Capítulo 92: Nuvens de poeira rodopiantes pontilhavam a rua
Nuvens de poeira rodopiantes pontilhavam a rua como visto do terraço com vista para ela. Embora o terraço estivesse separado do mundo exterior apenas por um corrimão fino, era evidente que havia sido trabalhado por algum mago com incríveis habilidades. A magia de resfriamento o mantinha em uma temperatura esplendidamente refrescante, embora o calor intenso além deste fosse sentido no momento em que uma mão passasse pela grade. Parecia que eles estavam envoltos em uma espécie de membrana.
Marguerite, que havia recuperado por completo o salto em seu passo, examinou o cardápio com alegria.
“Que coisas loucas têm aqui! Não posso dizer o que é olhando para esses nomes! Mal posso esperar para ver o que vão trazer.”
“Hmm... Não nos favorece que isso seja um restaurante — as barracas pelo menos nos permitem ver a comida antes de comprá-la.”
“Talvez Kasim saiba?”
“Não olhe para mim. Já faz um tempo desde que vim para cá e não me lembro de muita coisa.”
“Senhor Duncan, há quanto tempo você está em Istafar? Tem alguma recomendação...?”
“Faz pouco mais de duas semanas... Tenho comprado minha comida nas barracas e na pousada o tempo todo.”
“Basta pedir o especial do dia... Deve ser o suficiente.” sugeriu Ishmael. Fosse ele tímido ou só um homem de poucas palavras, dava uma impressão um tanto sombria. Era um pouco misterioso por que estaria trabalhando ao lado de alguém tão caloroso quanto Duncan.
Independentemente disso, eles fizeram suas ordens arbitrárias. Suas bebidas foram trazidas primeiro e trocaram brindes com eles.
“Onde vocês dois se conheceram?”
“Oh, eu o conheci em Istafar na semana passada. Houve uma caça conjunta da qual participei para obter alguns fundos de viagem. Aconteceram algumas coisas, e descobrimos que partilhávamos o mesmo destino. Estamos juntos desde então.”
“Onde está indo? E... O que é esse destino compartilhado?” Angeline perguntou.
Duncan se inclinou.
“Estou contando apenas porque confio em vocês... Verdade seja dita, existe um lugar chamado Umbigo da Terra...”
“Hã?” Angeline disparou para frente. “Estão aqui para o Umbigo da Terra?”
Duncan piscou, surpreso.
“Não me diga que vão para lá também!”
“Sim, ouvimos dizer que um velho amigo nosso foi visto pela última vez lá... Haha! Nunca pensei que iríamos encontrá-lo ao longo do caminho.”
“Isso deve ser o que chamam de providência divina. Que reconfortante...”
“Dois Ranks S... A grande onda está chegando. Reconfortante de fato.” Ishmael gargalhou.
Com um movimento de cabeça, Anessa perguntou.
“Grande onda?”
“Oh, você não sabia? Certo, esta é sua primeira vez no Umbigo da Terra...”
“E você, Sr. Duncan?”
“Não, esta também é a primeira vez que vou lá. Ouvi rumores, mas continuei adiando. Achei que finalmente terminaria esta minha última jornada.”
“Última...?”
“Tem alguém esperando por mim em Turnera.” Duncan disse com uma risada tímida. Belgrieve sorriu, porém Angeline tinha uma expressão peculiar no rosto.
“Senhor Duncan... Isso é o que as pessoas chamam de bandeira da morte, aparentemente.”
“O-O que isso quer dizer?”
“Estava em um livro que li outro dia...”
“Você está sempre lendo os livros mais estranhos.” Kasim riu enquanto terminava o conteúdo de seu copo. “Então, o que é a grande onda?”
“Sim, bem, o Umbigo da Terra é onde grandes quantidades de mana tendem a se acumular...”
De acordo com Ishmael, a grande onda acontece quando a mana reunida no abismo ultrapassa certo limite. Monstros inundam de suas profundezas — mais poderosos e abundantes do que o normal. A flutuação de mana depende das fases lunares e do movimento das estrelas. Adivinhação e medições regulares conseguiram prever a chegada da grande onda com grande precisão.
“E para encurtar a história, acontecerá na próxima lua cheia. Então isso será em torno de um ano até o próximo.”
“Hmm... Tem gente que vem até aqui especificamente para esse momento, então?”
“Monstros poderosos significam materiais de alta qualidade... Achei que era essa a razão para virem aqui.”
“Não, estamos aqui para encontrar alguém... E você, Ishmael?”
“Há um reagente que preciso para minha pesquisa.”
Angeline deu uma risadinha. Parece que todos os magos são iguais, ela pensou.
“E já esteve lá antes...?”
“Sim, uma vez. Durante a grande onda, há dois anos.”
“Então, como é, de verdade? Como descreveria o nível de perigo?”
A pergunta de Belgrieve fez Ishmael pensar. Ele acariciou o queixo, um olhar tenso em seu rosto.
“Não poderia dizer... Os monstros que aparecem podem variar. Contudo, os aventureiros são bastante habilidosos, então, desde que priorize sua própria segurança, não deve ser muito difícil sobreviver.”
