terça-feira, 15 de agosto de 2023

Boukensha ni Naritai to Miyako ni Deteitta Musume ga S Rank ni Natteta — Volume 07 — Capítulo 97.5

Capítulo Extra 97.5: Verão na fronteira

As ovelhas baliam alto enquanto corriam, enquanto cães pastores corriam em volta delas para evitar que se afastassem demais. No verão, as planícies de Turnera estavam sempre animadas. As ovelhas eram soltas para pastar no final da primavera e passavam o dia inteiro comendo grama. Depois de retornar brevemente à aldeia para uma tosquia no início do verão, era uma vez mais soltas na planície. Sentindo-se refrescadas com seus casacos mais leves, essas ovelhas comiam a folhagem macia, deixando seus casacos crescerem mais uma vez para o inverno distante.

Reunir as ovelhas para a tosquia era um trabalho enorme que exigia todos os pastores e lavradores. No entanto, uma vez feito o trabalho, eles só tinham que patrulhar em intervalos fixos para garantir que as ovelhas não se afastassem. Quando o rebanho se espalhava muito, usavam cães pastores para conduzi-las para perto da vila.

Observando do alto da colina, parecia que todas as ovelhas se moviam como um grande animal vivo. O latido dos cães e o balido ruidoso das ovelhas, as ordens estridentes que os pastores davam — tudo isso ecoava incessantemente pelas planícies.

“Incrível!” Charlotte exclamou enquanto observava a vista. “Já tinha pensado antes, mas esses cachorros são muito bem treinados!”

“Têm que ser. Caso contrário, não podemos fazer nosso trabalho.” explicou Barnes, batendo com uma bengala no ombro. “É porque meu velho foi e criou o rebanho... Nossos cachorros estão envelhecendo. Teremos que criar uma nova ninhada.”

“Sério? Eu gostaria de criar um também.”

“É uma boa experiência. Porém não é fácil treiná-los como cães de trabalho adequados.”

Barnes ouviu uma voz chamando por ele à distância.

“Ah, merda. Desculpe, Char, teremos que continuar essa conversa mais tarde.”

Com a bengala na mão, Barnes saiu correndo, pisando na grama.

Foi divertido observar o pastoreio de longe, contudo Charlotte não queria desperdiçar todo o seu tempo apenas observando — ela queria participar também, eventualmente. Afinal, ao que parecia, Angeline ajudou Belgrieve com o pastoreio quando tinha apenas dez anos de idade. No entanto, mesmo que tivessem a mesma idade, não havia garantia de que uma garota de constituição fraca criada sob a tutela do currículo de um nobre lucreciano pudesse se comportar tão bem quanto uma garota robusta de Turnera.

Não seja precipitada. Um passo de cada vez, Charlotte lembrou a si mesma. Ela colocou o chapéu de palha e começou a caminhar em direção à vila. Ao longo do caminho, podia ouvir os fazendeiros cantando canções folclóricas. Agora que a primeira colheita havia terminado, os campos de trigo — e toda a terra que havia sido devastada pela marcha das árvores — estavam sendo arados. Ao redor dos campos de trigo semeados na primavera, onde brotos verdes balançavam com a brisa, os fazendeiros percorriam o perímetro e inspecionavam a cerca.

As cicatrizes deixadas pela antiga floresta estavam se curando e Turnera estava voltando à sua vida cotidiana. Charlotte ajudou no jardim do orfanato em Orphen, mas esta foi a primeira vez que experimentou a agricultura como um modo de vida. Era tudo estranho para sua forma de vida anterior, porém achou muito interessante.

Por várias vezes havia se perguntado onde Belgrieve e Angeline estavam agora e o que estavam fazendo. Era solitário sem o par que considerava seu pai e irmã mais velha; contudo em comparação com os dias sombrios em que Charlotte vagava pela terra em busca de vingança, a rotina diária de Turnera era simplesmente deslumbrante. Seu caminho passou por casas onde podia ver os aldeões curvados sob os beirais de suas respectivas casas enquanto separavam batatas ou trigo seco.

Por um tempo, o cheiro almiscarado de lã de ovelha pairou por toda parte, contudo foi levado pela brisa do verão. A lã tosquiada seria lavada e embebida em água quente para remover ainda mais sujeira e óleos. O fedor era bastante forte, e Charlotte, que não estava acostumada com isso, ficou perdida no começo. Depois de passar pelos processos de lavagem e cardagem, porém, a lã resultante seria branca, fofa e deliciosa ao toque. Charlotte havia recebido uma tufa e nunca se cansaria de acariciá-la com Mit.

