domingo, 16 de novembro de 2025

Slayers — Volume 13 — Capítulo 55

Capítulo 55: Os mazokus agem, seus objetivos desconhecidos
















Era uma vez, há muito tempo houve uma grande batalha. Ninguém escapou do envolvimento... Nem deuses, nem mazokus, nem qualquer ser vivo.

Nossa história começa em uma época de lendas distantes, quando Deus e o Lorde das Trevas entraram em conflito pela continuidade da existência do nosso mundo. Deus partiu, deixando para trás quatro avatares; o Lorde das Trevas foi dividido em sete partes e selado, sobrevivendo apenas cinco de seus servos. Esse impasse durou até um milênio atrás, quando um dos sete fragmentos do Lorde das Trevas reviveu para lutar contra um dos avatares de Deus. As pessoas chamaram isso de Guerra das Encarnações.

E agora, de acordo com o ancião dragão Milgazia, a mesma guerra estava prestes a recomeçar.

———

A chuva caía cada vez mais forte, formando poças em solo antes seco. Os aldeões resmungavam enquanto voltavam para casa, chapinhando na água.

A porta de um pequeno restaurante na esquina da cidade se abriu com um som suave.

“Phew... Que surpresa!”

Sacudi a água da minha capa enquanto me dirigia para a mesa mais distante.

Quando a elfa Mephy nos avisou que a chuva estava a caminho, viemos para esta aldeia em busca de um lugar para conversar em particular. Como prometido, o aguaceiro começou abruptamente assim que chegamos à cidade.

Era tarde demais para almoçar a essa hora e cedo demais para jantar. Talvez por causa desse horário inconveniente, nós seis éramos os únicos clientes no local. Isso nos agradou bastante, é claro... Milgazia em forma humana e vestindo roupas que lembravam armadura de couro já era ruim o suficiente, porém a elfa Mephy em sua curiosa armadura branca de fato se destacaria como um dedo mindinho em uma multidão. Todavia, o mais importante, não podíamos falar sobre mazokus tentando relembrar a Guerra das Encarnações com outras pessoas por perto.

Sentamo-nos à mesa no fundo da loja. Uma garçonete veio e eu, Gourry, Luke e Mileena fizemos alguns pedidos leves.

“E os outros dois?” ela insistiu.

Depois de olharem para os cardápios, Mephy e Milgazia disseram...

“Repolho desfiado.”

“Só água.”

“Vocês são os piores clientes do mundo.” comentei. A garçonete também pareceu um pouco indignada ao se retirar para a cozinha.

“Ao contrário dos humanos, eu me recuso a participar da prática bárbara de matar outros animais para me alimentar.” anunciou Mephy em tom seco. Uma veia saltou na testa de Luke. Contudo antes que este pudesse dizer qualquer coisa...

“Você é só uma comilona exigente. Seu pai também acha isso muito frustrante.” apontou Milgazia.

“Tio Milgazia! Não conte pra eles!” protestou a elfa em um sussurro áspero.

Acho que até os elfos têm pessoas que tentam esconder seus hábitos alimentares exigentes atrás de princípios...

“Diz o cara que só pediu água.” completou Luke.

“Os dragões perdem a necessidade de comer muito depois de atingirem uma certa idade. Em vez disso, absorvemos as energias do ambiente.” respondeu Milgazia.

“Dragões? E-Ei, espere um minuto!”

Ah, é verdade... Ainda não contamos para o Luke e a Mileena.

“Esqueci que vocês não se conhecem. Vamos começar as apresentações.”

Eu, Gourry, Luke e Mileena demos a volta na mesa enquanto a garçonete trazia nossos pedidos.

“Sou Milgazia, o líder dos dragões do Pico dos Dragões, nas Montanhas Katart. Como vocês já devem ter percebido, a minha forma que veem agora é apenas um disfarce temporário criado por meio de magia de transformação.”

“Aha...” Luke sussurrou baixinho e lançou um olhar para Gourry. “É por isso que o chamou de lagarto gigante.”

“Me perdoe por repetir, no entanto, por favor, não me chame de lagarto gigante.”

“Ahhh! Desculpe, desculpe!” Luke pediu desculpas desesperadamente ao perceber que Milgazia havia se aproximado mais.

“Então...” a última das apresentações, feita pela quieta Mileena (que estava ignorando toda a algazarra), veio da elfa à mesa.

“Eu sou Memphys. Memphys Rhinesword.”

Um silêncio pairou sobre o grupo por um tempo.

“E...?” incentivei-a, expectante.

“E o quê?” ela respondeu sem sequer me lançar um olhar.

Grrr...

“E, uh... Qual é a sua, exatamente?”

“É óbvio, sou uma elfa. Tenho mesmo que explicar algo assim?”

Grrrrr!

“É justo, mas... Escuta, Mephy, quando está tentando ser legal com as pessoas, é uma questão de cortesia se abrir um pouco sobre si mesma, certo? Coisas básicas como ‘Gosto de usar armaduras estranhas’ ou ‘Sou uma idiota exigente com comida, então só como repolho’, sabe?” sorri.

Twitch! Twitch! Minha provocação fez uma veia saltar em sua testa.


“Você vai me chamar de Memphys, não Mephy! Não gosto que meros humanos me chamem pelo meu apelido! Embora imagino que fornecer um pouco mais de informação tornaria nossas interações mais harmoniosas...”

“Certo? Hihihi...”

“Sabia que mesmo em noites sem lua, os elfos conseguem enxergar no escuro?”

“Pare com isso agora, Mephy.”

“Mas tio...” Memphys começou, contrariada.

Milgazia a ignorou e soltou um suspiro suave.

“Conheço a família dela há bastante tempo. Os elfos também perceberam que algo está errado e estão investigando, então a trouxe por conta própria.” sua explicação casual sobre a presença dela ali fez com que a sombra do medo sobre meu coração se intensificasse.

“Em outras palavras... Os elfos concordam que os eventos recentes sugerem outra Guerra das Encarnações?” perguntei.

Após um período de silêncio, Milgazia devolveu um firme aceno. Ele então começou a me descrever o que tinha visto mil anos atrás.

Uma atmosfera de instabilidade pairava sobre o mundo. Vários estados começaram a reforçar seus exércitos, num gesto que parecia um preparo para a ação, e escaramuças ao longo das fronteiras eram frequentes. Não foi preciso muita provocação para que esses pequenos conflitos se transformassem em uma guerra declarada... Uma guerra que arrastou várias nações para o seu conflito.