Disto isto, aqueles que mais contribuíram para a batalha ganhariam os maiores direitos sobre os materiais dos monstros. Este foi um entendimento tácito. Como havia um material que queria, Ishmael não poderia se limitar a ficar na retaguarda.
“A última vez que estive lá, vi Esteban, o Feiticeiro Carmesim, Lâmina Furiosa de um Braço Vardelsen, e Clifford, o Presa Azul. O número de aventureiros aclamados tende a aumentar quando a grande onda está em andamento. Não sei quem estará lá desta vez...”
“Ora, são todos guerreiros renomados em todas as terras. Será difícil superá-los pelos direitos dos materiais que deseja.” observou Duncan, humildemente cruzando os braços e balançando a cabeça.
“Qual era o material que Graham queria que conseguíssemos mesmo...?” Angeline perguntou enquanto pegava uma jarra.
“Um cristal de mana. Não apenas qualquer cristal, no entanto; ele precisa do cristal de dentro de um monstro transparente chamado An À bao Q Qu.”
“Esse é... um pedido bastante difícil.” Ishmael exclamou exasperado antes de soltar uma risada ambígua.
Coçando a barba, Kasim perguntou.
“É mesmo? Já ouvi o nome antes, mas não sei nada sobre a criatura.”
“Acredito que foi designado como Rank S.” disse Anessa.
Ishmael assentiu.
“É um monstro que é invisível enquanto está vivo. Só na morte se revela. O À Bao A Qu também não sai de seu caminho para atacar os humanos. É designado como Rank S porque as masmorras que habita são incrivelmente difíceis. Além do mais, uma vez que decide lutar, pode ser assustadoramente forte.”
“Existe algum no Umbigo da Terra?” perguntou Miriam.
Ishmael cruzou os braços com a pergunta.
“Existem... Ao que parece. No entanto não emergem das profundezas. Ouvi dizer que tem que descer e se aventurar até a toca deles. Eu mesmo nunca vi a coisa real, então não sei os detalhes.”
“Hum...”
Esta será uma aventura e tanto, pensou Belgrieve, um pouco ansioso.
Todavia, Angeline e os outros pareciam muito felizes com a perspectiva.
“Estou ansiosa para lutar contra isso... Mal posso esperar.”
“Um monstro invisível? Hehehe, parece interessante.”
“É todo invisível? Ou ainda pode dizer vagamente onde está...?”
“Acha que a magia vai funcionar? É raro lutamos contra monstros de Rank S.”
“Ah, é verdade. Também temos o pedido do Oliver.”
“Oliver?”
“O mestre da guilda aqui... Ele nos ajudou um pouco.”
As garotas começaram uma alegre discussão de contra medidas entre outras coisas. Esses aventureiros de alto escalão vivem em outro mundo mesmo, refletiu Belgrieve enquanto coçava a barba.
Kasim o cutucou, sorrindo.
“Não há tempo para perder a coragem, Bell.”
“Tem razão.”
Qual era o sentido de tudo isso se eu começasse a ficar com medo? Ele coçou a cabeça. No final das contas, só podia fazer o que podia — ficar ansioso com a situação não ajudaria.
Eles não falaram apenas sobre o Umbigo da Terra. A conversa floresceu sobre o incidente na jornada de Turnera e Duncan até que por fim a comida chegou à mesa. Belgrieve e seu grupo já se familiarizaram com sua própria cozinha de acampamento por um tempo. O cheiro por si só os deixou saber que era algo completamente diferente. O prato principal era peixe de rio frito sobre longos e finos grãos de arroz misturados com pedaços de caranguejo, regados com um molho peculiar que era ao mesmo tempo picante e doce. O acompanhamento era feito de uma estranha fruta macia que o garçom alegou ter vindo de um cacto. A sopa era picante e salgada com muitos temperos. Os sabores eram tão estranhos que Belgrieve não sabia dizer se era saborosa ou não, mas não a odiava. Os outros membros, ao contrário, pareciam se deliciar com os sabores fortes.
A conversa amigável continuou um pouco depois da refeição. Eles partiram por volta do pôr do sol, separando-se de Duncan e Ishmael, e se dirigiram para sua pousada. O sol forte se escondia na sombra das montanhas ocidentais; embora o ar ainda estivesse quente e rigoroso, parecia que a noite beliscava suas costas.
Faltavam menos de duas semanas para a lua cheia; Duncan e Ishmael partiriam para chegar antes do momento. Embora a onda não fosse o objetivo de Belgrieve, seria mais seguro viajar juntos. Consequentemente, o plano tornou-se partir com Duncan.
Depois de se acomodar em seu quarto longe das garotas, Belgrieve inspecionou seus pertences. Estava viajando um pouco mais leve desde que devolveu algumas ferramentas de viagem emprestadas para a guilda junto com a carroça. Embora facilitasse a escolha, sua escolha ainda seria importante — seria melhor fazer as malas com pouca bagagem, visto que estavam viajando a pé. Levar muito pouco, porém, pode acabar colocando-os numa situação precária. Talvez uma de suas seleções fosse necessária enquanto lutasse no Umbigo da Terra. Seu destino não era uma cidade ou assentamento, e não tinha ideia se conseguiria estocar quando chegassem lá. Ishmael é o único que esteve lá. É provável que esteja melhor informado, pensou Belgrieve.
