domingo, 2 de novembro de 2025

The Dragonbone Chair — Volume 02 — Capítulo 21

Capítulo 21: Confortos Frios


O Duque Isgrimnur de Elvritshalla havia pressionado um pouco demais a lâmina. A faca saltou da madeira e cortou seu polegar, liberando um filete repentino de sangue logo abaixo da articulação. Resmungando um palavrão, deixou o pedaço de cerne cair no chão e enfiou o polegar na boca.

“Frekke está certo...” pensou. “Maldito seja. Nunca terei o jeito para isso. Nem sei por que tento.”

Sabia, porém, convencera o velho Frekke a lhe mostrar os rudimentos da escultura durante seu virtual aprisionamento em Hayholt. Qualquer coisa, raciocinara, era preferível a andar de um lado para o outro pelos salões e ameias do castelo como um urso acorrentado. O velho soldado, que também servira Isbeorn, pai do Duque, mostrara pacientemente a Isgrimnur como escolher a madeira, como espiar o espírito natural que se escondia ali dentro e como libertá-lo, lasca por lasca, de sua prisão. Observando Frekke trabalhando, com os olhos quase fechados, o lábio marcado pela cicatriz curvado num sorriso inconsciente, os demônios, peixes e feras vivas que emergiam de debaixo de sua faca pareciam as soluções inevitáveis ​​para as questões que o mundo apresentava, questões de aleatoriedade e confusão na forma de um galho de árvore, na posição de uma rocha, nos caprichos das nuvens de chuva.

Chupando o polegar ferido, o Duque brincava desordenadamente com tais pensamentos... Apesar de todas as alegações de Frekke, Isgrimnur achava bastante difícil pensar em qualquer coisa enquanto esculpia; a faca e a madeira pareciam em conflito, em uma batalha campal que poderia escapar de sua vigilância a qualquer momento e descambar para a tragédia.

“Como agora.” pensou, chupando e sentindo o gosto de sangue.

Isgrimnur embainhou a faca e se levantou. Ao seu redor, seus homens trabalhavam duro, limpando um par de coelhos, cuidando da fogueira, preparando o acampamento para a noite. O Duque se moveu em direção a fogueira, virou-se e ficou com suas largas costas voltadas para as chamas. Seu pensamento anterior sobre tempestades voltou à mente enquanto olhava para o céu que assumia em pouco tempo um tom cinza.

“Este é o mês de maya...” refletiu. “E aqui estamos nós, a menos de vinte léguas ao norte de Erchester... E de onde veio essa tempestade?”

Naquela ocasião, há cerca de três horas, Isgrimnur e seu bando perseguiram os bandidos que os haviam emboscado na abadia. O Duque ainda não tinha ideia de quem eram os homens, alguns eram conterrâneos, embora não identificou rostos familiares... Ou por que haviam feito o que fizeram. Seu líder usava um capacete em forma de um focinho de cão rosnando, mas Isgrimnur nunca ouvira falar de tal emblema. Talvez nem tivesse sobrevivido para se perguntar, não fosse o monge de túnica preta que gritara um aviso do portão de St. Hoderund pouco antes de cair com uma flecha entre as omoplatas. A luta fora feroz, porém a morte do monge... Que Deus misericordioso o tenha, quem quer que fosse... Servira de aviso, e seus homens puderam se preparar para o ataque. Eles haviam perdido apenas o jovem Hove no ataque inicial; Einskaldir fora ferido, contudo matara seu oponente mesmo assim, e a outro ainda.

“O inimigo não estava procurando uma luta justa.” pensou Isgrimnur com amargura. Diante de Isgrimnur e sua guarda, todos homens de combate e ansiosos por ação após meses no castelo, os aspirantes a emboscadores fugiram através do terreno comum da abadia até os estábulos, onde seus cavalos pareciam já estar selados e à espera.

O Duque e seus homens, após uma rápida inspeção, não encontrando nenhum dos monges vivo para explicar o ocorrido, voltaram a montar e se lançaram em perseguição. Talvez tivesse sido mais político ficar e enterrar Hove e os outros monges, no entanto Isgrimnur estava furioso. Queria saber quem, e queria saber por quê.

Todavia não era para ser. Os bandidos haviam se adiantado uns dez minutos sobre os rimmerios, e seus cavalos estavam descansados. Os homens do Duque os avistaram uma vez, uma sombra em movimento descendo da colina para a planície, atravessando as colinas baixas em direção à Estrada Wealdhelm. A visão encheu a companhia de Isgrimnur de vida nova, e eles esporearam seus cavalos encosta abaixo em direção aos vales do sopé de Wealdhelm. Suas montarias pareciam ter se contagiado com a excitação, acumulando reservas de força; por um breve momento, pareceu que poderiam atropelar os invasores, vindo por trás como uma nuvem vingativa rolando pela planície.

