Volume 03: Demon Deathchase — Capítulo 16: Fugitivos
Parte 1
Quando Leila freou, uma figura deslumbrante de preto a cumprimentou.
— Muito bem feito. — disse D em seu tom sereno.
Resistindo a uma sensação que não era nem febre nem calafrios percorrendo sua espinha, a jovem respondeu com hostilidade descarada.
— Ainda está por aí? Se não fizer nada rápido, vou ter que te atropelar e matar. — alertou.
Sem reconhecer a ameaça, D disse em um baixo tom.
— Alguém deveria dar uma olhada no seu ferimento.
— E é melhor... Cuidar da sua vida! — a dor se espalhou pelas últimas palavras que Leila cuspiu. Pressionando a mão no peito direito, caiu para a frente no banco do motorista. Seu peito havia sido atingido por um pedaço de estilhaço que perfurou o assoalho do carro de combate.
Caminhando rapidamente, D ergueu Leila com facilidade e a colocou à sombra de uma árvore próxima. Lançando um olhar rápido para o céu e para o Abrigo, D ouviu na direção de onde Leila viera.
— Eles não estão vindo. — ouviu-se a palma de sua mão esquerda dizer. — Seu grupo ainda está muito longe. O que planeja fazer?
— Não posso deixá-la assim.
— Pode bancar a babá dos feridos mais tarde. Nosso alvo está naquela caixa de aço agora mesmo, completamente imobilizado. Digo para acabar com ele o mais rápido possível e entregar a garota. Afinal, mesmo que já tenha sido mordida, se matarmos o Nobre, voltará ao normal. Isso deve agradá-la bastante.
Envolto como sempre em uma aura sinistra, o belo rosto de D se anuviou por um instante.
— Ficaria satisfeita? Porque será humana de novo? Ou porque...
— Não comece a insistir nisso de novo. Este belo dia de primavera te desequilibrou? Estamos tão perto, e se partir para a ofensiva agora, pode matá-lo sem suar a camisa. O sol vai se pôr em breve, sabe? Eu digo: deixe a competição apodrecer.
Como se para corroborar a crescente impaciência da voz, o céu começou a assumir um tom de azul mais escuro. Nesta época do ano, o pôr do sol chegava por volta das cinco da tarde, o que dava a D menos de duas horas para terminar seu trabalho.
Apesar disso, D abriu a frente do macacão de Leila sem dizer uma palavra. Evidente mesmo através de suas roupas, a plenitude pálida de seus seios agora estava exposta. A carne acima de seu seio esquerdo se expandiu em vários pontos. As feridas ensanguentadas já estavam inchadas, pretas e azuis. Eram como sarcomas assustadores crescendo em sua pele branca.
D se levantou, tirou o kit de emergência do alforje e retornou. Quando abriu a tampa do kit, a agitação surgiu em seus olhos.
— Hehehe! — a voz gargalhou tomada de ironia. — Estava tentando me lembrar de quando comprou esse conjunto. Você o carregou por aí esse tempo todo e nunca o usou uma vez. Bem, as coisas dentro se tornaram inúteis há muito, muito tempo. Esse é o problema com pessoas que não conseguem morrer.
— Tem razão! — murmurou D em seu tom monótono de sempre, verificando o carro de combate de Leila e retirando um kit de primeiros socorros. Só por segurança, o colocou no assoalho para abri-lo e o fechou rapidamente.
— O que é?
— Não tem nada aí dentro. Está praticamente sem nada.
— Então, não reabasteceu, né? Nunca ouvi falar de uma Caçadora tão arrogante.
Ferimentos, pode-se dizer, eram um risco ocupacional para Caçadores, e repor suprimentos médicos era tão importante quanto adquirir armas. Ao chegar a uma cidade ou vila, era natural para um Caçador correr primeiro para o vendedor de armas e farmácia, e depois para o armazém geral ou bar.
Porém Leila não tinha suprimentos médicos. E, contudo, era a irmã mais nova do clã Marcus, cujos cinco membros se equiparavam a um punhado de Caçadores veteranos.
Mais uma vez, D agachou-se ao lado da garota.
Sua respiração era bastante superficial. Embora parecesse que os fragmentos dentro do seu corpo não haviam danificado nenhum órgão interno, havia algum perigo de toxinas dos estilhaços causarem tétano se os pedaços de metal fossem deixados onde estavam. Na verdade, os ferimentos de entrada e saída já estavam inchados, com um vermelho profundo e sujo.
— O que vai fazer? Sabe que eu só trabalho com você. Não posso fazer nada por humanos.
— Estou ciente. Não há escolha a não ser lidar com humanos do jeito humano.
Do cinto de combate em sua cintura, D sacou um estrepe. Ele levou uma das pontas para a mão esquerda.
— O que pensa que está fazendo?
— Se a garota morrer, você e eu estamos acabados.
— Merda. Está me ameaçando?
Mas antes que a voz terminasse de falar, chamas azuis claras envolveram a ponta do estrepe.
A ponta afiada aqueceu em poucos instantes e ficou vermelha. D aproximou a mão esquerda da testa de Leila. Seus olhos grandes se abriram.
— O que está fazendo? — perguntou a jovem.
— Cauterizando o ferimento. Vou fazer com que não doa.
— Que gentileza sua. — retrucou, sarcástica. — Não espere um obrigado.
— Não fale.
Leila desviou o rosto bruscamente da mão que se aproximava.
— Não sei que tipo de coisas consegue fazer, porém nem no inferno vou te deixar brincar com o meu corpo enquanto estou desacordada. Vou ficar consciente para ver isso do começo ao fim. Tente qualquer coisa engraçada e, acredite, vai se arrepender.
Imperturbável, D colocou a mão esquerda sobre de Leila.