Por um tempo, ninguém percebeu... Nem mesmo os elfos, que naquela época ainda coexistiam com os humanos até certo ponto, porém em meio a toda a luta e ao caos, a atividade de mazokus começou a se infiltrar... E, pouco a pouco, foi se intensificando. Quando os envolvidos enfim se deram conta do que estava acontecendo, já era tarde demais. As nações estavam exaustas, e a maioria de seus aspirantes a heróis já havia caído em batalha pelas mãos de outros humanos.

Assim, os demônios se espalharam desenfreadamente pela natureza, aterrorizando qualquer um que tivesse a sorte de sobreviver à guerra. Inúmeras vidas foram perdidas. Inúmeras nações ruíram. Os dragões, que haviam escolhido permanecer neutros no conflito entre os humanos, por fim perceberam que havia uma força consciente guiando esses eventos. Ocorreu-lhes que até mesmo a onda inicial de militarismo poderia ter sido incitada por mazokus que se infiltraram nos centros de poder das diversas nações.

Assim, dragões, elfos, anões e humanos... Todos os seres vivos trabalharam juntos para expurgar a região selvagem infestada de demônios. Contudo, como se viu, suas desovas em massa eram apenas uma distração. Enquanto todos os olhares estavam voltados para a região selvagem, os cinco tenentes do Lorde das Trevas se reuniram nas Montanhas Katart, que na época ainda faziam parte do território sagrado de Aqualord Ragradia. Os tenentes destruíram o templo e mataram os sacerdotes de Aqualord, evitando o conflito direto com o grande deus, transformando gradualmente Katart em um reino sem vida.

Aqualord era o seu real alvo. Quando o povo percebeu isso, o exército unido que os dragões haviam reunido partiu para as Montanhas Katart para ajudar Aqualord... E então o Lorde das Trevas apareceu.

“Hã?” me vi interrompendo com uma reação estúpida a história de Milgazia. “O Lorde das Trevas apareceu? De onde veio?”

“Não sabemos.”

Qual é... Fiquei bastante surpresa com sua resposta desdenhosa.

“Ninguém sabe o que aconteceu. Ninguém que estava lá para testemunhar sua chegada sobreviveu para contar a história. Ele estava apenas escondendo sua presença até aquele momento, ou o selo foi quebrado de alguma forma? Seja como for, Olhos de Rubi Shabranigdu surgiu de repente nas Montanhas Katart e, com isso, qualquer chance que tivéssemos de vitória desapareceu. O Sacerdote do Mestre do Inferno Fibrizo já havia sido destruído, todavia meu povo foi dizimado por Xellos, o Sacerdote da Grande Besta, e nosso corpo de elite de elfos, anões e humanos estava dividido, incapaz de trabalhar em conjunto. Estávamos conseguindo nos manter na luta, entretanto o renascimento de Shabranigdu extinguiu nossa última esperança. O resto... É como dizem as lendas. O Dragão do Caos Gaav caiu, depois o General do Mestre do Inferno... E então Aqualord morreu enquanto selava o ressuscitado Shabranigdu no gelo. Quanto há como exatamente essas batalhas se desenrolaram, ninguém presente sobreviveu para contá-las. É entre os deuses e os mazokus.”

Por um tempo, nenhum de nós disse nada. Todos, exceto eu e Gourry, nem sequer tocaram na comida enquanto ouviam em silêncio.

“Ouvi dizer que o Reino de Dils está fortalecendo seu exército. Também houve surtos massivos de demônios nos últimos tempos. Com o Mestre do Inferno Fibrizo desaparecido e as forças dos mazokus enfraquecidas, só há um motivo para se comportarem dessa maneira: vingar-se, recriando a Guerra das Encarnações. Nós e os elfos concordamos nesse ponto.”

“E quanto aos anões?” Mileena interrompeu. Era uma pergunta natural. Afinal, Milgazia acabara de nos dizer que eles eram nossos aliados na Guerra das Encarnações original.

Sua resposta veio acompanhada de uma carranca.

“Não os contatei. Seu número diminuiu desde a Guerra das Encarnações. Não quero arrastá-los para esta batalha e, para ser honesto, não acho que pudessem ajudar muito mesmo se conseguíssemos sua ajuda. Além do mais, só porque nós, dragões e elfos, concordamos sobre a causa não significa que estejamos certos. É perfeitamente possível que os mazokus apenas queiram que pensemos dessa forma. É por esse motivo que vários grupos de elfos e dragões, incluindo nós, foram enviados para investigar. Estávamos investigando uma grande presença demoníaca que detectamos em Dils.”

“E foi aí que nos encontraram?”

Milgazia assentiu em resposta. Então, como se estivesse se lembrando de algo, disse.

“Isto me lembra. Dois anos atrás, senti uma presença demoníaca poderosa semelhante...”

Memphys também assentiu.

“Sim, um de altíssimo escalão. Nós também sentimos. Nos deixou um tanto alvoroçados, contudo antes que pudéssemos fazer alguma coisa a respeito... Em menos de um dia, na verdade... A presença só desapareceu. Fico imaginando o que teria sido aquilo...” ela balançou um pouco a cabeça e levou o copo d’água aos lábios.

“Ei, Lina...” chamou Gourry, olhando na minha direção quando a conversa chegou a uma pausa. Conhecendo-o, imaginei que fosse perguntar algo estúpido e totalmente sem relação com o assunto, no entanto... “Dois anos atrás, hein? Acha que eles estão falando da vez em que derrotamos aquele carinha, o Lorde das Trevas Shabby?”

Blurgh! O jeito casual com que Gourry soltou essa bomba provocou uma reação coletiva de repulsa de Milgazia, Memphys, Luke e Mileena.

“Ei! Você não pode só jogar uma bomba dessas na mesa!” gritei.

Milgazia continuou engasgando com a água, e tudo o que Memphys conseguia fazer era gaguejar. Repetindo ‘Espera, espera, espera’ sem parar.

“E-Espera aí... Está falando de Olhos de Rubi Shabranigdu? Não é possível!” Luke declarou com um olhar incrédulo.

Por sua vez, Mileena tentava parecer corajosa, apesar de ter um pouco de suor escorrendo pela testa.

“Acho que ele não é do tipo que mente...”

“É, verdade... Duvido que tenha inteligência o suficiente para mentir. Então, como diabos o derrotaram?”

“Hum, bem...” com um olhar rápido para Milgazia e Memphys, que agora também me encaravam, cocei a cabeça hesitante. “Talvez eu tenha lançado um feitiço minúsculo e incompleto do Senhor dos Pesadelos na Espada da Luz, que acabou sendo a arma da Estrela Negra, Gorun Nova, hehe!”

Ao ouvir aquilo, Memphys e Milgazia congelaram de vez. Acho que eles sabem uma coisa ou outra sobre Estrela Negra e o Senhor dos Pesadelos, né? Luke e Mileena, porém, não pareciam saber de nada. Apenas franziram a testa.