Em vez disso, algo estranho aconteceu. Num momento, estavam cavalgando sob a luz do sol, então o mundo ficou perceptivelmente mais escuro. Quando isso não mudou, quando oitocentos metros depois as colinas ao redor ainda estavam sem vida e cinzentas, Isgrimnur olhou para cima e viu um nó de nuvens cor de aço rodopiando no céu acima, um punhado de sombra sobre o sol. Um estalo fraco e estridente, e de repente o céu estava derramando chuva... Primeiro um respingo, depois torrentes.

— De onde veio isso? — Einskaldir gritou para ele, uma névoa sibilante agora puxada como uma cortina entre eles.

Isgrimnur não fazia ideia, mas aquilo o perturbara em seu íntimo... Nunca vira uma tempestade surgir tão rápido em um céu antes limpo. Quando, um momento depois, um dos cavalos dos homens escorregou na grama molhada e emaranhada, e tropeçou, derrubando seu cavaleiro... Que, graças a Aedon, pousou em segurança... Isgrimnur ergueu a voz e ordenou que suas tropas parassem.

Foi assim que haviam escolhido acampar ali, a apenas uma légua ou mais da estrada de Wealdhelm. O Duque considerou por um momento voltar para a abadia, porém os homens e os cavalos estavam cansados, e o fogo que rugia nos prédios principais quando partiram sugeria que provavelmente haveria pouco pelo que voltar. Contudo o ferido Einskaldir, que, embora Isgrimnur soubesse que não era assim, às vezes parecia não possuir emoções além de uma ferocidade generalizada, havia cavalgado de volta para a abadia para buscar o corpo de Hove e pegar qualquer outra coisa que pudesse dar uma pista sobre as identidades ou motivações dos atacantes. Conhecendo Einskaldir e seus costumes, o Duque cedeu, estipulando apenas que deveria levar Sludig consigo, que era um espírito um pouco menos ardente. Sludig era um bom soldado, no entanto, ainda assim valorizava a própria pele o suficiente para fornecer algum contrapeso ao ardente Einskaldir.

“Então aqui estou...” pensou Isgrimnur com desgosto e cansaço. “Assando meu traseiro em frente à fogueira enquanto os jovens fazem o trabalho. Maldita seja a idade, maldita sejam minhas costas doloridas, maldito seja Elias, malditos sejam estes tempos malditos!”

Ele olhou para a terra, abaixou-se e pegou o pedaço de madeira que estava ali, que esperava que algum milagre o ajudasse a moldar em uma Árvore, para repousar no peito de sua esposa Gutrun quando voltasse para ela.

“E maldita seja a escultura!” ele a jogou nas chamas.



***



Isgrimnur jogava ossos de coelho no fogo, sentindo-se um pouco melhor depois de ter comido, quando ouviu um repentino ruído de cascos. Abaixou as mãos para limpar a graxa em sua túnica, e seus vassalos fizeram o mesmo... Não seria bom ter a mão escorregadia no machado ou na espada. Parecia uma companhia muito pequena de cavaleiros, dois ou três no máximo; ainda assim, ninguém relaxou até Einskaldir e seu cavalo branco surgirem contra o crepúsculo. Sludig cavalgava logo atrás, conduzindo uma terceira montaria sobre a qual apareciam... Dois corpos.

Dois corpos, embora, como Einskaldir explicou em seu jeito conciso, apenas um era um cadáver.



***



— Um menino... — resmungou Einskaldir, sua barba escura já brilhando com gordura de coelho. — Encontrei-o bisbilhotando. Pensei que devíamos trazê-lo junto.

— Por quê? — Isgrimnur rugiu. — Não parece nada além de um necrófago.

Einskaldir deu de ombros. Sludig, seu companheiro de cabelos louros, sorriu afavelmente: não tinha sido ideia dele.

— Não havia nenhuma casa por perto. Não vimos nenhum menino na abadia. De onde veio? — Einskaldir cortou outro pedaço com sua faca. — Quando o agarramos, gritou por alguém. ‘Bennah’ ou ‘Binnock’, não lembro com certeza.

Isgrimnur virou-se para examinar por um momento o corpo de Hove, agora estendido sobre uma capa. Era um parente, primo da esposa de seu filho Isorn... Não um parente próximo, mas próximo o suficiente pelos costumes do norte frio para que Isgrimnur sentisse uma profunda pontada de remorso ao olhar para o rosto pálido como a neve do jovem, para sua fina barba dourada.