A lã seria então girada em um fuso em fio. Este fio pode ser usado para fazer roupas ou têxteis. Belgrieve só fazia o tipo de peças simples que podiam ser trabalhadas com agulhas de tricô, no entanto as casas dos pastores tinham teares que faziam um barulho de clique que ouvia sempre que passava por eles. Esses produtos de lã eram uma mercadoria importante para Turnera. Os próprios aldeões tinham uso para eles, é claro, entretanto também eram vendidos e trocados por mascates que passavam. Turnera tinha uma boa reputação pela qualidade da sua lã e, embora só acontecesse uma vez por ano, havia comerciantes que vinham do Estogal para comprar alguma.

Quando Charlotte chegou na frente da casa de Kerry, podia ouvir o som dos teares trabalhando. Havia várias oficinas diferentes nas instalações que produziam queijo, têxteis e outros produtos. A ética de trabalho do homem realmente explicava por que era um dos maiores nomes de Turnera, e muitos aldeões eram empregados por ele.

Era muito cedo para o almoço, então Charlotte pensou em dar uma espiada na fábrica de tecidos. As paredes de pedra e madeira eram iluminadas por uma janela voltada para o sul, que ficava aberta. Charlotte teve que ficar na ponta dos pés para espiar. Havia quatro teares em uma linha ordenada, e as moças e senhoras da vila trabalhavam duro.

Era uma visão maravilhosa e misteriosa ver fios se cruzando formando lençóis de tecido. Ela ficou maravilhada com a exibição até sentir um tapinha nas costas.

“Eep!” gritou e se virou para ver Rita.

Rita segurava uma cesta cheia de novelos de lã.

“O que está fazendo?” perguntou.

“Bem, você sabe, isso é... Eu só achei que parecia legal...”

Charlotte não tinha feito nada de errado, todavia sentia como se tivesse sido pega no meio de alguma travessura. Suas mãos esfregavam de nervosismo.

Com uma risadinha, Rita estendeu a mão para pegar a mão de Charlotte.

“Então... Observe um pouco mais de perto.”

“Hã? Posso?”

Charlotte foi levada para a oficina. As mulheres pararam momentaneamente em seu trabalho e sorriram ao vê-la. Embora ainda se mexesse um pouco nervosa, a garota deu outra olhada nos teares e nas grandes rodas giratórias. A família média usava fusos menores, mas a operação de Kerry estava em uma escala totalmente diferente.

“Aqui.” disse Rita, encorajando-a a sentar-se em frente a um dos teares. O coração de Charlotte estava acelerado.

“Sua perna alcança?” perguntou a garota mais velha que estava sentada ali momentos atrás.

Charlotte olhou para seus pés; havia um pedal que parecia mover os fios verticais — as urdiduras — para cima e para baixo. Charlotte se inclinou um pouco para frente na cadeira, esticando o pé o máximo que pôde. Isso pareceu fazer o truque. A guia do liço mudou: alguns fios da urdidura foram empurrados para frente enquanto outros foram empurrados para trás em um padrão alternado. Ela passou um fio de trama horizontal pela abertura nas urdiduras alternadas e, em seguida, usou uma ferramenta semelhante a um pente chamada junco para prender a trama. Mudando o pedal, passou outra trama. Isso teve que ser repetido várias vezes.

Parecia um trabalho simples, porém depois que o experimentou pessoalmente, percebeu surpresa o quão era difícil. Charlotte se viu em uma situação dura.

“Você não deve puxar muito.”

“Oh, você o alimentou pelo caminho errado, inverteu o cerco.”

Ela tentou várias vezes, apenas para se sentir mal por estragar o que já era um tecido inacabado. Suas mãos pararam.

Pendurado na parede um lindo pedaço de pano trançado — talvez um exemplo de padrão a ser imitado. Ficou muito lindo, usando fios de seis cores diferentes.

Havia muitos tecidos bonitos em Lucrecia, a terra de seu nascimento; Charlotte, como filha de um cardeal, teve bastante exposição a esses ofícios. Porém, o material no sul mais quente era fino e liso. Era linho, algodão e seda, e eles não costumavam tecer em padrões. Isso era mais adequado para lã, que era mais grossa e pesada, e tinha uma sensação firme e substantiva.

Eu seria capaz de tecer algo assim se praticasse? Charlotte se perguntou.

O tear começou a se mover de novo e, atrás dele, Charlotte ajudou na fiação. Belgrieve trouxe lã até Orphen, fiando-a em seu tempo livre. Charlotte o ajudou com o trabalho, então conhecia o processo. Pouco a pouco, puxou a lã em cima do fuso giratório. A maneira como o fio se estendia entre seus dedos era como mágica.

Belgrieve era um bom fiandeiro, contudo Rita era ainda melhor. Seu trabalho era rápido, fiando fios bonitos sem um único emaranhado. Em pouco tempo, o fuso estava cheio.