— Não...
As palavras de Leila se transformaram em um grito.
— Pare, eu imploro. Faça isso enquanto estou acordada. Por favor. — implorou.
Algo brilhante brotou em seus olhos enquanto olhavam para D. Aquilo revelava memórias horríveis.
Retirando a mão, D rasgou a manga do casaco e colocou um pedaço de pano entre os lábios de Leila. Eles não tinham anestesia. O pano era para impedi-la de morder a língua. Desta vez, cooperou em silêncio. O pequeno aceno que fez deve ter sido uma expressão de gratidão.
D baixou o metal quente até a pele. Logo depois, um aroma pungente e uma série de gemidos baixos começaram a permear o caramanchão que escurecia.
O crepúsculo pareceu se aglutinar ao seu redor. Seus olhos se abriram.
Nada poderia substituir essa sensação, de que o feitiço que o aprisionava até a última cela estava se dissipando como a maré. Este era o seu momento favorito.
Seus olhos se voltaram para o lado. Não muito distante, uma garota estava sentada em silêncio na beira da cama. Dava a impressão de não ter movido um músculo desde que se sentara. Seu lindo rosto branco e florido se virou para ele.
— O que houve? — perguntou ele, ainda deitado em uma cama coberta de almofadas de seda. Seus olhos vislumbraram o rastro de uma lágrima na bochecha da garota.
— Tem alguém lá fora.
— Oh. Já estão aqui? — nos recessos de sua voz tensa, havia uma autoconfiança inabalável. Não importava o quão habilidoso fosse o Caçador de Vampiros, nada se comparava a um Nobre surgindo na escuridão.
Pisando levemente no chão de aço, olhou para a porta e seus olhos quase se arregalaram. Seria uma linha prateada semelhante a um fio caindo sobre o chão? Percebendo que era o luar entrando sorrateiro por uma fresta esculpida acima da porta, se virou para a garota.
— Durante o dia, alguém a abriu com uma espada. — disse ela. — Caçadores contratados pelo pai, sem dúvida...
Distinguindo algo no vestido azul que a cobria até os joelhos, o Nobre franziu a testa. Era uma elegante adaga prateada. Ele a usava na cintura. Para que ela pretendia usá-la? Por um breve momento, se concentrou na arma, depois foi até os monitores de vídeo na parede para verificar a situação lá fora.
Quando D queimou e esculpiu cada ferimento e esterilizou a pele danificada com um estrepe recém-aquecido, Leila por fim desmaiou.
— A maior parte das preocupações dela já passou! — disse a voz. — Contudo as bactérias já se instalaram no seu corpo. Sentirá calafrios bem intensos em breve. Se conseguir superar isso, vai poder ficar tranquila. Você já chegou até aqui, então é melhor dar o próximo passo. Continue tratando-a até a reta final.
Sem dar sinal de ouvir a voz um tanto enojada, D continuou olhando para o Abrigo e para o céu de um azul cada vez mais profundo. Quando o estrepe preso no chão esfriou, ele o guardou de volta no cinto e se levantou, dizendo.
— Ele deve sair a qualquer momento.
— Está sendo tão frio. — disse a voz com ressentimento. — Quer me dizer que, quando ele sair, vai parar de tratá-la? Não saia correndo como um charlatão de beco.
Mas então a voz parou inesperadamente.
D deu um passo à frente. Como uma luz azul estagnada, a porta do Abrigo se retraiu sem fazer barulho. Olhando para trás, viu Leila. Os olhos que em seguida se voltaram para a frente de novo continham uma luz sinistra. Lá estava, o maior Caçador de Vampiros de todos. Com a bainha de seu casaco esvoaçando na brisa noturna, D desceu a colina.
Não demorou muito para que os seis cavalos de obsidiana aparecessem um após o outro... Seguidos, é claro, pela carruagem laqueada de preto. As máquinas dentro do Abrigo haviam concluído com sucesso os reparos necessários durante o dia.
Um jovem vestido de preto espiava silenciosamente D do poleiro do cocheiro.
— Saia da nossa frente! — ordenou. Sua voz era estranhamente suave. — Por mais escória que você seja pela forma como coloca um preço na vida das pessoas, ainda não tenho vontade de me envolver em um combate inútil e letal.
Um estranho tom de emoção fluiu pelos olhos de D, que então desapareceu em instantes.
— Eu ficarei com a garota! — disse D, seu comportamento livre de violência ou exuberância.
Os olhos do homem estavam aos poucos ficando vermelhos.
— Eu a peguei porque a quero! — falou. — Você deveria tentar fazer o mesmo. Se estiver disposto a lutar contra um Nobre à noite, claro.
A escuridão se solidificou. Embora tanto a cor quanto a luz permanecessem as mesmas, o espaço entre os dois parecia ter congelado de repente.
O estalo de carne chicoteada quebrou o silêncio. Sem sequer um relincho, duas dúzias de cascos começaram a bater na terra. Fosse a intenção de atropelar o insignificante Caçador ou de fazê-lo sair do caminho, aqueles seis cavalos, em investida enlouquecida, pararam inesperadamente a poucos metros de D.
Ouviu-se um grito assustado de “Mayerling!”
No instante em que D percebeu que a voz vinha de uma mulher dentro da carruagem, seu corpo voou no ar como um pássaro místico. Ainda distraído pelo grito lamentoso dela, houve uma fração de segundo de atraso antes que D desferisse seu clarão prateado na cabeça do jovem.
Faíscas se espalharam pela escuridão como joias espalhadas, deixando um belo tilintar metálico atrás delas. O jovem... Mayerling, havia parado o golpe mortal de D com as costas da mão esquerda.
Essa parte da mão estava envolta em uma armadura de aço.