De lá, se virou para o cativo, ainda amarrado pelos pulsos, porém descido do cavalo para deitar-se encostado em uma rocha. O garoto era apenas um ou dois anos mais novo que Hove, magro, contudo rijo, e a visão de seu rosto sardento e da cabeleira ruiva emaranhada o fez lembrar algo que não conseguiu evocar a lembrança. O jovem estava atordoado pelo golpe que lhe deram, olhos fechados e a boca aberta.

“Parece um pobre camponês qualquer...” pensou o Duque. “Exceto por aquelas botas... Que aposto que encontrou na abadia. Por que, em nome da Fonte de Memur, Einskaldir o trouxe? O que devo fazer com ele? Matá-lo? Mantê-lo? Deixá-lo morrer de fome?”

— Vamos procurar pedras. — disse o Duque por fim. — Hove vai precisar de um túmulo, este lugar me parece terra de lobos.



***



A noite havia caído; os afloramentos rochosos que pontilhavam a planície desolada abaixo de Wealdhelm eram apenas aglomerados de sombra mais profunda. O fogo havia sido atiçado alto, e os homens ouviam Sludig cantar uma canção obscena. Isgrimnur sabia muito bem por que homens que haviam sido sangrados, que haviam perdido um dos seus... A pilha indistinta de pedras de Hove era um dos aglomerados de sombra além da luz do fogo... Podiam sentir o impulso de se entregar a tais tolices. Como ele próprio dissera meses antes, de pé à mesa em frente ao Rei Elias, havia rumores assustadores no ar. Ali, na planície aberta, diminuída, no entanto não protegida pelas colinas imponentes, coisas que eram contos de viajantes em Hayholt ou Elvritshalla, fábulas de fantasmas para animar uma noite monótona, não eram mais tão fáceis de ignorar com um comentário risonho. Assim, os homens cantavam, e suas vozes emitiam um som desafinado, mas muito humano, na imensidão noturna.

“E histórias de fantasmas à parte...” pensou Isgrimnur. “Fomos atacados hoje, e sem motivo algum que eu consiga entender. Estavam nos esperando. Esperando! O que, em nome do doce Jesuris, isso significa?”

Poderia ser que os bandidos estivessem apenas esperando o próximo grupo de viajantes que parasse na abadia... Mas por quê? Se estivessem apenas atrás de roubos e coisas do tipo, por que não saquear a própria abadia, um lugar que é bastante provável que teria pelo menos um ou dois relicários de qualidade? E por que esperar por viajantes casuais em uma abadia, para começo de conversa, onde naturalmente haveria testemunhas de qualquer ato de roubo?

“Não que tenhamos muitas testemunhas restantes, malditos sejam os olhos deles. Uma, talvez, se é que aquele garoto viu alguma coisa.”

Simplesmente não fazia sentido. Esperando para emboscar uma companhia de viajantes que, mesmo naqueles tempos, poderiam ser guardas do Rei... Que, na verdade, eram nortistas armados e experientes em batalha.

Portanto, era preciso cogitar a possibilidade de que ele e seus homens tivessem sido os alvos. Por quê? E, tão importante quanto isso, por quem? Os inimigos de Isgrimnur, Skali de Kaldskryke sendo um excelente exemplo, eram bem conhecidos por sua parte, e nenhum dos bandidos fora reconhecido como membro do clã de Skali. Além do mais, Skali havia retornado a Kaldskryke há muito tempo, e como poderia saber que Isgrimnur, farto da inatividade e temendo pela segurança de seu ducado, decidiria enfim confrontar Elias e, após uma discussão, receberia sua relutante permissão real para levar seus homens para o norte?

“‘Precisamos de você aqui, tio’, ele me disse. Sabia que eu havia parado de acreditar nisso há muito tempo. Só queria ficar de olho em mim, é o que acho.”

Ainda assim, Elias não insistiu tanto quanto o Duque previra; a discussão pareceu a Isgrimnur apenas uma questão de formalidade, como se Elias soubesse que o confronto estava chegando e já tivesse decidido ceder.

Frustrado com as voltas que seus pensamentos davam, Isgrimnur estava prestes a se levantar e ir para seu saco de dormir quando Frekke se aproximou, o fogo nas costas do velho soldado o transformando em uma sombra magra e cambaleante.

— Um momento, Vossa Senhoria.

Isgrimnur conteve um sorriso. O velho bastardo devia estar bêbado, só ficava formal quando ficava bêbado.

— Frekke?

— É aquele garoto, senhor, aquele que Einskaldir trouxe de volta. Está acordado. Achei que Vossa Senhoria gostaria de conversar com ele. — o soldado oscilou um pouco, porém logo transformou o gesto em uma ação de puxar as calças para cima.

