Capítulo 97: Os sons da batalha ecoavam intermitentemente
Os sons da batalha ecoavam intermitentemente. A noite havia caído e, embora uma lua quase cheia brilhasse, seu brilho estava sendo abafado pelas inúmeras luzes mágicas que voavam pelo ar enquanto as sombras se moviam abaixo delas.
Desde o Bahamuth, quase não houve intervalo entre as ondas de monstros. Eles continuaram a brotar do abismo sem parar. Seus cadáveres foram arrastados para longe do campo de batalha para serem despojados em busca de materiais e, assim, se espalharam pela área atrás do prédio de hospedagem. Cada material individual teria sido inestimável no mundo exterior, mas com tantos reunidos, seriam tratados de forma bastante grosseira aqui.
O céu começou a clarear antes que alguém percebesse. Embora houvesse nuvens lançando sombras escuras aqui e ali, a noite estava clara. Uma brisa refrescante acariciava a pele agora, porém uma vez que o sol nascesse, estaria quente o suficiente para induzir a transpiração.
“Talvez a grande onda já tenha começado.” disse Ishmael. “Não é como se houvesse uma regra que diga que tem que ser lua cheia. Apenas uma estimativa aproximada de que mana e monstros irão transbordar nessa época.”
“Hmm... Contudo isso é algo e tanto.” Belgrieve meditou, estalando o pescoço enquanto observava pela janela.
“Agora então, talvez eu deva descansar um pouco. Isso está me esgotando.” Ishmael tirou os óculos e esfregou os olhos, sem se preocupar em reprimir um grande bocejo.
“Sem pressa. Deve ter sido desgastante fazer parte daquele caos.”
“Não sabia o que fazer quando perdi os outros de vista.” admitiu Ishmael, coçando a cabeça e transformando o cabelo já bagunçado em uma bagunça irremediável. Na pouca visibilidade do crepúsculo, ele aparentemente lutou enquanto estava separado dos outros.
Belgrieve respirou fundo antes de exalar devagar. O elixir tinha seguido seu curso enquanto dormia, e apenas uma pitada de fadiga permanecia em seu corpo agora. Estava se movendo muito bem uma vez mais e era provável que poderia lutar com uma espada.
“Gostaria de um pouco de sopa, Sr. Bell?” Anessa perguntou, sua cabeça espreitando para fora da divisória.
Belgrieve virou-se para ela.
“Sim, eu adoraria... Você não acha que deveria dormir um pouco, Anne?”
“Eu tirei uma soneca... Contudo não consigo ter um sono profundo aqui.”
O chão de pedra com certeza era duro. Como haviam feito a viagem a pé, a roupa de cama não era satisfatória, consistindo em pouco mais que lençóis finos espalhados no chão com um travesseiro improvisado de diversos artigos de roupas enroladas. Mesmo depois de adormecerem, sentiriam que seus corpos haviam se tornado um com a pedra.
Devo ter dormido bem graças ao elixir, Belgrieve raciocinou e ofereceu em silêncio seus agradecimentos a Maureen e Touya mais uma vez.
O caldo deixado para trás do caranguejo cozido de Maureen dava para uma boa base de sopa. Alguns enfeites foram adicionados junto com temperos simples. Era um gosto reconfortante e caseiro com um calor que parecia permear seu corpo.
Dentro da divisória, Miriam e Marguerite dormiam lado a lado. Duncan estava encostado na parede com os braços cruzados, cochilando, e ao seu lado, Ishmael estava sentado abraçando seus joelhos, caindo aos poucos no ritmo constante de respirações sonolentas.
No final das contas, Angeline não havia retornado, nem Kasim e Percival. Se eles estavam lutando contra os monstros que emergiam das profundezas, era hora de aparecerem.
O olhar de Belgrieve estava fixo no vapor que subia da panela, no entanto sua mente estava no rosto de seu velho camarada, que vira apenas por um breve momento.
“Percy envelheceu... Bom, isso vale para nós dois.”
Anessa, que estava mexendo a sopa, olhou para Belgrieve.
“Você está falando do Sr. Percival?”
“Sim... Ele não costumava ter aquele olhar sombrio em seu rosto... O encontrou também, certo?”
“Não realmente ‘conheci’, por si só. Acabei por apenas vê-lo... Sendo sincera, o achei assustador. Ele parecia tão grande aos meus olhos, como se eu pudesse sufocar em sua presença... Ah, desculpe. Não queria falar sobre seu amigo assim.”
