domingo, 13 de outubro de 2024

Vampire Hunter D — Volume 01 — Capítulo 05

Volume 01 — Capítulo 05: O Ataque das Lâminas de Picanço da Morte

Assim que o sol nasceu na manhã seguinte, Doris confiou Dan, ainda adormecido, ao médico idoso e deixou a fazenda.

— Você está decidida a ir? Mesmo supondo que ele siga vivo, nem sequer dá pra ter certeza de que poderá encontrá-lo.

O doutor estava se referindo a D, é claro. Doris manteve o silêncio e sorriu. Não era um sorriso desanimado. Ela o salvaria, mesmo que isso a matasse. Essa era a convicção que reforçava seu sorriso.

— Não se preocupe, voltaremos com certeza. Cuide de Dan para mim. — e com essas últimas palavras, Doris girou seu cavalo em direção ao castelo dos vampiros.

Ela estava assustada. Já havia sentido as presas malignas do vampiro uma vez, e quase havia sido atacada outra vez poucas horas antes. E já havia perdido toda a memória da eficácia do alho. Tendo ouvido do Dr. Ferringo que o Conde havia fugido por algum motivo desconhecido, Doris se assegurou de que o pó de fato havia funcionado. Assim que começou a acreditar, no entanto, todas as memórias do pó foram expurgadas de seu cérebro. Em seu lugar, Doris se lembrou de como na noite anterior o temível Nobre lidou com cada ataque que lançou contra ele como se fosse uma brincadeira de criança. A memória daquilo estava gravada vividamente em sua mente.

Não conseguia vencê-lo. Não havia como pará-lo.

Enquanto corria pelas planícies com uma demonstração de habilidade equestre que envergonharia qualquer homem, seu coração estava prestes a cair em um poço do mais escuro desespero até que o rosto inocente de seu irmão Dan a pegou e a puxou de volta. Não se preocupe, sua irmã mais velha não vai deixar aquele bastardo levar a melhor sobre ela. Vou trazer D de volta, e então nos livraremos de todos eles, pensou consigo mesma.

Além do rosto de Dan, outro rosto brilhou. Mais frio que o do Conde, um rosto tão requintado que lhe deu arrepios.

Esteja vivo. Não importa o quão gravemente esteja ferido, apenas, por favor, ainda esteja vivo.



Mesmo depois que o controlador do clima “conforto temporal controlado” acabou, a manhã fria na pradaria estava tão bonita e carregada de vitalidade que o verde da paisagem assumiu um tom mais profundo. Uma dúzia de homens a cavalo, parecendo ter cavalgado duro a noite toda, levantou uma nuvem de poeira ao parar de repente em uma estrada atravessada apenas por uma agradável brisa matinal. A estrada seguia para a aldeia de Ransylva, costurando seu caminho entre pradarias de grama na altura da cintura. A mais de 20 metros à frente, quatro figuras surgiram do mato e agora estavam no meio da estrada, bloqueando o caminho dos viajantes.

— O que diabos está tentando provar?

— Somos a Força de Defesa da Fronteira, enviada por ordens da Capital. Saiam do nosso caminho! — os olhos do segundo homem a gritar se estreitaram cautelosamente. A aparência estranha desse quarteto tocou em perigos lembrados.

— Uma punkzinha feminina, um grande bastardo, um saco de ossos com uma cabeça pontuda e um corcunda... Vocês, idiotas, não seriam do Corpo de Demônios, seriam?

— Uma excelente dedução. — disse Rei-Ginsei com um sorriso totalmente condizente com a manhã verdejante e exuberante. Com aquele sorriso precioso, era difícil imaginar esse jovem arrojado como o chefe da gangue de bandidos brutais que aterrorizou a parte norte da Fronteira. — Viemos aqui para ganhar um pouco de dinheiro depois que nossos rostos ficaram um pouco conhecidos demais no norte, mas antes mesmo de começarmos, percebemos que vocês, rapazes, estão indo de vila em vila postando mandados para nós, então decidimos esperá-los aqui. Por gentileza, evitem fazer qualquer coisa indesejada.

Para o homem, os membros da FDF ficaram furiosos com seu tom insolente. O homem de rosto solene que aparentava ser o comandante deles gritou.

— Feche a porcaria da sua boca! Nós fomos duas vezes para Pedros depois que soubemos que vocês, idiotas, tinham sido vistos na cidade, porém nós quase os perdemos, para nosso pesar. Não acredito na nossa sorte. Os palhaços acabaram de pular no nosso colo. Estamos detendo-os aqui mesmo. Não me importa se são os bandidos mais malvados que já pisaram na Terra, todos têm que ser moles da cabeça. Você sabe, nós somos a porra da Força de Defesa da Fronteira, idiota! — sua autoconfiança não era um blefe. Despachadas pela Capital em intervalos regulares para policiar toda a Fronteira, a FDF foi treinada para combater todos os tipos de bestas e criaturas. Estavam equipados com grande poder de fogo e, em uma luta, cada um deles valia um pelotão de homens normais.

Pesados ​​tinidos metálicos ecoavam das selas dos membros do esquadrão alinhados atrás dele. Era o som de cartuchos sendo automaticamente alimentados nas bazucas sem recuo que cada homem recebia. Os membros do esquadrão já tinham Rei-Ginsei e seu grupo na mira inabalável de seus rifles laser. Não importava o quanto a batalha dos bandidos no bar no dia anterior desafiasse a imaginação, parecia improvável que homens mortais pudessem resistir ao ataque da FDF.

— Como isso lhe parece, já que se deram ao trabalho de se entregar, vamos deixá-los largarem suas armas, ok? Dessa forma, pelo menos vão poder continuar vivendo até que os coloquem no cadafalso do carrasco. — disse o comandante.

— Eu não gosto da ideia.

— Ora, seu pequeno vagabundo!

— De qualquer forma, atire em mim se isto o fizer se sentir melhor. Contudo antes de fazê-lo, há uma coisa que parece estar esquecendo.

O comandante franziu a testa em consternação.

— O Corpo de Demônios não é um quarteto. — Rei-Ginsei disse com uma voz requintada.

— O quê?

Uma agitação percorreu os membros da FDF. Em algum momento, o quarteto tirou os olhos da FDF e os virou para o lado.

— Temos um anjo da guarda que o resto do mundo não conhece. — ainda olhando para o lado, Rei-Ginsei puxou o canto dos lábios. O sorriso era o do próprio diabo. — Oh, aí vem!

Quando uma fonte incessante de terror para o corpo e a alma humanos apareceu bem na frente deles, o grau de choque que cada uma das vítimas sentiu pareceu depender apenas de sua proximidade.

No instante em que a coisa se materializou do nada, pairando sobre o cavalo do comandante, o líder morreu de choque, e os cinco membros da FDF a três metros de distância enlouqueceram. E não foi tudo. Ao que parece, até os animais podiam ver a coisa, ou talvez pudessem sentir sua presença perturbadora; os cavalos da frente se esqueceram de fugir, em vez disso caíram em uma pilha espasmódica no chão, espumando pelo nariz e pela boca. O resto dos corcéis empinaram.

Provavelmente os membros da FDF que caíram de suas montarias como resultado não gritaram porque parte de suas psiques já havia sido destruída. Alguns tiveram suas cabeças estouradas pelos cascos dos cavalos furiosos, enquanto outros pareciam congelados enquanto observavam a coisa se aproximando cada vez mais.

Vagarosa, a coisa fez seu caminho de um sobrevivente para o outro, tocando cada um dos membros por vez.

Os maiores lutadores da Capital morreram silenciosamente de loucura, impotentes para detê-la.

— Bem, o que acha? O quinto membro do Corpo de Demônios é bem bonito, não é?

O último membro da FDF estava rastejando pelo chão, porém enquanto ouvia a risada sarcástica de Rei-Ginsei, a coisa de repente desapareceu sem deixar vestígios.