— Bem, suponho que sim.

A brisa estava forte. Isgrimnur apertou ainda mais a túnica e começou a se virar, então parou.

— Frekke?

— Vossa Senhoria?

— Joguei outra maldita escultura no fogo.

— Eu imaginava que o senhor faria isso.

Enquanto Frekke se virava para voltar à jarra de cerveja, Isgrimnur tinha certeza de que o velho exibia um sorrisinho.

Bem, que se dane ele e sua madeira.



***



O garoto estava sentado, mastigando a carne de um osso. Einskaldir estava sentado em uma pedra ao lado, parecendo enganosamente relaxado... Isgrimnur nunca o vira relaxar. A luz da fogueira não alcançava o olhar profundo de Einskaldir, contudo o garoto, quando olhou para cima, estava com os olhos arregalados como um cervo surpreso em um lago na floresta.

Com a aproximação do Duque, o garoto parou de mastigar e o encarou com desconfiança por um momento, a boca entreaberta. Pouco depois, mesmo sob o brilho da fogueira, Isgrimnur viu algo passar pelo rosto do garoto... Seria alívio? O Duque se sentia perturbado. Esperava, apesar das suspeitas de Einskaldir... Afinal, o homem era tão espinhoso de desconfiança quanto um ouriço... Encontrar um jovem camponês assustado, aterrorizado ou, pelo menos, um tanto apreensivo. Este parecia um camponês, filho de um caipira ignorante, com roupas esfarrapadas e coberto de sujeira, no entanto havia uma certa atenção em seu olhar que fez o Duque se perguntar se talvez Einskaldir não estivesse certo.

— Ora, rapaz... — disse ele rispidamente na língua de westerling. — O que você estava fazendo bisbilhotando a abadia?

— Acho que vou cortar a garganta dele agora. — disse Einskaldir em rimmerspakk, um tom agradável em terrível contraste com suas palavras.

Isgrimnur franziu a testa, perguntando-se se o homem havia enlouquecido, e então percebeu, enquanto o garoto continuava a encará-lo com indiferença, que Einskaldir estava apenas tentando descobrir se o garoto falava a sua língua.

“Bem, se fala, é o garoto de mais sangue frio que já vi.” pensou Isgrimnur. Não, era inimaginável que um garoto daquela idade, no acampamento de estranhos armados, pudesse entender as palavras assustadoras de Einskaldir e não reagir.

— Ele não entende. — disse o Duque ao seu súdito na língua de Rimmersgardia. — Porém está calmo, não é?

Einskaldir grunhiu afirmativamente e coçou o queixo por entre a barba escura.

— Agora, garoto! — continuou o Duque. — Eu lhe perguntei uma vez. Fale! O que o trouxe à abadia?

O jovem baixou os olhos e colocou o osso que estava roendo no chão. Isgrimnur sentiu outra vez um puxão na memória, contudo ainda não conseguia se lembrar de nada.

— Estava... Estava procurando... Botas novas para usar.

O garoto gesticulou para suas botas limpas e bem cuidadas. O Duque o identificou pelo sotaque como erkyno, e algo mais... No entanto o quê?

— E vejo que encontrou uma. — o Duque agachou-se, ficando na altura dos olhos. — Sabia que pode ser enforcado por roubar dos mortos insepultos?

“Finalmente, uma reação satisfatória!”

O vacilar sincero do garoto diante da ameaça não poderia ter sido atuado, Isgrimnur tinha certeza. Ótimo.

— Desculpe... Mestre. Não quis fazer mal. Eu estou ferido de tanto andar, e meus pés doíam...

— Andando de onde?

Ele entendeu agora. O garoto falava bem demais para ser o pirralho de um lenhador. Era filho de um sacerdote, ou de um lojista, ou coisa do tipo. Sem dúvida tinha fugido.

O jovem encarou Isgrimnur por um momento; novamente o Duque teve a sensação de que o garoto estava calculando. Um fugitivo de um seminário, talvez, ou de um mosteiro? O que está escondendo?

O garoto por fim falou.

— Eu... Deixei meu mestre, senhor. Meus pais... Meus pais me colocaram como aprendiz de um vendedor de velas. Ele me espancava sempre que podia.

— Que vendedor de velas? Onde? Rápido!

— Ma... Malaquias! Em Erchester!

“Faz sentido, em grande parte.” decidiu o Duque. “Exceto por dois detalhes.”

— O que está fazendo aqui, então? O que o trouxe a São Hoderund? E quem... — Isgrimnur interveio. — É Bennah?

