Capítulo 96: Por um momento, Belgrieve pôde sentir o cheiro do vento que soprava da floresta
Por um momento, Belgrieve pôde sentir o cheiro do vento que soprava pela floresta. Uma brisa refrescante parecia passar de seu coração para as pontas dos dedos das mãos e dos pés, e seu corpo de repente parecia muito mais leve. Quando seus olhos se abriram devagar, viu um teto de pedra desgastado, que havia sido escurecido com fuligem em alguns lugares. Enquanto se mexia, podia sentir a pedra áspera através da cama fina e portátil que eles usaram para a jornada.
“Oh, você acordou?”
Belgrieve olhou na direção da voz e viu uma mulher élfica sentada ali. Ela parecia estar fervendo alguma coisa em uma panela em fogo aberto, e exalava um fino cheiro que estimulava seu apetite.
Coçando a cabeça e batendo levemente com as palmas das mãos na testa, Belgrieve tentou clarear a mente.
“É... Maureen, certo?”
“Sim, e uma boa Maureen para você também.” disse Maureen com uma risada brincalhona. “Isso é bom. Parece que o elixir fez o seu trabalho.” ela colocou algo grande e fumegante da panela em um prato e o ofereceu a Belgrieve. Parecia ser tão grosso quanto um braço e se assemelhava a um feixe de fibras esporadicamente listradas em vermelho vivo — uma coisa bastante estranha que cheirava a mar.
“Monstro caranguejo cozido em sal. Não é ruim.”
“Oh, obrigado... Sobre o elixir, seria um... Elixir élfico?”
“Bom, eu mesma fiz, então com certeza veio de um elfo.” Maureen riu enquanto enchia a própria boca com carne de caranguejo. “Nom, nom... Não é tão eficaz quanto os feitos em casa, mas... Acho que pode ser um pouco mais eficaz do que o material estrangeiro.”
“Sinto muito que tenha usado algo tão valioso... Contudo me salvou de verdade. Você tem minha mais sincera gratidão.”
“Oh, não, devemos ajudar uns aos outros quando pudermos. Sem mencionar que tenho muitos elixires. O problema é que nunca acabo usando, então esqueci onde deixei... Isso é muito legal.”
Mesmo enquanto falava, Maureen não parava de pegar pedaços de carne de caranguejo, assoprá-los e comê-los.
Ela marcha ao ritmo de seu próprio tambor, suponho, Belgrieve pensou com um sorriso irônico. Ele teve a sensação de que a donzela élfica de suas memórias era semelhante. Talvez não fosse tão incomum que os elfos fossem descontraídos e não se intimidassem com os outros.
De qualquer forma, embora não estivesse em ótimas condições, não se sentia lento nem atormentado. O que restou de seu cansaço provavelmente veio de descansar no chão duro.
“Os monstros seguem vindo?”
“Eles conseguiram lutar contra a última onda. É isso que você está comendo.” disse Maureen, apontando para a panela. “Porém talvez a grande onda já tenha começado. Já posso sentir a presença dos próximos monstros. Todo mundo está se preparando em torno do grande buraco, embora ainda não seja lua cheia.”
“Hmm...”
Belgrieve coçou a barba. Seu grupo — e aquele garoto que parecia ser o camarada de Maureen — provavelmente estava lá, nesse caso. Sentindo-se agradecido, se desculpou por Maureen ter se esforçado para ficar por perto.
“Devo ter lhe causado algum problema...”
“Não, eu só estava com vontade de fazer uma pausa. Não é como se gostasse de lutar ou algo do tipo. Ainda assim, é incrível, sabe. Eu conheci todos os tipos de pessoas, no entanto acho que o seu pode ser o primeiro time de aventureiros de pai e filha que vi.”
“Não sou de fato um aventureiro...”
“Hã? Sério? Marguerite disse algo sobre você treinar com o Paladino Graham, de todas as pessoas. E essa espada é de Sir Graham, não é...? Nom.” Maureen olhou para a espada sagrada encostada em um pilar.