“Não sei o que tudo isso significa, mas... Imagino que seja algo sério, né?” ele resmungou.

“É mais do que sério!” Memphys gritou em resposta. “O que estavam pensando? Vocês sequer imaginam que poderiam ter destruído o mundo inteiro?”

Seu jeito de falar havia mudado completamente, talvez por causa da histeria.

“Bem... Naquela época eu não sabia, não...”

“O que não significa que podem usar feitiços quando não entendem as consequências! Juro, esses humanos...”

“Ei, vamos lá. Isso tudo é passado!” insisti, sem querer olhar para trás.

“Você nem parece arrependida!” Memphys gritou, ainda mais agitada agora. Milgazia, por outro lado, permaneceu congelado ao lado dela.

Hmm... Acho que não devo contar a eles sobre aquela vez em que deixei o Senhor dos Pesadelos possuir meu corpo para matar o Mestre do Inferno! Hehe!

“Isso não tem nada a ver com o problema em questão.” disse Mileena em um tom seco para conter a fúria de Memphys. “O que precisamos focar é no que acontece daqui para frente, certo?”

“Tem razão... Enfim, Mephy, podemos repreendê-la em outra hora. Por agora...” disse Milgazia, finalmente se recuperando, embora sua voz seguisse estando trêmula.

“E-Entendido, tio Milgazia.” Memphys assentiu com relutância em resposta.

Milgazia olhou ao redor do grupo mais uma vez.

“Vocês mencionaram que também derrotaram a General Sherra. Mas se o objetivo dos mazokus for de fato reiniciar a Guerra das Encarnações, é provável que isto não tenha frustrado seus planos. Se estiverem dispostos... Gostaria de pedir a sua ajuda, humanos.”

———

O som da chuva era a única perturbação na noite silenciosa. Estávamos hospedados na pousada solitária da aldeia. Ou o bar do primeiro andar não tinha muito movimento, ou o aguaceiro havia desanimado os ânimos, porque a última conversa cessou no início da noite. Quase não havia ninguém por perto quando fomos jantar...

Whew... Pendurei minha capa e suspirei antes de me jogar na cama. Não consigo evitar a sensação de que me meti numa grande encrenca desta vez... Pensei comigo mesma, olhando com os olhos vidrados para o abajur pendurado no teto.

No fim das contas, não conseguimos recusar o pedido de ajuda de Milgazia em sua investigação. Luke reclamou muito sobre trabalhar de graça, porém Milgazia explicou que, caso a Guerra das Encarnações acontecesse de novo, dinheiro seria a última coisa na mente de todos depois que o Lorde das Trevas ressuscitado aniquilasse toda a criação... Incluindo ele e Mileena. Assim, sentindo o olhar de sua parceira queimando sua cabeça, o mercenário falastrão enfim concordou em participar.

Dito isso, não estávamos exatamente fazendo o trabalho de graça. Milgazia disse que nos dariam algumas armas desenvolvidas pelos dragões e elfos em troca de nossa ajuda. Memphys não pareceu muito entusiasmada com essa parte, todavia Milgazia insistiu que aumentaria o potencial de combate do nosso lado e a discussão foi encerrada.

Em outras palavras, aquelas armas dracônicas e élficas eram tão boas quanto as nossas! Comecei a babar um pouco só de pensar na ideia. Os elfos já estavam muito à frente dos humanos em termos de poder mágico e conhecimento, e tinham feito essas belezinhas para lutar contra os mazokus! Elas deviam ser muito melhores do que uma espada mágica ou lâmina mística comum! Nós as compraríamos para nós mesmos e, assim que tudo estivesse resolvido, eu as pesquisaria a fundo e as venderia por uma fortuna!

...

Claro, chegar a esse ponto de ‘tudo resolvido’ não seria fácil. Afinal, estávamos arrumando briga com mazokus... E não com mazokus insignificantes do dia a dia. Toda essa confusão envolvia figurões como a General de Dinastia fazendo recados. O que significava que o verdadeiro mentor devia ser Dinasta Graushera, um dos tenentes do Lorde das Trevas. Se tudo desse errado, poderíamos nos ver enfrentando toda a raça demoníaca.

O único ponto positivo que conseguia ver em toda essa confusão era que nosso objetivo final não era derrotá-los explicitamente. Estávamos apenas tentando descobrir o que estavam tramando. Claro, era quase uma garantia de que iríamos nos enfrentar em algum momento.

...

Hrm, pensando bem, talvez tenha sido um pouco imprudente. Contudo Milgazia estava certo. Se o Lorde das Trevas estivesse prestes a encarnar, alguém tinha que lidar com a situação. Da última vez que lutei contra o Lorde das Trevas, todos os elementos se alinharam perfeitamente para que eu o derrotasse. Não havia garantia de que teria a mesma sorte uma segunda vez. O que significava que tínhamos que impedir que acontecesse, se possível. Eu teria que ser muito egoísta para só virar dizer: ‘Nossa, isso não é da minha conta! Cuide-se, Mestre Milgazia!’.

Preciso dar uma mão. No entanto não quero. Esses pensamentos giravam e rodopiavam na minha mente, até que... Hã?

O som de água pingando interrompeu meu devaneio. Não era chuva. Vinha do outro lado da parede oposta à minha janela... Do corredor da pousada.

Um vazamento no telhado? Não... Não estaria chegando até o meu quarto se fosse, estaria? Deve ser...

Um arrepio sinistro percorreu minha espinha. Coloquei minha capa de volta, saquei minha espada curta e silenciosamente me dirigi à porta. Encostei o ouvido nela, embora não consegui ouvir nenhum passo do outro lado. Mesmo assim, o gotejar sem dúvida vinha se aproximando. Se havia algo lá fora, havia uma chance de não ter nada a ver comigo... Entretanto, ao mesmo tempo, as chances eram igualmente grandes de que tivesse, o que significava que precisava dar uma olhada.

Plip... Plip...

Concentrando-me no ritmo do gotejar, calculei o tempo e... Wham! Abri a porta com um estrondo para saltar para o corredor!

Plip... Plip... Gotas de água respingaram no chão.

Olhei para o longo corredor reto, mal iluminado pela luz alaranjada dos lampiões. Não vi ninguém, mas...

“?”

Algo no canto do meu olho chamou minha atenção. Entre as sombras projetadas pelos lampiões...

O teto?