— Bennah?

Einskaldir, que estivera ouvindo com os olhos semicerrados, inclinou-se para a frente.

— Ele sabe, Duque. — disse em rimmerspakk. — Eu o ouvi gritar ‘Bennah’ ou ‘Binnock’, com certeza.

— Que tal ‘Binnock’ então? — Isgrimnur pousou a mão larga no ombro do cativo e sentiu apenas uma pontada de arrependimento quando o garoto estremeceu.

— Binnnock...? Ah, Binnnock... Meu cachorro, senhor. Do Mestre, na verdade. Ele também fugiu.

E o garoto sorriu, um sorriso torto que rapidamente reprimiu. Apesar de suas dúvidas, o velho Duque percebeu que gostava do rapaz.

— Estou indo para Naglimund, senhor. — continuou o garoto rapidamente. — Ouvi dizer que a abadia alimentava viajantes como eu. Quando vi os... Os corpos, os mortos, fiquei com medo, mas precisava de botas, senhor, precisava de verdade. Aqueles monges eram bons aedonitas, senhor... Eles não se importariam, não é?

— Naglimund?

Os olhos do Duque se estreitaram e sentiu Einskaldir ficar um pouco mais tenso, se tal coisa fosse possível, ao lado do garoto.

— Por que Naglimund? Por que não Stanshire ou o Vale Hasu?

— Tenho um amigo lá.

Por trás de Isgrimnur, a voz de Sludig se elevou, avançando por um último coro embriagado. O garoto fez um gesto na direção do círculo de fogo.

— É um harpista, senhor. Ele me disse que se eu fugisse de... Malaquias, para ir procurá-lo que me ajudaria.

— Um harpista? Em Naglimund? — Isgrimnur o encarou atentamente, todavia o rosto do jovem, embora sombrio, era inocente como nata. Isgrimnur de repente sentiu-se enojado com toda aquela história.

“Olhe para mim! Interrogando um aprendiz de vendedor de velas como se tivesse liderado sozinho a emboscada na abadia! Que dia horrível!”

Einskaldir ainda não estava satisfeito. Seu rosto se aproximou do ouvido do garoto e perguntou, com um forte sotaque.

— Qual é o nome do harpista de Naglimund?

O jovem se virou, alarmado, embora mais parecia pela proximidade repentina de Einskaldir do que pela pergunta, pois um momento depois respondeu alegremente.

— Sangfugol.

— Pelo amor de Frayja! — Isgrimnur praguejou e se levantou. — Eu o conheço. Já chega. Acredito em você, garoto.

Einskaldir se virou, girando em seu assento de pedra para observar os homens rindo e discutindo perto da fogueira.

— Você pode ficar conosco, garoto, se quiser. — disse o Duque. — Vamos parar em Naglimund, e graças a esses filhos da puta, temos o cavalo de Hove sem cavaleiro. Esta é uma região difícil para um jovem atravessar sozinho, e hoje em dia é quase como cortar a própria garganta viajar sem companhia. Aqui. — ele caminhou até um dos cavalos e puxou uma manta de sela, jogando-a para o jovem. — Deite-se onde quiser, desde que seja perto. É mais fácil para o sentinela se não estivermos espalhados como um rebanho de ovelhas desgarradas. — o Duque encarou os cabelos cardados que se espalhavam em todas as direções e os olhos brilhantes. — Einskaldir já te alimentou. Precisa de alguma coisa?

O garoto piscou... Onde o vira? Na cidade, talvez.

— Não! — respondeu o jovem. — Eu só espero que... Que Binnock não se perca sem mim.

— Confie em mim, garoto. Se não te encontrar, encontrará outra pessoa, e isso é fato.

Einskaldir já havia se afastado. Isgrimnur saiu pisando duro. O garoto se enrolou no cobertor e deitou-se ao pé da rocha.



***



“Faz tempo que não paro parar contemplar as estrelas.” pensou Simon enquanto erguia os olhos do cobertor. Os pontos brilhantes pareciam pairar como vaga-lumes congelados. “Não é a mesma coisa olhar para cima através das árvores, do que para lá ao ar livre... Como estar em cima de uma mesa.”

Pensou na Manta de Sedda e, ao fazê-lo, pensou em Binabik.

“Espero que esteja seguro... Afinal, foi ele quem me deixou nas mãos dos rimmerios.”