“Vou ter que passar amanhã me preparando.”
“O que acha que vamos precisar? O garoto disse que os monstros ficam mais poderosos do que o normal durante a onda. Mas, pra ser franco, não sabemos o que é o ‘normal’.”
“De fato. E se são tão fortes, não sei se truques baratos vão funcionar ou não... De qualquer forma, nossa primeira prioridade é chegar lá inteiros.”
“Devemos estar bem com isso. Temos aquele cristal que pegamos emprestado do mestre da guilda aqui.”
“Sim, acho que estaremos bem também, contudo... Não baixe a guarda. Ser descuidado pode significar sua morte.”
“Já entendi. Hehehe, rígido como sempre.” disse Kasim com uma risada um pouco triste. “Eu estou... Um pouco assustado, no entanto. Sei que não é típico meu.”
“Sobre encontrar Percy, você quer dizer?”
“Sim, quero dizer... A balança está começando a pender — agora que estamos tão perto, meu medo está começando a superar toda a expectativa que tinha de vir aqui. Até estive no fundo do poço, antes de tudo isso. Pelo que Yakumo disse, aquele cara deve estar muito mal. Acha que posso ajudá-lo de alguma forma...?”
Belgrieve sorriu e deu um tapinha no ombro de Kasim.
“Não deixe isso te afetar. Percy é Percy. Ele não vai se tornar outra pessoa.”
“Tem razão. Hehe... Vou tentar me divertir com toda essa situação.” Kasim rolou até ficar em decúbito dorsal em sua cama.
Depois de uma risada, Belgrieve voltou para suas coisas e começou a verificar cada item um por um. Ele queria terminar para ter uma boa noite de sono, mas foi assaltado por uma dor fantasma latejante repentina em sua perna.
○
“Hey, que tipo de cara era o Percival, afinal?” Marguerite perguntou enquanto caminhavam pela sinuosa encosta da montanha. Pedras íngremes se erguiam por todo o lugar, e a paisagem era adornada com pequenos bolsões de grama verde.
Belgrieve pensou um pouco em sua pergunta enquanto procurava cuidadosamente pontos de apoio e desacelerou para responder.
“Alegre e cheio de confiança. Também havia seu talento apoiando-o. Como um espadachim, sabia que nunca seria o igualaria.”
Kasim coçou a barba.
“Sim, Percy e Satie eram fortes. Embora possam ser descuidados quando menos se espera.”
“Por exemplo...?” Angeline olhou para trás para o grupo.
“Vamos ver.” disse Belgrieve. “Saímos para buscar materiais, porém assim que Percy derrotou o monstro, ficou tão satisfeito com sua conquista que esqueceu completamente a parte do material e tentou voltar para casa.”
“Ah, é verdade, isso aconteceu! Fez com que eu me perguntasse o que estava se passando pela cabeça dele.”
“Uh, você estava do lado do Percy naquela época. Na verdade, vocês três estavam com tanta pressa de ir embora que pensei que eu fosse o louco.”
“Hã? Sem chance. Tem certeza?” Kasim franziu a testa.
Duncan, na retaguarda, riu com vontade.
“Aqueles dois tinham temperamento de figurões, mesmo naquela época! Tanto o Lâmina Exaltada quanto o Destruidor de Éter!”
“O pai é ainda mais incrível, por mantê-los todos juntos.” Angeline disse com um bufo.
“Deixando aquela situação de lado...” Belgrieve disse com um sorriso desajeitado. “Nós passamos por nossa cota de perigos.”
“Hehe, deve ter sido como Maggie, então.”
“Merry, sua pequena...”
“Eep!” Miriam gritou quando Marguerite beliscou sua bochecha.
Com um suspiro, Anessa mudou de posição em seu arco.
“O que vocês estão fazendo...? O terreno é terrível por aqui. Escolham um lugar melhor para brigar.”
Eles descansaram por um dia, se prepararam para outro e partiram de Istafar no dia seguinte. As pessoas vinham coletar minérios e ervas da montanha nas partes mais rasas das montanhas, então essas regiões eram bem mantidas. Quanto mais longe iam, no entanto, mais seus arredores exalavam a sensação de selva selvagem. O terreno foi piorando gradualmente.
A princípio, embora imperfeito, havia uma espécie de caminho. Aos poucos se transformou em uma trilha de animais. A essa altura, a trilha era tão ambígua que mal conseguiam distingui-la com os olhos semicerrados. O cristal que Angeline segurou à frente deles continuou apontando na mesma direção, então estavam indo na direção certa. Mas nunca foi fácil nessas regiões além do domínio do homem.