“Não, não se preocupe... Percy não é bem assim. Pelo menos, não costumava ser. Ele ria muito e aprontava todo tipo de travessura com Kasim... Oh, Satie também se juntava. Eles tentariam causar todo tipo de problema para mim.” Belgrieve riu. “Pode ter sido como Ange e Merry te provocam.”
“Oh, agora que mencionou…” Anessa riu, servindo um pouco de sopa em uma tigela.
Enquanto isso, Miriam começou a se mexer e, com um farfalhar de roupas e cobertores, ela se levantou.
“Nyah... É difícil dormir...”
“Hey, vamos. É melhor dormir ou vai se sentir cansada o dia todo.” disse Anessa.
Miriam estufou as bochechas e pegou uma xícara.
“Quero dizer, só vai me fazer sentir mais dura, dormir aqui. Aquela cama em Istafar com certeza era macia...”
“Não seja assim. Está tornando mais difícil para eu dormir agora.”
Agora Marguerite também estava de pé. A jovem elfa esfregou os olhos sonolentos e bocejou enquanto revirava o pescoço e os ombros.
Acampar veio com uma mentalidade de que ‘é assim que deveria ser’. Porém dormir como se estivessem acampando dentro de casa parecia um pouco incompatível. Mesmo assim, deveria ter sido muito mais fácil dormir aqui do que se estivessem lá fora. A tensão única no ar ao redor do Umbigo da Terra os coloca no limite, contribuindo apenas para seu desconforto.
Belgrieve, por sua vez, estava descansando o tempo todo desde que chegaram, e saber que Percival estava por perto tornou difícil para ele se acalmar novamente. Depois de terminar a sopa, se levantou e pegou a grande espada de Graham.
“Vou sair um pouco. Estou me sentindo melhor.”
“Oh, então vou também. Me dê um segundo.”
“Não me importo... Contudo, não seria melhor descansar, Maggie?”
“Dar um passeio me faria melhor do que dormir aqui. Vamos para o bar. Que tal? Um pouco de cerveja vai me animar, tenho certeza.”
“Hmm, bem, talvez... Vamos apenas sair, por enquanto.”
“Espera aí, também vou. Quero algumas das coisas boas.” Miriam insistiu. Ela se levantou com um gemido e colocou o chapéu.
Bell sorriu sem jeito, descansando a grande espada sobre o ombro.
“Beba com moderação... E você, Anne?”
“Ah, hmm, bem, o que fazer...?”
“Qual é o problema?” Miriam provocou. “Não é como se tivesse algo melhor para fazer. Duncan e Ishmael estão dormindo, então vamos embora.”
“Si-Sim... Vamos.”
Eles tiraram a panela do fogo e apagaram as chamas com cinzas antes de deixarem o prédio. O tempo estava bom — as nuvens que estavam lá ao amanhecer haviam diminuído e uma lua translúcida pairava no céu. Ainda havia um cheiro persistente de sangue no ar enquanto alguns aventureiros continuavam a preparar as mortes do dia.
Ao que parecia, a carne do Bahamuth foi um sucesso; as várias barracas de comida e bares já estavam servindo todos os tipos de refeições com ela. O que havia sido uma atmosfera de luta de vida ou morte na noite anterior agora se tornara um festival à medida que o dia se aproximava, refletindo a resiliência das pessoas que ganhavam a vida aqui.
Eles não tinham ido muito longe quando avistaram Yakumo e Lucille bebendo em uma mesa à beira da estrada. Yakumo sorriu quando se aproximaram.
“Oh, uma bela manhã para vocês. Estão indo atrás de uma bebida matinal também?”
“Foi para isso que eu vim! A cerveja aqui é boa?”
“Uma bebida pela manhã é ótima, não importa o que seja. Néctar dos deuses.” Lucille disse antes de tomar seu copo como se fosse a coisa mais deliciosa do mundo.
De qualquer forma, estavam vagando sem rumo até então, então não hesitaram em se juntar à mesa. Marguerite, que era ousada e ansiava por ouvir histórias de terras estrangeiras, rapidamente se tornou próxima de Yakumo e Lucille.
“Contudo é incrível.” gabou-se Miriam com um sorriso. “Fizemos uma fortuna apenas com os materiais Bahamuth de ontem. Tudo graças a Ange e Percy.”
“Não posso discutir com isso. Posso ver porque as pessoas vêm aqui de terras distantes.” disse Anessa, levando sua xícara aos lábios.
Uma nuvem de fumaça saiu da boca de Yakumo.
“Como esperado, Ange e aquele homem são mestres em seu ofício. O mero pensamento de pular naquela coisa com uma espada causa arrepios na minha espinha. Os dois devem ter atribuído a você uma boa proporção dos materiais. Não precisa transformar tudo em dinheiro; também pode usá-los para cria armaduras e armas bastante eficazes.”