Torcendo o corpo para fora do caminho dos três clarões de luz que rugiam pelo ar em direção ao seu peito, D voltou sem fazer qualquer som à terra no lado oposto do veículo.
Do teto da carruagem até D, o miasma fluía. E de D de volta para o teto. Nessa intensa troca de auras sobrenaturais, os cavalos relincharam e a carruagem balançou selvagemente.
Longas garras cresceram nos dedos da mão direita do Nobre. Contudo não, não eram simples unhas... Brilhando em um tom negro, se fazia evidente que tinham o brilho lustroso do aço. Quando o perigo se aproximava, as unhas normais do vampiro se transformavam em instrumentos de aço assassinos.
— Um rosto tão refinado e tamanha habilidade... Já ouvi seu nome antes. O nome que pode fazer qualquer Nobre empalidecer. Então, você é D... — disse Mayerling, com a voz misturando admiração e medo.
— Também já ouvi a seu respeito! — respondeu D. — Ouvi dizer que havia um jovem lorde elogiado por sua virtude por seus súditos, talvez o único entre toda a Nobreza. Seu nome era Mayerling, tenho certeza.
— Eu sempre quis te conhecer. De um jeito ou de outro.
— Bem, agora me conhece! — respondeu o Caçador. — Estou bem aqui.
— Você não vai nos deixar ir? Eu não fiz nada aos humanos.
— Diga isso ao pai que moldou à sua imagem antes de raptar a filha dele.
A angústia tomou conta do rosto de Mayerling.
A tensão sumiu de repente do corpo de D.
Com um grito de “Hyah!” de Mayerling, os cavalos chutaram a terra. Correndo ao lado de D, começaram a galopar pela encosta.
D corria como o vento.
A carruagem era páreo para a velocidade de D.
No topo da colina, D parou ao lado da carruagem. Sua mão direita alcançou a maçaneta da porta. E então a maçaneta dourada simplesmente começou a se mover. Enquanto observava, a carruagem diminuiu de tamanho, e D se virou e seguiu em direção a um bosque. Era lá que Leila jazia.
— Ouviu uma voz estranha, não é? — disse sua mão esquerda. — Me faz até pensar que ter dificuldade de audição talvez não seja tão ruim assim. Se não fosse por isso, talvez já estivéssemos terminando este trabalho agora mesmo.
D agachou-se e colocou a mão na testa de Leila. Ela estava quente como brasa. Seu rosto encharcado de suor estava contorcido de dor. Tanto a febre quanto a dor eram devido à infecção. Calafrios implacáveis logo a seguiriam.
Sem hesitar, D tirou as roupas de Leila. Quando seu belo corpo nu foi estendido na grama verde, um “Wow!” surpreso escapou de sua mão esquerda.
— Pelo jeito, eu diria que essa garotinha teve uma vida bem difícil.
De seus seios redondos e firmes até as coxas, e por toda a extensão de suas costas, a pele de Leila estava coberta pelas cicatrizes de inúmeros cortes e os pontos que os haviam fechado. Esta era uma garota que viveu na carnificina que era a Fronteira.
Sem demonstrar qualquer emoção forte, D cobriu Leila com seus braços.
Chorando baixinho, Leila se agarrou ao seu peito forte. Seus lábios inchados pela febre tremiam, deixando escapar uma palavra murmurada uma e outra vez. Uma única palavra, no entanto foi a razão que impediu D de abrir a porta da carruagem.
Quando a montaria de Kyle Marcus chegou ao topo da colina uma hora depois, não havia sinal de ninguém ou nada nas proximidades, além de sua irmã, que estava enrolada em um cobertor e descansando tranquila em seu assento no carro de combate.
Mais trinta minutos depois, o ônibus dirigido por Borgoff apareceu, junto com Nolt, que ia na frente.
Kyle carregou Leila para dentro do veículo às pressas. Eles deviam ser muito próximos, uma vez que era perceptível a mudança de sua expressão.
— Ela... Ela vai ficar bem, não vai, mano? — gaguejou. — De alguma coisa para a Leila, não me importa o quê.
Enquanto Borgoff o observava se debater à beira das lágrimas, com uma expressão rancorosa, ele mesmo verificou o pulso de Leila, conferiu sua febre e, pouco depois, assentiu com satisfação.
— Ela está bem. Vou verificar seus órgãos internos e a circulação com uma tomografia computadorizada de qualquer forma, mas não precisa se preocupar.
Olhando para Kyle, que havia se deixado cair no chão em aparente alívio, acrescentou.
— Esse tipo de coisa acontece quando você age pelas minhas costas e manda a Leila sair sozinha.
— Eu sei. Pode me dar um sermão depois, se quiser. Mas qual deles acha que espancou a Leila tanto assim?
O rosto de Kyle havia recuperado sua ferocidade original. Com os olhos fixos no vazio, estava tão furioso que não percebeu a espuma escorrendo dos cantos da boca. Seu corpo tremia.
— Bem, o mais provável é que não foi quem a tratou. O que significa que talvez não tenha sido nenhum dos dois. Você não imaginaria que alguém tão brando quanto eles pudessem sobreviver tanto tempo aqui na Fronteira.
— Não importa... — disse Kyle, quase delirando. — Não importa qual deles fez isso. Vou encontrar os dois e cortá-los em pedaços. Arrancar seus braços e pernas e colocá-los de volta onde não pertencem. Encher suas bocas com suas próprias entranhas fumegantes.
— Fique à vontade! — disse seu irmão mais velho. — De qualquer forma, tem certeza de que não havia ninguém perto de Leila? Pelo aspecto dos seus ferimentos, deduzo que os sofreu há três, talvez quatro horas atrás.