Logo, o grupo estava caminhando sobre rochas ásperas que desmoronavam sob seus pés. Com sua perna de pau, Belgrieve estava tendo uma dificuldade desnecessária para caminhar. É claro, seu avanço procedeu mais devagar enquanto tomava cuidado para manter o equilíbrio. Embora tenha pegado um bastão apropriado para usar como bengala, ainda era muito mais lento do que os aventureiros ativos.
Angeline virava-se com frequência para olhá-lo com preocupação em seus olhos.
“Pai... Você está bem...?”
“Sim, desculpe-me. Não se preocupe comigo.”
“Ainda temos um longo caminho pela frente. Que tal descansarmos um pouco?” sugeriu Ishmael.
O grupo estava um pouco cansado depois de muito caminhar e aprovou seu plano sem reclamar. Todos encontraram um lugar para sentar e pegar cantis ou rações.
Segurando a pirâmide de cristal guia, Angeline estreitou os olhos, concentrando-se na direção que apontava.
“Fica mais íngreme... Talvez tenhamos que escalar.” disse ela, indicando a subida íngreme à frente.
Marguerite tampou seu cantil e se levantou.
“Tudo bem, vou dar uma olhada.” disse ela e saiu correndo com passos leves. Primeiro, Marguerite circulou pela direita da encosta, contornando alguns grandes pedregulhos antes de retornar ao centro. Então tentou a direção oposta, desaparecendo por um caminho descendente.
É nessas horas que a perna de pau realmente me incomoda... Belgrieve suspirou. Não era um problema quando andava em um terreno plano e não atrapalhava quando lutava com uma espada. Porém, essas estradas ruins eram uma história diferente.
Quando por fim retornou, Marguerite balançou a cabeça.
“Não é bom. Essa inclinação é nossa melhor aposta. Os outros caminhos são muito arriscados.”
“Entendo... Obrigado, Maggie.”
Parecia não haver maneira de contornar a situação, então Belgrieve teria que aguentar. Parecia haver pontos de apoio, ao menos. Ele ficaria bem, desde que fizesse o trajeto com devido cuidado. Os olhos de Belgrieve vagavam enquanto refletia sobre o desafio à frente. Ele tirou um pano da bolsa para enrolar a ponta da prótese e amarrou com barbante para não sair. Isso amorteceria a prótese e daria alguma aderência.
“Vamos indo, então.”
“Vou te dar uma mão se ficar perigoso, Bell.”
“Haha... Obrigado, Duncan.”
O grupo começou lentamente a subir a encosta. Belgrieve carregava malas pesadas e precisava se certificar duas vezes antes de dar cada passo e, em contraste, os outros pareciam correr como se não fosse nada. Uma corda foi jogada de cima.
Seu olhar se voltou pra cima, imaginando se queriam que a agarrasse para escalar, e Angeline gritou de volta.
“Vamos carregar suas malas primeiro!”
“Oh, então é isso.”
Belgrieve prendeu sua bolsa principal à corda. As panelas e frigideiras de vários tamanhos penduradas do lado de fora faziam barulho quando o primeiro pacote subia. Foram necessárias várias repetições para aliviar sua carga. Então, poderia agarrar a corda para se apoiar.
“Você acha que consegue, pai?”
“Sim, estou bem. Estou um pouco lento, mas só me dê um minuto.”
Era um pouco mais fácil se mover agora que segurava a corda.
Duncan e os outros também o ajudaram e, quando chegou ao topo, foi recebido por uma brisa gelada. O sol havia começado a se pôr em meio a toda aquela comoção. Eles não haviam percorrido muito terreno, embora tivessem uma encosta íngreme fora do caminho.
Com todos os preparativos necessários para o acampamento, desistiram de ir mais longe. Anessa e Marguerite saíram em busca de comida enquanto os outros faziam uma fogueira e patrulhavam a área.
Belgrieve olhou em volta enquanto montava um fogão de pedra improvisado. Eles haviam alcançado o topo de um planalto. O outro lado era um declínio suave, levando a outra inclinação um pouco mais abaixo.
Seus olhos foram atraídos para uma rocha visivelmente grande. Era uma entre as muitas outras pedras grandes que decoravam a região montanhosa desolada. Não que o lugar fosse todo desprovido de vida — aqui e ali, pode ver árvores e arbustos sempre verdes. Havia galhos secos e tocos, e não seriam incomodados por lenha. O vento era agradável contra sua pele encharcada de suor.
Ajustando os óculos, Ishmael murmurou.
“Agora então... Os monstros estarão mais ativos à noite. Precisamos de um vigia.”
“Certo. Vamos fazer um rodízio para que todos possam descansar...”
De acordo com Ishmael, os monstros das Montanhas Nyndia foram influenciados pela mana do Umbigo da Terra. Assim, as variantes fortes eram mais comuns do que em outras regiões.
“Porém como não se forma uma masmorra quando há tanto mana por aí?” Belgrieve perguntou, jogando feijões secos na panela.
“Não sei dizer... Talvez já seja uma vasta masmorra. Não faltam pessoas que partem para o Umbigo da Terra, contudo ainda não há uma rota definitiva para chegar lá. Não há nem estradas.”
