentando não tropeçar no cachorro, que se lançava entre seus pés. O rei observava a disputa entretido, mas tinha seu próprio pajem ao seu lado, então Simon deixou sua taça de lado. Serviu o vinho de Pryrates por último, evitando olhar para o sacerdote, porém não pôde deixar de notar o cheiro estranho do homem, uma mistura inexplicável de metal e especiarias excessivamente doces. Recuando, viu o cachorrinho fuçando na palha perto das botas pretas e brilhantes de Pryrates, na trilha de algum tesouro caído.
— Venha aqui! — Simon sibilou, recuando ainda mais e batendo no joelho, contudo o cão não lhe deu atenção. Começou a cavar com as duas patas, as costas batendo na bainha da túnica vermelha do sacerdote. — Venha! — voltou a sussurrar Simon.
Pryrates virou a cabeça para olhar para baixo, o crânio brilhante girando devagar em seu longo pescoço. Ergueu o pé e bateu com a bota pesada nas costas do cão, um movimento rápido e compacto, concluído em um piscar de olhos. Ouviu-se um estalo de osso estilhaçado e um guincho abafado; o cachorrinho se contorceu desamparado na palha até que Pryrates levantou o calcanhar outra vez e esmagou seu crânio.
O sacerdote olhou desinteressado para o corpo por um momento, depois ergueu o olhar, seus olhos pousando no rosto horrorizado de Simon. Aquele olhar negro, implacável, despreocupado... Se apoderou dele. Os olhos inexpressivos e mortos de Pryrates voltaram-se para o cachorro e, quando se dirigiram para Simon, um sorriso lento se desenhou em sua face.
“O que você pode fazer a respeito, garoto?” dizia o sorriso. “E quem se importa?”
A atenção do sacerdote voltou-se para a mesa; Simon, livre, deixou cair o jarro e cambaleou para longe, procurando um lugar para vomitar.
***
Era pouco antes da meia-noite; Metade dos foliões cambaleou ou foi carregada para a cama. Era duvidoso que muitos deles estivessem presentes para a coroação do dia seguinte. Simon estava servindo na taça de um convidado bêbado o vinho bastante aguado, que era tudo o que Peter Tigela Dourada serviria àquela hora tardia, quando o Conde Fengbald, o único remanescente do grupo do rei, entrou cambaleante no salão vindo do refeitório. O jovem nobre estava desgrenhado e suas calças estavam meio desabotoadas, todavia exibia um sorriso beatífico no rosto.
— Venham todos para fora! — ele gritou. — Saiam agora! Venham ver!
O Conde cambaleou de volta para a porta. Aqueles que conseguiram se levantaram o seguiram, dando cotoveladas e gracejando, alguns cantando embriagados.
Fengbald estava na área comum, com a cabeça inclinada para trás, os cabelos negros soltos caindo nas costas da túnica manchada, enquanto olhava para o céu. Seu dedo apontava; Um por um, os rostos dos seguidores se viraram para olhar.
Do outro lado do céu, uma forma estranha estava pintada, como uma ferida profunda que jorrava sangue contra a escuridão da noite: um grande cometa vermelho, cruzando o céu de norte a sul.
— Uma estrela ardente! — alguém gritou. — Um presságio!
— O velho rei está morto, morto, morto! — gritou Fengbald, brandindo sua adaga no ar como se desafiasse as estrelas a descerem e lutarem. — Vida longa ao novo rei! — vociferou. — Uma nova era começou!
Aplausos ecoaram, e alguns dos presentes bateram os pés e uivaram. Outros começaram uma dança alegre e risonha, homens e mulheres de mãos dadas enquanto giravam em círculo. Acima deles, a estrela vermelha brilhava como uma brasa fumegante.
Simon, que havia seguido os foliões para fora para ver a causa da confusão, voltou-se para o salão; Os gritos dos dançarinos ecoavam atrás. Ele ficou surpreso ao ver o Doutor Morgenes parado nas sombras da muralha do pátio. O ancião, envolto em um manto pesado contra o ar frio, não notou seu aprendiz... Ele também estava olhando para a abóbada celeste, o risco escarlate atravessando-a. No entanto, ao contrário dos outros, não havia embriaguez ou alegria em seu rosto... Parecia amedrontado, pequeno e tomado pelo frio.
“Parecia...” pensou Simon. “Um homem sozinho no deserto ouvindo o canto faminto dos lobos...”
Notas:
1. “Duos wulstei” é uma expressão de Nabban que significa “Se Deus quiser”.
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