“Isso é verdade, mas... Como devo explicar...?”
Belgrieve coçou a cabeça enquanto examinava a área. Não parecia haver ninguém por perto, exceto Maureen. Para onde Angeline foi? E quanto ao Percival...
Seus pensamentos foram interrompidos quando a divisória de tecido foi afastada para revelar um rosto emoldurado por mechas de cabelo preto.
“Perdoe-me.”
“Oh, Sra. Yakumo.”
Yakumo, adornada no estilo de Buryou e com o cabelo preso para trás, entrou com um sorriso caloroso. O rosto de Lucille espiou por trás de Yakumo.
“Quanto tempo sem te ver, baby.”
“Já faz um tempo, Sr. Bell... Ouvi dizer que você estava doente, porém parece que não há nada para se preocupar.”
“Vocês duas parecem estar de bom humor... Tudo deu certo com Hrobert?”
“Sim. Parece que estava ocupado com suas próprias lutas políticas e não duvidou nem um pouco do assunto. Conseguimos arrancar dele uma bela recompensa. Do jeito que está indo, não vai durar muito. Tudo o que resta é ele se autodestruir, hehehe.” disse Yakumo, rindo enquanto se sentava. Seu olhar pousou em Maureen; ela balançou a cabeça com aparente curiosidade.
“Uma elfa? Não me diga... Você encontrou aquela sua velha companheira?”
“Não, não é ela. Apenas conheci Maureen quando cheguei aqui.”
“Hmm... Não vai ser tão conveniente, então.”
Maureen ainda estava comendo caranguejo enquanto refletia sobre o assunto da discussão.
“Nom, nom... Angeline também a mencionou — estão procurando por uma elfa?”
“Sim, costumávamos estar no mesmo grupo... Uma elfa chamada Satie.”
“Satie, Satie... Hmm...” os olhos de Maureen vagaram em pensamento.
Então, Lucille apareceu de novo.
“O Senhor Lâmina Exaltada veio aqui?”
“Percy... Seu velho...” Belgrieve tinha um olhar amargo em seu rosto ao se lembrar de seu velho amigo, que havia fugido sem ao menos olhá-lo nos olhos. Parece que meu momento não poderia ter sido pior. Aparecer doente pode ter o dado uma impressão errada sobre minha saúde. Se pudéssemos sentar e conversar...
Lucille abanou as orelhas e pressionou com mais força.
“Não veio?”
“Não, Percy veio. Contudo saiu antes que pudéssemos conversar.”
“Como as pessoas do passado disseram uma vez... ‘Não é uma alegria ter amigos vindo de longe?’.”
“Não sei... Ele tem sofrido?”
Yakumo cruzou os braços com um olhar tenso no rosto.
“Ele é um homem que nunca deixa os outros se aproximarem... Eu estava com muito medo de abordá-lo, no entanto homens assim costumam guardam sua dor para si mesmos.”
“Você o entendeu errado. O senhor estava apenas sozinho.”
“Sozinho, hein...” Belgrieve fechou os olhos. Talvez seja assim. Com base no que Yakumo e Lucille lhe disseram, Percival estava sozinho há muito, muito tempo. Belgrieve teve seus sonhos destruídos, mas ainda encontrou a felicidade em sua terra natal e, eventualmente, até uma filha. Estava muito melhor do que Percival, que permanecera onde fora deixado, muitos anos antes.
“Preciso ir procurá-lo.”
Belgrieve tentou se levantar, mas Maureen o segurou freneticamente.
“Não pode, você tem que esperar até que o elixir funcione em todo o seu corpo! Caso contrário, apenas terá uma recaída.”
“Aww...” Yakumo riu. “Não seja tão apressado, não do seu feitio. Tudo está acontecendo tão de repente para Percival que pode estar tendo problemas para processar tudo... Entretanto, tem certeza de que quer mesmo encontrá-lo?”