Entendo. Talvez Ishmael tenha razão. Se as próprias montanhas fossem uma masmorra e o terreno pudesse mudar rapidamente, seria impossível construir estradas ou mesmo desenhar um mapa. Se tantos aventureiros habilidosos frequentam o local, não é natural que nenhuma rota segura tenha sido desenvolvida.
“Então estamos seguindo um caminho diferente do que você fez da última vez que foi lá?” perguntou Miriam.
Ishmael assentiu.
“Isso mesmo. O caminho que usei estava coberto de mato, como uma floresta densa. Acho que é um caminho diferente, no entanto há uma chance de mudar para o que estamos usando agora.”
“Entendo... Seja o que for, precisamos ficar atentos.”
Quando os feijões estavam macios, o ofuscante sol poente havia desaparecido e uma escuridão abrupta tomou seu lugar. Anessa e Marguerite voltaram de sua caçada de mãos vazias, ambas com olhares peculiares em seus rostos.
“Não conseguiram encontrar nada?” Angeline perguntou curiosa.
“Sim... O problema é que não sinto nenhuma vida por aqui. Esqueça os monstros, nem sequer vi nenhum animal selvagem ou pássaro.”
“É estranho, né? Achei que pelo menos encontraríamos alguns pombos-das-rochas ou cabras selvagens.” Marguerite acrescentou, cruzando as mãos cansadamente atrás da cabeça.
“Que estranho.” disse Kasim. “Podemos estar no território de alguém.”
“Não senti nenhuma fonte de mana grande o suficiente para isso.” respondeu Ishmael.
E Angeline assentiu.
“O que se torna tudo mais estranho.”
Monstros poderosos muitas vezes atraíam os mais fracos, que acabavam os servindo. Todavia, houve outros que formaram seu próprio território e não permitiram que outros se aproximassem. Um monstro desse calibre, entretanto, daria sinais de sua força. Angeline, ao lado da maioria dos outros aventureiros habilidosos, seria capaz de perceber se fosse o caso.
“Mas, hey, não adianta se preocupar com isso. Se vier alguma coisa, nós acabamos com ela. Não é bom o suficiente?”
“É bem otimista, Maggie. Porém tem razão. Não conseguiremos dormir direito se ficarmos pensando muito a respeito.” disse Miriam.
“Hehehe.” Kasim riu. “Talvez esteja certa. Vamos começar com uma refeição, pelo menos, estou morrendo de fome.”
“Ah, eu queria carne fresca...” Marguerite suspirou.
Duncan abriu sua bolsa com um sorriso irônico.
“Bem, às vezes acontece. Estoquei carne seca, então vai ter que aguentar esta noite.”
O último raio de sol desapareceu quando o pão duro foi mergulhado na sopa de feijão com carne seca. Enquanto bebia um forte chá de ervas e olhava para cima, Belgrieve viu as estrelas espalhadas por todo o céu claro. Talvez por terem subido bem alto, parecia haver mais estrelas do que vira durante as noites em Istafar.
Belgrieve, que assumiu o primeiro turno de vigia, encolheu-se quando a temperatura caiu rapidamente e jogou outro pedaço de madeira para o fogo. Fazia muito calor enquanto o sol estava alto, contudo durante a noite estava tão frio que podia ver sua própria respiração. Sua vida em Turnera o preparou para o frio; essa diferença de temperatura, no entanto, colocou seu corpo em estado de choque.
Angeline, que tinha escolhido o mesmo turno, aconchegou-se ao seu corpo.
“Está mais frio do que pensei que estaria...” ela disse.
“Verdade...”
A luz das estrelas parecia desaparecer — e antes que percebesse, a lua havia surgido. Ainda não estava cheia, embora se aproximasse de seu estado pleno. Ela iluminou a superfície rochosa da montanha em um pálido azul.
A panela pendurada sobre o fogo começou a borbulhar.
“Quer mais chá, pai...?”
“Sim, obrigado.”
Um chá forte o distraiu do frio e da sonolência. O vapor que subiu quando levou a xícara aos lábios parecia tão onírico quanto refletia a luz da lua.
No entanto, com certeza é estranho, pensou Belgrieve. Estava muito quieto. Não havia animais durante o dia e não sentia a menor presença de seres noturnos.
A grande espada em suas costas soltou um leve rosnado. Belgrieve olhou em volta com desconfiança, seus olhos se estreitando em um único ponto.
“Hmm?”
“O que foi, pai?”
“Essa sombra... É estranha.”
Parecia que algo grande estava se movendo devagar. Ele não havia notado até aquele momento, entretanto também podia sentir um leve tremor.
Angeline disparou, com a mão no punho da espada.
“Acordem! Temos companhia!”
Seus outros camaradas, roncando ao redor do fogo, levantaram suas armas. Seu inimigo pareceu perceber que seu disfarce foi descoberto, pois sua presença antes oculta de repente permeou tudo ao seu redor. Sua chegada foi anunciada pelo som abafado de pedra triturando contra pedra. Um braço gigante balançou através da luz pálida enquanto um rugido como um terremoto enchia a noite.