Olhei para cima e... Ghhhk! Cerrando os dentes para conter um grito, dei meio passo para trás. Parcialmente obscurecida pela escuridão, a cabeça de uma mulher pendia de cabeça para baixo do teto fuliginoso. Ela tinha longos cabelos negros e ondulados e um rosto atraente com olhos vidrados e arregalados. Água escorria de seus lábios pálidos e entreabertos, pingando em seus cabelos e no chão.


Plip...

Do toco de seu pescoço cresciam... Raízes? Vasos sanguíneos? Independente do nome que se desse àquelas protuberâncias, elas se contorciam e se retorciam enquanto se agarravam ao teto. Claro, aquela criatura não estava nem viva nem morta. Só podia ser uma coisa: um mazoku.

“Li... Na... In... Verse?” ela balbuciou de suas profundezas escuras, como se estivesse falando debaixo d’água.

No momento em que ouvi essas palavras, comecei a entoar um feitiço. Obviamente, esse mazoku não era um amigo meu. Então, se sabia meu nome... Sim, éramos inimigas.

Mas antes que pudesse terminar meu feitiço, senti uma onda de malícia! Em resposta, saltei para o lado. Quando o fiz... Fwwwsh! A água que escorria da boca do mazoku se transformou em uma torrente que invadiu o lugar onde eu estava.

Geh! Que ataque nojento! Enquanto franzia a testa, ouvi algo cair no chão. Quando olhei para ver o que era, vi a metade superior da porta que deixei aberta caindo no chão. Ela havia sido cortada ao meio na diagonal.

Merda... Essa torrente tem mais poder de corte do que a maioria das espadas.

Claro, saber disso me deu várias maneiras de evitá-la! E se derrotasse esse mazoku com um único golpe, não precisaria me preocupar com mais nada!

“Zellas Bullid!” a bola de luz que produzi disparou direto para a cabeça pendurada. Algumas de suas raízes se desprenderam em poucos instantes do teto e agarraram a bola de luz que se aproximava!

Hah! Patético! Meu feitiço escolhido invocava o poder da Grande Besta. Bloqueá-lo exigiria algo muito mais poderoso do que isso.

Pop! A luz atravessou sem dificuldade as raízes que a envolviam e atingiu a cabeça em cheio! Sploosh! Seu crânio explodiu, encharcando a área ao redor com água. As raízes ainda presas ao teto se contraíram e... Blurble... Imediatamente, uma nova cabeça brotou delas!

Gehhh! O que é essa coisa?

Olhando para mim em choque, sua boca se escancarou e... Vwum! Um clarão prateado obliterou a cabeça mais uma vez, espalhando outro jato de água.

“Gourry!”

“Ela é bonita, mas de um jeito estranho... Amiga sua, Lina?”

Ali, discretamente, estava meu bom e velho amigo espadachim loiro, segurando sua espada mágica sem nome em uma das mãos. Ele estaria com uma aparência bem legal... Se não tivesse colocado seu peitoral por cima do pijama.

“Não posso dizer que a conheço, embora pareça me conhecer. Cuidado quando ela cuspir água.”

“Entendi... Uh-oh!”

“Erk!”

No meio da nossa conversa, nós dois demos um gritinho. O mazoku tinha regenerado a cabeça... Dessa vez, cinco de uma vez. Eu sabia que mazokus eram desumanos, porém ver um enxame de cabeças penduradas, todas pingando água e me encarando com olhos vidrados, era perturbador.

“O quê... Agora tem um monte delas!”

“Acho que estavam em promoção! Ao menos agora sabemos que as cabeças não são o seu ponto fraco!” gritei antes de lançar um feitiço.

Ao mesmo tempo, Gourry avançou contra o inimigo. Fwwwshwwwshwwwsh! Torrentes de água jorraram de suas múltiplas bocas, cortando o chão e as paredes. Continuei meu encantamento enquanto desviava desesperadamente. Quanto a Gourry...

“Hyah!”

Vwoosh! Slash! Ele desviou e cortou o caminho através das torrentes enquanto se aproximava. Então, com um poderoso golpe de sua espada, decepou todas as cabeças, neutralizando seus meios de ataque.

“Lina!” Gourry chamou, saltando para trás enquanto me fazia um sinal.

Boa, cara! Eu tinha acabado de terminar meu encantamento, então o lancei..

“Explosão de Cinzas!”

Meu alvo? Atrás de mim!

A coisa preta que o feitiço produzia destruiria tudo o que atingisse. Pelo menos, era o que deveria fazer.

Vwip. Contudo, a escuridão que se espalhava se uniu em um ponto e desapareceu... Dentro da palma da mão de um mazoku recém-aparecido.

Este parecia humano, com proporções masculinas, no entanto em vez de uma cabeça, tinha um emaranhado de chifres. Senti sua presença e fingi atacar o Cabeça-de-Raiz para pegar o novato desprevenido... Pena que este não foi burro o suficiente para cair nesse truque.

“Por que você está brincando, Mianzo? Cumpra suas ordens de uma vez.” ordenou o mazoku com chifres, imperturbável pelo meu ataque. Não sei de onde vinha sua voz, já que tinha chifres onde deveria haver uma boca... Contudo, ei, o cara é um mazoku. Eles não precisavam de bocas para falar.

“Então... Suponho que vou usar todas as minhas armas... Tselzonarg...” Cabeça-de-Raiz... Ou melhor, o agora mazoku bola de raízes sem cabeça, Mianzo, respondeu.

Ei, espere um minuto! Sei o que acontece quando um mazoku ‘usa todas as suas armas’!

No entanto antes que Gourry ou eu pudéssemos reagir... Kra-boooooooosh! Um clarão repentino destruiu a pousada.

———

“Ugh...”

Coloquei minha cabeça para fora de trás dos escombros de madeira e pedra que haviam caído ao meu redor. A chuva estava caindo forte.

Para onde eles foram? Rapidamente examinei meus arredores e os avistei. Ambos os mazokus estavam parados na chuva torrencial. Mianzo havia assumido uma forma semelhante a um emaranhado de hera crescendo do chão, com a cabeça de uma mulher ainda pendurada de cabeça para baixo no ponto médio do aglomerado. Os dois não estavam olhando (se é que se podia chamar aquilo de olhar) para mim. Estavam encarando...

“O quê... O que um dragão está fazendo aqui?” Tselzonarg parecia abalado.

“Preciso explicar?” Milgazia disse com ousadia. “Achou mesmo que deixaríamos seus planos demoníacos impunes?”

“Nesse caso... Terei que deixar as brincadeiras de lado.” disse Mianzo com a voz abafada.

Em seguida... Vrrrm! O corpo de Mianzo ondulou com um som semelhante ao bater de asas de inseto. Naquele mesmo instante, inúmeras pequenas luzes brilharam ao redor de Milgazia. Um ataque de teletransporte? Não! Um ataque direto do plano astral? Nem mesmo um dragão sobreviveria...