“O que quer dizer com isso?”
“Estou ansiosa, para ser sincera. A tristeza daquele homem é grande, porém às vezes parecia ódio para mim. O tempo é um amante cruel. Pode deformar o coração das pessoas... Não é raro que a boa vontade se transforme em ódio. E o coração humano é uma coisa delicada. Há momentos em que os sentimentos triunfam sobre a lógica.”
“Você está certa... Também acho. Contudo ainda tenho que vê-lo. Agradeço a preocupação, no entanto...”
“Entendo... Não, enfiei o nariz onde não deveria. Todavia veja bem, fui eu quem lhe contou sobre o Lâmina Exaltada... Então parece que não posso apenas deixar as coisas acontecerem por conta própria.”
“Está tudo bem. Obrigado, Sra. Yakumo.” Belgrieve sorriu.
Yakumo lançou seu olhar para baixo, coçando sem jeito sua bochecha.
“Minha nossa... Já faz um tempo que estou pensando nisso, mas vocês são pessoas tão difíceis.”
“Haha... Desculpe por isso...”
Às vezes, era difícil enfrentar o passado. Tinha sido assim para Belgrieve também. Ele foi atingido pela tristeza quando perdeu a perna, e foi doloroso abandonar sua vida de aventuras. Porém, em Turnera, encontrou e criou Angeline, e ela foi responsável por tantas outras amizades desde então. Foi graças à filha que Belgrieve pôde enfrentar tudo o que estava evitando. Por isso mesmo, não podia correr; tinha que enfrentar o problema de frente. Pelo menos, era assim que enxergava as coisas.
Com Angeline fresca em sua mente, Belgrieve olhou em volta.
“Pensando bem, onde está Ange...?”
“Srta. Angeline? Bem... Sr. Percy, saiu? Ela estava dizendo que o traria de volta e saiu correndo.”
“Realmente não tenho jeito.” murmurou Belgrieve, segurando a cabeça ao perceber que sua filha estava fazendo todo o seu trabalho pesado mais uma vez.
Lucille começou a dedilhar o instrumento em suas mãos.
“‘Vai dar tudo certo...’”
○
Era uma escuridão que envolvia a carne. A cada passo, parecia que algo desconfortavelmente quente roçava sua pele. A luz da lanterna não era nada tranquilizadora, apenas iluminando alguns passos à frente.
Enquanto caminhava ao lado da garota, Percival lançava ocasionais olhares curiosos e duvidosos para Angeline.
“Por que me seguiu?”
Angeline o encarou com um olhar sombrio. Ela tinha tido tanto medo deste homem antes, porém agora sentia uma estranha irritação. O pai só quer te ver, então o que está fazendo aqui fora? pensou. E a essa altura, não recuaria, mesmo que o homem a enfrentasse cara a cara. Ela até criou coragem para encará-lo de volta.
“O pai quer te ver... Então vim te arrastar de volta.”
“Entendo...” as rugas na testa de Percival ficaram mais profundas enquanto continuava olhando para frente.
Por mais algum tempo, o silêncio reinou entre os dois. Embora pudessem sentir a presença de monstros por perto, poucos destes pareciam interessados em ir atrás de Angeline ou Percival — talvez o ar tenso entre ambos fosse intimidador o suficiente para dissuadi-los.
“Você não quer ver meu pai, Sr. Percy...?”
Percival não respondeu, apenas acelerou um pouco. Angeline acompanhou seu ritmo, sentindo a rocha áspera através das solas de suas botas. Quando olhou para cima, não havia nada além de escuridão, nem mesmo a lua ou as estrelas. Pensando bem, passamos por algo enevoado quando pulamos, lembrou Angeline.
De repente, Percival desembainhou a espada. Angeline colocou a mão no punho de sua espada em seguida. Foi possível ouvir o som de algo raspando contra o chão e, no instante seguinte, um enorme monstro semelhante a uma centopeia com inúmeras pernas saiu da escuridão.