“Oh, aquilo é um Golem de Pedra Gigante.” disse Kasim enquanto colocava o chapéu. “Então essa foi a grande rocha que vi antes... E pensar que poderia até disfarçar sua mana para imitar perfeitamente uma pedra.”
“Hmm, estamos cercados.” acrescentou Duncan.
Um pelotão de inimigos menores cercou o grupo. Eles eram menores que o Golem de Pedra Gigante, mas tinham formato semelhante e eram feitos de pedra da mesma forma.
Anessa riu cansadamente.
“Isso explica a falta de mais alguma coisa... Porém não vazam mana e não emitem nenhuma presença... São golems mesmo?”
“Mutantes, eu diria.” respondeu Miriam. “Sigh, você realmente não pode baixar a guarda por aqui.”
“É assim que as Montanhas Nyndia são especiais... Explosão.” a magia de Ishmael sinalizou o início da batalha. Sua mana formou uma explosão em espiral que quebrou o golem mais próximo.
Kasim assobiou para o feito.
“Nada mal.”
“É uma honra se elogiado pelo Destruidor de Éter... Vou pegar os menores. Por favor, cuidem do grande.” Ishmael estalou os dedos. No instante seguinte, um livro pesado se manifestou do que antes era um espaço vazio. O livro emitia uma luz fraca enquanto flutuava, suas páginas folheando em um ritmo tremendo.
Os olhos de Miriam se arregalaram.
“Essa é a Invocação do Grimório! Incrível!”
“Pode ficar impressionada depois, Merry. Vamos começar a limpar também.”
“Eu vou para a vanguarda!” Marguerite deslizou em direção a um grupo de golems, cortando vários de uma só vez. Em seu nível de habilidade, sua lâmina poderia cortar seus corpos de pedra como manteiga.
Anessa se apressou para encaixar várias flechas antes de lançá-las simultaneamente. As flechas explodiram no momento em que fizeram contato, espalhando vários golems em pedras sem vida.
Eles eram lutadores habilidosos, com certeza, e derrotavam inimigo após inimigo com pouca dificuldade. Contudo, os golems continuaram a se aproximar com tantos números que se perguntaram se cada pedra na montanha havia se tornado um golem.
Enquanto isso, Ange evitou o punho esmagador do Golem de Pedra Gigante, pulando em seu braço e correndo até seu ombro. Ela deu um golpe horizontal com sua lâmina, no entanto sua espada, que poderia rasgar até mesmo o aço, apenas conseguiu arranhá-lo.
“É duro...!”
Eu o subestimei e subconscientemente me segurei? Angeline se perguntou, carrancuda. Os buracos na lateral que a encaravam davam a impressão de que estava olhando diretamente para ela. Estremecendo, Angeline saltou, esquivando-se de seu punho de pedra no caminho, que ele havia golpeado contra em sua direção como um martelo.
Kasim, que havia observado sua tentativa fracassada, deu um tapinha no ombro de Belgrieve.
“E agora? Quer que use grande magia? Aquele grande é muito duro para Ange cortar. Também tem um pouco de mana, o que significa que será mais rápido com magia de qualquer maneira.”
“Quanto tempo vai demorar?”
“Hmm... Vinte segundos. Poderia modificar bastante a paisagem.”
“Quanto tempo para apenas conter aquele monstro?”
“Um minuto.” Kasim apontou um dedo para o Golem de Pedra Gigante. Sua mana girava em à sua volta, fazendo seu cabelo esvoaçar.
Belgrieve desembainhou a grande espada.
“Ange! Mantenha sua atenção! Duncan, cuide de sua perna esquerda!”
“Deixe comigo!”
Belgrieve saltou, cortando um golem bloqueando o caminho enquanto se aproximava da perna direita do gigante. Angeline estava usando apoios para os pés ao redor de seu corpo para pular como se estivesse voando pelo ar. Isso fez maravilhas para manter seu foco.
Embora o equilíbrio de sua perna protética o incomodasse tanto ao caminhar, Belgrieve nem precisava pensar a respeito na batalha. O estresse está aumentando a sinergia com minha perna? Perguntou-se, então decidiu que era uma pergunta para mais tarde.
Belgrieve puxou sua espada de volta, golpeando a perna direita do Golem de Pedra Gigante com um grito dilacerante. A espada rugiu, dividindo a rocha como se não fosse nada. Então Duncan brandiu seu machado de guerra com toda a força. Embora não tenha conseguido cortar o membro, o tremendo impacto desequilibrou o gigante. Logo começou a se inclinar.
Angeline, que colocou alguma distância entre ela e o inimigo em um instante, olhou boquiaberta. Duncan também recuou rápido, todavia Belgrieve permaneceu perto da perna direita do monstro quando o enorme golem caiu sobre ele de cima.
“Pai!”
No momento em que ela gritou, uma massa de mana comprimida explodiu, banhando seu mundo em luz intensa. Angeline foi forçada a fechar os olhos e, quando conseguiu abri-los de novo, o Golem de Pedra Gigante havia sumido. A criatura havia desaparecido por completo, deixando apenas a ponta do pé.
Kasim baixou o braço estendido e prendeu a respiração.