“Isso não vai funcionar.”

Contrariando meus piores temores, Milgazia apenas respondeu com um leve aceno de mão.

Sim, foi o que eu disse. Apenas acenou com a mão. Foi tudo que fez. Mas com esse gesto sozinho...

“O quê... O quê?” Mianzo estremeceu um pouco e soltou um gemido de surpresa.

Aquilo era... Eles estavam se enfrentando puramente no plano astral, me deixando como espectadora? Uma luta mortal por suas próprias almas estava acontecendo em um nível que os humanos não conseguiam compreender... O que, para ser honesta, não era muito emocionante de se assistir.

“Mesmo sendo um dragão, ignorar isso completamente...!” Tselzonarg sibilou.

“Nós não permanecemos os mesmos para sempre, sabia? Criaturas vivas, ao contrário de vocês, têm o poder de evoluir diante das mudanças. Assim que soubermos do que vocês são capazes, é óbvio que encontraremos maneiras de nos proteger. É simples assim.”

“Entendo. Nesse caso...” os chifres da cabeça de Tselzonarg ganharam vida com um rangido e...

Wreeeeeek! Com um som ensurdecedor, estes se alongaram num instante, avançando em direção a Milgazia! O corpo de Mianzo também vibrou outra vez!

Ataques simultâneos dos planos astral e físico?

Ainda assim... Parecia que os mazokus haviam esquecido que Milgazia não era seu único oponente. Fwash!

“Geh!”

Um raio de luz rasgou a escuridão, incinerando os chifres estendidos de Tselzonarg.

“O-O quê?” ele exclamou ao ver Memphys diante de si em sua estranha armadura branca. “Impossível! Uma elfa? Não pode ser...”

Ignorando o choque de Tselzonarg, Memphys abaixou a mão esquerda erguida e, com a direita, removeu um pedaço de sua tasset esquerda. Ao observá-la melhor, percebi que era um pouco como uma espada de formato estranho.

“Escudo Dis! Conversão de Mana!” ela o segurou na cintura e... “Zenaph Slade!” num movimento rápido, ela o brandiu no ar.

“Gaaah!” instantaneamente, o grito de Tselzonarg ecoou.

A onda de choque de luz desapareceu e, em seguida, surgiu de suas costas. Enquanto Tselzonarg desabava, seu corpo se desfazendo em cinzas, Mianzo gemeu ao perceber que agora estava em desvantagem.

“Desintegração Caótica!” Milgazia não perdeu tempo, lançando uma torrente de luz em sua adversária.

“...!”

Mianzo foi consumida pela luz com um grito inaudível. Quando a luz se dissipou... Não havia mais nada dela.

“M-Meu Deus...” me virei quando ouvi aquele sussurro atrás de mim e vi Gourry, Luke e Mileena parados ali, atônitos. Devem ter se juntado a nós em algum momento. Tinha quase certeza de que Luke que tinha comentado. Em resposta...

“Ei, vocês!” gritei. “Por que estão aí sentados? Por que não ajudaram?”

“Você também estava aí sentada, sabia?” Luke acusou.

“Ah!” não tinha resposta para isso! “Bem, tudo aconteceu tão rápido...”

“Comigo também.” disse Gourry.

“Foi impressionante. Eles destruíram dois mazokus sem esforço nenhum.” Mileena suspirou.

“Não... Só um mazoku.” corrigiu Milgazia. “Aquela com raízes escapou antes que eu pudesse finalizá-la. Porém a ferimos bastante.”

“Tudo bem, tio. Se ela voltar, a gente a destrói de vez.” declarou Memphys, aproximando-se enquanto guardava a espada (ou seja lá o que for) na cintura. “Mesmo assim, o que diabos eles estavam fazendo aqui?”

“Podemos discutir os detalhes depois. Por enquanto, precisamos sair daqui.” falei interrompendo-a.

Memphys me lançou um olhar repreensivo.

“Por quê? Está com medo dos mazokus?”

“É, claro. Só estou dizendo que as coisas vão ficar muito complicadas se ficarmos por aqui. Você se esqueceu de que estamos no meio de uma aldeia?”

“Ah...” disseram todos ao mesmo tempo.

———

“Phew... Acho que ninguém vai nos encontrar aqui.” falei, soando como um criminoso comum enquanto parava na floresta, a uma boa distância da aldeia. Também nos daria abrigo da chuva, apesar de já estar diminuindo.

“Contudo... Têm certeza de que deveríamos ter corrido assim? Não parece que somos culpados? Anotamos nossos nomes no livro de registro da estalagem e tudo mais.” apontou Gourry.

“Não precisa se preocupar com isso.” disse Memphys, ajeitando o cabelo molhado. “Não escrevi meu nome verdadeiro.”

Espera aí. Sua vadia!

“De qualquer forma, deve ter sido melhor termos evitado uma investigação lá.” disse Mileena. “Mesmo que insistíssemos que foram mazokus que destruíram a estalagem, não temos provas e não há garantia de que as autoridades acreditariam em nós. Alguém pode ter testemunhado a luta, no entanto não podemos contar só com a sorte. E considerando que temos um dragão e elfa conosco... Se as autoridades fossem preconceituosas, poderiam concluir precipitadamente que foram eles que destruíram a estalagem.”

A garota tinha razão. De fato, os estrondos dos ataques de Milgazia e Memphys contra os mazoku haviam atingido algumas casas próximas...

“Diria que Mileena está certa. Levar uma bronca por algo que os mazokus fizeram seria uma perda de tempo que não podemos nos dar ao luxo.” Luke, o eterno puxa-saco de Mileena, assentiu em fervorosa concordância.

“Com licença, mas acho que devo esclarecer um mal-entendido.” disse Milgazia, com o rosto impassível. “Não foram os mazokus que destruíram a pousada. Foi a Mephy.”

O grupo permaneceu em silêncio por um tempo. Finalmente, só eu me atrevi a perguntar...

“Hum, está brincando, né? Né?”

“Não, não estou. Não está claro pela minha expressão?”

É, não! Você é estoico até quando faz essas suas piadas estranhas, velho!

Espera...

“O quê? Você está dizendo que...”

“Eu vi que vocês estavam lutando contra mazokus e tentei ajudar, porém a pousada se mostrou muito menos resistente do que imaginei. O lugar inteiro desabou. Embora não vejo por que seria um problema. Não é como se alguém lá dentro tivesse morrido.” explicou Memphys sem o menor remorso.

Diz a pessoa que não assinou com o nome verdadeiro no livro de registro... Cara, mas que safadeza!