“Você é muito boa, Rita...” Charlotte disse com um toque de ciúmes.

Rita sorriu.

“Você será capaz de fazer isso em breve.”

“Sério mesmo...?”

Seu olhar se voltou para o pano na parede uma vez mais. Com certeza seria necessária uma fiação habilidosa em cima de uma tecelagem habilidosa para produzir algo assim. Preciso praticar mais, pensou Charlotte enquanto voltava para o trabalho. Então, um pensamento repentino lhe ocorreu.

“Ange já teceu?”

“Hmm... Acho que não. Aquela menina preferia a luta de espadas lúdica com os meninos.” disse Rita. As outras mulheres riram em concordância.

“Certo, o Sr. Bell fez um pouco de fiação, então Ange o imitou, pelo menos.”

“Ange gostava de ajudar o Sr. Bell em seu trabalho. Contudo acho que ela nunca pensou em aprender a tecer.”

“E então partiu e se tornou uma aventureira Rank S. Não sabe como fiquei chocada.”

“No entanto aquele vestido que Angeline usou no festival da primavera — aquilo era bonito.”

“Certo, certo. Nunca imaginei que a garota que sempre andava com os garotos pudesse ser tão fofa.”

“Ela disse que foi um presente da filha do arquiduque. Ange é realmente incrível.”

Embora a conversa se tornasse animada, as mulheres nunca paravam de trabalhar. Elas podem fazer isso sem pensar, refletiu Charlotte. Então, notou que suas próprias mãos haviam parado e começou a girar o fuso freneticamente de novo.

Por um tempo, se encantou com o trabalho até que Byaku apareceu da porta aberta com uma carranca.

“É hora do almoço.”


A casa de Hannah era como uma oficina, e também possuía uma modesta variedade de ferramentas para marcenaria. Seu falecido marido havia comprado as ferramentas com o dinheiro que guardou aos poucos de seu trabalho como lenhador e, mesmo agora, Hannah fazia questão de mantê-las em bom estado. Assim, todas mantiveram uma ponta fina.

Atrás da casa havia um pequeno anexo, embaixo do qual guardava galhos e restos de madeira que não serviam para construção. Estes eram seus materiais para trabalhar madeira. Hannah encontrava tempo entre cozinhar e trabalhar no campo para transformar a madeira em talheres e outros utensílios de mesa, que dava aos vizinhos em Turnera ou vendia para mascates.

Os olhos de Mit estavam cheios de curiosidade enquanto andava de um lado para o outro em frente à entrada da oficina. As prateleiras embutidas estavam forradas com várias ferramentas; no topo, havia bonecas e tigelas esculpidas, enquanto um prato inacabado ainda descansava na bancada próxima. Além desses, também tinha cestos feitos de casca de árvore e escorredores tecidos de videiras. Aos olhos de Mit, era como uma montanha de tesouros.

“Não brinque com nada afiado. Pode se machucar.” disse Hannah, despejando água quente em seu bule. Mit estava pegando uma machadinha e rapidamente retirou a mão. “Esse pode ser muito pesado para você.” Hannah acrescentou com uma risadinha.

“Pesado?” Mit inclinou a cabeça.

“Sim, porque você deveria balançar isso com uma mão. Venha aqui, tome um chá.”

Mit obedeceu e cambaleou até a mesa.

O garoto já havia tomado o café da manhã e, depois de ajudar no campo atrás da casa de Belgrieve, vagou sozinho pelo vilarejo. Por um tempo, se sentiu culpado por atrair a floresta antiga para a vila e teve medo de tudo. Os aldeões fizeram tudo o que podiam para ser gentis com ele e, quando Belgrieve partiu para sua jornada, Mit conseguiu viver como antes. É claro, sentia falta de todos aqueles que se foram, mas ainda tinha Graham, Charlotte e Byaku também. Sentia-se sozinho, porém nunca como se estivesse realmente solitário.

Com isso dito, Mit estava sozinho hoje. Não que todos estivessem ocupados — as outras crianças pequenas se reuniam na casa de Belgrieve, onde Graham cuidava delas para seus pais ocupados e, normalmente, Mit também brincava junto. No entanto não hoje — até ele queria um tempo para si mesmo de vez em quando.

Mit passou um tempo olhando para os campos de trigo semeados na primavera e observou a serraria funcionando até que enfim se encontrou aqui na casa de Hannah. Antes de Duncan partir em sua própria jornada, o aventureiro foi à casa de Hannah para fazer uma xícara, e Mit estava o acompanhando na época — mas isso foi há muito tempo. Quando Mit veio hoje, encontrou Hannah no trabalho preparando o almoço para os lenhadores, e ela recebeu o menino com seu vigor habitual.