“Sim, ouvi dizer que bigodes Bahamuth são excelentes para cordas de arco.” disse Anessa. “São bastante flexíveis, disparam direto e têm boa circulação de mana.”
“Hmm, bom para você.” Marguerite disse. “Acha que posso conseguir algo assim?”
“É a grande onda, afinal. Tenho certeza que terá outra chance.” disse Yakumo, tranquilizando-a.
“No entanto, Maggie, certifique-se de não ficar impaciente e sair correndo sozinha. Não tenho certeza de como será com tantos aventureiros poderosos aqui, mas monstros de alto escalão devem ser bastante perigosos.”
“Eu já entendi! Não são nada além de palestras com você, Bell!” Marguerite fez beicinho e se virou.
O nariz de Lucille empinou.
“Como as pessoas do passado costumavam dizer, ‘Não há nada como o amor de um pai’.”
“Cale a boca. Então, Bell, falou com seu amigo?”
Belgrieve silenciosamente balançou a cabeça.
Yakumo soltou um pouco de fumaça com um suspiro, depois bateu o cachimbo contra a borda da mesa para descartar as cinzas.
“Estou com medo, mas curioso... E neste ponto, só quero que conversem logo.”
“Eu adoraria, porém não sei para onde Percy foi...”
De repente, a espada em suas costas começou a rosnar baixinho, levando Belgrieve a olhar para o céu. Parecia que uma mancha preta pontilhava o sol radiante, contudo esta cresceu rápido — algo estava descendo rapidamente sobre eles.
“Um monstro! De cima!” Belgrieve gritou, desembainhando a grande espada.
Momentos depois de todo o grupo se levantar e se espalhar, um monstro bizarro com asas de morcego desceu, pousando de quatro. Seu torso era humano, contudo tinha a metade inferior e o rosto de uma cabra, e o que parecia ser uma flauta pendia de seu pescoço. Os aventureiros próximos ficaram em frenesi com armas em mãos.
“Fauno Caído! Mais um Rank S! Os negócios vão explodir!”
“De qualquer forma, vamos continuar com o massacre!”
“Hey, cuidado com a flauta!”
Este aviso, ironicamente, anunciava o som daquela mesma flauta. Era um som estridente, de tímpano, que forçou muitos dos aventureiros a tapar os ouvidos com as mãos. Pequenos solavancos começaram a se projetar do solo próximo. Um por um, um broto emergiu de cada um, que não demoraram em se tornar uma planta madura. Contudo, todos eram deformados, com caules tortos ou pétalas murchas e tortas, e seu cheiro era desagradável no mínimo.
“Droga! Está zombando de nós!”
“Destrua essa flauta!”
No entanto em um piscar de olhos, o fauno subiu aos céus mais uma vez, dominando os aventureiros terrestres com desprezo imperturbável. Manipulando as folhas, caules e trepadeiras das plantas, lançou seu ataque aos aventureiros. Parecia que essa vegetação ostentava um poder de fogo considerável, tornando-se uma ameaça até mesmo para os escalões mais altos. Em certo momento, o campo de batalha caiu no caos.
Anessa cortou uma videira que se aproximava com uma adaga.
“Qual é o plano, Sr. Bell?”
“Anne, Merry, mire no monstro cabra. Maggie, nós dois vamos protegê-las.”
“Sim! Apenas deixe comigo!”
Marguerite balançou sua espada, cortando os inimigos vegetais com facilidade. Anessa e Merry se apressaram em mirar e disparar suas flechas e magia. Como esperado, os outros aventureiros também eram especialistas, e logo se juntaram à luta com poder de fogo contundente. Infelizmente, bastou um movimento indiferente da mão do monstro para derrubar qualquer projétil antes que pudessem atingi-lo.
Miriam bateu os pés.
“Oh, agora eu estou brava! Mais um sorriso daquela coisa, e vou disparar um Relâmpago Imperial!”
“Não precisa protelar! Apenas dispare logo!”
“Tudo bem, vamos lá!”
Com alguma sugestão de Anessa, Miriam começou seu encantamento.
Belgrieve rasgou qualquer planta em seu caminho com um olho no céu.
“Acho que a grande magia é nossa única opção... Entretanto será que ele nos deixará usá-la tão sem dar problemas...?”
Cantos dispersos para grandes magias começaram ao redor deles. Mas assim como Belgrieve temia, o fauno caído soprou sua flauta mais uma vez. Os magos logo taparam os ouvidos, interrompendo seus cânticos. Primeiro o Bahamuth e agora essa coisa... Parecia que todos os monstros poderosos tinham várias contra medidas contra os aventureiros.