“Bem na hora... Mas isso fez meu coração acelerar um pouco, meu Deus.”
“Pai!”
“Oh, Ange... Parece que conseguimos de uma forma ou de outra.”
“Sério... Você me deixou nervosa! Achei que ficaria soterrado!”
“Desculpe, desculpe. Porém tinha que ficar parado para que o golem não suspeitasse que tínhamos algo mais planejado. E sabia que Kasim terminaria o trabalho.”
Belgrieve examinou a área. O número de golems havia diminuído. Evidentemente, eles simplesmente não conseguiram distinguir seus números na escuridão, e os que restaram não eram numerosos o suficiente para representar uma ameaça. Será que algum deles vai fugir agora que seu chefe foi eliminado?
“Tudo o que resta é limpar a bagunça.” disse Kasim, aproximando-se de Belgrieve enquanto ria. “Contudo, Bell, precisa pelo menos fingir que vai fugir. Caso contrário, vai aterrorizar a pobre Ange.”
“Eu não estava aterrorizada.” ela insistiu.
“Sério? Você ainda está chorando, sabe?”
“Sem chance!” Angeline esfregou freneticamente os olhos.
Belgrieve deixou a espada larga voltar à bainha, Poderia deixar o resto para seus camaradas. Ele prendeu a respiração e esfregou as costas de Angeline enquanto ela o agarrava.
Não demorou muito para que a horda se fosse e o silêncio voltasse. Marguerite tinha um olhar bastante entediado em seu rosto enquanto girava sua espada na sua frente.
“Tsk, queria ter pego o grande.”
“Não há como Maggie conseguir cortá-lo quando eu não consegui...”
“O que disse? E, espere, você não conseguiu, Ange? Haha, patético!”
Angeline encarou-a com raiva.
“Apenas me contive, pensando que era tão duro quanto um golem normal... Poderia ter cortado se estivesse ido sério.”
“Hmm? Então isso significa que eu poderia ter cortado também.”
“Vamos, vamos, não briguem. Descanse direito, ou vocês não serão capazes de se mover amanhã.” Belgrieve repreendeu, calando as duas.
Fragmentos de Golem foram removidos do acampamento e o fogo foi aceso outra vez. Belgrieve e Angeline estavam de volta ao turno da noite, e não demorou muito para que os outros estivessem dormindo em um sono profundo mais uma vez. Apesar da batalha, conseguiram dormir sem ficarem particularmente agitados — todos já haviam passado por essas experiências.
Angeline bocejou.
“Pai... Você confia mesmo no Kasim.”
“Hum? Sim. Não foi por muito tempo, mas confiamos nossas vidas um ao outro.”
Claro, não éramos muito fortes naquela época, refletiu Belgrieve com uma risada.
Angeline estufou as bochechas e se recostou em seu corpo.
“Confia em mim também, não é...?”
“Claro.”
“Hehe.” Angeline alegremente pressionou sua testa em seu ombro.
Porém, quando Belgrieve olhou para Angeline, o fato de ser sua filha estava em primeiro lugar em seus olhos. Ele entendia que ela era uma aventureira habilidosa, contudo nunca conseguia se livrar da sensação de que Angeline era alguém que tinha que proteger. Ainda que seja muito mais forte do que eu...
Era apenas o seu primeiro dia nas montanhas. Ele sentiu que havia passado por um batismo de fogo, perguntando-se quantas batalhas mais teriam que lutar antes de alcançar o Umbigo da Terra e que monstros os esperavam lá. Mesmo depois de acordar Kasim para o próximo turno, Belgrieve descobriu que não conseguia dormir por um tempo. Havia muita coisa acontecendo em sua cabeça.
A lua brilhava com um azul pálido em seu zênite.
○
Fogueiras ardiam por toda parte e, embora o crepúsculo tivesse descido do alto, a luz cumulativa da lua quase cheia, fogueiras, lanternas e pedras brilhantes iluminavam intensamente o abismo. Os aventureiros se reuniam assim à noite, prontos para os monstros, não importando quando rastejassem para sair.
As sombras dos aventureiros vagavam de um lado para o outro, alguns se curvando para se amontoar em volta das fogueiras. Havia alguns por aí, e o ar estava agitado com sua tagarelice, tanto que seria impossível escutar qualquer conversa individual.
Um homem estava sentado na escuridão de um grande penhasco. As sombras em seu rosto dançavam com cada bruxuleio das chamas, criando a ilusão de expressões em constante mudança, todavia a verdade é que manteve o mesmo olhar severo o tempo todo. Sua juba loura salpicada de branco se enrolava e espetava sem rima ou razão. De costas para o penhasco, o homem fechou os olhos, no entanto não dormiu. Ele exalava força com cada fibra de seu ser, dando a impressão de que poderia instantaneamente se levantar e brandir sua espada a qualquer momento.
Do outro lado do fogo, uma garota com orelhas de cachorro cortou a carne em pedaços pequenos antes de espetar os pedaços em espetos de madeira, que foram polvilhados com sal e especiarias. Ela cantarolava uma música baixinho o tempo todo.