Percival evitou-o sem dificuldade, golpeando sua cabeça para baixo quando passou correndo. Enquanto estava atordoado, Angeline o cortou em dois. Isso nem poderia ser chamado de batalha — os vencedores foram decididos em um instante. As presenças ao redor deles pareciam aumentar em número.
Percival voltou-se para Angeline.
“Nada mal.”
“Nem preciso dizer... Quando foi o pai quem me ensinou.”
A sobrancelha de Percival se contraiu.
“Bell...? Já ouvi isso do Kasim... No entanto é verdade que ele ainda está brandindo uma espada?”
“Está. O pai é ridiculamente forte... Tenho certeza que é ainda mais forte que você.”
“Entendo...”
Percival soltou uma risada confusa por um momento, contudo de repente fez uma careta e pegou seu sachê. Mais uma vez, estava olhando resoluto para frente e caminhando.
Angeline ficou atordoada com aquele breve vislumbre de um sorriso, que sem dúvida mostrava alguns traços de uma juventude alegre. Depois de congelar por um momento, Angeline voltou à realidade e correu para alcançar Percival, agarrando a bainha de sua capa quando o alcançou de novo.
“Você tem lutado aqui todo esse tempo, Sr. Percy?”
“Eu esqueci quanto tempo faz.” Percival olhou para longe; seu era o rosto de um homem olhando através de velhas memórias.
“No entanto, no fundo também não está aqui... Já sabia. Uma parte de mim sempre soube. Talvez só quisesse uma desculpa.”
“O que...? O que não está aqui?”
“O monstro que roubou a perna de Bell.”
Angeline foi pega de surpresa.
“Você está perseguindo aquele monstro?”
“Sim... No começo, estava procurando uma maneira de curá-lo. Mas depois de seu desaparecimento, pensei com certeza de que Bell estava morto. Então, no mínimo, pensei que era meu dever vingá-lo... Que farsa.” Percival soltou uma risada cínica. Seu sorriso agora era completamente diferente do anterior e era doloroso de se olhar.
“Só o vi por um breve instante, porém ainda posso me lembrar agora. Uma sombra quadrúpede negra com feições de lobo... A coisa mais próxima que encontrei até agora foi um demônio... Entretanto era outro demônio... Mesmo agora, não tenho a menor ideia.”
“Um demônio... Você já derrotou um demônio antes?”
“Sim. Não foi nada de especial. Se não é o que estou procurando, não importa se é um demônio ou um dragão.”
“É por isso que... Esteve aqui todo esse tempo?”
“Já disse. No final, estou apenas inventando desculpas. Só não queria pensar que não estava fazendo nada.”
Angeline franziu os lábios. Ela sentiu como se tivesse ouvido algo semelhante de Kasim, quando o confrontou na propriedade do Arquiduque Estogal.
Percival parou para recuperar o fôlego. Sua mão pegou seu sachê e pressionou-o contra o rosto.
“Contudo... Agora que Bell apareceu diante de mim, eu...”
“Você o que...?”
“Cough...” Percival recomeçou a andar sem dar mais nenhuma resposta. Angeline o acompanhou em silêncio.
Por um tempo, os dois caminharam em silêncio. Monstros apareciam de tempos em tempos, contudo estes eram silenciosamente colocados para descansar.
Angeline limpou o sangue de sua espada e a enfiou na bainha.
“Achei que seria mais difícil no buraco, vendo como era horrível lá fora.”
“Depende da localização. Essas partes já estão... Achei.”
Percival apontou mais para baixo. Havia algo branco projetando-se do chão. Quando Angeline semicerrou os olhos, percebeu que era algum tipo de torre. A própria torre parecia emitir luz, já que a área ao redor parecia estranhamente brilhante, o suficiente para que pudesse ver a face rochosa irregular das paredes da caverna. A estrutura era feita de tijolos brancos e se destacava em contraste com tudo ao seu redor.