Posicionada com seu instrumento, Lucille soltou um uivo raivoso.
“Esse barulho confuso não é rock!”
“Chega de bobagem, apenas contorne isso!” Yakumo rugiu, usando sua lança para cortar os talos próximos.
Em algum lugar próximo, um incêndio começou. Um mago especializado em magia de fogo tentou queimar as plantas. Essas plantas estavam mais secas do que pareciam, então as chamas se espalharam rápido e os caules se contorceram em agonia ao serem engolidos pelas chamas. Todavia, isso provocou não elogios, e sim reclamações de seus companheiros de aventura.
“Seu idiota! Está tentando nos queimar também?”
“Alguém, lance magia de água!”
Belgrieve girou a espada para explodir as plantas, com fogo e tudo, e olhou para cima mais uma vez. O Fauno Caído observava a confusão dos aventureiros lá embaixo com um sorriso no rosto. Não posso atacá-lo lá em cima... Enquanto cerrava os dentes em frustração, Belgrieve ouviu um grunhido descontente de suas mãos — a espada parecia furiosa.
“Você pode fazer algo sobre isso?” ele se viu conversando com ela. A grande espada rugiu em resposta e começou a brilhar com uma luz fraca. Pensando bem, tanto Angeline quanto Graham conseguiram disparar grandes ondas de choque dessa espada. Belgrieve não sabia o que estava tentando lhe dizer, contudo parecia muito mais valioso testar sua teoria do que gastar seu tempo cortando essas ervas daninhas. No entanto não tinha certeza de como realizar tal ataque. Não havia como dizer o que aconteceria se balançasse a espada cegamente, ainda mais àquela distância. Mesmo que conseguisse lançar um ataque, não sabia se poderia chegar daqui.
“Só tenho que tentar.”
Belgrieve respirou fundo e se concentrou. A mana dentro de seu corpo rodou e espiralou enquanto fluía através da espada e voltava para ele. Sua mana se misturou com a espada, e a grande espada brilhou e rosnou. Em sua mente, imaginou não um golpe, mas um golpe fino, longo e penetrante. Só assim, recuou um passo, esticando seu corpo. A ponta permaneceu apontada para o monstro. Seu pé esquerdo pisou com força como base, empurrando a lâmina para o céu.
De repente, a mana saiu em espiral da ponta, atirando-se tão agudamente quanto uma lança quando se chocou contra a flauta pendurada no pescoço do monstro e apunhalou seu peito. Os olhos do fauno se arregalaram em choque, porém seu grito foi abafado pelo sangue que escorria de sua boca. Seu corpo perdeu o equilíbrio e caiu no chão com um baque forte e, a partir daí, não se mexeu mais.
“Acho que deu certo, afinal...”
Belgrieve suspirou e embainhou a espada. Não há mal algum em experimentar coisas novas, pensou. Contudo nunca imaginou que daria tão certo.
No fim, se sentia mais confuso do que realizado.
Sem ninguém para unificá-la, a horda de plantas perdeu a motilidade e murchou no local. Mesmo assim, as chamas não morreram com elas, e onde as plantas eram mais densas, a fumaça continuou a erguer e se espalhar por toda parte.
Agora que o monstro havia sido eliminado, os aventureiros se apressaram em apagar o fogo. Ninguém ainda sabia quem havia derrubado o fauno. Uma comoção de perguntas e demandas por respostas logo tomou o lugar do caos anterior. As chamas foram apagadas, os restos de plantas foram removidos e o cadáver de um monstro caído começou a ser inspecionado.
Marguerite deu um tapinha nas costas de Belgrieve.
“Bom trabalho lá! Parece que conseguiu controlar bem essa coisa!”
“Bem, até meu corpo parece mais leve quando eu a empunho... É tudo graças à espada.”
“Então esse é o poder da espada do Paladino... Incrível...” Yakumo se juntou a eles, examinando a lâmina com intriga. “No entanto você lida bem com ela... Sr. Bell, suas habilidades certamente não são motivo de escárnio.”
“Pelo menos em comparação com antes.” enquanto coçava timidamente a bochecha, Lucille puxou sua manga.
“Eles estão aqui.”
“Hmm?” Belgrieve olhou para cima bem a tempo de ver Angeline correndo em sua direção antes que ela o agarrasse. Belgrieve preparou as pernas para segurá-la.
“Pai!”
“Oof... Oh, Ange. Para onde você fugiu...?”