“Claro, nada disso importa. A verdadeira questão é por que aqueles mazokus atacaram vocês.” ela mudou de assunto, evitando uma declaração que lhe renderia uma facada no rim se o estalajadeiro a ouvisse.

Quero dizer, eu sei que interrogá-la sobre aquele pequeno ataque de fúria não vai nos levar a lugar nenhum agora, contudo...

“De fato. Seus motivos permanecem desconhecidos.”

Wuh? Milgazia estava concordando com ela! Hmm... Talvez espaços habitáveis... Ou melhor, danos à propriedade... Não signifiquem tanto para dragões e elfos?

“Mesmo assim, se me perguntarem, explodir aquela pousada não foi legal...” Gourry acrescentou, sem pensar muito.

Twitch. Milgazia e Memphys se contraíram.

“Bem... Como dizem, tudo que tem forma eventualmente cai.”

“S-Sim... No contexto geral, nossa prioridade deveria ser avaliar nossas circunstâncias atuais e antecipar o que está por vir.”

Ok, esquece. Esses dois só não gostam de encarar as consequências!

“Bem, deixando de lado a questão da destruição da estalagem e a moralidade de vocês...” Mileena começou. Com isso, o dragão e a elfa se contraíram de novo, no entanto ela os ignorou. “Primeiro, por que fomos atacados? É bem possível que os mazokus ataquem outra vez enquanto estamos aqui, e descobrir o que querem pode nos ajudar a lidar com suas investidas no futuro.”

“Não sei se ajuda ou não... Entretanto os mazokus me reconheceram e sabiam meu nome.” confessei.

Gourry coçou a cabeça.

“Então talvez tenha sido... Vingança? Quer dizer, acabamos de derrotar Sherra, um mazoku de alto escalão. Talvez estejam se vingando pelo que fizemos.”

Hmm... Então ele consegue pensar direito de vez em quando.

“Soa muito improvável. É difícil imaginar mazokus sendo motivados por emoções sentimentais como o desejo de vingança.” disse Milgazia.

“É, tem razão. E não tem como mandarem dois peixinhos para um trabalho tão grande. Quer dizer, nós matamos a General de Dinasta. Se quisessem mesmo vingança, é de se imaginar que teriam um pouco mais de força.” concordei.

“Então por que nos atacaram?” perguntou Gourry.

“Bom, é isto que estamos tentando descobrir. Ah. Por sinal, o segundo mazoku que apareceu, aquele que Memphys derrotou, disse ao primeiro para ‘cumprir suas ordens imediatamente’.”

“Quer dizer... Matar você?” perguntou Luke.

Balancei a cabeça, negando.

“A impressão que tive foi mais tipo: ‘Pare de perder seu tempo com essas bobagens’.”

“Está dizendo que os mazokus estavam lá por um motivo diferente, e um deles acabou por saber seu nome?” perguntou Mileena.

“Estou dizendo que não é impossível. Não reconheci nenhum dos dois, mas talvez fizessem parte do grupo que nos procurava durante o incidente em Gyria e nós só nunca nos encontramos? Explicaria como eles conheciam meu rosto e nome.”

“Também é totalmente possível que estivessem atrás de você e fugiram com medo quando nos viram.” gabou-se Memphys. “Eles pensaram que poderiam facilmente aniquilar um grupo de meros humanos ou que tinham outros aliados à espreita, porém então você se mostrou mais poderosa do que o esperado... Ou seja, tinha o Tio Milgazia e eu do seu lado, e os dois fugiram aterrorizados. É bastante plausível, não é?”

Eu não podia discordar, mesmo que a maneira como falou me irritasse um pouco. Contudo, deixando isso de lado...

“Bem, duvido que venham atrás de mim de novo...”

“De fato. Duvido muito que os mazokus te vejam como uma prioridade.” disse Memphys, se vangloriando.

Essa vadiazinha...

“Verdade. Certo, não temos muita coisa para nos basearmos, e ficar remoendo esse ataque não vai nos ajudar muito...” tentei soar amigável, apesar do canto da minha boca estar tremendo. “Vamos passar para o nosso próximo tópico: quem é o culpado por explodir a pousada?”

“Espere! Por que esse é o próximo tópico?”

“Por que não seria? O resto de nós escreveu nossos nomes no livro de registro. Não quero ver o meu em um cartaz de procurado. Na minha opinião, a melhor maneira de resolver esse problema seria entregar uma certa elfa psicopata às autoridades, dizer a elas que é a verdadeira culpada e deixá-la levar a culpa. Vocês não concordam?”

Memphys recuou por um momento com a minha sugestão, depois me encarou ferozmente.

“Acredito que a justiça seria melhor servida se a pessoa irresponsável que arrumou briga com mazokus dentro da pousada levasse a culpa!”

“Ohhh... Parece que temos opiniões diferentes!”

“Suponho que sim... Claro, é um alívio, de certa forma, saber que minha mente funciona de maneira diferente da de alguém tão superficial.”

“Bem, bem. Você tem um jeito especial com as palavras... Hihihi...”

“Parece que temos muuuito o que discutir... Hihihi...”

Faíscas voaram entre nós enquanto nos encarávamos. Memphys era um pouco mais alta do que eu, então tinha a vantagem.

“Ei, acabei de perceber uma coisa...” disse Gourry para Luke enquanto nos observavam de lado. “Essas duas não se gostam muito, né?”

“Bingo!” respondeu Luke, cansado.


———

“O que é aquilo?” Gourry murmurou de repente, olhando para a estrada principal ao longe.

Era por volta do meio-dia do dia seguinte ao que eu consegui apaziguar os ânimos usando minhas habilidades patenteadas de lábia para culpar os demônios selvagens pela destruição da pousada por Memphys. Nossa primeira parada seria a vila élfica para reforçar nosso equipamento, mas tínhamos que passar por Gyria para chegar lá. Resumindo, estávamos voltando pelo mesmo caminho.

Em outras palavras, Gourry estava olhando para uma cidade pela qual tínhamos passado dois dias antes.

“O que é o quê?” perguntei.

“Parece... Fumaça.” ele respondeu.

Luke, Mileena e eu trocamos um olhar. Sabíamos que o grandalhão tinha uma visão excepcional.

“Fumaça? Não estou vendo...”

“Nem eu. Com certeza o humano está vendo... Ah! Espera!”

Nós quatro disparamos, deixando Milgazia e Memphys para trás.

“Tem certeza disso?” Milgazia perguntou enquanto corria para nos alcançar.

“Absoluta!” respondi imediatamente. “Ao contrário do cérebro, seus olhos funcionam muito bem!”

“Ei... Lina...”

“Entendo. Nesse caso...” disse Milgazia, interrompendo o protesto de Gourry. “Não é hora para correr.”