As janelas e portas foram deixadas abertas, permitindo que a brisa passasse com um som farfalhante enquanto os escassos pedaços de madeira espalhados pelo chão davam leves chacoalhadas. Hannah ajeitou a toalha de mão que tinha enrolado na cabeça.

“O que está errado? A xícara é tão interessante assim?”

"Sim."

Mit assentiu, segurando a xícara com as duas mãos. Foi feito à mão, esculpido em madeira. Mit olhou-a de perto sem tomar um único gole de chá.

“É apenas um copo de madeira.” disse Hannah com uma risada alegre.

“Hannah que fez?”

“Hmm? Sim eu fiz.”

“Posso... Fazer também?”

Hannah pareceu agradavelmente surpresa.

“Com certeza pode. Não me importo de ensiná-lo se concordar em fazer o que eu disser.”

“Quero aprender. Ensine-me.”

Hannah olhou para a panela sobre o fogo e depois de volta para Mit.

“É muito cedo para o almoço... Ok, vou te mostrar um pouco.”

“Yay. Obrigado!”

“Hehe, eu gosto de crianças que sabem quando ser gratas. Agora venha aqui.”

Mit recebeu um cinzel incrivelmente afiado, que apertou um pouco nervoso em seu punho. Hannah o trouxe um pedaço de pau um pouco mais grosso que seu braço.

“Observe-me um pouco. A machadinha talvez seja um pouco demais para você começar com ela.”

Com isso, Hannah começou a raspar a madeira. Ela arrancou a casca e criou uma superfície lisa. Seus movimentos magistrais eram uma alegria de assistir. Depois de deixar a superfície plana, desenhou com um pedaço fino de carvão. Parecia retratar uma xícara quando vista de cima. Então, o colocou em cima de um cavalo de barbear. Com um toque no pedal, a madeira resistente é presa para manter o produto inacabado no lugar. Hannah sentou Mit e caiu na gargalhada.

“Ahahaha! Desculpe, desculpe. Você não pode alcançá-lo ainda.”

Mit era muito pequeno para pisar no pedal. Então Hannah sentou-se no cavalo de barbear e deixou Mit sentar em seu colo. Na frente da madeira fixa, Mit segurava um cinzel e um martelo.

“Agora o esvazie.”

Como Hannah instruiu, Mit tocou a lâmina do cinzel contra o interior do círculo que ela havia desenhado com carvão.

“Sim, agora use isso para bater na parte de trás. Faça assim.”

Mit bateu com o martelo na parte de trás do cinzel. A lâmina afundou na madeira.

“Mais forte! Incline um pouco a lâmina.”

Mit fortaleceu nervosamente sua mão no cinzel e bateu o martelo. Ele se esforçou para acertar a pontaria.

“Isto é difícil...”

“Ahaha... Não dá pra começar fazendo tudo certo. Agora se acalme. É perigoso se torcer as mãos.”

De novo e de novo, Mit bateu na parte de trás do cinzel, e um som reconfortante de batida ressoou pela sala. A princípio, o garoto estava inseguro, contudo aos poucos foi compreendendo os fundamentos, e o som de seu martelo caindo estava ficando mais forte. A essa altura, começara a parecer divertido. Seu nervosismo inicial havia desaparecido, e agora sua mente se fixava em como deveria posicionar melhor a lâmina.

“Bom, já está melhorando... Duncan foi igual, sabia? Hesitou no começo, no entanto logo pegou o jeito.”

“Duncan também?” Mit fez uma pausa, olhando por cima do ombro para Hannah.

Ela sorriu.

“Isso mesmo. Quando acha que Duncan vai voltar? Prometemos fazer uma terrina da próxima vez.”

Parece ótimo, pensou Mit. O garoto não podia se deixar ficar muito para trás. Voltando-se para a xícara, ajustou seu aperto no cinzel e no martelo. Por um tempo, trabalhou como se estivesse em transe, e Hannah o observou entretida. Então, um som crepitante veio da lareira.

“Hum? Ah, isso não é bom!”

A voz alarmada de Hannah fez Mit congelar de surpresa. A mulher correu direto para a lareira, onde a panela borbulhava furiosamente pela borda, pingando pelas laterais e caindo no fogo abaixo.

Mit não poderia continuar sem Hannah para segurar a madeira. Ele ficou lá, sentado no cavalo de barbear, observando Hannah mexer a panela, olhando para a xícara em que estivera trabalhando. Certamente Belgrieve e Ange ficariam chocados quando vissem o que podia fazer. Depois de terminar sua própria xícara, Mit queria fazer uma para todos da família.

Foi então que Byaku entrou pela porta aberta com Charlotte o seguindo.

“Hora do almoço.” Byaku anunciou com uma cara azeda.