— O que...?

Enquanto o assustado Rei-Ginsei olhava por cima do ombro, o único membro sobrevivente da FDF apontou seu rifle laser na testa do bandido. Graças a um regime de treinamento espartano, ainda conseguia reunir intenções assassinas em relação ao inimigo, apesar de sua insanidade.

— Chefe!

Antes que Golem pudesse se mover, um raio de luz vermelha perfurou a testa de Rei-Ginsei.

Contudo, foi o membro da FDF que se sacudiu para trás. Incrivelmente, o raio laser que atingiu Rei-Ginsei bem entre os olhos explodiu na parte de trás da cabeça do outro homem. Um fedor de carne e cérebro queimados pairava no ar refrescante.

— Você está bem, chefe? — o homem com a cabeça pontuda perguntou enquanto lançava um olhar repugnante para os soldados espalhados no chão. Não apenas sua cabeça, como todo o corpo do homem era aerodinâmico como um foguete de classe estrela cadente. Ele era chamado de Gimlet.

— Acredito que sobreviverei. — Rei-Ginsei riu, esfregando a testa. Havia um círculo preto de cerca de um quarto de polegada de diâmetro queimado bem entre suas sobrancelhas.

Enquanto os outros não perguntavam mais sobre sua condição, os quatro demônios se entreolharam preocupados com outra ocorrência suspeita.

— Algo deve ter acontecido com a Bruxa. — disse o homem corcunda.

— Chullah está certo. — Rei-Ginsei entrou na conversa. — A única razão pela qual cometi tal erro é porque nunca, em um milhão de anos, imaginei que essa coisa só desapareceria no meio de uma operação. — ele certamente tinha uma maneira estranha de esconder seus erros. Voltando-se para a extensão da pradaria à sua esquerda, murmurou. — Se um de seus feitiços quebrar na idade dela, ela estará caminhando pela estrada fria e escura para o inferno...

— Gostaria que eu fosse dar uma olhada? — perguntou Gimlet.

Rei-Ginsei balançou sua bela cabeça de um lado para o outro.

— Não, eu vou dar uma olhada nisso. O resto de vocês gentilmente descartem esses restos feios. Queimem-nos ou comam-nos, o que os agradar mais. — disse, sorrindo para suas ordens perturbadoras.



E isso era o que estava acontecendo enquanto a batalha horrível se aproximava de sua conclusão, ou melhor, para ser mais preciso, pouco antes do súbito desaparecimento da coisa que se materializou do nada.

Correndo pelas planícies, Doris estava prestes a virar seu corcel em uma nova direção quando descobriu algo inesperado em algum lugar inimaginável e puxou as rédeas de seu cavalo na direção oposta. O local ficava a menos de uma milha e um quarto do castelo do Conde Lee. Ignorando as estradas mais tortuosas, galopou direto por uma região montanhosa, mas dali em diante, teria que tomar uma rota um pouco menos direta.

Seu pai a trouxera aqui apenas uma vez quando era pequena e ela tinha visto de longe, porém nunca tinha visto o lugar de tão perto antes. Metade assustada, a outra metade mortalmente séria, Doris absorveu o cenário misterioso que se estendia na luz da manhã. Os moradores chamavam esse lugar de Pedreira do Diabo. Nessa parte da extensão infinita da pradaria, havia inúmeras estátuas de pé como florestas de pedra, ou deitadas no chão e olhando para o céu. Nenhuma delas tinha o mesmo rosto ou forma, e não havia uma única estátua que não tivesse o aspecto de alguma monstruosidade bizarra. Uma escultura de um homem careca com olhos muito grandes, um busto de uma criatura com dezenas de braços mostrando suas presas, uma estátua de corpo inteiro com milhares de cerdas bestiais, cada uma esculpida individualmente... Todas essas detalhadas peças de incomparável artesanato estavam cobertas de musgo, assim como os restos de paredes e colunas de pedra que lembravam as ruínas de alguma cidadela antiga. Juntos, pareciam formar uma dimensão quase alienígena. Até mesmo a luz do sol da manhã, que deveria ter dado vida a cada colina e vale do mundo, emprestava aos rostos das esculturas sombras mais estranhas do que deveria, enquanto as partículas de luz eram engolidas pelo musgo e pela atmosfera desolada, ou afundavam com peso de chumbo. Até o ar estava úmido. As pessoas diziam que este era o lugar onde a Nobreza havia realizado suas cerimônias miseráveis, ou uma pedreira usada na construção do castelo, contudo a última teoria foi descartada sem muita consideração. Afinal, não havia nenhuma pedra em toda esta região para ser extraída. De qualquer forma, esta era uma área proibida, e ninguém da aldeia jamais entrava.

O que chamou a atenção de Doris foi uma velha sentada em uma depressão profunda em forma de tigela perto do centro da Pedreira do Diabo, fazendo os mesmos gestos desconcertantes uma e outra vez. Sua idade não estava clara. A julgar pelos cabelos grisalhos e pelas rugas que marcavam sua pele amarelada, ambos óbvios mesmo a essa distância, parecia ter quase cem anos, e ainda assim seu corpo parecia imbuído de uma estranha vitalidade.

O que é isso? Uma velha perdida em suas viagens, respirando fundo?

Mesmo que Doris não pudesse levá-la até a cidade, poderia pelo menos dar à mulher as instruções de volta para a estrada principal. No entanto quando Doris estava prestes a dar um puxão nas rédeas de sua montaria, ela segurou sua mão e silenciosamente deslizou para o chão.

Envolta em um sobretudo cinza opaco, o torso da velha estava dobrado para frente em um ângulo extremo, e havia algo sobre a sua visão, com os olhos fixos nas pontas dos próprios dedos enquanto eles agarravam o nada, que parecia maligno. Claro, Doris estava inconsciente de que naquele exato momento na estrada a alguns quilômetros de distância, uma entidade estranha que apareceu do nada estava ocupada entregando a morte por insanidade aos membros da FDF.

Abafando seus próprios passos enquanto conduzia seu cavalo, Doris seguiu para a Pedreira do Diabo, amarrou sua montaria a um pilar próximo e chegou atrás da velha. Ao que parecia, a velha não percebeu, pois não se moveu. Conforme Doris se aproximava, sentiu arrepios se espalhando por sua pele.

Um miasma venenoso estava subindo dos arredores da velha. Era perceptível que estava usando alguma habilidade arcana para fins sujos. O som de uma voz baixa entoando um feitiço chegou aos ouvidos de Doris.

— Pare com isso! — ela gritou enquanto dava alguns passos para frente. Naquele instante, algo saiu zunindo dos arbustos e resvalou em sua bochecha. Doris caiu no chão com a velocidade da luz. Prendendo a respiração e permanecendo alerta, sua mão esquerda tocou em sua bochecha. Sangue quente grudou em suas pontas dos dedos.

Uma besta espiritual, hein? Parece que ela tem sua zona protegida bem aqui, pensou Doris.

À sua esquerda, Doris sentiu uma presença forte. Fez uma rápida tentativa de combate para um lado e disparou com o chicote em sua mão direita. Infelizmente, seu golpe mortal apenas jogou grama para o ar, entretanto sentiu seu oponente mudando de direção para recuar uma boa distância.

Quando conjuradores e feiticeiros trabalhavam sua arte, eles estabeleciam uma área ao redor de si com um raio de cerca de 3 metros para ter as melhores chances de sucesso. Isso era conhecido como sua zona protegida. Como sua concentração poderia ser perturbada e, em casos extremos, seu feitiço poderia até perder sua eficácia se alguém pisasse nessa zona enquanto estivessem trabalhando, os feiticeiros conjuravam criaturas e as colocavam como cães de guarda fora da zona protegida, prontos para atacar intrusos. A tarefa costumava recair sobre cães enormes, sapos venenosos e serpentes amamentadas com pura malícia, todavia esta velha usava uma criatura transparente formada por sua própria força de vontade, uma besta espiritual. E uma particularmente desagradável.

