Capítulo 20
A casa está pegando fogo.
Esse foi o primeiro pensamento de Muriel ao acordar com o cheiro de queimado. Em seu sonho, estava presa na casa de Arthur enquanto as chamas rugiam ao seu redor, o prédio um inferno escaldante que transformava os móveis e o corpo de Arthur em cinzas negras e esfareladas. Ela ficou parada na janela, batendo os punhos no vidro enquanto Billy esperava do lado de fora, observando impassivelmente, com as mãos nos bolsos do terno. No sonho, ele sorria.
Muriel pulou da cama e abriu a porta com força, onde foi recebida por nuvens de fumaça cinza. Reconheceu o cheiro, então fez uma careta e acenou com a mão na frente do rosto, seguindo o som de pratos batendo enquanto marchava pelo corredor de camisola e chinelos.
Billy estava na cozinha, as mangas do terno de casamento arregaçadas até os cotovelos. Bacon chiando em uma frigideira. Bem, talvez chiado não fosse a palavra. Estava carbonizado, escuro, crocante e queimando.
— Bom dia, Muriel.
Ela abriu a boca para responder e engasgou com a fumaça.
— Meu Deus! — tossiu. — Abra uma janela!
Billy a olhou sem entender, e Muriel passou por ele com o cotovelo e destrancou a porta, abrindo-a. O ar frio invadiu a cozinha, espalhando a fumaça em espirais. Em seguida, tirou a panela do fogão e jogou as tiras de bacon cremadas no jardim.
Billy sorriu.
— Fiz o café da manhã para você.
Muriel o encarou.
— Você deveria ser um comediante com esse senso de timing.
— Comediante? Não conheço o termo.
— Você dá trabalho, sabia?
Billy não disse nada.
— Um comediante faz piadas. — explicou. — Sabe, para fazer as pessoas rirem.
— Como um bobo da corte?
A panela foi colocada na água fria.
— Faz tempo que não vem para terra firme, não é?
— Eu comi um bobo da corte uma vez. — ele respondeu. — Tinha um gosto estranho.
Muriel começou a esfregar a panela engordurada.
— Graças a Deus você é bonito. — murmurou. — Aqui, saia da minha cozinha. Sente-se que preparo alguma coisa para nós.
— Não precisa de nada para mim. — disse ele.
— Não está com fome?
Assim que as palavras saíram de seus lábios, percebeu que sabia a resposta. A noite passada voltou com uma clareza de tirar o fôlego, aquele momento de encarar os olhos de si mesma mais jovem, como olhar para um espelho assombrado e rever o passado. A panela escorregou de sua mão e caiu em um copo de vidro, quebrando-o.
— Meu Deus! — exclamou Muriel. — O que você fez?
— Fiz o café da manhã.
— Antes disso, quero dizer. Ontem à noite. Aquilo...
— Eu me alimentei e agora me sinto forte. Achei que ficaria feliz.
— Feliz? Billy, você era eu. Não pode apenas se transformar em mim quando quiser. E se alguém...
— Te reconhecer?
Ela riu secamente.
— Tudo bem. Mas por que eu? Por que uma mulher? Pelo menos vestiu alguma coisa?
— Roupas não eram necessárias.
— Sempre são necessárias, Billy. Principalmente na Escócia.
Seu rosto estava inexpressivo.
— Achei que ficaria feliz. — repetiu. — Não está ouvindo?
— Ouvir o quê? Estou falando sério, não pode...
Mas então Muriel notou.
O silêncio.
Um arrepio percorreu sua espinha. As máquinas haviam parado.
Ela se virou e correu para o corredor, pegando seu casaco e abrindo a porta da frente. Saindo para a manhã, deixou a brisa envolvê-la e escutou, tentando identificar os sons distantes de trabalhadores, rádios e máquinas... Porém não havia nenhum. Tudo estava quieto, exceto pelas sutis harmonias da natureza.
As ondas, tão calmas e distantes. O vento batendo na lateral do prédio e fazendo a grama balançar. Gaivotas grasnando sobre o mar.
Logo percebeu que Billy estava ao seu lado. Ele pegou sua mão.
— Você...