O sol de verão brilhava com força total, embora não forte o suficiente para causar queimaduras solares. Não havia calor no vento, e cada vez que este varria a grama, acalmava a pele suada.

Depois que o café da manhã acabou e a água foi borrifada no campo nos fundos, Charlotte e Mit partiram por conta própria. Byaku limpou a área ao redor da lareira, lavou a roupa e investiu um pouco mais de trabalho no campo. Quando se tratava de tarefas domésticas, o menino que continha um demônio dentro de si era tão bom, senão melhor do que todas as meninas que costumavam ocupar a casa lotada. Talvez sempre tivesse um talento especial para isso.

Embora visto como um excêntrico aos olhos de seu povo, Graham ainda era um elfo e tinha pouco desejo de intervir no funcionamento da mãe natureza. Essa sua aversão só ficou mais forte com a idade; portanto, trabalhar no campo não era seu forte.

Graham partiu lenha perto do final do quintal enquanto cuidava das crianças pequenas que se reuniam na casa. As crianças ajudavam na roça e nas tarefas domésticas durante os horários de maior movimento, mas, assim que o trabalho se acalmava, elas mergulhavam nas brincadeiras. Os outros adultos não tinham tempo para cuidar delas, então as crianças procuravam Graham com frequência. Afinal, sob o olhar atento de Graham, poderiam até entrar nas florestas das quais seus pais lhes disseram, com muita severidade, para ficarem longe.

Uma menina de cerca de sete anos de idade puxou as roupas de Graham.

“Vovô, vamos para a floresta hoje?”

“Me de um momento.” Graham amarrou os pedaços de lenha picados, olhando para a nova residência que estava quase pronta. Quando Angeline ainda estava por perto, as crianças entravam escondidas naquela casa todas as noites para jogar jogos de tabuleiro e cartas. Agora que o trabalho no interior do prédio havia começado, não podiam mais brincar lá a noite toda. Em vez disso, Charlotte e Mit deitavam na cama e ouviam as histórias de aventura de Graham antes de adormecer.

Para Graham, esses momentos o imbuíram de uma estranha sensação de realização. Ele não tinha esposa ou herdeiros e, exceto quando lhe pediram para cuidar de Marguerite, raramente interagia com crianças. A maior parte de sua vida consistia em batalhas. Mesmo quando voltou ao território élfico para se aposentar, seu tempo gasto lutando em terras humanas voltou a mordê-lo, pois suas viagens foram a causa de seus irmãos o manterem à distância.

Assim, deveria apodrecer em silêncio, porém agora estava morando em Turnera cercado por crianças. O destino funciona de maneiras misteriosas, pensou Graham. Angeline e Belgrieve mudaram sua vida em muitos aspectos, e talvez também tenha mudado a de Marguerite. O velho elfo nunca imaginou que ganharia amigos para toda a vida com sua idade.

Graham se perguntou como a espada que deixou com Belgrieve estava se saindo. Seu corpo podia ter envelhecido, contudo sua espada não; ainda ansiava por novas aventuras. Nos momentos em que se lembrava de sua ausência nas costas, parecia que havia esquecido um pedaço de si mesmo. No entanto talvez fosse exatamente assim que a espada se sentia quando se aposentou do serviço ativo.

Ele empilhou a lenha e olhou para a posição do sol. Ainda havia algum tempo até o meio-dia e, embora não pudessem se aventurar muito fundo na floresta, talvez pudessem colher algumas trepadeiras para tecer. Graham começou a reunir seu equipamento quando Byaku voltou com uma cesta debaixo do braço.

“O que está fazendo?”

“Pensei em ir para a floresta... E você?”

“Se for, então quem vai preparar o almoço?” Byaku respondeu com a mesma carranca de sempre. A cesta continha restos de vegetais junto com alguns pequenos produtos de verão.

“Entendo. Por favor, cuide da casa.”

“Apenas esteja de volta ao meio-dia.” Byaku disse enquanto ia para a estação de lavagem para limpar os vegetais.

Assim, Graham levou as crianças para fora da vila. As crianças balançavam entusiasticamente as varas como se fossem espadas o tempo todo. Atravessaram as planícies e chegaram à orla da floresta. Sua chegada foi anunciada pelo som dos galhos folhosos balançando na brisa, mas o vento diminuiu logo após a entrada.

As crianças logo começaram a procurar por todos os tesouros que pudessem encontrar, fossem gravetos de formato estranho, folhas grandes o suficiente para usar como máscaras, lindas flores ou frutas saborosas. Havia muitas coisas para capturar o coração de uma criança.

“Fiquem perto de mim.”

“Ok!” as crianças responderam energicamente.