Doris sabia muito bem que a única coisa que a salvou foi o reflexo soberbo de uma caçadora treinada. Uma pessoa comum teria tido a garganta aberta alguns segundos atrás. Em seu coração, sussurrou graças ao pai.

— São 12 metros até a velha. Acho que vai exigir um pouco de trapaça. — Doris murmurou para si mesma. Essa aposta perigosa era sua única escolha. Não tinha ideia de que tipo de miséria seu oponente poderia estar causando com seu feitiço.

Mais uma vez, seu chicote cortou o ar aberto direto na direção da velha.

Cortando o ar, a besta espiritual atacou Doris. Naquele momento, seu chicote estalou de volta. Um instante depois, pôde sentir algo no ar se rasgar ao meio. De repente o ar foi inundado por uma súbita malevolência sufocante, mas se dispersou rápido o suficiente.

— Waagh!

O grito que escapou da velha quando se dobrou fez Doris pular de pé no mato. Doris atraiu a besta espiritual para fora ao parecer atacar a velha, então usou um movimento de pulso para desviar o golpe na besta no último segundo possível. Claro, se seu tempo tivesse sido errado por uma fração de segundo, Doris teria sido a única a morrer.

Sua aposta suicida valeu a pena, mas também teve um efeito colateral imprevisto. Como a velha havia criado a besta espiritual com sua própria feitiçaria, a destruição da besta significou uma perturbação em seu outro feitiço também. Ao investir toda a sua força vital na execução daquele feitiço, e quando este foi quebrado, o coração negro da velha bateu pela última vez. Foi justo naquele momento que a criatura estranha que se aproximava do último membro restante da FDF desapareceu.

— Ei, moça! Vamos, saia dessa! — Doris correu e a pegou nos braços, porém os olhos da velha estavam brancos como a morte, espuma escorreu de sua boca e o olhar mortificado em suas feições enrugadas desafiava qualquer descrição. Havia um pentagrama marcado em sua testa, a marca de uma feiticeira. — Oh, maldição! Não era bem isso que eu tinha em mente...

Embora fosse uma feiticeira maligna, e suas próprias ações tivessem sido claramente em legítima defesa, o pensamento de que havia causado a morte de uma velha pesava muito no coração de Doris.

— Sinto muito, contudo você terá que esperar aqui até que eu possa voltar. Tenho negócios sérios para resolver.

Doris colocou o cadáver no chão e estava prestes a voltar para seu cavalo quando hesitou. Já havia decidido que descobrir se D estava bem ou não era mais importante do que trazer esse cadáver de volta para a cidade. Tinha vindo aqui ciente de todos os riscos que tal ato envolvia.

Ainda assim, o corpo escuro da velha parecia terrivelmente triste e desamparado estendido no chão. O vento puxava as mangas de seu sobretudo. E um cadáver abandonado na selva era um alvo tentador para monstros. Já seria ruim o suficiente tê-los se banqueteando com ela, no entanto se um deles entrasse nela, seria mais uma ameaça à humanidade. Mesmo em plena luz do dia, talvez houvesse algumas criaturas por perto que poderiam correr o risco de se transformar em uma bola de fogo para tomar posse do cadáver que não havia sido descartado da maneira correta.

Doris não tinha nenhum equipamento necessário para cuidar do corpo. Não viu um cavalo ou carroça para a velha. Na inspeção, o bolso interno do sobretudo da velha não continha nada além de algumas bugigangas de aparência suspeita.

Doris voltou para o corpo e o levantou com cuidado.

— Realmente não acho que haja alguma criatura para tomar conta de você aqui, mas vou levá-la comigo de qualquer maneira. Claro, também não posso dar garantias de que voltaremos inteiras.

Carregando o cadáver no cavalo atrás da sela, Doris usou um cadarço de couro para prender seus braços e pernas ao redor do corcel. Isso era para evitar que caísse e apenas para estar segura no caso de algo a possuir. Deixe para a filha de um caçador se acostumar com esse tipo de trabalho, ela fez tudo em menos de três minutos. Doris subiu na sela. De qualquer forma, vou para a estrada principal.

Quando seu cavalo deu apenas alguns passos, Doris de repente se virou. No mesmo momento, ouviu um baque quando algo pesado zumbiu na altura do pescoço. A cabeça decapitada desenhou uma parábola sangrenta enquanto voava pelo ar e, pouco antes de atingir o chão, seus olhos se abriram. Seus dentes estavam à mostra. Eram os olhos de um demônio, e as presas imundas de um também. Ele voou em direção à pessoa responsável por separá-lo de seu corpo. Um raio negro saiu de uma figura montada no topo de uma colina a uma certa distância. Dividida em duas da testa ao queixo, a cabeça da velha caiu no chão e não se moveu mais.

Doris percebeu que tinha passado por um momento muito arriscado.

Logo atrás estava o cadáver decapitado da velha, congelado no lugar com suas garras a um passo de rasgar a garganta da garota. A amarração quebrada balançava em seus pulsos. Um espírito maligno havia possuído o cadáver antes mesmo de Doris tocá-lo. No instante em que rompeu suas amarras para atacar Doris por trás, a figura na colina distante cortou a cabeça com habilidade e velocidade consumadas.

Seu cavalo deu um pulo, e o cadáver sem cabeça caiu no chão. Doris enfim se virou para encarar seu salvador.

— Oh, D, eu estava... — um tom exultante iluminou seu rosto, porém desapareceu muito cedo.

Embora a figura descendo da colina, recém-saída de sua graciosa demonstração de habilidade, certamente tivesse uma beleza comparável à de D, era claro se tratar de outra pessoa.

— Não acredito que você percebeu. — quando ele parou ao seu lado em seu cavalo, Rei-Ginsei deu um sorriso ofuscante. Estava se referindo a como Doris sentiu uma presença estranha e se virou uma fração de segundo antes do cadáver possuído atacar.

— Não foi nada. Parece que estou lhe devendo mais uma. Que tipo de arma usou?

Rei-Ginsei assumiu uma expressão de surpresa brincalhona com sua pergunta nada feminina.

— Se você me perdoa por dizer isso, a julgar por suas roupas e esse chicote, parece ser uma Caçadora.

— Meu pai era. Eu meio que brinco com isso. — disse Doris sem constrangimento ou modéstia, e então sorriu. Não tinha certeza do porquê, contudo seu sorriso parecia estranhamente forçado.

Percebendo que mesmo depois de terem trocado gentilezas os olhos de Doris não estavam focados em seu rosto, e sim em sua cintura armada, o jovem arrojado sorriu com severidade.

— O que o traz aqui de todos os lugares a esta hora da manhã, senhor? Estava na estrada?

— Sim, estava.

— Nesse caso, acha que poderia trazer o corpo desta velha senhora de volta para a cidade para mim? Se pudesse gostaria de ir e explicar o que aconteceu ao xerife, no entanto a verdade é que estou com pressa. — Doris parou seu cavalo e começou a contar todo o incidente.

Ouvindo em silêncio até o fim, Rei-Ginsei então murmurou.

— Agora entendo. Então foi o que aconteceu... Posso cuidar do cadáver para você. Vou garantir que ambos sejam descartados de maneira adequada.

— Ambos? — Doris franziu a testa, mas quando o sorriso despreocupado do jovem arrojado a atingiu, ela refletiu um sorriso próprio. — Ok, então. Obrigado.

Enquanto estava controlando seu cavalo, seu braço foi agarrado de lado, puxando a adorável jovem para um abraço a cavalo. O doce aroma que pairava em sua boca não era o que esperaria de qualquer homem.

— Que diabos...