A porta se abriu e Nolt enfiou a cabeça para dentro.
— Encontrei pegadas de uma carruagem que passou por aqui. Ainda estão frescas. Talvez de uma hora antes de chegarmos, no máximo. Há outra coisa também... Algumas marcas de ferraduras.
— Se for esse o caso, então os dois devem ter lutado aqui também. E parece que ainda não se resolveram...
Fazendo um aceno firme com a cabeça, Borgoff ordenou que Nolt cuidasse de Leila e Groveck. Ele foi para seu quarto nos fundos, retornando ao banco do motorista segurando um pacote embrulhado em pano, de aparente importância.
— Se eu já vi o rosto de D, posso reconhecê-lo. — murmurou, puxando do pano um disco de prata com cerca de meio metro de diâmetro. Colocando-o num pequeno suporte quase no centro do painel, Borgoff virou seu rosto coberto de bigodes para olhar pela janela e para a lua que surgia no céu. A lua era redonda e quase cheia, embora, graças às nuvens que obscureciam parte dela, parecia ter sido mordiscada aqui e ali por insetos.
Quando sentou seu enorme corpo, o banco do motorista rangeu. Então Borgoff cruzou as mãos na frente do peito e começou a encarar fixamente a bandeja de prata apoiada, com olhos que pareciam capazes de perfurá-la. Um minuto se passou, depois dois.
Kyle não saiu do lado de Leila enquanto ela estava deitada na cama. Por sua vez, Nolt espiava pela porta ao lado do banco do motorista, o suor escorria pelo seu rosto tão abundantemente quanto o de Borgoff.
E então, enquanto a superfície prateada da bandeja ficava esfumaçada, quase como se nuvens a cobrissem, a figura de um jovem de preto montado num cavalo formou-se de repente sobre ela.
Era D. Virando-se para eles e dizendo algo, puxou as rédeas que tinha nas mãos e desapareceu em um matagal.
Era uma repetição de D da noite anterior, conversando com eles após a batalha com os aldeões vampiros. Se as pessoas ou as coisas pareciam um pouco diferentes, talvez fosse porque essas imagens eram extraídas das memórias de Borgoff. Ali estava um homem que podia projetar suas próprias memórias em uma bandeja de prata. Porém, apesar dessa admirável demonstração do que alguns chamariam de feitiçaria, Borgoff encarava com olhar impiedoso a lua no céu com olhos vermelhos. Não, não a lua, e sim uma grande massa de nuvens abaixo desta. O luar que brilhava nas nuvens as contornava em azul.
Não houve nenhuma mudança nem na lua nem na massa de nuvens, ou assim pareceu por um instante. Então, apesar de a lua permanecer inalterada, o centro da massa de nuvens pareceu começar a emitir um fraco brilho. Em um instante, uma figura com a forma de um homem começou a se contorcer ali e, com um segundo sopro, tornou-se uma imagem nítida. Alguém cavalgava por uma estrada completamente escura.
Baseado em sua memória anterior de D, Borgoff usava a bandeja de prata e a lua como projetores para fazer o D do presente aparecer na massa de nuvens.
A figura que se afastava, parecendo observá-los de cima dos céus distantes, possuía uma semelhança notável com D enquanto corria pela estrada algumas dezenas de quilômetros à frente.
Parte 2
— Eles correram a toda velocidade por umas boas duas horas depois de deixarem D para trás, e, quando Mayerling viu que a estrada continuava em linha reta pelos próximos vinte quilômetros, saiu do assento do cocheiro da carruagem e habilmente entrou nela.
Quando fechou a porta, nenhum som do mundo exterior invadiu a carruagem. A moça estava sentada em uma cadeira revestida de couro, como uma flor que desabrocha como um raio de luar noturno.
Um tapete cobria o chão, e um estofamento de seda extremamente fina revestia as paredes e o teto. No passado, garrafas das melhores e mais raras bebidas repousavam sobre a mesa dourada dobrável que parecia brotar da parede, e esta estrada de quase vinte quilômetros iluminada pelas estrelas era palco de grandes bailes de máscaras da nobreza. Entretanto, o tapete agora estava um tanto encardido, havia rasgos na seda e não havia um único copo de prata sobre a mesa.
Até mesmo a mesa estava torta por falta de um parafuso.
Dizia-se que este modelo de carruagem era o último equipado com circuitos de estabilização magnética, que manteriam os passageiros em segurança mesmo se o veículo capotasse.
A mão direita de Mayerling se moveu, e o interior se encheu de luz.
— Por que não acende as luzes? — perguntou. — Por direito, esta velha charrete dilapidada já deveria ter sido sucateada há muito tempo, mas pelo menos isso ainda funciona.
Encorajada por um sorriso que revelava dentes de um branco infinito, a garota retribuiu o sorriso de Mayerling. Porém era um sorriso tênue, como uma miragem.
Ele tentou se lembrar da última vez que vira o rosto radiante daquela garota, contudo não teve muita sorte. Talvez tivesse apenas sonhado, e estivesse sonhando com aquilo também.
— Não me importo. — respondeu a jovem. — Se você vive na escuridão, então eu também quero.
— Tenho certeza de que a luz do sol lhe cai maravilhosamente bem. Embora eu ainda não a tenha visto sob ela. — acrescentou, dirigindo-se à cadeira em frente a jovem para se sentar.
— Você acha que conseguiremos chegar lá? — perguntou a garota, hesitante.
— Acha que não?
— Não. — a garota balançou a cabeça negativamente. Foi a primeira demonstração de veemência que viu nela desde que a tirara da vila. — Ficarei bem em qualquer lugar. Contanto que estejamos juntos, posso fazer da minha casa uma caverna nas montanhas escarpadas ou algum mundo subterrâneo onde nunca mais verei a luz do dia.