Foi um golpe de sorte que seu captor tivesse sido o Duque Isgrimnur, porém, ainda assim, houve momentos de verdadeiro terror, acordando no acampamento cercado por homens barbudos e de aparência severa. Supôs que, sabendo da inimizade entre o povo de Binabik e os rimmerios, não guardava rancor do gnomo por ter desaparecido... Se é que este sabia do sequestro de Simon. Mesmo assim, era doloroso perder um amigo daquela forma. Teria de endurecer o coração. Começara a depender do homenzinho para saber o que era certo, o que precisava ser feito, tal qual outrora ouvira atentamente o Doutor Morgenes. Bem, a lição era clara: seria dono de si, manteria seus próprios pensamentos e seguiria seu caminho.

Na verdade, não queria contar a Isgrimnur seu verdadeiro destino, contudo o Duque era esperto, e Simon sentira várias vezes que o velho soldado o equilibrava na lâmina de uma faca... Um passo em falso o teria derrubado.

“Além disso, aquele moreno que ficava sentado ao meu lado o tempo todo parecia que me mataria como se estivesse afogando um gatinho, se lhe conviesse.”

Então, havia contado ao Duque toda a verdade que pôde, e funcionou.

A questão agora era o que fazer. Deveria ficar com os rimmerios? Pareceria tolice não ficar, no entanto... Simon também não sabia ao certo qual a posição do Duque. Isgrimnur estava indo para Naglimund, entretanto e se fosse para prender Josua? Todos em Hayholt sempre falavam sobre o quão leal Isgrimnur havia sido ao velho Rei John, como considerava a Proteção do Supremo Rei mais sagrada do que sua própria vida. Onde ele se encaixava com Elias? Baixo nenhuma circunstância Simon pretendia revelar qual papel desempenhara na partida de Josua de Hayholt, todavia as coisas tinham um jeito de lhe escapar das mãos, às vezes. Simon estava morrendo de vontade de ouvir notícias do castelo, do que acontecera depois da última jogada de Morgenes... Pryrates havia sobrevivido? Inch? O que Elias contara ao povo que acontecera? Mas eram exatamente esse tipo de perguntas, por mais bem elaboradas que fossem, que o faziam se meter em encrenca.

Ele estava agitado demais para dormir. Enquanto olhava para as estrelas dispersas, pensou nos ossos que vira Binabik consultar naquela manhã. O vento roçou seu rosto e, de repente, as próprias estrelas se transformaram em ossos, um conjunto selvagem espalhado pelo campo escuro do céu. Era solitário ali, entre estranhos, sob a noite sem limites. Ansiava por sua cama aconchegante nos aposentos dos criados, pelos dias em que nada disso acontecera. Sua saudade era como a música penetrante da flauta de Binabik: uma dor fria que, no entanto, era a única coisa à qual conseguia se agarrar naquele mundo vasto e selvagem.



***



Ele havia cochilado um pouco e então acordou com um ruído, seu coração disparou, as estrelas ainda ardiam na profunda escuridão. Um pânico momentâneo apertou sua garganta quando uma forma escura pairou sobre ele, impossivelmente alta. Onde estava a lua?

Era apenas o homem de guarda, notou um instante depois, parando por um instante de costas para o cobertor de Simon. O sentinela tinha seu próprio cobertor de sela e o enrolara bem alto sobre os ombros, com a cúpula de sua cabeça sem capacete aparecendo por entre as dobras.

O vigia passou sem olhar para baixo. Trazia um machado enfiado no cinto largo, uma arma pesada e bastante afiada. Também carregava uma lança mais longa do que sua altura; enquanto andava, a coronha arrastava na terra.

Simon puxou o cobertor para mais perto, aconchegando-se contra o vento cortante que soprava pela planície. O céu havia mudado... Onde antes estava claro, as estrelas destacadas em detalhes brilhantes contra sua escuridão insondável, agora estava manchado por faixas de nuvens, gavinhas leitosas estendendo-se como dedos do norte. Do outro lado do céu, elas cobriam as estrelas mais baixas como areia derramada sobre as brasas de uma fogueira.

“Talvez Sedda encontre o marido esta noite.” pensou Simon sonolento.



***



A segunda vez que acordou, foi com um respingo de água nos olhos e no nariz. Seus olhos se abriram, ofegante, e viu que as estrelas haviam sido apagadas acima dele com a mesma precisão de um fecho de tampa de baú de joias. Chovia, as nuvens agora diretamente acima de suas cabeças. Simon grunhiu, enxugando a água do rosto, e virou-se de lado, puxando o cobertor para cima, formando um capuz para a cabeça. Pôde ver o sentinela outra vez, um pouco mais distante agora, protegendo o rosto e olhando através da chuva.