Graham não podia ser negligente. Por mais cuidadosos que tentassem ser, era da natureza das crianças perder de vista os arredores sem nem sequer perceberem. Ele estava cuidando das crianças no lugar de Belgrieve, e não seria capaz de olhar o homem nos olhos se alguma coisa acontecesse com uma delas. Sempre que Graham se preparava assim, não podia deixar de abrir um sorriso. Quando era um aventureiro ativo, havia protegido nobres e alguns de status mais elevado do que isso. Porém, naquela época, não tinha sido tão vigilante. Essas crianças errantes eram muito mais difíceis de cuidarem do que qualquer nobre arrogante.

De qualquer forma, os sentidos de Graham foram aguçados desde o ataque da floresta antiga. Não estava de volta ao seu auge, contudo estava de fato melhor do que antes. Mesmo quando sua atenção estava em outro lugar, podia sentir na hora qualquer monstro antes que eles pudessem se aproximar das crianças. No entanto, isso não era tudo — quando Graham elevava seu ki, sua própria presença agia como uma proteção contra o mal. Assim, nada perigoso sequer tentou se aproximar.

As árvores eram todas esplêndidas por direito próprio, embora fossem mais baixas em alguns lugares e ausentes em outros. Nesses trechos de outra forma nus, matagal e arbustos prosperavam, e a vegetação rasteira crescia de maneira densa. Era aí que as vinhas akebia e noz podiam ser encontradas em emaranhados. As vinhas seriam desenredadas e colhidas, tomando cuidado para não colher demais — essas dariam frutos no outono e Graham não queria estragar a diversão das crianças no futuro.

Os elfos raramente cultivavam campos, recebendo as bênçãos da floresta. Isso ia além de apenas sua comida; suas ferramentas artesanais, usadas no dia a dia, também vieram dessa fartura. Qualquer elfo que se preze poderia tecer uma cesta.

O grupo prosseguiu devagar com muitos desvios até chegarem a um ponto onde as planícies não podiam mais ser vistas. O terreno começou a ter uma leve inclinação que os teria cansado se pretendessem escalá-lo.

“Vovô, você está cansado?”

“Podemos continuar?”

“Vamos descansar por aqui.” decidiu Graham depois de examinar os arredores.

Folhas verdes espalhavam a luz do sol de verão de cima, formando uma colcha de retalhos manchada de sombras no chão. As crianças, cansadas de brincar, sentavam-se no chão ou em pedras e troncos de árvores. Suas bocas ainda se moviam tão ocupadas como sempre — esta foi uma grande aventura para todos os meninos e meninas ali.

Graham sentou-se também e começou a enrolar as vinhas que haviam colhido, cortando os galhos finos com a faca. O tempo parecia ter diminuído para um instante. Os sons das árvores balançando acima formavam uma harmonia ao se misturar com a tagarelice das crianças. Ele sentiu que poderia ficar sentado lá para sempre.

Mas logo, era hora de voltar. As crianças estavam começando a parecer famintas, embora não parecessem de todo satisfeitas com o passeio. Porém, alguns foram mais diretos sobre seus estômagos vazios.

Graham olhou em volta e quebrou um talo de um arbusto de amora silvestre.

“Pode não encher seu estômago, contudo irá distraí-lo por algum tempo.”

O caule da amora silvestre era muito fibroso para comer, entretanto mastigá-lo liberava um sabor agradavelmente doce e azedo. As crianças os mastigavam enquanto seguiam Graham de volta para casa.

Parecia que a viagem de volta era muito mais curta do que o caminho até lá, todavia depois que deixaram a floresta, o sol estava mais alto no céu do que Graham havia previsto. Que estranho, ele pensou.

Na praça da vila, o grupo encontrou Byaku, que liderava Mit e Charlotte.

“Ah, é o vovô.”

“Você foi para a floresta?”

“Fui...” Graham olhou para Byaku com uma expressão bastante preocupada.

Byaku o encarou, evidentemente descontente.

“O que eu lhe disse?”

“Desculpe...”


Byaku podia ser bastante meticuloso e era barulhento quando se tratava de arranjos e acordos. Ficava irritado quando as refeições não eram feitas no horário e quando o trabalho não saía como planejado. O garoto não suportava quando as coisas não eram colocadas de volta em seus devidos lugares e detestava quando as louças usadas eram empilhadas sem serem limpas. Era simplesmente da sua natureza.

Depois que Graham saiu com as crianças, Byaku lavou os vegetais. As mudas cresciam e começavam a dar frutos. Novos sabores foram aos poucos chegando à mesa de jantar.