De longe, parecia tão pequeno e fino, no entanto quando eles se aproximaram, Angeline descobriu que era bastante grande.
“Isso é...”
“O covil do An À Bao A Qu. Os outros monstros não se aproximam daqui.” disse Percival, caminhando direto pela entrada sem porta.
Angeline se apressou em seguir atrás e descobriu que estava vazio por dentro. Embora o teto de fato estivesse em algum lugar acima, era alto demais para ser visto. Uma escada em espiral se estendia ao longo das paredes, levando a essa extensão infinita. Tudo era feito de tijolos brancos, todos emitindo um leve brilho.
Percival voltou-se para Angeline.
“Espere aqui.”
“Não.”
“Entendo.”
Percival agarrou o ombro de Angeline e a guiou para o lado da escada mais próximo da parede. Com ele tão perto, ela podia sentir o aroma peculiar e refrescante das muitas ervas em seu sachê.
“Uma coisa que precisa saber: não se vire. Ainda que sinta algo, não olhe para trás.”
“Uh, ok... Por quê?”
“Vai ver quando chegarmos lá. Até chegarmos ao telhado, apenas mantenha os olhos nas escadas à sua frente.”
Com isso, Percival começou a subir, e Angeline estava ao seu lado. Com a luz vinda do material de tijolo, tudo estava estranhamente vazio e sem características, sem nem mesmo o acentuar das sombras. Angeline sentiu que poderia acidentalmente julgar mal um passo e cair.
Então, por algum motivo, Kasim passou por sua cabeça. Ela o alcançou e pulou no abismo, mas o que havia acontecido com ele? Presumivelmente, Kasim a seguiu depois, porém não apareceu onde havia pousado. Segundo Percival, o espaço era distorcido dentro do Umbigo, e mesmo quem entrava pelo mesmo ponto podia chegar a lugares diferentes.
“Eu me pergunto o que Kasim está fazendo...”
“Quem sabe? Ele vai conseguir.” respondeu de maneira seca Percival. Contudo, suas palavras refletiam um senso de confiança, como se acreditasse que o mago ficaria bem.
“Você confia em Kasim, entendo.”
“Eu não. Só sei que vai conseguir.”
Não é o que chamaria de confiança? Angeline pensou, rindo. Para sua surpresa, toda aquela pressão que havia sentido antes vinda de Percival não era mais nem um pouco assustadora.
Percival observou-a em dúvida.
“O que foi?”
“Hehe... Hey, Sr. Percy. Que tipo de aventureiro era meu pai?”
“Bell era... Cauteloso, covarde e sensato. Aprendi muito com seu pai, embora ele nunca tenha levado a melhor sobre mim na esgrima.”
Angeline estufou as bochechas.
“O pai não vai perder para você agora...”
“Vejo que o adora bastante. Quem é sua mãe? Você não se parece muito com Bell.”
“Fui adotada... Só conheço o pai.”
“Entendo.”
Em suas costas e flanqueando-a, Angeline sentiu uma presença estranha. Estava prestes a se virar e enfrentá-la quando Percival agarrou seu ombro para detê-la.
“Não olhe.”
“M-Mas...”
“Aguente até chegarmos ao teto. Vai te atacar se virar agora. Não terá nenhuma chance.”
“Que tipo de monstro é o An À Bao A Qu...?”
“Invisível. Adere bem a qualquer um que sobe na torre e sobe atrás de você. Quanto mais alto subirmos, mais irá se materializar. Só tomará forma completa no telhado. Atacará se virarmos ao longo do caminho, porém nossos próprios ataques passarão direto por seu corpo se não tiver se materializado por completo.”
“Mesmo a magia não funciona?”
“Nem magia, nem qualquer outra coisa.”
Angeline sentiu um calafrio. Como poderia lidar com algo assim?
Vendo sua expressão rígida, Percival gargalhou.