— Não importa onde estejamos, os Caçadores virão. — disse Mayerling, deixando a resignação se infiltrar em sua beleza preciosa. — Seus semelhantes não ficarão felizes até destruírem tudo. Você não é nada como eles, é claro.
A jovem não disse nada.
— Não há nenhum lugar na Terra onde possamos relaxar agora. Uma longa viagem para as profundezas do espaço... — ele se interrompeu. — Talvez tenha se tornado demais para você?
— Não!
— Está tudo bem. Talvez não tenha nascido para isso. Uma flor graciosa de estufa não resiste aos estragos da natureza selvagem. Já foi um ato de infinita gentileza tolerar minha teimosia. Tomaremos um rumo diferente, se assim desejar.
A mão branca da garota pressionou a mão pálida do nobre, e seu rosto delicado balançou de um lado para o outro.
— Quero tentar e ver se conseguimos. Ir até as estrelas.
Ah, quem poderia imaginar que a jornada que esses dois empreenderam não seria um sequestro diabólico, e sim a fuga de um casal perdidamente apaixonado? Um jovem nobre vampiro e uma jovem humana... Unidos não pelo medo e pelo desprezo, mas por um laço de amor mútuo, ainda mais forte por sua desesperança. Se não fosse esse o caso, não haveria chance de essa garota, tirada de uma vila onde todos haviam sido transformados em vampiros, seguir imaculada, com a pele intacta.
Para a Nobreza, atrair um humano para sua companhia era parte de sua forma de se alimentar, matizada por sua apreciação estética de sugar a vida de alguém belo. Contudo, ao mesmo tempo, o ato também era repleto do prazer de violar o que era relutante, bem como da distorcida sensação de superioridade que advinha de elevar um dos plebeus mais humildes ao seu próprio nível.
Mayerling não fizera nada disso. Apenas conduziu a garota para fora de casa, segurando-a pela mão enquanto a ajudava a entrar em sua carruagem, nada mais. Não usara feitiçarias para roubar sua liberdade, nem ameaças veladas de violência contra sua família para forçá-la a obedecer. A garota apenas saira de casa por vontade própria.
De tempos em tempos, essas coisas aconteciam. Laços se formavam entre os mundos dos humanos e do sobrenatural. Entretanto, eles não necessariamente se tornavam uma ponte duradoura entre os dois mundos, e na maior parte dos casos o casal em questão era perseguido por uma multidão armada com pedras. Como foi o caso destes dois.
A Nobreza cintilava na luz da extinção, e a garota havia perdido qualquer mundo para o qual pudesse retornar, então para onde os dois poderiam ir? Para fora, entre as estrelas.
Mayerling ergueu o rosto.
— O que foi?
— Nada. — respondeu. — Parece que o amanhecer será cedo hoje. Se quisermos avançar um pouco mais, terei que cuidar dos cavalos.
Beijando a garota na bochecha, retornou ao poleiro do cocheiro como uma sombra.
Com o chicote na mão, não foi para a frente que voltou seu olhar primeiro, mas sim para a escuridão atrás deles. Em um lugar isolado do resto do mundo exterior, ouviu o som de cascos ferrados se aproximando ao longe.
— Tão cedo... — murmurou para si mesmo. — Deve ser o D, não é?
Um estalo soou na traseira do cavalo quando seu chicote foi balançado. A paisagem de ambos os lados passou como fragmentos. Porém, o ouvido do Nobre captou o fato de que os passos dos cascos estavam pouco a pouco se aproximando.
— Só mais um pouco até o rio... — murmurou Mayerling. — Ouça-me, ó estrada que se estende entre ele e eu. Conceda-me apenas mais dez minutos, eu imploro.
— Oh. Enfim está alcançando. — disse Nolt.
Na nuvem que prendia seu olhar, um pequeno ponto luminoso começou a piscar à frente de D. Luz que vazava das janelas da carruagem, sem dúvida.
— De a ele mais cinco minutos. Não importa o que aconteça, está tudo bem para nós. Então, que tipo de visão você vai nos mostrar em seguida, mano?
Ele não conseguiu perguntar nada a Borgoff, pois suas palavras se reduziram a murmúrios quando viu como o mais velho do clã estava concentrado no espelho, excluindo tudo o mais.
Talvez fosse devido a essa feitiçaria sem precedentes, uma magia que podia escolher uma cena à vontade do olhar da lua, que tinha acesso a todas as coisas na Terra, e então usar bancos de nuvens como tela para projetar essa cena, contudo, por algum motivo, cada pedaço de carne no corpo colossal de Borgoff parecia ter sido arrancado. Ele parecia meio encolhido, quase como uma múmia.
Quando Nolt voltou seus olhos para a tela na massa de nuvens, murmurou um grito de surpresa. Em algum momento, a paisagem que passava rapidamente por D de ambos os lados havia se transformado em picos rochosos desolados.
— Bem, e então mano, está pensando em talvez provocar um deslizamento de terra ou algo assim para enterrar os desgraçados?
Finalmente, a visão penetrante de Mayerling captou o cavaleiro negro. A cauda de seu casaco cortava o vento, ondulando como asas ameaçadoras.
Será que conseguiria enfrentar e derrotar esse inimigo em igualdade de condições? Embora estivesse bastante confiante, a ansiedade começava a mostrar sua feia e negra cabeça no peito de Mayerling. Mesmo tendo se encontrado por apenas uma fração de segundo, a força e a afiação da lâmina que o atacara de cima ainda permaneciam vívidas em sua mão esquerda. O torpor por fim começava a desaparecer. No entanto, além disso, o horror de saber que a armadura de aço que repelia raios laser havia sido cortada ao meio o incomodava e o preocupava.