De pouco em pouco, desde a época em que morava em Orphen até agora, Byaku começou a se dedicar aos afazeres domésticos. No começo foi um incômodo; antes disso, sua vida era vagar sem um lar permanente, e nem sabia como limpar ou lavar roupa. No entanto, uma vez que se distanciou de seu passado sangrento, se acostumou a viver no mesmo lugar todos os dias e, uma vez que estava fazendo suas próprias refeições, só não suportava cortar custos. Era frustrante ter que aprender com Belgrieve e, ainda pior, aprender com Angeline, mas ele cedeu. O fato de Belgrieve ser um professor tão bom não ajudava em seu humor.

Não querendo mais suportar essa tutela, Byaku pegou o básico que havia aprendido e trabalhou o resto por conta própria por tentativa e erro. Para sua surpresa, tudo veio naturalmente para ele, e agora poderia fazer todo o trabalho doméstico com perfeição. Em vez de ficar sentado, descobriu que fazer alguma coisa — qualquer coisa — o ajudava a se acalmar, e talvez isso tenha desempenhado um papel importante. Também era uma pessoa exigente e, uma vez que se acostumasse com a limpeza, o incomodava quando sujeira e poeira cruzassem sua linha de visão.

Byaku havia desistido de uma vida normal há muito tempo, porém aqui estava ele, sendo tão meticuloso em cada tarefa diária. Era bem idiota, e sabia disso, contudo não era uma sensação ruim. Não era nada ruim, no entanto recusava-se a aceitá-lo. Byaku costumava fazer cara feia para si mesmo.

Depois de lavar os legumes, enxugou o suor da testa, que havia sido expelido pelo calor do sol que crescia cada vez mais.

“Tsk...” estalou sua língua.

Os vegetais lavados foram trazidos para dentro de casa. Enquanto o novo anexo estava sendo trabalhado no interior, os trouxe para a residência principal, onde acendeu o fogo na lareira e pendurou uma panela com água sobre ela. Os legumes foram cortados em pedaços pequenos antes de serem adicionados à panela com um pouco de carne em conserva. Em seguida, entrou uma variedade de ervas para dar sabor; a carne por si só forneceria sal suficiente.

Enquanto a panela fervia, esmagou algumas batatas cozidas e as misturou com farinha em uma bola de massa. A massa era partida em pedacinhos, que depois fervia pouco antes da refeição.

Desde que Belgrieve saiu, Byaku se tornou o chef principal. Charlotte e Mit ajudariam, todavia os dois não conseguiram preparar um cardápio inteiro. Graham sabia cozinhar, entretanto não era tão exigente quanto ao gosto; suas refeições não eram ruins, embora também não fossem boas. Em primeiro lugar, Graham tinha certo distanciamento sobre ele. Ainda tendo mostrado uma força incomparável na batalha, podia ser bastante distraído quando se tratava da vida normal. Byaku não gostava de deixá-lo trabalhar sem supervisão.

De qualquer forma, Byaku era quem mediava todo o trabalho doméstico. Pode ter sido por eliminação, no entanto não desgostava de cozinhar. O garoto não estava acostumado, então não tinha um repertório grande, todavia gostava de experimentar coisas novas e havia crescido consideravelmente desde o início.

Tendo alcançado um bom ponto de parada, Byaku se deixou cair em uma cadeira. A luz entrava pela janela aberta e podia ver as partículas de poeira flutuando no ar. Estava quente lá fora, entretanto os ventos que passavam tornavam mais frio onde quer que não houvesse luz solar direta.

Byaku olhou para sua mão, da frente para trás. Ainda havia um pouco de fuligem nele. As pontas dos dedos estavam um pouco enrugadas por causa da água. Era uma mão uma vez encharcada de sangue, mas era assim que parecia agora. Ele não conseguia nem rir dessa mudança. Soltando um bufo autodepreciativo, inalou profundamente e exalou. Seus olhos se fecharam e permitiu que a mana circulasse por seu corpo.

Com Graham e Kasim como seus instrutores, Byaku refinou sua técnica de meditação em um grau notável. O demônio que espreitava em sua alma ainda estava tentando escapar, porém agora lutava menos batalhas contra ele e seu coração estava mais estável. Não precisava mais conectar sua mente à do demônio, e estava um tanto quanto quieto nos últimos tempos.

Seus olhos se abriram e um círculo mágico tridimensional se manifestou. A forma bruxuleante cor de areia flutuou lenta ao seu redor. Sua técnica havia melhorado desde que viajou com Charlotte. Se queria fortalecê-los ou implantar mais deles, não precisava confiar na mana do demônio.

“Hmph.”

Byaku levantou-se.

A jornada daquele velho teria sido muito mais fácil se tivesse me levasse junto... Esse pensamento irritante passou por sua cabeça. Byaku olhou para o céu. O sol estava atingindo seu zênite; já era hora do almoço. Contudo, Graham ainda estava fora e Charlotte e Mit também não haviam retornado.