— Shhhh... — sussurrou. — Escute. — lágrimas brotaram em seus olhos. — É tão lindo.
O sol pairava bem acima deles, e sentiu o calor agradável irradiando em suas bochechas.
— Você conseguiu. Parou o barulho.
— Só por um tempo. — disse Billy.
— É. Mas por enquanto...
Muriel segurou sua mão. Parecia mais firme, mais real.
Billy se virou para ela, a luz da manhã em seu rosto, o vento soprando em seus cabelos.
— Se importaria em me acompanhar em uma caminhada? — perguntou, e Muriel sorriu concordando.
———
Eles pegaram a trilha costeira, indo para a praia quando o chão sob seus pés ficou muito lamacento e traiçoeiro. Muriel percebeu que ainda estava de chinelos, então os tirou e deixou os pés descalços afundarem na areia. Sentiu com se tivesse vinte anos outra vez.
Os dois passaram pela rocha onde havia encontrado Avalon naquele dia fatídico, no entanto nenhum deles mencionou o encontro. As coisas eram diferentes agora. Era Billy com quem estava, cuja mão apertava. Não a de Avalon. Este nem tinha mãos.
Lançou um olhar de adoração para o seu perfil, apreciando sua companhia, apreciando a tranquilidade. Só os dois, cercados de paz e tranquilidade, como a vida costumava ser.
— Quantos? — perguntou de repente, a curiosidade a dominando.
— Não entendi a pergunta. — disse Billy.
— Você parece forte. Mais forte do que antes. Qual... Qual foi o tamanho da sua refeição?
— Três pratos. — respondeu, impassível. — Isso foi humor.
— Sim, suponho que sim.
— Eu consumi três homens.
— Ok, sim, entendi.
— E humanos costumam falar sobre refeições de três pratos.
Ela parou e o encarou.
— Billy, entendi a piada.
Este pareceu estranhamente magoado.
— Estava sendo um comediante. Não achou engraçado?
Muriel hesitou por um momento.
— Você e seu amigo não usavam muito humor, não é?
— Nós nos comunicávamos na maior parte por meio de relações sexuais.
— Nossa... — disse Muriel, com as bochechas corando.
— Nós poderíamos fazer isso. — disse ele. — Eu sei como.
— Não seja bobo. Estamos velhos demais para essa bobagem. — ela olhou para Billy. — Bem, talvez você não esteja. Entretanto eu estou. Estou chegando aos noventa, seu grande idiota.
Ela esperou que houvesse alguma coisa, com o coração batendo forte. Como Billy não disse, se virou e voltou a andar.
Billy a seguiu.
Ela queria estar com ele. Deitar-se em seus braços, sentir suas carícias ternas. Mas quem estava enganando? Não conseguia mais fazer essas bobagens ultimamente. Quebraria o quadril. E, de qualquer forma, não seria justo. Ele ainda parecia tão jovem. Tinha metade da sua idade, pelo amor de Deus. Imaginou se talvez ele pudesse se tornar um pouco mais... Apropriado para a idade?
— Aqui estamos. — disse Billy.
Muriel olhou para cima. A entrada da Caverna de Rory a chamava.
— Você me trouxe aqui. — disse ela.
— Você pensa muito sobre aqui.
Sua mão pousou na parte inferior das costas dela e gentilmente a impulsionou em direção aos penhascos sobre a areia macia que girava em torno de seus pés em círculos hipnóticos, e em sua mente eles eram jovens outra vez, dois amantes partindo em uma aventura, despreparados para o que os esperava, porém transbordando a confiança e a arrogância da juventude.
Os dois entraram na caverna.
— Feche os olhos... — disse Billy, e Muriel o fez. Que diferença fazia? Estava escuro como breu. — Vou te guiar.
Como se precisasse. Muriel conhecia a Caverna de Rory de cabo a rabo. Tantas tardes passadas ali cantando, depois de cumprir suas tarefas na casa e no jardim. Tantas lembranças.
Três passos à frente. Vire à esquerda. Abaixe a cabeça.
Durante todo o caminho, a mão de Billy pulsava com seu doce efeito entorpecente.