O Caçador de Vampiros D não podia ser subestimado.
Os olhos de Mayerling brilharam em um carmesim intenso, e as garras negras e curvas rangeram ao crescerem em sua mão direita, que seguia segurando o chicote.
Talvez antecipando o novo duelo mortal que estava prestes a começar, até o vento rugia. Mais à frente, uma ponte de madeira era visível. O som da água corrente podia ser ouvido. A corrente parecia bastante forte.
O olhar de Mayerling foi atraído para cima. Inclinando-se rapidamente, puxou um par de cilindros pretos de uma caixa ao lado do assento do condutor. Eram vibrobombas moleculares, completas com temporizadores. As partículas moleculares dentro delas eram submetidas a poderosas vibrações de altíssima velocidade, e podiam destruir a energia coesiva para reduzir qualquer substância a um pó fino.
Fazendo um estrondo tremendo, a carruagem começou a atravessar a ponte. O vão tinha cerca de dezoito metros de comprimento. Uns dez metros abaixo, uma faixa branca passou velozmente. Corredeiras.
Ele parou a carruagem assim que atravessou e se virou. Agarrando o interruptor da bomba vibratória molecular com os dentes, girou-o. Não eram exatamente armas dignas da Nobreza.
D chegou à ponte cerca de cinco segundos depois, avançando sem hesitar.
Não achava que estava sendo tolo. Esse Caçador devia ter autoconfiança e habilidade para lidar com qualquer situação. Não havia outra escolha senão Mayerling usar toda a sua força letal em resposta.
— Esperava resolver isso como homens, um contra um. — murmurou enquanto ouvia o trovão dos cascos ferrados. — Vejamos se isto o agrada, D...
Porém no instante em que puxou o braço para trás para se preparar para o arremesso, um relâmpago brilhou diante de seus olhos. De repente, um clarão surgiu de uma massa negra de nuvens que obstruía o céu, com o objetivo de atingir o topo da ponte... E a estrada bem em frente a D.
Faíscas voando silenciosamente à sua frente, como o Caçador poderia evitar o enorme buraco de três metros de largura que se abriu de repente à sua frente? As patas de seu cavalo se moviam em vão em direção ao ar, e D, mantendo sua graciosa postura equestre, despencou de cabeça em direção às corredeiras violentas e estrondosas abaixo.
Parte 3
— Você conseguiu! — assim que Nolt gritou, o corpo bastante debilitado de Borgoff caiu de repente para a frente.
Ao ouvir a comoção, Kyle também colocou a cabeça para fora.
— O que aconteceu? — ele olhou pela janela para o céu, no entanto as propriedades projetoras das nuvens haviam desaparecido junto com a consciência de Borgoff. — Ah, mano... Você usou de novo, não foi? E é você quem fica falando que cada vez que o usa, perde três anos da sua vida.
Sentindo a provocação debochada, o irmão mais velho disse com uma voz hesitante, como a de um morto.
— Eu o fiz cair no rio. Dampiros não sabem nadar... Nolt, encontre-o e de um fim nisso.
Alguns minutos depois, após ver o segundo mais velho partir em uma nuvem de poeira, Borgoff deu a ordem para Kyle dirigir.
Ele foi para o quarto nos fundos para descansar seus ossos cansados. Havia um beliche de cada lado para seus irmãos. O seu era especialmente grande e ficava bem no fundo.
Enquanto caminhava pelo corredor, tentando fazer o mínimo de barulho possível, seu braço sem carne, embora ainda considerável, foi agarrado por algo estranhamente frio. Borgoff se virou.
Uma mão branca, que poderia ser confundida com a de uma múmia de verdade, sobressaía da cama de baixo à direita.
— Ei, não sabia que você tinha acordado. Desculpe se aquele idiota do Nolt te incomodou com toda aquela gritaria.
De onde o mais velho dos Marcus tirava esse tom de voz gentil era um completo mistério.
A pessoa na cama se virou, embora tenha ficado evidente quão doloroso tal movimento era. Não passava de um pequeno volume lamentável sob os cobertores.
— Desculpe, mano... Por não estar carregando meu próprio peso...
Em resposta à voz frágil, Borgoff balançou a cabeça sem dizer uma palavra. Seu pescoço grosso estalou e parecia que ia quebrar.
— Não fale besteira. Nós quatro somos mais do que suficientes para enfrentar qualquer um. Apenas fique quieto e descanse. — depois de acariciá-lo, a mão esguia por fim voltou para debaixo dos cobertores. — Então... — acrescentou Borgoff. — Parece que não terá convulsões por um tempo, né?
A essa pergunta totalmente compreensiva, o outro homem deixou os cobertores que havia puxado sobre a cabeça deslizarem de volta para baixo.
— Vou ficar bem. — disse. — Acho que conseguirei manter sob controle sozinho.
Seu rosto sorria enquanto respondia com uma débil voz. Seu irmão sabia que devia estar sorrindo, mas a expressão acabou se assemelhando a um ricto. Suas bochechas estavam encovadas, seus olhos nublados estavam fundos em órbitas cavernosas, e o fôlego que escapava com sua voz de lábios da cor da terra era tão fino quanto o de um paciente à beira da morte. O corpo frágil pertencia a Grove, o irmão mais novo e doente que Nolt mencionou quando o clã conheceu D.
Contudo, se visse aqueles traços cadavéricos, até mesmo D ficaria surpreso. O rosto de Grove, que ostentava uma inocência infantil, estava marcado pelas exatas mesmas feições do jovem vigoroso que massacrara o exército de vampiros atacantes naquele dia com um único golpe, e depois partira.