“Hey! Então os monstros chegaram até aqui? Acho que aqueles voadores são mesmo um aborrecimento.” Kasim observou com alegria enquanto se arrastava atrás de Angeline, rindo.
Os olhos de Belgrieve se encontraram com os do homem parado atrás de Kasim. Seu cabelo de juba de leão era da cor da palha, e a inclinação afilada de seu nariz o dava uma impressão de força de vontade. Uma ruga profunda e de aparência raivosa estava esculpida em sua testa. Talvez seu rosto estivesse preso em uma expressão azeda por tanto tempo que nunca iria embora agora.
Angeline o abraçou ainda mais forte.
“É o Percy.”
A carranca de Percival permaneceu imutável quando olhou para o velho amigo.
Ele ficou parado sem palavras por algum tempo antes de por fim conseguir dizer algo simples.
“Hey, Bell.”
Belgrieve abriu um sorriso.
“Já faz um tempo, Percy.”
○
O ar estava estranhamente tenso quando Belgrieve e Percival sentaram-se frente a frente em uma mesa no bar. Kasim sentou-se entre os dois do outro lado, enquanto os outros vigiavam de mais longe com a respiração suspensa. Os aventureiros que não tinham nada a ver com o assunto seguiam bebendo com alegria seus problemas ou lamentando ruidosamente seus infortúnios. Todavia, parecia que toda essa agitação estava a um mundo inteiro de distância dos três homens.
“Faz muito tempo.” disse Belgrieve.
Percival assentiu.
Belgrieve continuou.
“Mais de vinte anos...”
“Tal... Vez.” Percival olhou para a perna protética de Belgrieve e fechou os olhos.
“Quando tínhamos apenas dezessete anos, acredito.”
“Sim. Nós dois tínhamos dezessete anos. Kasim ainda tinha apenas quinze anos.”
“Certo, certo. Vocês dois tinham a mesma idade e Satie era um ano mais nova. Depois, vinha o pobre velho eu, o nanico da ninhada.” Kasim entrou na conversa.
Percival suspirou antes de olhar diretamente para Belgrieve.
“Por que veio aqui depois de tanto tempo?”
“Achei que precisávamos resolver as coisas com o nosso passado. Tanto eu quanto você.”
“Resolver as coisas, hein...” Percival deu um sorriso autodepreciativo. “Se ao menos fosse possível.”
“Sinto muito por deixar todos vocês para trás e partir de Orphen.”
“Não diga isso!” Percival explodiu ruidosamente, batendo na mesa. Seus copos balançaram, derramando um pouco de cerveja na mesa.
Os olhos de Kasim se arregalaram.
“O que foi...? Por que está com tanta raiva?”
“Não há nada para que se desculpe! Naquela época, fui eu quem disse que deveríamos nos aventurar mais fundo. Se ao menos tivesse ficado de boca fechada...”
“Isso é apenas retrospectiva, Percy. Era uma masmorra Rank E. Ninguém poderia esperar um demônio assim.”
“Não posso só descartar a ideia de forma tão conveniente.” o olhar de Percival mudou. “Não muda o fato de que você perdeu sua perna em meu lugar.”
“Se não tivesse perdido... Você teria morrido.”
“Eu deveria ter.”
“Não se atreva a dizer isto, Percy!” Kasim com raiva bateu com as duas mãos na mesa. “Agora mesmo, pôde ver Belgrieve lutar, não pôde? Perder a perna nunca o atrasou! Não há nada para se culpar!”
“É por isso mesmo...” um sorriso doentio cruzou o rosto de Percival enquanto seu olhar se demorava em Belgrieve. “Nem tenho as qualificações para ser seu amigo. Hey, Bell, sabe... Quando te vi aqui pela primeira vez, diria... Que senti asco de você.”
“O que...” Kasim pareceu chocado.
Belgrieve encarou Percival em silêncio.
“Continuei dando desculpas, dizendo que era por sua causa e me encurralando... E quando por fim te encontrei, não sinto nada além de ódio... Como posso ser tão nojento?” Percival agarrou a própria cabeça, exasperado. “Com Kasim e Satie... Procurei uma maneira de te curar. Fiquei mais forte, subi mais alto, pensei que poderíamos encontrar feitiços e técnicas com as quais nunca poderíamos ter sonhado. Pensando bem, já poderia ter enlouquecido naquela época. Eu era imprudente como poderia ser e Kasim e Satie gritavam comigo uma e outra vez. Satie foi levada às lágrimas. ‘Está mesmo tentando salvar Bell?’, ela perguntava, e todo tipo de coisa que me levava cada vez mais longe. E sabia bem que ela já tinha chegado ao seu limite.”