Os olhos de Simon estavam se fechando quando o homem emitiu um grunhido estranho e abaixou a cabeça para olhar para baixo. Algo na postura do homem, algo que sugeria que, embora estivesse imóvel como uma rocha, ainda assim estava se debatendo, fez Simon abrir mais os olhos. A chuva começou a cair torrencialmente e trovões rugiam ao longe. O garoto se esforçou para ver o sentinela através do aguaceiro fervente. O homem seguia estando parado no mesmo lugar, contudo alguma coisa se movia agora a seus pés, algo ativo que havia se libertado da escuridão reinante. Simon sentou-se, e as gotas de chuva batiam e espirravam no chão ao redor.

Um relâmpago iluminou de repente a noite, fazendo as rochas brilharem como adereços de madeira pintados de uma peça de Jesuris. Tudo no acampamento ficou claro... Os restos fumegantes da fogueira, as formas amontoadas e adormecidas dos rimmerios, no entanto o que saltou aos seus olhos naquele instante foi o sentinela, cujo rosto estava esticado em uma máscara horrenda e silenciosa de terror absoluto.

O trovão ribombou e então o céu tornou a ficar coberto por relâmpagos. O chão ao redor do sentinela fervilhava, jorrando em grandes borrifos de terra. Seu coração deu um salto no peito quando o homem caiu de joelhos. O trovão soou outra vez; relâmpagos brilharam três vezes seguidas. A terra continuou a jorrar, todavia agora havia mãos por toda parte e braços longos e finos, brilhando escorregadios na chuva enquanto subiam pelo corpo do homem ajoelhado, puxando-o para baixo, de bruços, para dentro do solo negro. O brilho do céu captou uma onda maior de movimento quando uma horda de coisas escuras surgiu da terra, coisas finas e esfarrapadas com braços acenando, olhos brancos fixos e... Horrivelmente revelados quando o relâmpago cruzou o céu e a chuva sibilou... Estavam cheios de pelos e roupas esfarrapadas. Quando o trovão se extinguiu, Simon gritou, engasgando com a água, e tornando a gritar.

Foi pior do que qualquer visão do Inferno. Os rimmerios, acordados assustados pelo grito aterrorizado de Simon, foram atacados por todos os lados por corpos saltitantes e agitados. As coisas fervilhavam do chão como ratos... De fato, enquanto se arrastavam pelo acampamento, a noite se enchia de guinchos finos e gemidos que ecoavam por túneis, cegueira e malícia covarde.

Um dos nortistas se levantou, as criaturas o enxameando. Nenhuma delas era tão alta quanto Binabik, porém estavam em número prodigioso, e, no momento em que o nortista desembainhou a espada, elas o puxaram para baixo. Simon pensou ter visto o brilho de objetos afiados em suas mãos, subindo e descendo.

— Vaer! Vaer Bukkan! — gritou um dos homens de Isgrimnur do outro lado do acampamento. Os homens estavam de pé agora, e nos clarões intermitentes Simon podia ver o fogo pálido de suas espadas e machados. Chutando o cobertor para longe, se levantou, procurando desesperado por uma arma. As coisas estavam por toda parte, saltitando em suas pernas finas como insetos, gritando, guinchando baixinho quando o machado de um dos rimmerios os alcançava. Seus gritos quase soavam como uma língua, e isso, em meio ao pesadelo, era uma das coisas mais horríveis de todas.

Simon se abaixou atrás da rocha que o abrigava, circulando ao redor enquanto procurava freneticamente por algo para se proteger. Uma figura se lançou em sua direção, caindo no chão a apenas um passo de distância... Um dos nortistas, metade de seu rosto destroçado. O garoto se adiantou para arrancar o machado de sua mão convulsiva; ainda não morto, o homem gorgolejou enquanto Simon puxava a arma para si. Um momento depois, sentiu uma garra ossuda em seu joelho e se virou para ver um rostinho humanoide horrível atrás da garra, os olhos brancos e fixos. Ele golpeou o machado contra o rosto, com toda a força que pôde, e sentiu um estalo como quando se esmaga um besouro no chão. Os dedos rígidos soltaram o aperto e Simon saltou, engasgando.

Com a luz do céu alternadamente florescendo e morrendo, era quase impossível dizer o que estava acontecendo. As figuras oscilantes dos rimmerios estavam por toda parte, entretanto havia um número muito maior de demônios saltitantes. Parecia que o melhor lugar para...

Simon foi jogado no chão sem que se desse conta, uma garra agarrando seu pescoço. Sentiu a lateral do rosto afundar na lama, sentiu o gosto e então se ergueu contra a coisa em suas costas. Uma lâmina rudimentar passou zunindo por seus olhos e se cravou na terra com um ruído de sucção. O garoto se ajoelhou, contudo outra mão o envolveu, cobrindo-lhe o rosto. Fedia a lama e água suja, os dedos se contorcendo como minhocas.