“Hã?”

“Estrada Rola Za!” sussurrou o ancião dragão, e então...

Whum! A paisagem começou a passar velozmente por mim enquanto me sentia sendo arrastada.

“Hã?” alguém disse confuso, e não fui a única. Estávamos todos deslizando pela estrada juntos a uma velocidade incrível, mesmo que nossas pernas não estivessem realmente se movendo.

“Não precisam ficar tão surpresos. É apenas um dos feitiços do tio Milgazia.” anunciou Memphys transbordando orgulho, com os braços cruzados.

Olhei para baixo e vi que meus pés estavam plantados no chão. Ainda assim, todo o grupo continuou avançando.

De jeito nenhum... Ele estava invocando espíritos da terra, bephemoths, para nos moverem através do chão sob nossos pés? Não, se fosse esse o caso, teria sentido o vento... Ou estava interferindo no vento ao mesmo tempo? Se estivesse, era uma magia de nível altíssimo! Afinal, estava forçando a terra, normalmente inabalável, a nos carregar em grande velocidade sem sequer um solavanco. Também não vi nenhum sinal de barreira contra o vento, o que significava que estava fazendo o vento soprar ao nosso redor em sincronia com a velocidade e a direção do movimento do solo.

Eu sabia, falando desde uma perspectiva acadêmica, que a magia dracônica estava muito além do que os humanos podiam fazer, contudo nunca tinha me atingido de tal forma como agora. Pensar que dragões poderiam fazer algo assim sem qualquer dificuldade, sem sequer usar um encantamento, apenas para transporte...

Espere um minuto...

“Mestra Milgazia, posso perguntar como aprendeu este feitiço? Por que um dragão precisaria de magia para uma viagem terrestre rápida?” perguntei. “Vocês podem só voar...”

Milgazia respondeu displicentemente.

“Oh, é porque assumi forma humana para minha jornada com Mephy. A viagem foi bem lenta, então elaborei este feitiço.”

Você... Só o elaborou? Como se fosse algo óbvio? Dragões são mesmo impressionantes, não é? Apesar de que a maioria das histórias que ouvi envolvesse estes sendo derrotados por alguém...

“Há fumaça, não é?” Milgazia sussurrou pouco depois de partirmos.

Estávamos perto o suficiente para que todos pudéssemos vê-la. Gourry estava certo, havia várias faixas de fumaça subindo ao céu sobre o nosso destino.

E a visão se aproximou rapidamente até que...

“Ali!” alguém gritou quando chegamos ao topo de uma pequena colina.

Na parte mais baixa, havia uma pequena cidade perto de uma grande floresta. O lugar estava mergulhado no caos e no fogo. Mesmo à distância, podíamos ver os aldeões fugindo aterrorizados... Fugindo de uma horda de demônios inferiores que semeavam o caos! Parecia haver pessoas corajosas lutando, no entanto eram muitos daqueles desgraçados, e mais pareciam surgir da floresta a cada minuto.

“Demônios, hein?” disse Memphys, dando um passo à frente enquanto avaliava a situação. Vwum! Com o zumbido de um vácuo se fechando, asas brancas brotaram de suas costas. Ou melhor, as placas traseiras de sua estranha armadura mudaram de forma, tornando-se um par de asas longas e finas. “Vou na frente, tio.”

“Não se esforce demais.” disse Milgazia, aprovando.

Ela respondeu com uma piscadela e, em seguida, tocou levemente o chão. Um momento depois... Nroom! Com outro som penetrante, ela cortou o ar, deixando um rastro de vapor em seu caminho!

Já estávamos nos movendo bem rápido com a ajuda do feitiço de viagem rápida de Milgazia, todavia Memphys nos ultrapassou sem dificuldade enquanto seguia em linha reta para a vila. Tudo o que podíamos ver era sua silhueta ficando cada vez menor e... Maior?

Era óbvio que estava se afastando, mas, ao mesmo tempo, sua armadura branca estava se transformando e se expandindo. Aumentou de tamanho até engolir todo o seu corpo.

“Sem chance...” sussurrei, estupefata.

A elfa agora era uma gigante branca alada quando pousou no meio da horda de demônios.

Cada raio de luz branca que ela disparava varria o chão. Os demônios inferiores atingidos em cheio eram transformados em pó, enquanto aqueles que por pouco não eram atingidos eram destruídos junto com a vegetação ao redor.

Não que alguém tenha me perguntado, porém será que é certo uma elfa destruir uma floresta assim...?

Tinha quase certeza de ter ouvido que seu povo vivia em harmonia com a natureza e considerava a destruição ambiental um tabu. Talvez fosse a falta de respeito de Memphys por esse tabu que a levou a se juntar a Milgazia e participar dessa missão...

Enfim, quando chegamos ao local, a elfa já havia dispersado a maioria dos demônios. Contudo alguns haviam chegado à cidade, e ela não ia destruir prédios para alcançá-los.

Ok! Hora de mostrarmos o que sabemos fazer também! Nós eliminaríamos o resto da horda e depois pediríamos uma boa grana ao prefeito como recompensa!

Milgazia dissipou seu feitiço de viagem e todos nós corremos para a cidade. Alguns demônios nos viram chegando e lançaram olhares furiosos em nossa direção. Entretanto uma horda de demônios inferiores, sem líder, era uma ralé imunda comparada a nós! Eles estavam prestes a ser massacrados! Recitei um feitiço em voz baixa, só que...

“Falange de Zellas.”

Roarrrrrumble! Muito antes que pudesse terminar meu encantamento, uma dúzia de bolas de luz conjuradas por Milgazia disparou em direção aos demônios inferiores, mirando neles e pulverizando-os no impacto.

Hum...

Me vi cancelando meu próprio feitiço em favor de ações igualmente úteis como ‘ficar parada’ e ‘encarar’. Gourry, Luke e Mileena pareceram tão desanimados quanto. O pequeno feitiço de Milgazia parecia um Zellas Bullid de múltiplos alvos, no entanto, caramba... Que maneira de limpar o chão, cara.

“O que foi? Ainda tem mais na cidade. Vamos.”

“Uh...”

“Ah... C-Certo...”

“É, vamos...”

“Boa ideia...”

A pedido de Milgazia, nós quatro assentimos sem rumo e continuamos em direção à cidade.

———

“Acho que esses são os últimos, tio.”

Nós... Bem, em sua grande maioria Milgazia, tínhamos acabado de eliminar os demônios restantes na vila quando ouvi uma voz atrás de nós. Virei-me e vi Memphys, agora de volta à sua forma normal, depois de ter se transformado em uma gigante branca.