“Mas, mas isso foi...”
“Cala a boca, Kasim. Bell, no momento em que você desapareceu, tive certeza de que estava morto. Foi frustrante, sim, porém então... Lá estava eu, me sentindo estranhamente aliviado. Achei que talvez não precisasse mais me esforçar. Contudo então, não conseguia me perdoar por pensar aquilo. Então me apressei em arrumar um motivo para não parar. Viajei por toda parte e matei monstros em busca daquele que pegou sua perna.”
“Já o encontrou...? O monstro, quero dizer?” Belgrieve perguntou.
Percival cerrou o punho.
“Não estaria assim se tivesse. Contudo também fiquei aliviado por nunca ter encontrado — isso significava que nunca teria que perder minha razão para continuar. Sou um covarde. Disse a mim mesmo que era tudo por sua causa, no entanto brandi minha espada apenas para mim. Fazê-lo foi minha razão improvisada para continuar vivendo.”
Os ombros de Kasim caíram.
“Percy, eu passei por algo parecido. Me convenci de que Bell tinha que estar em algum lugar lá fora, vivo. Então passei o tempo todo procurando uma maneira de curá-lo. Entretanto Bell estava bem — até arranjou uma filha. Ele viveu feliz. Por que precisa sentir mais responsabilidade? Qual é a utilidade de se apegar ao passado para sempre?”
“Já disse, não disse? Sou um covarde. Oi, Kasim. Você é forte; é por esse motivo que pode se alegrar de todo coração quando descobriu que Bell estava bem. Mas eu sou diferente. Foi como se a inutilidade de tudo o que já fiz tivesse sido empurrada bem na minha cara. Estava com inveja de que Bell pudesse continuar seguindo frente. Vocês vieram me buscar? Uma parte de mim desejou que Bell tivesse morrido!”
“Is... Isso é... Você só pensou nisso!”
“Exato. Só pensei. Porém poderia suportar ter alguém que pensa assim como um amigo? Acha que estou qualificado para responder sua amizade? Claro que não!”
De repente, Percival franziu a testa e agarrou seu sachê. Ele o tirou e pressionou-o contra a boca.
“Cough... Maldição...”
“Você ainda está usando aquela bolsa...” Belgrieve observou calmamente.
Percival mordeu o lábio. De repente, puxou com força suficiente para arrancá-lo de sua corda e o estendeu para Belgrieve.
“Leve-o de volta. Não preciso mais disso.”
“Não seja teimoso. É inútil tentar me incitar a te odiar.”
A ruga na testa de Percival ficou mais profunda e seus olhos encararam Belgrieve.
“Não consegue nem encontrar o mínimo em si mesmo para me odiar? Eu nem valho a pena?”
“Não seja tão deprimente. Ou queria mesmo que eu te odiasse? Preferiria que tivesse vindo até aqui só para deixar escapar todo o meu ressentimento reprimido?”
“Teria tornado muito mais fácil para mim.” Percival mal apoiou a cabeça com uma das mãos, baixando os olhos. “Se me dissesse para morrer, talvez pudesse enfim...”
Kasim ficou sem palavras. Percival também ficou em silêncio por um tempo, contudo por fim ergueu o rosto e olhou para Belgrieve.
“Disse que queria resolver as coisas, certo?”
“Sim.”
“Então está resolvido. Terminamos. Vá para casa. Você tem uma filha, certo? Bom para você, chegando até aqui, no entanto vou ficar aqui para sempre. É tarde demais... Não deveria ser perdoado. E principalmente, não consigo me perdoar.”
Belgrieve soltou um profundo suspiro.
“Entendo... Entendi.”
“Be-Bell...?” Kasim olhou para ele em desespero.
Entretanto Belgrieve estava com um sorriso alegre.
“Vamos brigar, Percy.”
“O que?”
Assim que Percival lançou um olhar duvidoso, Belgrieve de repente pegou um copo da mesa e espirrou a cerveja dentro no rosto de Percival.
“Bwah?”
Belgrieve se inclinou sobre a mesa e agarrou o chocado Percival pelas lapelas antes de desferir um poderoso soco em sua bochecha. Embora Percival tenha perdido o equilíbrio, não demorou em se recompor. A mesa e as duas cadeiras foram derrubadas na briga.
Kasim disparou em estado de choque.
“Hey! Bell?” o mago gritou.
Sem dizer mais nada, Belgrieve chutou a mesa para o lado, desta vez dando um soco no plexo solar de Percival. Percival imediatamente caiu de joelhos, cuspindo um pouco de sangue enquanto olhava para Belgrieve.