— Eu salvei sua vida, mesmo que significasse matar um dos meus companheiros. Claro, você também é muito bonita. E então tem a questão do seu resgate ontem. Duvido que alguém me culparia por aceitar uma pequena compensação.

— É melhor me deixar em paz, ou então...

— Você também viu algo que não deveria. Nós não podemos deixá-la ir para a cidade e contar a todos sobre o que houve aqui. Então terá que morrer aqui. Por que não dizemos apenas que estou vingando minha camarada morta? Não lute tanto. Viverá mais um pouco. Pelo menos até que eu tenha tido meu prazer.

A boca do jovem arrojado fechou-se sobre os lábios da virgem.

Houve um suspiro, e Rei-Ginsei rapidamente se afastou. Ele pressionou a mão na boca, e o sangue se espalhou. Uma mordida de Doris rasgou seus lábios.

— Não foda comigo! Tenho alguém com quem me importo. Não deixarei um canalha como você me tocar!

Seu tom era inspirador. Doris pensou que o semblante de Rei-Ginsei ficaria vermelho de raiva, entretanto este apenas sorriu. Só que não era o sorriso encantador que as pessoas não conseguiam deixar de retribuir. Era o sorriso satânico que usava na estrada principal.

Estremecendo, Doris tentou chicotear o centro do rosto de Rei-Ginsei. Menos de meio metro entre os dois era sem dúvida muito perto para balançar o chicote e, ainda assim, o redemoinho preto do punho da garota saltou direto para o rosto arrojado do jovem. Estava prestes a pousar ali quando desapareceu no raio negro de relâmpagos disparando da cintura de seu inimigo. A habilidade de Rei-Ginsei em sacar sua arma bizarra em forma de V e cortar a ponta de seu chicote em um piscar de olhos era de fato milagrosa. E, ainda assim, seu rosto não tinha nada da tensão de uma batalha prestes a começar, mas sim o mesmo sorriso de antes.

— Hyah!

Percebendo em um piscar de olhos que não tinha chance de vitória, Doris conduziu seu cavalo em direção às ruínas e disparou a toda velocidade.

Em sua pressa para fugir, esqueceu o poder da arma de seu inimigo e a maneira como havia arrancado a cabeça da velha de uma colina há quase 20 metros de distância. Rei-Ginsei não jogou sua arma imediatamente. Quando a montaria de Doris se aproximou do coração das ruínas ele enfim deixou a arma voar com um arremesso por baixo. Girando enquanto perseguia o pontinho que diminuía rapidamente de Doris e seu corcel, a lâmina cortou impiedosamente a perna traseira direita e a perna dianteira direita do cavalo, fez um giro gracioso e voltou direto para eles, cortando ambas as pernas do lado esquerdo. Como a perda de uma perna teria sido suficiente para impedir a fuga da garota, esta foi uma demonstração de pura brutalidade. Uma névoa sangrenta saiu quando o cavalo caiu.


— Oh! Simplesmente lindo! — ao sentir o peso de sua arma retornando à palma estendida, Rei-Ginsei admirou a cena.

Quando o cavalo tombou, um corpo ágil saltou no ar, deu uma cambalhota e pousou no chão com apenas uma leve mudança de forma.

Todavia o rosto de Doris estava todo pálido.

Ela não havia se esquecido da arma de seu inimigo, ou de sua habilidade profana em seu manuseio. Com essas mesmas coisas em mente, fez seu cavalo galopar em um curso em ziguezague. A arma preta parecia levar seus movimentos em consideração, pois cortou de forma limpa as duas primeiras pernas. E em seu retorno para Rei-Ginsei reproduziu destino semelhante ao par restante.

Doris percebeu que havia encontrado um inimigo que, de certa forma, era ainda mais assustador do que a Nobreza. Havia um dardo e uma espada longa amarrados em sua sela, porém tinha o chicote na mão direita. Não obstante, a arma parecia leve e ineficaz em suas mãos.

Rei-Ginsei cavalgou em ritmo vagaroso até as ruínas.

— Depois de ver aquela última demonstração de agilidade, me sinto ainda menos inclinado a matá-la em breve. Você não vai se deitar comigo antes de partir desta vida mortal?

— Quem seria baixo o suficiente para fazer isso? Prefiro ter minha cabeça esmagada em uma dessas pedras do que me deitar com uma cobra presunçosa como você. — Doris respondeu, deslizando com grande agilidade para trás da mais próxima das enormes esculturas. Com quase seis metros de altura, a estátua de uma figura com um par de presas à mostra estava com uma leve inclinação para frente, desequilibrada pelos longos anos e pelo movimento do solo. Não se podia esperar que a arma intimidadora e de longo alcance de Rei-Ginsei fizesse muito através deste escudo de pedra, contudo sem nenhuma maneira de contra-atacar, Doris permaneceu na mesma situação.

— Quanto mais forte a presa, maior a emoção do caçador. Ainda mais quando se trata de uma fera tão requintada. Ah, desculpe, você também deveria ser uma Caçadora, não é? — Rei-Ginsei encerrou a pergunta com uma risada desdenhosa. No segundo em que olhou para baixo daquela colina e viu Doris com o corpo da Bruxa carregado em seu cavalo, decidiu por matá-la. Se a conexão fosse feita entre o desaparecimento do esquadrão FDF e o cadáver de uma velha que estava praticando algum tipo de feitiçaria, seria apenas uma questão de tempo até que o nome de sua gangue surgisse.

A Bruxa era como uma unidade de reserva que ninguém conhecia. Operando de forma independente, seu trabalho era invocar uma criatura mais medonha do que a mente humana poderia suportar. Suas criações deixaram os inimigos dos bandidos psicologicamente devastados. Quando Rei-Ginsei cortou a cabeça da velha possuída por demônios e salvou Doris, parte do motivo foi por causa da atração sexual natural que ele sentia pela linda garota. Por outro lado, também pretendia se livrar da velha feiticeira incômoda algum dia. Agora tinha a garota encurralada como um animal. A jovem estava quase ilesa, e seus olhos brilhavam com animosidade enquanto o encarava por trás do monólito.

— Seria tão fácil mandá-la para o além, entretanto temo que despachá-la tão rápido a deixaria mal preparada para testemunhar minha infâmia na vida após a morte. — a arma em sua mão direita brilhava à luz do sol. — Acredito que terei que fazer seu frágil coração tremer um pouco mais de medo de mim. Ah, sim, eu me lembro de uma das regras cardeais dos Caçadores... Primeiro deve expulsar a presa evasiva de seu esconderijo.

Algo uivou no ar, e houve um barulho incrível da base do monólito que abrigava Doris. Soltando um grito de espanto, Doris sabiamente saltou para fora do caminho. Presas no chão em um ângulo, as várias toneladas de pedra esculpida não pareciam propensas a se mover um centímetro, mesmo sob um impacto considerável, mas de repente seu equilíbrio pareceu ruir, e começou a se inclinar na direção dela.

A arma que fez isso já estava de volta na mão de Rei-Ginsei. Parecia o bumerangue que os antigos nativos da Austrália usavam. Ao contrário do bumerangue, porém, a arma de Rei-Ginsei era afiada como uma navalha nas bordas interna e externa. Além do mais, era feita de ferro.

A maioria dos não aborígenes tinha problemas para lançar um bumerangue de madeira simples com eficiência, contudo esse belo jovem, tão ágil quanto uma muda balançando na brisa, conseguia lançar as lâminas de ferro de qualquer maneira que quisesse com apenas um movimento do pulso. Sua habilidade profana emprestava às lâminas de mero metal o tipo de poder de corte reservado para espadas mágicas, empurrando-as através de um corpo humano, ou do tronco de uma árvore, ou até através de uma pedra.