Mayerling observou, quase distraidamente, seu temível perseguidor ser sugado pela torrente suja abaixo da ponte e desaparecer de vista em questão de segundos. Mayerling não percebeu que a garota abrira as cortinas impermeáveis à luz e colocara a cabeça para fora da janela.
— O que aconteceu?
Virando-se ao ouvir sua voz ansiosa, respondeu.
— Nada. Só uma coisa a menos para nos preocupar.
Ao ver a ponte atrás da carruagem, onde chamas e fumaça negra continuavam subindo, o rosto da garota assumiu uma expressão sombria.
— Mas o que diabos... — ela ofegou. — Você fez aquele buraco?
Mayerling não respondeu. Sentia na pele que aquilo era obra de outro inimigo.
Não fora um raio que abrira um buraco na ponte, mas um feixe de energia destrutivo de outro tipo. Mesmo agora, um enxame de mais de dois mil satélites carregados com armamento de feixe continuava seu longo sono em órbita geoestacionária a cerca de 36.000 quilômetros acima da Terra. Muitos destes haviam sido lançados pelo governo para ajudar a conter a rebelião humana, porém também havia inúmeros satélites de propriedade privada. Cada um estava equipado com um meio de gerar feixes que eram decididamente artificiais. O que disparavam era bem diferente da energia natural gerada por tempestades. A julgar pela precisão do feixe e por parecer estar mirando apenas em D, havia sido disparado por um humano, e um que sem dúvida sentia alguma animosidade em relação ao Caçador. Isto era evidente; qualquer um que desejasse ajudar Mayerling já havia perecido há muito tempo.
Talvez outro Caçador. Um inimigo que deveria ser temido por razões diferentes de D. Contudo seria apenas um?
Com seus olhos infinitamente frios e escuros fixos na serpente prateada da correnteza, Mayerling voltou-se para a garota.
— Fique tranquila... Com apenas mais duas noites, estaremos no portão para as estrelas. Durma bem. Relaxe e confie tudo a mim.
Quando a garota assentiu e voltou para dentro, Mayerling olhou para a lua que pairava no céu e murmurou.
— Mais dois dias... No entanto o dia amanhecerá em breve. Será que encontrarei esse novo inimigo antes que esses dias passem?
Até mesmo uma torrente que fluía com força suficiente para rachar rochas perdia sua ferocidade ao chegar tão longe, e ao atingir a margem ali, não mostrava mais suas presas. O rio se alargava, e aqui e ali o brilho de escamas prateadas de peixes que saltavam em busca da luz da lua ondulavam na superfície da água. Por vezes, a água corria translúcida até o leito do rio, e a maneira como formas colossais semelhantes a serpentes nadavam rio acima em um caminho em ziguezague era bastante perturbadora.
Na trilha que corria um pouco acima da margem do rio, um cavaleiro murmurou.
— Bem, isso deve me colocar bem perto agora.
O cavaleiro, Nolt Marcus, o segundo mais velho do clã, parou sua montaria. De acordo com as ordens de Borgoff, Nolt havia partido para encontrar e destruir D depois que este foi engolido pela correnteza lamacenta. Foi até aqui que Nolt havia ido.
O local ficava a cerca de três quilômetros rio abaixo da ponte. Ao longo da espinha dorsal das montanhas orientais, um prenúncio da tênue luz azul da aurora começava a aparecer, embora a escuridão que envolvia o mundo seguia densa e negra.
Examinando os arredores, Nolt pegou seu bastão hexagonal com a mão direita.
— Acho que não o encontrarei mais adiante rio abaixo. Então, o desgraçado conseguiu sair sem se afogar? — perguntou o irmão Marcus em voz alta. — Por outro lado, não consigo imaginar como um dampiro conseguiria realizar uma façanha dessas...
O tom de desagrado na sua voz devia-se ao fato de a espécie conhecida como dampiro possuir muitas das características de criaturas sobrenaturais. Como uma mistura de sangue entre a Nobreza, os vampiros, e humanos, os dampiros herdaram algumas das forças e fraquezas físicas de ambos. Da Nobreza, os dampiros herdaram a capacidade de se recuperar de ferimentos que seriam considerados letais para um ser humano. Por outro lado, perdiam até setenta por cento de sua força à luz do dia, sentiam uma sede insaciável pelo sangue dos vivos quando estavam com fome e, talvez o mais estranho de tudo, nenhum conseguia se manter à tona na água.
No início da era da Grande Rebelião da humanidade, a completa falta de flutuabilidade dos vampiros era considerada uma das poucas maneiras possíveis de se livrar deles. No entanto, quando ficou claro que o afogamento em si tinha resultados um pouco mais brandos em comparação com estacas ou luz solar, adotou-se uma visão muito mais sombria do valor da imersão como contramedida. O afogamento fazia o coração parar de funcionar e o corpo cessar toda a regeneração, entretanto esses efeitos eram desfeitos sem dificuldade com a chegada da noite e uma infusão de sangue fresco.
Todavia enquanto um vampiro fosse privado de sangue ou da chegada da noite, seria impossível para este se recuperar do afogamento. Em outras palavras, após uma imersão, era possível queimar o nobre em coma ou selá-lo na terra para sempre. Como os vampiros eram tão vulneráveis após o afogamento, a água corrente ainda servia razoavelmente bem à humanidade.
Era disso que Borgoff estava falando quando disse a Nolt “Acabe com ele.”
— Que bom que você pôde vir.
A voz grave fez o corpo inteiro de Nolt enrijecer. Só por um instante, porém. Seu bastão hexagonal rasgou o ar atrás dele, na direção da voz. Era como se sua mão direita tivesse se tornado um clarão marrom. O estranho era que o arco que sua arma descrevia com a velocidade da luz era um círculo completo. De fato, o bastão hexagonal havia crescido para quase o dobro do seu comprimento anterior, estendendo-se em direção ao ponto de onde a voz viera.