“Seu pequeno...!”
“Falar é fácil — vim aqui para me satisfazer. Você realmente achou que todo aquele papo de auto piedade resolveria?”
“Não brinque comigo!” Percival saltou sobre Belgrieve.
A briga dos dois não era nada como uma briga civil — eles tentavam a garganta um do outro, lutavam no chão como crianças indisciplinadas e até puxavam os cabelos um do outro. Embora os outros aventureiros tenham ficado chocados no início, logo perceberam que era apenas mais uma luta e voltaram a beber. Não era nada raro.
Correndo até eles, Angeline também ficou sem saber o que fazer.
“Pa-Pai! Percy! P-P-Parem com isso! Já basta!”
Os dois a ignoraram e continuaram sua briga. Eles estavam cobertos de sujeira e fuligem quando Belgrieve caiu de costas, Percival prendendo-o com um aperto em seu colarinho. Ambos os homens estavam exaustos e lutando para recuperar o fôlego. Mas mesmo com dor, Belgrieve ainda sorria.
“Huff, huff... Parece que ainda não consigo te vencer.”
“Wheeze... Wheeze... Claro que não! Qual é o seu problema...? Por que está...?” lágrimas escorriam dos olhos de Percival, descendo pelo rosto e pingando do queixo.
“Por que você é sempre assim? Quem enfrentou a desgraça foi você... E quando... Quando o cara sem perna riu e disse para eu não me preocupar com isso, foi uma agonia para mim! Fiquei perturbado quando nos mostrou aquele seu sorriso falso! Por que não fica com raiva? Por que não pediu ajuda?! Eu... Nós... Estávamos sozinhos sem você...” os ombros de Percival caíram. Ele estremeceu quando começou a chorar. Todos os sentimentos que continha estavam fluindo.
“Por fim disse o que pensa... Ouch...” Belgrieve esfregou onde foi atingido e sorriu. “Desculpe. Vejo que pensou de verdade em mim como um amigo.”
“Não seria tão doloroso se não o fizesse! Maldição...”
“Não sou um santo.” disse Belgrieve. Sua mão limpou o sangue que escorria de seu lábio cortado. “Hey, Percy, foi o mesmo para mim. Fiquei ressentido com vocês quando deixei de ser um aventureiro. Pensei comigo mesmo... ‘Por que fui só eu?’ mesmo antes de deixar Orphen, faria o possível para evitá-lo.”
“Como deveria ter feito. Eu sabia.”
“Porém eu lamentei todo esse tempo, o fato de ter saído sem dizer uma palavra e de ter me ressentido de vocês... No final, estava apenas pensando em meus próprios interesses. Usei minha própria falta de habilidade como desculpa, tudo porque estava com medo de me machucar ainda mais. Te feri, claro que feri. Teria percebido se pensasse sobre isso por um segundo, contudo desviei os olhos.”
“Não precisa se lamentar por isso... Era natural se sentir assim.”
“Está enganado. Tendo vindo até aqui, sou grato por tudo. Se tivesse sobrevivido como um aventureiro em Orphen... Duvido que tivesse durado muito mais tempo. Nunca fui tão habilidoso com uma espada quanto você. Então estava impaciente. Lutei para ver onde mais poderia ser útil...”
“Você nos ajudou bastante.”
“Haha, acha mesmo? No entanto, estava impaciente. Sempre me senti inferior... Eventualmente, teria saltado para frente com a arma, esperando por fim realizar algo — e teria sido morto por um monstro.”
“Nunca se sabe... Qualquer coisa poderia ter acontecido.”
“Tem razão. Mas há uma coisa de que tenho certeza. Se não tivesse perdido minha perna e voltado para casa, nunca teria conhecido Ange.”
“Ange... Oh.” Percival olhou para Angeline. Ela estava parada de lado, confusa, seus olhos alternando entre Belgrieve e Percival.
“Ela é forte. Não há muitos aventureiros que possam me acompanhar.”
“Não é? Sou um cara de sorte. Porém o fato de ter encontrado essa felicidade fugindo continuou a pesar sobre mim. O tempo todo, inventei desculpas. Disse a mim mesmo que você devia estar indo muito bem. Eventualmente, percebi que estava apenas escolhendo desviar o olhar.”
“Demorou... Muito tempo para perceber isso.”
“Porque eu era egoísta... Só há pouco tempo encontrei coragem para enfrentar meu passado. Mesmo esse ato é apenas devido a Angeline. E conheci todo tipo de gente graças a minha filha.” Belgrieve fechou os olhos. Era a verdade, sem Angeline, nunca teria visto Percival ou mesmo Kasim outra vez.