Além do mais, elas não atacavam apenas em linha reta. Podiam atingir o alvo da direita ou da esquerda, de cima, até mesmo dos pés... Parecia não haver lugar para onde não pudessem ir. E embora fosse impossível se defender de uma dessas lâminas, parecia improvável que houvesse alguém no mundo que pudesse se defender de dois ou três ataques sucessivos, muito menos de várias lâminas lançadas ao mesmo tempo. As lâminas de ferro eram capazes de cortar qualquer escudo tão facilmente quanto cortavam sua presa habitual. Essas eram as ‘lâminas de picanço’ de Rei-Ginsei.

O chão tremeu e musgo verdejante voou para todos os lados enquanto o monólito caía.

Doris estava no fundo de uma depressão verdejante, imóvel de espanto. Eram três metros até o muro de pedra mais próximo.

Balançando como uma flor na brisa da manhã, Rei-Ginsei riu.

— O que houve? Achei que a natureza da besta fosse fugir quando caçada...

De repente, ele engoliu suas palavras.

A expressão de Doris se encheu de esperança, porque duas coisas mudaram de repente.

Uma névoa branca e pesada vinda de lugar nenhum em particular começou a encher as ruínas. Ela se agarrou à mão de Rei-Ginsei enquanto este segurava sua arma, e às bochechas de Doris, formando contas mornas. E ao longe, um cavalo relinchava.

Doris correu loucamente para o muro de pedra. Embora a névoa pudesse protegê-la de um ataque, não achava que cegaria seu inimigo o suficiente para que escapasse. Teria de tentar chegar perto o suficiente de quem estivesse montando o cavalo que tinha acabado de ouvir gritar, e tentaria pegar algumas armas emprestadas, embora pudesse perder um braço ou uma perna no processo. Claro, não achava que seria o suficiente para derrotá-lo de qualquer maneira.

Nada veio cortando o ar em sua direção. Pulando o muro de cabeça, prendeu a respiração e tentou avaliar a distância até o próximo pedaço de cobertura.

A voz que ecoou pela distância deixou seu olhar determinado tão sem vida quanto o de um cadáver.

— Chefe, vou me servir da sua companheira de brincadeira.

Em um mundo mal iluminado, onde um véu branco e gotejante escondia o azul do céu, a sombra da morte se aproximava cada vez mais da única garota solitária. Rei-Ginsei e seus três capangas... Qualquer um deles era mais do que páreo para Doris.

— O que aconteceu com a Bruxa, chefe? — outra voz perguntou.

— Foi sacrificada. Perdeu a cabeça para um lindo passarinho.

Uma agitação baixa e estrondosa percorreu a névoa. As vozes que ouviu estavam sufocadas com a mais negra raiva.

— Vou arrancar os olhos dela.

— Vou torcer os seus braços e pernas.

— Vou arrancar a cabeça dela.

Então Rei-Ginsei foi ouvido dizendo.

— E eu terei meu prazer com o que resta do corpo.

Doris não falou. Nem conseguia ser ouvida respirando. Os homens apenas sentiram a presença de uma garota paralisada pela morte iminente. A névoa leitosa reduziu tudo a silhuetas vagas.

Rei-Ginsei segurava uma lâmina de picanço pronta em sua mão direita. Sem uma única palavra de incentivo, naquele mesmo momento em outro lugar na névoa, Golem sacou seu facão, uma faca rogue brilhou na mão de Gimlet, e a corcunda de Chullah se partiu ao meio.

— Bem, agora...

Quando eles estavam prestes a desencadear seu ataque assassino, Rei-Ginsei congelou de repente.

Tem alguma coisa lá fora!

Sim, na névoa turbilhonante, na névoa pegajosa e inquietante que constantemente corroía suas psiques, que encharcava sua pele para ameaçar a chama da vida, Rei-Ginsei sentiu a clara presença de algo diferente de seu grupo e sua presa indefesa. Não só havia algo lá fora, como era o suficiente para parar um homem como ele em seu caminho. Rei-Ginsei não conseguia ver, mas sentiu a presença perto do monólito que derrubou com seu arremesso rápido como um raio.

Não havia como saber nada sobre isso. Como poderia ter adivinhado que o monólito estava ali desde tempos imemoriais, bloqueando uma entrada para o mundo subterrâneo? A névoa ao seu redor era uma que havia surgido das entranhas da terra.

— Então, este é o mundo exterior?

A pergunta veio no tipo de voz perturbadora que alguém esperaria de um demônio das brumas. Tinha um tom tão desumano que fez Rei-Ginsei e seus três capangas brutais engolir em seco, nervosos. Mais estranho ainda, era uma voz de mulher.

— Está tão frio... Eu gosto muito mais lá embaixo. — disse outra mulher.

Uma terceira disse.

— Nós realmente precisamos encontrar algo para encher nossas barrigas... Ah, bem, não tem algo ali? Um, dois, três, quatro... Cinco no total.

Rei-Ginsei estremeceu, percebendo que as três falantes conseguiam enxergar perfeitamente bem na névoa que deixava todos os outros cegos. Devido à estranheza da presença que sentia lá fora, tinha se esquecido de abaixar a lâmina de picanço que havia erguido antes. Sentia que havia duas coisas lá fora. E, contudo, não conseguia deixar de pensar que uma delas estava dividida em três!

— Seus deveres de guia foram cumpridos. Desça de volta. — uma voz enferrujada, porém muito mais humana, ordenou. Sem dúvida, essa era a outra presença que sentira. No entanto enquanto a voz era mais humana, a presença em si era muito mais assustadora do que a fonte das vozes femininas perturbadoras.

— Oh, você não pode... Veja como é bonito... Parece absolutamente delicioso...

Presumindo em seguida que esses resmungos lamentosos se referiam a si ele, Rei-Ginsei sentiu arrepios.

— Não, eu proíbo.

Ele se sentiu extremamente grato por este segundo comando.

— Vamos, minhas irmãs. Temos nossas ordens.

— É um desperdício, mas suponho que devemos.

— Todavia, bem... Quando nos visitará de novo? Quando você virá para nossa morada lá embaixo, oh, meu amado? — a última voz estava suplicante.

Não houve resposta e, em pouco tempo, a coisa estranha com três vozes e uma presença moveu-se, embora relutante, através da névoa e desapareceu de volta para o subsolo.

A fonte da presença restante falou.

— Não estou interessado em lutar com ninguém além da Nobreza, contudo se estão decididos a começar algo, então avancem.

Ele está nos desafiando! Mesmo com essa percepção, o quarteto descobriu que sua vontade de lutar permanecia fraca.

— D... Eu sei que é você, não é? — Doris parecia à beira das lágrimas.

— Venha até mim. Relaxe. Não precisa se apressar.

Lá fora, na neblina, havia o som de dentes rangendo. D disse que não precisava se apressar porque tinha certeza de que o quarteto não faria nada para impedi-lo. Os dentes rangendo testemunhavam o ressentimento da gangue por seu insulto mordaz. Entretanto o fato era que a aura sobrenatural irradiando de algum lugar na neblina prendia os vilões com força, impedindo-os de levantar um dedo.

O passarinho que quase estava na mão caminhou até a fonte da voz. Pouco depois disso, os bandidos sentiram os dois se afastando.

— Espere... Espere só um minuto. — por fim, Rei-Ginsei conseguiu forçar as palavras a saírem de sua boca. — Pelo menos me diga seu nome... — esquecendo sua eloquência habitual, ele gritou para a névoa. — Então, esse é seu nome, babaca? D?

Não houve resposta, e sentiu a dupla se distanciando cada vez mais.

O feitiço sobre ele foi quebrado.

Com um grito, Rei-Ginsei arremessou sua arma. Extraordinária em seu poder, velocidade e cronometragem, nada poderia pará-la; com total confiança nesse fato, deixou a lâmina de picanço voar.

Lá fora, na névoa, havia o som de lâmina encontrando lâmina. Depois disso, não houve som algum, e o silêncio se instalou sobre o mundo branco. Todos os vestígios do par se foram.