“O que eles estão fazendo?”

Terminado o almoço, a louça teria que ser limpa. Sem uma cozinha limpa, Byaku ficaria muito distraído para o trabalho da tarde. Byaku já estava um pouco irritado enquanto seguia os rastros de mana na cidade.

A mana de Charlotte era imensa, enquanto a mana de Mit era de natureza demoníaca — ambas eram fáceis de localizar.

Byaku parou na casa de Kerry e encontrou teares estalando para frente e para trás. Através da porta, podia ver Charlotte conversando com Rita enquanto fiava a história.

Ele entrou com o cenho franzido.

“É hora do almoço.”

“Ah, já é tão tarde assim?” as mulheres pararam o que estavam fazendo e olharam pela janela.

“Ah, tem razão. Não notei o sol ficando tão alto.”

“Almoço, hein? Você está indo embora, Char?”

“Sim. Voltarei mais tarde.”

Depois de pegar Charlotte, sua próxima parada foi na casa de Hannah. O prédio estava distante, no entanto já podia ouvir um som de batida de madeira daqui. De repente, essas pararam. Uma vez que Byaku estava perto o suficiente para espiar pela porta, viu Hannah parecendo abatida diante da lareira e Mit sentado em um cavalo de barbear na parte de trás.

Byaku entrou pela porta com uma cara azeda.

“Hora do almoço.”

“Almoço?” Hannah levantou a cabeça. “Oh, Byaku... Certo, já está na hora.”

“Transbordou?”

“Praticamente... Deus do céu, tive sorte de não ter derramado muito.”

Parecia haver sobrado o suficiente para satisfazer os lenhadores. Mit saltou do cavalo de barbear e correu até Byaku.

“Eu fiz uma xícara.”

“Entendo.”

E então ele conduziu Mit sob o céu de verão. O sol, brilhando com o brilho de sempre, tinha ido um pouco para o oeste desde a última vez que o vira.

Byaku olhou-o com irritação antes de seu olhar se voltar para as duas crianças.

“O vovô ainda está na floresta?”

“Não sei...”

“Quero dizer, nós não estávamos com ele...”

Byaku coçou a cabeça irritado. Seria uma dor de cabeça procurá-los na floresta. A mana de um elfo era fácil de rastrear, contudo navegar pelas árvores seria problemático e o almoço atrasaria ainda mais. Então não haveria como dizer quando poderia limpar, e o trabalho da tarde nunca terminaria. Claro, havia muitas outras maneiras de fazer isso, no entanto esse grau de flexibilidade era algo que Byaku ainda precisava desenvolver.

Pensando que pelo menos deixaria as crianças comerem, Byaku voltou-se para a casa. Mas ao passar pela vila, encontrou Graham na praça.

“Ah, é o vovô.”

“Você foi para a floresta?”

“Fui...” Graham olhou para Byaku se desculpando.

Isso só fez Byaku franzir a testa.

“O que eu disse-lhe?”

“Desculpe...”

Graham olhou em volta sem jeito. Byaku zombou e voltou a andar.

Correndo para acompanhá-lo, Charlotte puxou sua manga.

“Sabe, Byaku, o sol ainda está alto. Não precisa ficar com tanta raiva.”

“Isso mesmo, Bucky. Não intimide o vovô.”

“E nós não estávamos brincando. Estávamos ajudando.”

“Sim. Eu fiz uma xícara.”

Charlotte piscou, confusa.

“Você esculpiu? Hannah te ensinou?”

“Sim. E quanto a Char?”

“Mexi com um tear! Além disso, fiz alguma tecelagem. A Rita é muito boa.”

“Talvez eu devesse tentar também... Hannah parecia ocupada.”

“Não vejo porque não. Tenho certeza que todos vão te receber felizes. Agora que está resolvido, vamos nos apressar e comer.”

“Sim. Vamos.”

Os dois ultrapassaram Byaku e saíram correndo. Então, relembrando ao longo do caminho, eles pararam e se viraram.

“Byaku, Graham, rápido!”

“Não se atrasem.”

“Seus pequenos...” Byaku franziu ainda mais a testa. Mas sem lhe dar a menor atenção, os dois partiram. Byaku cruzou os braços.

“O que é tão engraçado?”

“Hehehe... Não é nada.” Graham raramente ria, porém algo o fez rir agora.

Cada um de vocês... Byaku suspirou. Vou preparar um almoço embalado amanhã para levarem. Isso me poupará problemas. Tenho certeza de que é isso que Belgrieve faria — e, de repente, Byaku se contorceu ao perceber o que acabara de passar por sua cabeça. Ele balançou sua cabeça. As folhas de todas as árvores brilhavam intensamente ao sol de verão.

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