“Contudo, te vi com ódio, sabe...?”
“Não me importo. Você não é perfeito... Pensou que eu não estava ciente?”
“Argh... Sério, não sou páreo para você, Bell.” Percival rolou resignadamente de cima de Belgrieve e sentou-se de pernas cruzadas no chão. Sua expressão se suavizou. “Meu Deus... Estou me metendo em brigas de bar com um pai de quarenta anos... Não era onde pensei que iria acabar.”
“Haha, nós dois precisamos começar a agir de acordo com a nossa idade... Apenas perdoe-se. Você trabalhou duro o suficiente.”
“Posso... Realmente ser seu amigo?”
“Mesmo que não pense mais em mim dessa forma, ainda vou considerá-lo meu amigo — sempre o considerei e sempre o considerarei.” Belgrieve sentou-se e colocou a mão em seu ombro. “Desculpe ter demorado tanto, Percy. Obrigado por permanecer vivo. Estou feliz por poder vê-lo de novo.”
“O mesmo aqui... Obrigado, Bell. Por ter vindo me ver.”
Percival fechou os olhos com força, apertando os cantos dos dedos.
“Já fizeram as pazes?” Angeline disse, pulando em Belgrieve.
“Haha! Nós fizemos. É graças a sua ajuda, Ange.” ele bagunçou o cabelo dela, e Angeline parecia contente.
“Não no meu turno!” de repente, Kasim chutou Percival no ombro.
Cambaleando para trás, Percival o encarou.
“E agora?”
“Cala a boca! Fiquei bem preocupado ali! Sua mula teimosa! Em primeiro lugar, você sempre foi assim! Egoísta, nunca ligando para o que eu pensava... Ah, pelo amor de Deus!”
“Entendi, entendi. Não fique tão bravo.” Percival balançou a cabeça, farto.
“Você não é muito melhor do que eu nesse quesito.”
Então, Lucille o cutucou no ombro.
“Bom para você, senhor.”
A expressão de Percival congelou, assustada. Ele coçou a bochecha desajeitadamente.
“Hum... Desculpe. Para tudo.”
“‘Não se preocupe. Seja feliz.’”
“Hehehe... De repente você está muito mais suave — como se o diabo tivesse te deixado.” observou Yakumo. Ela colocou a haste do cachimbo entre os lábios sorridentes.
Percival bagunçou o próprio cabelo e pôs-se de pé.
“Cale-se. Há algo de errado com isso?”
“Não, acho que é uma coisa boa. Certo?”
Atrás dela, Anessa, Miriam e Marguerite assentiram com aparente alívio.
Belgrieve riu e o cutucou.
“Elas estavam com muito medo de você. Certo, Ange?”
“Sim... Sr. Percy é bastante assustador.”
“Agora o pai e a filha estão me intimidando juntos!” embora Percival rugisse de raiva fingida, o rosto de Percival floresceu em um sorriso alegre e infantil.
Na direção do grande buraco, havia algum barulho se formando. Evidentemente, outro monstro rastejou para fora. Percival respirou fundo e ajustou a espada na cintura. Tomando seu sachê que havia caído no chão, guardou-o de volta. Então, pegou uma garrafa de cerveja da mesa de Angeline e começou a beber.
“Nunca provei algo tão bom antes!” proclamou enquanto limpava a boca. Então jogou de lado a garrafa vazia. “Bell, Kasim, vamos fazer um tumulto. Esse é o tipo de humor com o qual estou.”
“Exatamente o que eu queria ouvir! Hehehe, quanto tempo! Nós precisamos mesmo encontrar Satie a seguir!”
Kasim abaixou o chapéu. Belgrieve se levantou com um sorriso irônico e pegou a espada larga. Angeline felizmente ficou ao lado deles.
“Não é legal, pai?”
“Sim... Verdade.”
Parecia que seus caminhos divergentes haviam se unido mais uma vez. Pequenas e tênues conexões tornaram-se fios que se entrelaçaram até chegarem a este momento. Só mais um... O cabelo prateado de uma elfa balançava em suas memórias.
Enquanto o grupo avançava, Percival virou-se de repente.
“Pensando agora, Bell.”
“Hum?”
“Ange mencionou algo sobre um Ogro... Vermelho? O que é isso?”
“Ange...?” Angeline fingiu assobiar, embora não soubesse como. Ela olhou para longe. Os ventos haviam levado as nuvens para longe e fora de vista, deixando um céu azul infinito em seu rastro.
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