— Chefe? — desanimado, Golem perguntou alguns minutos depois, mas a bela prole de súplicas enviadas do inferno apenas ficou lá com sua mão direita estendida para uma lâmina de picanço que nunca retornou, seu semblante mais pálido que a névoa enquanto estava sentado congelado na sela.



Uma escultura de uma gárgula com asas dobradas treinou seu olhar zombeteiro na sala de seu poleiro elevado. A sala era uma das muitas no castelo do Conde Lee.

Completamente sem janelas e longe de ser espaçoso, era simples em design, porém as sentinelas robôs alinhadas ao longo de uma parede, a cadeira em um estrado um degrau acima do chão de pedra, a pessoa de preto carrancuda de um retrato colossal que cobria grande parte da parede atrás da cadeira, e o ar geral de solenidade religiosa que pairava sobre a sala sugeria que era um lugar de julgamento... Uma espécie de tribunal.

O réu já havia sido interrogado sobre seus crimes e, como juiz supremo, o Conde Lee ergueu as sobrancelhas de raiva.

— Agora pronunciarei a sentença. Olhe para mim. — ordenou o Conde. Sua voz estava carregada com a dignidade de um senhor feudal, em um tom baixo de seu lugar no estrado enquanto lutava desesperadamente contra as chamas prontas para saltar de sua garganta. O réu não se moveu. Tendo sido trago para a sala mais cedo pelas sentinelas robôs, o réu permaneceu esparramado no chão frio de pedra. Três pares de olhos vazios vagavam pela sala, pelo chão, pelo espaço e então para cima para retribuir o olhar das gárgulas perto do teto. O cabelo preto que chegava até a ponta da cauda enorme da ré fazia do chão um mar de preto sedoso. Eram as três irmãs do aqueduto subterrâneo, as Medusas de Midwich.

— Você se esqueceu da dívida que tem comigo por abrigá-la por três longos milênios nas águas do submundo, a salvo dos olhos do homem e alimentada a ponto de estourar. Não apenas falhou em despachar o verme que lhe enviei, como até ajudou na sua fuga. Esse tipo de traição não é facilmente perdoado. E então eu a condeno aqui e agora!

As três cabeças não pareciam nem um pouco abaladas pela enxurrada de abusos do Conde enquanto flutuavam pelo espaço e seus olhos pareciam estar cobertos por uma membrana leitosa. Então, de repente, elas soltaram um suspiro profundo e murmuraram...

— Oh, o divino...

— Mate-as! — antes que seu grito indignado terminasse, um grito que alguns poderiam até chamar de enlouquecido, os robôs sentinelas soltaram raios de calor carmesim de seus olhos, vaporizando o trio de cabeças. Sem nem mesmo olhar para o cadáver ainda fumegando e se contorcendo no chão, o Conde ordenou de forma brusca.

— Livre-se dela. — então olhou para o lado.

Ele não tinha notado sua entrada, contudo Larmica estava ao lado do estrado. Mesmo vestida com um vestido branco como a neve, a garota tinha um ar de escuridão rodeando-a. Devolvendo o olhar injetado de sangue de seu pai com olhos cheios de zombaria gelada, dirigiu-lhe a palavra.

— Pai, por que acabou com elas?

— Eram traidoras. — o Conde cuspiu. — Claro, houve circunstâncias atenuantes. O jovem bebeu o sangue delas e as fez suas escravas, e assim o levaram de volta à superfície. Veja, quando acordei, os computadores me informaram que uma das entradas para o mundo subterrâneo havia sido aberta esta manhã. Meu primeiro pensamento foi tirá-las de seu covil para interrogatório, e então confessaram tudo. Não que fosse difícil, parecem ter sido roubadas de suas almas. Ficaram mais do que felizes em responder minhas perguntas.

— E a entrada?

— Os robôs já a selaram.

— Então você quer me dizer que ele escapou?

Desviando o olhar do rosto da filha enquanto sua expressão se tornava cada vez mais fascinada, o Conde assentiu.

— Escapou. No entanto o fato de ter espancado as três irmãs... Não matando-as, mas que ele mordeu suas gargantas como um de nós e as fez obedecer a suas ordens... Tenho a sensação de que não é um dampiro comum...

Dampiros com menos autocontrole se alimentavam de sangue humano de vez em quando, todavia nunca houve um caso em que a pessoa de quem se alimentavam se tornasse o mesmo tipo de marionete que os Nobres faziam de suas vítimas. Sendo apenas meio-vampiros, os poderes dos dampiros não se estendiam tanto. Mais estranho ainda, essa vítima não era um humano, e sim um verdadeiro monstro entre monstros... As Medusas de Midwich.

Os olhos de Larmica começaram a brilhar com uma luz inefável.

— Entendo. Você o deixou escapar... Assim como a garota.

Não surpreendentemente, o rosto do Conde se contorceu de raiva, e se voltou para encarar Larmica.

A garota, é claro, era Doris. Larmica se referiu com sarcasmo a como seu pai partiu cheio de confiança para reivindicar seu prêmio, mas foi forçado a fugir após encontrar resistência brutal. Ainda mais cheia do orgulho da Nobreza do que seu pai, Larmica se opôs com toda severidade a elevar qualquer humano às fileiras de sua espécie, não importa o quanto seu pai pudesse se sentir atraído por sua presa.

Com fingida inocência, perguntou.

— Vai sair furtivamente de novo esta noite para vê-la? Vai fazer outra visita àquela desculpa de fazenda fedorenta?

— Não... — respondeu o Conde, sua voz mais uma vez composta. — Acredito que vou me abster disso por um tempo. Agora que o jovem está de volta com ela, pode ser difícil fazer do meu jeito.

— Então abandonou seus planos para a garota humana?

Agora foi a vez do Conde sorrir com malícia.

— De novo, não. Preciso fazer uma visita à outra pessoa. Antes de executar as Medusas, a mais velha das irmãs mencionou alguns personagens curiosos.

— Personagens? Quer dizer humanos, não é?

— Sim. Usando-os, farei com que o jovem seja destruído, embora você tenha minhas condolências. — não havia nada de natureza consoladora em seu tom.

Em voz baixa, Larmica perguntou.

— Então terá a garota, aconteça o que acontecer?

— Sim. Características tão requintadas, uma garganta tão fina e pálida e tanta coragem. Nestes últimos milênios, não vi uma fêmea tão preciosa. — aqui o tom do Conde mudou. — Ver a batalha extenuante que ela me deu na outra noite, nunca cedendo um centímetro, só aumentou meu ardor. Dez mil anos atrás, não houve o caso de nosso Ancestral Sagrado não conseguir obter uma donzela humana do desejo de seu coração?

Ao dizer isso, Conde Lee olhou com reverência, igual ao que qualquer um da Grande Nobreza mostraria, para a pintura colossal que ocupava a parede atrás dele.

— Ouvi dizer que a mulher que nosso Ancestral Sagrado desejava se chamava Mina, a Bela, e viveu na antiga Terra dos Anjos. E parece que nosso Ancestral Sagrado achou o sangue correndo sob sua pele quase translúcida mais doce e mais delicioso do que qualquer outro que já tenha passado por sua língua, embora já tivesse bebido das fontes de vida de milhares de beldades.

— Por causa daquela mulher, nosso Ancestral Sagrado foi reduzido a pó. — Larmica acrescentou friamente, dando ao pai um olhar lamentoso que não era nada parecido com ela. — Então você não vai reconsiderar isso em nenhuma circunstância, pai? A orgulhosa família Lee ocupou esta região da Fronteira por cinco longos milênios, e nenhum humano deveria ter permissão para se juntar a ela. Tudo o que já caçou foi drenado de sangue e deixado para morrer, e nunca sugeriu trazer nenhum deles para a família. Então por que essa garota? Tenho certeza de que não sou a única a questionar sua escolha. Não tenho dúvidas de que minha falecida mãe perguntaria a mesma coisa.