“Não tenha tanto medo. Nossos ataques funcionam se subirmos até o fim. Nesse ponto, não são diferentes de qualquer outro demônio de Rank S.”
“Entendo... Isso é bom...”
Angeline colocou a mão no peito em alívio. Contudo por que, então, Percival sabia disso?
“Já lutou com um antes, Percy?”
“Sim. No começo, quase morri. Foi uma troca interminável de golpes com um inimigo imune a todos os meus ataques. E com um chão instável também.”
“Co-Como sobreviveu...?”
“Percebi que não poderia vencer e corri loucamente para escapar. Ainda não tinha subido tanto, então consegui sobreviver pulando da escada. Eles não perseguem quando você sai da torre. Eu estava bem ferido e exausto nesse ponto...”
Os olhos de Percival se estreitaram em uma reminiscência aparentemente afetuosa.
“Pode ter sido Bell quem me ensinou a não ser teimoso — a correr quando sabe que não pode vencer. Kasim e eu éramos do tipo que resistiria. Pensávamos que poderíamos fazer qualquer coisa se lutássemos com todas as nossas forças.”
“Satie também?”
“Você sabe sobre Satie... Certo. Ela estava confiante em sua própria habilidade. Nós três estávamos. Bell pode não ter o que nós tivemos... No entanto tinha tudo o que nós não tínhamos. Seu pai é o homem que incorporou o conceito de que a força na batalha não define o valor de um aventureiro.”
Bastou um leve gatilho para que essas memórias saíssem dos lábios de Percival. Como a presença atrás deles foi ficando cada vez mais forte, Angeline não estava em posição de se acalmar. Todavia as histórias de Percival eram tão interessantes que nem pensou em voltar atrás.
Entretanto, se suas memórias eram tão calorosas, então por que estava tão triste? Percival estava se reunindo com o amigo dessas memórias, então por que estava aqui, perdendo tempo? Angeline não conseguia entender, e agarrou sua capa irritada.
“Encontre com meu pai, Percy...”
“Se conseguirmos sair daqui inteiros.”
“É uma promessa. O pai quer te ver.”
“Haha... Bell tem todas as suas queixas em ordem? Aventurando-se até aqui só para...”
“Meu pai não é esse tipo de pessoa!” Angeline insistiu, sua voz tão alta que surpreendeu até a si mesma.
Percival olhou-a de soslaio, os cantos dos lábios se curvando em diversão.
“Você pode ter sido adotada, mas com certeza é filha de Belgrieve.”
“Eu me pareço com meu pai...?”
“Não sei dizer. Você não se parece exatamente, porém... Passa a sensação que eu imaginaria da filha de Belgrieve.”
Os olhos de Angeline vagaram enquanto lutava para encontrar as palavras para o que queria dizer. A presença pairando sobre suas costas era apenas um incômodo neste momento.
“Há um monte de coisas que quero dizer. Sobre memórias, objetivos e sonhos. Todo tipo de coisa aconteceu em nosso caminho até aqui, Percy. Gostaria de lhe contar sobre isso.”
“Imagino. Sendo honesto, estou surpreso que Bell tenha feito tudo isso... Ele é incrível.” Percival ajustou a espada em seu quadril. “Só mostra que seguiu enfrente com a cabeça erguida. Eu... Não pude fazer o mesmo.”
“Não é verdade... Quero dizer, Percy, você é muito forte. Não é essa a prova de que trabalhou duro?”
“O importante é por quem me esforço. Há muitas coisas que pode dizer apenas a partir dos resultados. Pensei que era tudo para Bell... Contudo no final...”
“Não acho que culpar a si mesmo vai resolver alguma coisa... Para o bem de quem isso seria?”
“Quem sabe...? Chega de conversa. Estamos aqui.”
Antes que ela percebesse, eles haviam escalado uma grande distância. O teto agora estava visível quando Angeline o procurou, e as escadas continuavam além dele. A presença em suas costas havia se tornado substancial; tanto o som estranho de sua respiração quanto as exalações mornas fazendo cócegas em seus ouvidos lhe causaram arrepios.