“Oh, querida mamãe... É tão gostoso...”
Com um estalo alto, uma faísca dançou no ar. Um dos olhos do homem se abriu. Ele fez uma careta e apertou o peito. Começando a tossir levemente, enfiou sua mão no bolso da camisa e tirou o sachê. O sachê foi pressionado contra a boca fazendo-o respirar os vapores de óleo de éter. As ervas dissolvidas dentro da pequena bolsa fluíram pelo nariz, pela garganta e até o peito. Sua respiração ficou muito mais calma.
“Quer um pouco?” a pouca distância, uma mulher de cabelos negros ofereceu-lhe uma cabaça cheia de vinho, que pendurou na ponta de sua lança. O homem pegou silenciosamente, engoliu um gole e jogou de volta para ela.
Rindo, a mulher tomou um gole também.
“Tão ranzinza como sempre, pelo que vejo.”
“Quanto tempo estão planejando me assombrar?”
“Terá de perguntar isso a ela.”
O homem virou-se para a garota de orelhas de cachorro que segurava os espetos sobre o fogo. A garota devolveu o olhar indiferente.
“Vou ficar por aqui até que você esteja melhor, senhor. Bem ao seu lado.”
“Esse assunto não é da sua conta...” respondeu secamente, pressionando as costas ainda mais forte contra a face de pedra do penhasco. Parecia que seu humor estava péssimo — não que a mulher ou a garota o tivessem pego de bom humor. Era um pouco tarde demais para se preocupar com isso.
A garota estendeu um espeto que havia grelhado ao som de uma música.
“Uma porção, chegando, baby.”
“Não há necessidade. Eu já comi.” Disse o homem com os olhos fechados. Embora não se destacasse no escuro, restos de carne queimada cobriam o chão ao redor da chama.
A garota com orelhas de cachorro fez beicinho.
“Entre uma refeição queimada a uma carne crocante e bem cozida, qual você prefere?”
“Quem se importa, contanto que te encha?”
“Como as pessoas do passado disseram uma vez... ‘É um desserviço não comer uma refeição servida diante de você’.”
“Não é esse o significado, idiota.” a mulher de cabelos pretos disse quase cansada.
Ela tragou fumaça pela boca.
Sem ninguém mais interessado, a garota com orelhas de cachorro mordeu a carne sozinha.
“Delicioso... Tem certeza que não quer? O sabor vem direto da minha terra, baby.”
O homem permaneceu em silêncio. Parecia que não iria mais ser indulgente com ela. Assim, a garota com orelhas de cachorro mastigou a carne desinteressadamente e a engoliu com um pouco de vinho.
“Senhor, você tem comido essas refeições nojentas esse tempo todo?”
Seus olhos se abriram um pouco. O homem relembrou os dias de batalha sem fim que passou depois de se separar de seus antigos companheiros. A comida não foi feita para ser apreciada; existia apenas para manter seu corpo em movimento. Não importava — não importa o que comesse, não tinha gosto de nada. O álcool apenas permitia que abandonasse seu corpo à embriaguez — também nunca havia saboreado seu sabor. E sabia que isso era o que merecia.
É pura pretensão. O pensamento passou por sua cabeça várias vezes, mas não sabia o que deveria fazer.
“Não... Consigo distinguir um sabor do outro.”
“Entendo.”
Ela pegou outro espeto e ofereceu para a mulher de cabelos pretos. A mulher bateu a cinza do cachimbo antes de aceitá-la, deu uma mordida, mastigou e engoliu.
“Sim. Não é tão ruim. Tem certeza de que não quer?”
O homem não respondeu, tornou a fechar os olhos outra vez e colocou a capa sobre o corpo. Ele estava pronto para uma noite sem dormir.
Assim que a carne acabou, a garota com orelhas de cachorro jogou o espeto no fogo.
“Está sozinho, não está?” murmurou a garota, abraçando os joelhos.
O homem sentou-se de repente. Ele estendeu a mão direta para o fogo ardente, agarrando-a pelo pescoço.
“Oof...” ela encarou-o com dor, porém o homem olhou-a bruscamente.
“Não fale como se me conhecesse.”
“É o suficiente.”
Ele olhou para o lado. A lança da mulher estava apontada para seu pescoço.
“Sua força vai matá-la. Isso eu não posso ignorar.”
“Tsk.” o homem a soltou. Então, se levantou e — com sua capa arrastando atrás — desapareceu na escuridão. Uma vez libertada, a garota de orelhas caídas teve um ataque de tosse, lutando para controlar a respiração. A mulher de cabelos negros se aproximou e esfregou suas costas.
“Lá vai você de novo... Por que deve desperdiçar seus esforços?”
“Porque estou viva.”
“Hmm?”
“Como as pessoas do passado disseram uma vez... ‘É uma bênção apenas viver mais um dia’. Contudo o senhor encontra apenas dor em viver. Só passei pela dor por um momento. Entre nós, quem está realmente sofrendo?” A mulher soltou um suspiro farto. A garota bocejou, como se nada tivesse acontecido, e ajeitou o gorro de pele.
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