O Conde deu um sorriso dolorido, assentindo, como se reconhecesse o inevitável.

— Esse é o ponto. Queria trazê-lo à tona há algum tempo, mas pretendo tomar a garota como minha esposa.

Larmica parecia como se uma estaca tivesse acabado de ser cravada em seu coração. Nada menos do que isso poderia ter causado o mesmo choque a essa jovem orgulhosa. Depois de um tempo, sua pele caracteristicamente pálida tornou-se da cor de papel, e disse.

— Eu entendo. Se pensou nisso com tanta antecedência, então não serei mais irracional. Faça o que quiser. No entanto, acredito que devo me despedir deste castelo e partir em uma longa jornada.

— Uma jornada, você diz? Muito bem.

Apesar de toda a angústia na voz do Conde, havia também um leve tom de alívio. Ele sabia no âmago de seus ossos que sua amada, mas temperamental filha, nunca seria capaz de coexistir com a garota humana, não importa o quanto ele tentasse persuadir as duas.

— Então, pai... — perguntou Larmica, seu rosto tão charmoso como se o problema tivesse sido completamente esquecido. — Como exatamente pretende destruir o jovem arrivista e reivindicar a garota?



Quando Doris voltou para a fazenda com D, o sol já estava alto no céu. Tendo ouvido um relato da noite anterior de sua babá, Dr. Ferringo, o pequeno coração de Dan estava mergulhado em ansiedade enquanto esperava o retorno de sua irmã. Quando viu os dois retornarem em segurança, ele ficou muito feliz, embora seus olhos quase saltassem para fora de sua cabeça ao mesmo tempo.

— O que diabos aconteceu, mana? Você caiu do cavalo e quebrou o traseiro ou algo assim?

— Oh, cale a boca! Não é nada, sério. Só estou fazendo D fazer isso para compensar toda a preocupação que nos fez passar. — Doris gritou de seu lugar nas costas de D, que a carregava nas costas.

Seus nervos a levaram através de batalhas acirradas com dois adversários igualmente diabólicos, o Conde ontem à noite e Rei-Ginsei esta manhã, todavia no instante em que saiu do mundo nebuloso e ouviu D dizer a ela... — Você está bem agora. — seus nervos apenas cederam. A próxima coisa que notou era que estava em suas costas largas e ele estava pisando na estrada para casa.

— Ei, isso não é engraçado. Me coloque no chão. — Doris gritou, seu rosto ficando vermelho brilhante. D obedeceu em seguida, entretanto Doris, aparentemente tomada pelo alívio, não conseguiu reunir força nas pernas. Elas balançaram quando tocaram o chão, forçando-a a sentar-se no local. E então D a carregou o resto do caminho para a fazenda.

D carregou Doris direto para seu quarto e a colocou na cama. No segundo em que sentiu a mola do colchão sob suas costas, caiu no sono, contudo naquele momento teve a nítida impressão de ter ouvido uma voz vulgar rir e dizer.

— Ela tinha uma bunda grande e bonita. Às vezes, esse trabalho tem suas vantagens.

Quando o sol estava se preparando para se pôr, Doris acordou. O Dr. Ferringo já havia retornado à cidade há muito tempo, e D e Dan estavam ocupados consertando a porta e o corredor danificados no conflito da noite anterior.

— Não se incomode com isso, D, podemos cuidar desses estragos nós mesmos. Você já deve estar cansado o suficiente.

No caminho de volta para a fazenda, vindo das ruínas, D não havia a contado as circunstâncias que o impediram de retornar na noite anterior. Apenas se limitou a dizer...

— Eu estraguei tudo.

Doris entendeu que quis dizer que falhou em destruir o Conde. No entanto, além disso, não disse nada como “Desculpe por ter ficado fora por tanto tempo” ou perguntou “Aconteceu alguma coisa ontem à noite?”. Bastante irritada com seu desinteresse, Doris o submeteu a um relato um tanto exagerado dos eventos da noite. Sequer havia achado estranho que coisas que normalmente ficaria com muito medo de falar agora saíssem de sua língua, só porque D estava ali.

Assim que terminou, D disse.

— Que bom que você está bem. — e foi o fim da história. Parecia algo frio e insolente de se dizer, porém deixou Doris bastante satisfeita, e se era uma tola por se contentar, que assim fosse.

De qualquer forma, sabia que D tinha lutado com o Conde e que, além de tudo, tinha tido alguma outra experiência nada comum. Foi por essa razão que disse que ele devia estar exausto.

— Ah, tudo bem. — Dan rebateu. — Meu mano D aqui é ótimo nessas coisas. Mana, você e eu não conseguiríamos lidar com todo esse trabalho em um mês. Dê uma olhada lá fora. D cuidou de tudo, recarregou os herbicidas, consertou a cerca e até trocou os painéis solares.

— Meu Deus! — Doris exclamou com espanto.

Ganhando um salário premium, um Caçador pode manter sua própria casa, contudo ela nunca tinha ouvido falar de um ajudando seu empregador com reparos. Especialmente no caso de D, onde sua recompensa era apenas... O raciocínio de Doris chegou tão longe antes que ficou vermelha ao se lembrar do que o havia oferecido antes de levá-lo para trabalhar.

— De qualquer forma, sente-se ali e descanse. Vou preparar o jantar agora.

— Terminaremos em breve. — disse D, parafusando as dobradiças da porta de volta no lugar. — Faz um tempo que não faço isso, e é mais difícil do que me lembrava.

— Sim, mas você é ótimo no trabalho. — Dan interrompeu. — Se casar com ele, mana, estará feita para o resto da vida.

— Dan! — com a voz quase um grito, Doris tentou dar um tapa no garoto, no entanto a pequena figura se abaixou da mão e saiu correndo pela porta aberta. Apenas o lindo jovem e a garota de dezessete anos permaneceram. O sol tingiu a borda da pradaria de vermelho, e os últimos raios de luz que atravessavam a porta deram ao casal um tom rosado.

— D... — Doris parecia obcecada ao dizer o nome. — Uh, estive pensando, o que pretende fazer quando seu trabalho aqui estiver concluído? Se não estiver com tanta pressa, pensei que...

— Eu não estou com pressa, mas não sabemos se meu trabalho aqui será concluído ou não.

O coração de Doris afundou. Em sua fragilidade, a garota instintivamente buscou apoio e paz de espírito, apenas para esbarrar nessa muralha. Não havia garantia de que seu inimigo seria destruído. Até agora havia tido sorte de resistir a dois ataques, porém a batalha ainda continuava.

— D... — Doris disse mais uma vez, a mesma palavra soando como se tivesse vindo de uma pessoa diferente dessa vez. — Quando terminar, volte para a sala de estar. Gostaria de discutir que tipo de estratégia devemos adotar daqui em diante.

— Entendido.

A voz que veio por cima do ombro dele parecia satisfeita.



O inimigo deles foi extraordinariamente rápido em fazer sua “visita”.

Naquela noite, Greco estava festejando com seus amigos bandidos, tentando aliviar um pouco da raiva que ainda sentia da surra que levaram da gangue de Rei-Ginsei. Estava descendo uma rua deserta para casa quando viu uma carruagem estranha parar em frente à pousada, e se apressou para se esconder nas sombras.

Mais estranho do que estranho, desde o momento em que a carruagem preta surgiu da escuridão até o momento em que parou, ela nunca fez um único som. Eram visíveis os cascos dos cavalos batendo na terra, e as rodas da carroça girando, contudo nem mesmo o som do cascalho se espalhando chegou aos ouvidos de Greco.

Uma carruagem de um nobre...

Isso Greco entendeu. Seu estupor bêbado se dissipou na hora.