“E os da floresta?” perguntou Milgazia.

“Eu já terminei com eles, é claro.” ela respondeu, virando-se para nos encarar. “E posso ver que vocês fizeram muita diferença aqui.”

Grr...

Sendo sincera, não havia muito que os humanos pudessem fazer em comparação com a velocidade e o poder de conjuração de Milgazia. Memphys também sabia disso. Estava apenas impondo sua (correta) suposição de que não tínhamos feito muita coisa. Eu teria que revidar com um insulto mesquinho!

Dei a ela meu sorriso mais radiante e disse.

“Na verdade, mal fizemos alguma coisa. Milgazia derrotou a maioria dos demônios da cidade, e sua armadura eliminou o resto. Nossa, essa armadura é de fato impressionante!”

Uma veia saltou na têmpora de Memphys.

“Desculpe, não está sugerindo que a armadura é mais impressionante do que eu, certo?”

“Deus me livre! São apenas suas próprias inseguranças sobre sua dependência da armadura que a fazem pensar desse jeito.”

“Hehehe... Vejo que você também tem jeito com as palavras.”

“Nada comparado a uma certa elfa psicopata que conheço. Hehehe...”

Com os olhos brilhando de ferocidade e os lábios curvados em sorrisos, nós duas iniciamos nossa enésima competição de olhares desde que nos conhecemos.

“Mas falando sério, que armadura é essa?” perguntou Gourry, pelo visto alheio ao atrito entre nós.

Memphys se virou para ele e estufou o peito.

“É uma arma desenvolvida em conjunto por elfos e dragões, assim como a que o tio Milgazia está usando. Ele está usando a Armadura Ritual, que amplifica sua capacidade de influenciar o plano astral. Um mazoku puro comum não chega aos seus pés enquanto a usar. A minha é uma armadura semiviva que me permite controlar minha conexão com o plano astral até certo ponto, e muda de forma à vontade. Chama-se Armadura Zenafa.”

“Oh? Então é mesmo a armadura que faz tudo...” continuei absorvendo a explicação enquanto bolava minha próxima resposta afiada, porém de repente fui tomada por um arrepio. Controlar sua conexão com o plano astral... Armadura semiviva... Zenafa... Será possível?

Me vi fugindo de Memphys, com um dedo acusador apontado para a elfa.

“Zanaffar? V-Você quer dizer a besta mágica Zanaffar?”

A armadura anti-magia Zanaffar havia sido reproduzida com base em um manuscrito da Bíblia Claire, um registro de conhecimento mágico de outro mundo. Um Zanaffar destruiu a Cidade Mágica de Sairaag há mais de cem anos... E, mais recentemente, quase nos matou, a mim, Gourry e nossos amigos, antes que conseguíssemos detê-lo. Seu espírito estava isolado da influência astral e era capaz de disparar raios laser como os dragões dourados. Contudo... O Zanaffar que conhecíamos parecia apenas uma armadura à primeira vista. Com o tempo, dominaria seu portador, e em algum momento o transformaria em uma besta mágica gigante e descontrolada.

Espere... Isso significa...?

“Acredito que seja assim que os humanos chamam, embora você deveria saber que ‘Zenafa’ é uma palavra do Caos que se traduz quase como ‘magia governante’.”

“Deveria? P-Por que você tem essa coisa?”

“Não ficamos parados desde a Guerra das Encarnações.” disse Milgazia. “Aquele conflito nos ensinou o quão impotentes éramos contra uma raça demoníaca seriamente engajada, quando os dragões que acreditávamos serem nossa principal força de combate foram despedaçados sem esforço... Nem mesmo por um dos tenentes do Lorde das Trevas, mas por um de seus Sacerdotes. Desde então, dragões e elfos têm trabalhado juntos para desenvolver várias armas em preparação para quando os mazokus voltassem a atacar. Lina Inverse, eu a guiei até a Bíblia Claire uma vez. Por que acha que eu sabia o caminho?”

“Ah!”

Claro. O fato de Milgazia saber o caminho para a Bíblia Claire era um sinal de que o próprio já a havia visitado diversas vezes. Ele usara seu conhecimento sobrenatural para pesquisar armamentos eficazes contra mazokus. Se estava se baseando na Bíblia Claire, então era natural que tivesse chegado à mesma solução que quem quer que estivesse criando seus manuscritos: Zanaffar.

“Nesse caso... Por que não resistiu quando Xellos apareceu conosco?”

“As armas estão sendo feitas na vila dos elfos. Teria sido suicídio enfrentá-lo despreparado.”

“E-Entendo. Isso explicaria tudo. Porém espere...” voltei meu olhar para Memphys mais uma vez. “Então aquilo não vai comê-la e fazê-la enlouquecer, certo?” perguntei, um pouco sem jeito.

A elfa apenas me encarou com desdém.

“Que absurdo. Claro que não! Ah, contudo suponho que humanos com suas insignificantes habilidades mágicas não seriam capazes de controlar a Zenafa da forma adequada. Ou talvez aquela que se descontrolou no mundo humano tenha sido resultado de você não ter compreendido toda a sabedoria da Bíblia Claire e ter criado uma versão defeituosa usando técnicas inferiores, hmm?”

“Então... Não há com o que se preocupar? Não está sendo secretamente controlada? Sua personalidade horrível não é resultado da armadura?”

“Acho essa última pergunta bastante ofensiva, no entanto posso garantir que não há com o que se preocupar. É claro que a armadura foi projetada para um elfo, então não espere que a empreste a vocês, humanos. Além do mais, não gostaria que minha Zenafa fosse infectada pela sua personalidade horrível!”

“Ohhh... Olha só você, roubando meus insultos.”

“Dificilmente. Estou apenas aplicando-as onde melhor se encaixam. Hehehe...”

“Hehehe...”

“Outro duelo de olhares...” Luke sussurrou, parecendo exausto.

Lembrei-me de que toda aquela conversa sobre a Bíblia Claire estava além da compreensão dele e de Mileena, e, a julgar pela falta de perguntas, eles já haviam aceitado isso. Ou talvez vissem isto como uma daquelas situações em que ‘a ignorância é uma bênção’.

Mas, quando Memphys estava prestes a falar mais um pouco...

“É você!” veio uma voz familiar a uma curta distância.

“Hã?” olhei em volta e vi um homem vindo em nossa direção. Parecia tão familiar quanto a voz. “Você é...”

“Graças a Deus... Procurei por toda parte!”

“Guardião do Portão nº 1!” ​​gritei.

E com isso, o guarda do portão que encontramos na cidade de Gyria... É, tudo bem, ainda não conseguia me lembrar do seu nome... Caiu de cara no chão ali mesmo.

***

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