— Pode olhar agora. — disse Billy, sua voz reverberando nas paredes suavemente arredondadas.
— Não sei o que espera que eu...
Muriel abriu os olhos. Por um longo tempo, apenas ficou parada, olhando fixa, deixando as lágrimas escorrerem em silêncio.
— E... Eu...
Contudo não havia palavras em seu vocabulário para descrever o que sentia no fundo da alma.
A caverna era iluminada por velas. Centenas delas. Elas enfeitavam as paredes. Estavam empoleiradas em afloramentos rochosos e emitiam um brilho suave em cantos e fendas. Um cobertor vermelho e branco jazia sobre a areia, com uma garrafa de vinho e duas taças sobre. Muriel girou devagar, absorvendo a visão gloriosa. Era como se lembrava do dia do pedido de Billy, até o menor e mais imperceptível detalhe. A única coisa que faltava era o leve aroma de peixe e água do mar que emanava do próprio Billy. Ao se virar para vê-lo, impressionada, foi tomada em seus largos braços.
— Você está feliz? — perguntou.
— Oh, Billy... É...
Ele a beijou.
Muriel sentiu um tremor dentro de si enquanto passava as mãos pelos cabelos de Billy. Olhou em seus olhos, passando o dedo por seu rosto... No entanto algo estava errado. A mão.
Não era a sua.
Era jovem, sem uma ruga ou mancha à vista. E, ainda assim, estava conectada ao seu braço. Seu braço impecavelmente liso e jovem.
— O que você fez? — perguntou, tocando o rosto. Era macio, mas firme, a pele ao redor do pescoço esticada.
— Não pode durar muito. — disse Billy. — Me cansa. Porém, por enquanto... Aproveite.
— Eu te amo! — disse Muriel e, naquele momento, a criatura conhecida como Avalon não poderia estar mais longe de sua mente. Ela abraçou Billy com uma paixão e um vigor que faltavam em sua vida havia tantos anos, abrindo a camisa dele, os botões estourando e caindo esquecidos na areia enquanto ele abria o zíper do casaco de inverno dela... Lá estava diante dele em sua camisola rosa de babados, sentindo-se ridícula, embora também insanamente, inacreditavelmente excitada.
— Isto é real? — perguntou baixinho.
Billy a olhou e sorriu.
— Isso importa?
— Não! — respondeu, enquanto Billy deitava seu corpo sobre o cobertor. Muriel o encarou, e seu coração se encheu de tanto amor que temeu que fosse explodir. — Acho que não.
———
Eles deitaram juntos, a cabeça de Muriel apoiada no peito de Billy, o cobertor enrolado neles. As velas tremeluziam, lançando sombras estranhas nas paredes da caverna. Muriel as observava com fascínio, tão satisfeita quanto sempre estivera. Suspirou, e o suspiro saiu como um ronronar, o que a fez rir.
Tentou adivinhar que horas eram, então decidiu que não se importava. Se o tempo tivesse alguma decência, pararia de vez e os deixaria congelados naquele momento perfeito por toda a eternidade.
— Não posso te perder de novo! — disse.
Billy acariciou seus cabelos, agora de um castanho brilhante em vez do cinza opaco que era quando acordou naquela manhã.
— Não precisará.
— Mas você não precisa voltar para... De onde veio?
— Se tiver comida e água, posso ficar o tempo que for necessário. Vivi por eras. Vi civilizações surgirem e ruírem. Sua vida é apenas uma gota no oceano para mim. — ele esperou, deixando suas palavras pairarem no ar, e então quebrou o silêncio. — E é bom ter um amigo outra vez. Você é uma boa pessoa, Muriel. Não deixarei que nada de mal lhe aconteça. Sei que se arrependeu de nunca ter se despedido dele... De mim... Porém desta vez não será necessário. Estarei ao seu lado até o fim.
Muriel pensou que fosse chorar de novo, contudo suas lágrimas já haviam se esgotado.
Billy sorriu e tocou sua bochecha.
— No entanto talvez pudesse me ensinar os detalhes de como preparar o café da manhã.
Ela o encarou pelo que pareceu uma eternidade.
— Foi outra piada?
— Sim. — disse ele. — Acredito que sim.
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