“Onde está o machado? Eu deixei o machado cair!”

Ele se levantou trêmulo, com as pernas afastadas no chão escorregadio, e tentou soltar os dedos que prendiam sua traqueia. Tropeçou para a frente, quase caindo de novo, incapaz de desalojar a coisa horrível e estranguladora de suas costas. A mão ossuda cortava seu ar, os joelhos afiados cravavam-se em suas costelas; pensou ter ouvido a coisa cordada guinchando em triunfo. Conseguiu dar mais alguns passos antes de cair de joelhos, o estrondo da batalha ficando mais fraco atrás dele. Seus ouvidos rugiam; a força escapava de seus braços e corpo como farinha de um saco rasgado.

“Estou morrendo...” era tudo o que conseguia pensar. Diante de seus olhos, não havia nada além de uma luz vermelha opaca.

Então, o aperto esmagador e áspero em sua garganta desapareceu de repente.

Simon caiu pesadamente sobre o peito e o rosto e ficou ofegante.

Arfando, olhou para cima. Pintado contra o céu negro por uma cortina de luz crepitante, havia uma silhueta enlouquecida... Um homem sobre um lobo.

“Binabik!”

Sugando o ar para dentro da garganta áspera, Simon tentou se levantar, no entanto não conseguiu ir além dos cotovelos antes que o homenzinho estivesse ao seu lado. A um passo dali, o corpo da criatura terrestre jazia encolhido como uma aranha chamuscada, olhos cegos para o céu.

— Não diga nada! — Binabik sibilou. — Precisamos ir! Rápido!

O gnomo o ajudou a se sentar, mas o garoto o dispensou com um gesto, batendo no homenzinho com mãos frágeis de bebê.

— Tenho que... Tenho que... — Simon balançou a mão trêmula em direção ao caos que se alastrava pelo acampamento, a uns vinte passos de distância.

— Ridículo! — Binabik exclamou com rispidez. — Os rimmerios sabem lutar suas próprias batalhas. Meu dever é levá-lo a um lugar seguro. Agora venha!

— Não! — disse Simon, teimoso. Binabik segurava seu bastão oco; Simon sabia o que havia derrubado seu agressor. — Nós te-temos que a-ajudar.

— Eles sobreviverão. — Binabik estava sério. Qantaqa havia seguido seu mestre e agora cheirava solicitamente o ferimento de Simon. — Você está sob minha responsabilidade.

— O que você... — Simon começou.

Qantaqa rosnou, um som profundo e ameaçador de alarme; Binabik olhou para cima.

— Pela Filha das Montanhas! — gemeu.

Simon seguiu seu olhar.

Um coágulo da escuridão maior havia se desprendido da confusão rodopiante e se movia rapidamente em sua direção. Era difícil dizer quantas criaturas poderiam estar no emaranhado de braços e olhos, porém eram mais do que algumas.

— Nihut, Qantaqa! — gritou Binabik; um instante depois, a loba saltou em direção a eles; as criaturas guincharam em terror sibilante quando ela atacou. — Não temos mais tempo a perder, Simon! — agregou o gnomo.

Um trovão ricocheteou pela planície enquanto ele sacava a faca do cinto e arrastava Simon para cima.

— Os homens do Duque estão se virando agora, e não tenho como me dar ao luxo de você ser morto no último instante.

No meio das criaturas surgidas da terra, Qantaqa era uma máquina da morte de pelos cinzentos. Enquanto suas grandes mandíbulas mordiam, e ela tremia e mordia outra vez, corpos negros e magros eram arremessados ​​para todos os lados, caindo em montes quebrados. Mais se aproximavam em enxame, e o rosnado zumbido da loba se elevava acima do estrondo da tempestade.

— Mas... Mas... — Simon se conteve enquanto Binabik se movia em direção à sua montaria.

— É minha promessa de protegê-lo. — disse Binabik, puxando Simon. — Esse era o desejo do Doutor Morgenes.

— Doutor...? Você conhece o Doutor Morgenes...?

Enquanto Simon olhava fixamente, mexendo a boca, Binabik parou e assobiou duas vezes. Qantaqa, com um último tremor de êxtase, jogou duas das criaturas para o lado e correu em direção a eles.

— Agora, corra, garoto tolo! — gritou Binabik. Eles correram... Qantaqa primeiro, saltando como um cervo, com o focinho preto de sangue, Binabik depois. Simon seguiu, tropeçando e cambaleando pela planície lamacenta enquanto a tempestade gritava perguntas sem resposta.


***

Link para o índice de capítulos: The Dragonbone Chair

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