Contudo, quando Nolt se virou, atônito com a falta de contato, o bastão em suas mãos não era mais comprido do que o normal.
— Você tem uma habilidade bem incomum, senhor. — disse o jovem de beleza estonteante com uma voz de aço, do alto de um bloco de pedra ciclópico que se erguia à beira da estrada.
Nenhuma resposta foi dada, embora um clarão marrom disparou. O ponto que tocou se partiu, e em meio aos fragmentos de pedra espalhados, D voou pelo ar como um pássaro místico. Seu olhar gélido teria captado a marca que o bastão deixou na superfície rochosa?
Nas mãos de Nolt, o bastão que cortava através de rochas como se fosse argila, mudava de direção facilmente e avançava em direção a D, que estava no ar.
Havia um brilho na mão direita de D. O arco marrom foi contrariado por um lampejo prateado, e houve um baque surdo. Sem dar a Nolt tempo para um segundo ataque, assim que pousou bem na frente do irmão Marcus, D brandiu sua lâmina para baixo.
Sentindo o medo congelante daquela lâmina o tempo todo, Nolt saltou para trás. O ataque que desferiu ao saltar para trás não foi um golpe, mas sim uma estocada, e seu bastão pareceu crescer infinitamente enquanto mirava o rosto de D. Embora não parecesse mover um músculo, o bastão errou D por uma fração de centímetro enquanto este se lançava no ar.
Um corte lateral reluzente. A lâmina que teria aberto um corte diagonal no meio do rosto de Nolt, em vez disso, atingiu o bastão que disparou, e as duas figuras romperam para lados opostos.
Com a ponta de seu bastão ainda apontado para o peito de D, Nolt respirava com dificuldade. Os sinais de seu medo. Uma linha vermelha fina como um fio de cabelo percorria o meio de seu rosto, da testa até o queixo. Aquilo era obra da lâmina que D havia golpeado assim que pousou.
No entanto, o sangue que escorria pelo seu rosto não era a única preocupação de Nolt. Seu bastão hexagonal não era um mero pedaço de madeira, e sim um núcleo de aço que, apesar de fino, podia desviar um raio laser de alta intensidade. Porém, faltava cerca de trinta centímetros em uma de suas extremidades. Percebendo que havia sido cortado enquanto estava no ar, Nolt perdeu boa parte de sua confiança.
— Seu filho da puta! — rosnou, finalmente conseguindo dizer algo. — Suponho que não é um dampiro qualquer, né?
— Eu sou um dampiro! — respondeu D, mantendo a mesma pose diante dos olhos azuis de seu oponente.
O canto da boca de Nolt se curvou em um sorriso.
— É mesmo? Então, o que acha disto aqui?
Com essas palavras, seu bastão girou em círculo e atingiu o chão ao seu lado.
Com um estrondo ensurdecedor, um pedaço de terra com cerca de um metro de diâmetro desabou sobre si mesmo. Não se tratava de uma depressão comum. Mantendo uma profundidade de aproximadamente trinta centímetros, transformou-se em uma vala que se estendia até o rio.
Prestes a atacar de novo, D voltou seu olhar para o afundamento. A loucura tomou conta da água, antes calma. Conforme descia pela vala a partir da margem, a água ganhou velocidade intensa e, batendo contra as margens, elevou-se como uma criatura viva. Em grandes ondas, a água jorrou no espaço entre os dois. Primeiro os tornozelos e depois as botas de D e Nolt afundaram.
— E então, dampiro? Consegue se mexer? — perguntou Nolt com um sorriso. Era o sorriso de um vencedor. — Sabe, eu já lutei com gente como você antes. E foi isso que fiz naquela ocasião. Quando uma parte de um dampiro fica molhada, ele fica meio rígido, não é verdade?
D não se mexeu. Talvez não conseguisse se mexer?
— Morra, seu desgraçado! — gritou Nolt enquanto avançava. Segurando firmemente a parte inferior do bastão, ele o brandiu como se fosse desferir um golpe certeiro na cabeça de D. A água espirrou de seus pés e ele se impulsionou para o chão.
Um raio negro surgiu de baixo. Mais alto e mais rápido que o bastão, este dançou sobre sua cabeça. A última coisa que Nolt viu foi a água densa subindo do chão como um predador tenaz agarrado às botas negras de D.
Fendado pela lâmina de D da testa ao queixo, quando Nolt caiu de volta ao chão, já não respirava mais. Uma névoa sangrenta emanava de seus restos mortais.
Sem sequer olhar para Nolt enquanto desabava em um monte, D voltou para trás das rochas onde aparecera pela primeira vez. Seu cavalo o esperava lá. Com o casaco esvoaçando enquanto montava, os olhos do Caçador estavam eternamente frios enquanto os encarava rio acima, mas também carregavam um toque de tristeza.
— Corra se quiser... — murmurou D. — No entanto ainda vou te pegar.
Enquanto suas palavras pairavam no ar, seu cavalo desceu até a margem. Sem hesitar, entrou na água. Não era rasa. O rio chegaria à altura da cintura de D enquanto estivesse montado.
Se alguém estivesse observando, pensaria que o cavalo estava saltando sobre a superfície da água. Dando um salto enorme, o cavalo afundou apenas até a altura dos cascos antes de continuar dando um salto sem esforço após o outro, levantando um pouco de água branca enquanto carregava D através do rio largo.
Não devia haver muitas pedras submersas a apenas alguns centímetros da superfície da água. Contudo era evidente que D tinha o poder de encontrá-las em uma fração de segundo e manobrar seu cavalo para cima delas.
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