No momento em que pisou no último degrau, Percival agarrou sua mão e a puxou para cima.
“Pule!” gritou. E com um passo final, os dois saltaram. Ambos chegaram ao telhado — o último andar. No momento em que pousou, Angeline sacou sua lâmina e se virou.
À sua frente estava uma estranha forma de vida. Parecia um rato raspado, contudo era muito maior do que Angeline. Em seu rosto havia uma mistura assimétrica de olhos de todos os tamanhos, cada um mudando de forma independente. Suas presas eram longas e afiadas. Havia garras afiadas nas pontas de seus membros também. Ao contrário de um rato, seus membros posteriores eram maiores que os anteriores e era bípede. Seus membros anteriores eram mais parecidos com braços e empunhava suas garras afiadas como armas brancas. Apenas uma fina camada de pelo felpudo crescia sobre sua carne rosada, lembrando penugem de pêssego.
O An À Bao A Qu abriu a boca e gritou. No entanto, ela não ouviu a voz estridente que estava imaginando — era fraca e fina, como tecido farfalhando.
“Estamos nos separando. As garras atacam duas vezes. Veja.”
“Duas vezes? Como assim...?”
Percival disparou para a esquerda sem esperar que Angeline terminasse. Ela imediatamente foi para a direita, posicionando-se no lado oposto.
A princípio, o An À Bao A Qu pegou os dois com seus muitos olhos, entretanto resolveu se lançar sobre Angeline. Era rápido e balançava suas garras curvas como foices. Angeline recuou com calma um pouco para fugir. Todavia, sentindo uma estranha premonição, se apressou em estender a espada para se proteger. As garras já haviam passado, mas ela sentiu um impacto na lâmina.
Atacando por trás, Percival cortou o braço direito do An À Bao A Qu no ombro. O monstro recuou com um grito fraco.
Angeline olhou para Percival com uma expressão amuada. Você não disse nada sobre ataques invisíveis...
“‘Duas vezes’... Seja mais claro da próxima vez.”
“Não seja mimada. Não sou seu pai.”
Apertando o aperto em sua espada, Percival correu para perseguir a fera em retirada, e Angeline se juntou à perseguição. Embora nenhuma palavra tivesse sido trocada, seus pés viraram na direção oposta à dele, e eles prenderam o monstro outra vez. Seus olhos se encontraram por um momento antes de entrarem ao mesmo tempo.
Sem aviso, o An À Bao A Qu balançou como uma miragem. Angeline apertou os olhos, contudo ainda balançou sua lâmina em um arco horizontal. Sua espada cortou o torso do monstro, enquanto o golpe de Percival do lado oposto cortou sua cabeça.
Isso foi estranho. Foi muito fácil.
“Está acabado...?”
“Não... Ainda está aqui!”
A dupla ficou de costas, suas espadas em punho. Ao seu redor, podiam ouvir o som fraco de algo raspando contra o chão. Estava circulando a sua volta, fechando-se pouco a pouco.
“Que som é esse...?”
Suas garras estão ficando presas no chão. Aguce seus sentidos. Não confie na visão.
“Ainda está invisível... Foi tudo uma ilusão?”
“Correto. No entanto, ao contrário de lutar nas escadas, nossos ataques realmente funcionam. Não perca a compostura.”
“Estou calma... Só checando para ter certeza.”
Angeline infalivelmente canalizou sua força em seu aperto no cabo e concentrou-se no som que se aproximava de maneira desconcertante. O som se sobrepôs a si mesmo e pôde ouvir o farfalhar do tecido.
“São dois deles...” Percival disse, estalando a língua. “Não foi assim da última vez.”
“Nós assumimos um cada um... Funciona muito bem.”
“Haha! Você é muito confiante para ser a filha de Bell. Pode ficar com esse.”
No momento seguinte, Percival saiu correndo e Angeline deu um passo à frente. Ela não podia ver, mas estava perto. Sua espada foi erguida para receber o primeiro golpe.
“E o próximo!” Angeline segurou sua espada com firmeza. Um segundo impacto sacudiu a espada que já estava segurando as garras. Ela suportou o golpe e empurrou para trás.
Olhando de perto, Angeline podia ver que não era completamente invisível. No topo do brilhante piso de tijolos brancos, podia ver uma leve distorção, como uma miragem em movimento. Foi bem rápido, embora não muito rápido para ela. Angeline havia subjugado muitos monstros, e seus olhos já estavam seguindo com precisão os fracos sinais do An À Bao A Qu.
“Lá!” com os músculos tensos, avançou com a ponta do pé e, usando a rotação do ombro, desferiu uma punhalada afiada. Seus movimentos igualaram os do monstro e a ponta de sua espada perfurou seu peito com precisão. A criatura soltou o mais fraco dos gritos antes de cair para trás.
Quando Angeline prendeu a respiração, a área ao redor do coração do An À Bao A Qu transbordou com uma luz ofuscante. Alarmada, se preparou para se defender de outro ataque, mas a massa de luz acabou encolhendo até se aglutinar em um pedaço pequeno o suficiente para caber na palma de sua mão. Ela respirou fundo; seus nervos estavam tensos, então sua fadiga era significativa, apesar de mal ter se movido. Talvez estivesse em perigo se viesse aqui sozinha. Tendo agora ficado lado a lado com Percival, passou a entender o quão anormalmente confiável o homem de fato era.
Angeline olhou para trás. Embora parecesse que Percival havia acabado, sua presa não havia deixado cair o mesmo feixe de luz.
“Ao invés de haver dois, deve ter se copiado. O seu era o verdadeiro.” disse Percival, embainhando a espada.
"Acho que sim... Este é o cristal de mana?”
“Sim. Pegue-o.”
“Não. Você vai entregá-lo ao pai.”
“Que teimosa... Porém suas habilidades são decentes. Já faz um tempo desde que lutei lado a lado com outra pessoa... Nada mal.”
“Afinal, sou a filha do Ogro Vermelho.”
“Hmph... Você não se parece com ele, contudo sem dúvida se sente como se fosse sua filha. Que estranho... Ogro Vermelho?” perguntou Percival, olhando-a com curiosidade enquanto enfiava o cristal no bolso.
Foi nesse momento que ouviram alguém subindo as escadas correndo. Os dois espadachins imediatamente pegaram suas lâminas, apenas para liberá-las quando viram o rosto de seu visitante — era Kasim, que estava sem fôlego.
“Vocês realmente deixaram o mago para trás... Estão loucos, é?”
“Oh, cale a boca. Você está perfeitamente bem, então tudo deu certo no final.”
“Parece que continua tão insensível quanto costumava ser! E Ange! Graças a essa sua ‘surpresa’, fui pego desprevenido e perdi meu tempo, e o eixo espacial mudou!”
“Hehe, desculpe... No entanto, Kasim, estou surpresa que conseguiu nos encontrar."
“Eu senti sua mana e a persegui. Mas todas as outras fontes de mana são enormes por aqui, e foi uma grande dor de cabeça te encontrar!” Kasim bateu os pés no chão com raiva, fazendo barulho com as sandálias.
Cansado, Percival esticou os braços e girou os ombros, ficando mais ágil.
“Bom trabalho, eu acho. Porém terminamos aqui. Vamos.”
“Ah, agora estou irritado! Percy! Você não vai fugir até que fale corretamente com Bell!”
“Achei que não ia conseguir fugir desde o início...” disse Percival, lançando um breve olhar para Angeline. Angeline sorriu enquanto apertava mais a capa dele.
Eu adoro essa obra, posta mais ksksksk sério, muito obrigado pelo bom trabalho.
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