Então, esse é o idiota que está atrás de Doris? A curiosidade... E sentimentos de ciúmes em relação a esse pretendente rival... Mantiveram Greco no lugar. A porta se abriu e uma única figura vestida de preto desceu até o chão. À luz de uma lâmpada pendurada no beiral da estalagem, o semblante pálido de um homem com um ar sobrenatural apareceu. Imagino que seja o senhor das maneiras, então.

Greco percebeu por instinto. Embora nunca tivesse visto o homem antes, este correspondia às descrições confiáveis ​​do demônio que foram marteladas em sua cabeça pelos anciãos da aldeia quando era criança. Logo a carruagem partiu e o Conde desapareceu na estalagem. O que diabos o traz à cidade? Nubladas como estavam pelo álcool de baixa qualidade, suas células cerebrais não eram capazes de encaixar perfeitamente o Conde, a estalagem e Doris, no entanto conseguiram dar-lhe um empurrão na direção certa e dizer-lhe: Siga-o, estúpido.

Ao entrar na estalagem, Greco encontrou o balconista parado atrás do balcão. O balconista parecia estar sob algum tipo de feitiço; seus olhos estavam arregalados e suas pupilas não seguiram a mão de Greco enquanto a acenava para cima e para baixo. Greco abriu o registro. Havia dez quartos. Todos ficavam no segundo andar. E havia apenas um hóspede hospedado lá. O registro o colocou no quarto nº 207.

Nome: Charles E. Chan. Ocupação: Artista.

Cuidadoso para não fazer barulho, Greco subiu as escadas com cuidado e seguiu até a porta do quarto em questão. A luz se espalhava pelas fendas ao redor da porta. O hóspede é um cara, então não suponho que o vampiro esteja aqui para beber seu sangue. Talvez seja um dos comparsas do Conde? Imagino se esse palhaço teve que pedir ajuda para tentar fazer de Doris sua. Greco puxou o que parecia um estetoscópio feito de fio de cobre fino. Os caçadores juravam por esse tipo de dispositivo de escuta. Há um bom tempo, Greco ganhou em um jogo de cartas fraudado. A delicada asa de fada, colocada em um pequeno buraco no sino, podia captar as vozes de criaturas de outra forma inaudíveis aos ouvidos humanos, e esses sons eram transmitidos pelo fio de cobre até os ouvidos do ouvinte. Normalmente, o dispositivo seria usado para procurar esconderijos de criaturas sobrenaturais perigosas demais para se aproximar, ou para ouvir suas conversas privadas, todavia Greco tinha feito uma arte de colocá-lo nas janelas de todas as moças da cidade. Prendendo o sino na porta com uma ventosa, colocou as pontas dos ouvidos e começou a ouvir. Uma voz misteriosa que não era deste mundo reverberou do outro lado da porta. Greco colocou o olho no buraco da fechadura para garantir.



Rei-Ginsei ficou surpreso quando a porta trancada se abriu sem fazer barulho e uma figura de preto entrou vagarosamente. Percebendo no mesmo instante que o intruso era um nobre, se perguntou sobre o significado da visita, mesmo enquanto pegava as lâminas de picanço na mesa.

O intruso o encarou com olhos brilhantes enquanto fazia uma proposta absurda na verdade.

— Eu sei tudo sobre você e seus companheiros. — disse a figura de preto. — Que exterminou uma patrulha da Força de Defesa da Fronteira e que tentou, e falhou em matar uma certa jovem. Tenho negócios com aquela garota em particular. Entretanto, alguém permanece no meu caminho. Essa é a pessoa que você encontrou na névoa, aquela que não conseguiu impedir.

— A que diabos está se referindo? — Rei-Ginsei perguntou, com inocência fingida. — Sou apenas um simples artesão viajante. A mera menção de tais acontecimentos sórdidos é o suficiente para gelar meu sangue.

O intruso vestido de preto soltou uma risada fria e jogou um distintivo prateado na cama. Pertencia a um patrulheiro da FDF.

— Sei que acredita que todos os cavalos e cadáveres foram comidos ou queimados, e suas cinzas espalhadas aos quatro ventos, mas por desgraça esse não é o caso. — disse a voz em um tom gelado. — Dispositivos de monitoramento no meu castelo estão ligados a um satélite espião estacionado acima, e quando acordo, ele me mantém minuciosamente informado sobre os movimentos na Fronteira. Esse distintivo foi reconstruído a partir de moléculas de cinzas recuperadas no local, e também tenho imagens suas e dos seus companheiros tiradas durante o ataque, e transmitidas pelo satélite. Não preciso dizer o que aconteceria se essa informação fosse enviada não apenas para esta aldeia, como também para todos os lugares que a humilde raça humana chama de lar.

Tendo ouvido sua explicação, Rei-Ginsei arremessou uma lâmina de picanço. A lâmina atingiu uma barreira invisível na frente do coração do temível chantagista e se cravou no chão. Na verdade, foi então que Rei-Ginsei desistiu.

— Há a garota que me escapa a considerar também. — continuou a voz. — Não ficaria surpreso se ela fosse fazer uma visita ao xerife amanhã, e garanto que contaria a ele tudo sobre seu grupo. Suponho que a razão pela qual se hospedou aqui na cidade sozinho é para matar a garota antes que possa denunciá-lo, porém enquanto tiver aquele homem ao seu lado, você não terá uma vida fácil. Afinal, seu inimigo é um dampiro... O sangue da minha espécie corre em suas veias. Não importa qual curso escolha, nada além da desgraça aguarda seu grupo.

— Então por que veio me contar isso? O que quer que façamos?

A razão pela qual o tom de Rei-Ginsei estava surpreendentemente calmo era porque o intruso estava certo em todos os pontos, exceto um, e decidiu que resistir mais seria inútil.

— Pensei que poderia lhe dar alguma ajuda. — disse a voz, uma observação bastante inesperada. — Enquanto o rapaz que está frustrando meus esforços for morto, e a garota entrar em minha posse, não tenho interesse no que acontece no mundo inferior da humanidade.

— Mas como?

Uma luz cruel e vulgar brilhou nos olhos de Rei-Ginsei. Ele percebeu que poderia ter uma chance agora de matar o jovem vagabundo, seu oponente de volta à névoa. Esse era o único ponto em que o Conde estava enganado. Não havia deixado seus três capangas acampados na floresta e vindo para a cidade sozinho para impedir que a garota falasse. Bem, fazia parte do plano, contudo seu verdadeiro objetivo era muito mais pessoal. Tinha o passarinho onde podia arrancar suas asas, arrancar suas pernas e torcer seu pescoço delicado, e seu inimigo a havia tirado bem debaixo de seu nariz. Pior ainda, conheceu a humilhação de ser paralisado por uma aura medonha que o impedia de levantar um dedo contra seu inimigo, e teve a lâmina de picanço invencível da qual se orgulhava derrubada do ar com um único golpe. Rei-Ginsei foi até a cidade para garantir que seu inimigo pagasse por todas essas coisas. Era malícia. Tão cheios de ódio e desejo de vingança quanto ele, seus capangas concordaram com seu plano. Assim, voltou para a cidade sozinho para ser menos visível enquanto procurava pela garota e seu misterioso inimigo.

No entanto, por mais que esperasse na entrada da cidade, não havia sinal de sua presa. Ao perguntar por aí, só conseguiu descobrir o nome da garota e onde morava. Em outras circunstâncias teria ido lá e a atacado, entretanto a força comprovada desse outro inimigo, que ninguém na cidade conseguiu identificar, foi o suficiente para jogar água fria no fogo que era sua malícia. Ele deixou a cidade por um tempo para se encontrar com seus companheiros e ordenar que ficassem de olho na fazenda de Doris. Então retornou para a aldeia para reunir o máximo de informações possível sobre seu inimigo para seus próprios propósitos assassinos. E, embora não tivesse exatamente reunido nenhuma informação, agora tinha um aliado mais poderoso do que jamais poderia ter imaginado parado bem na sua frente.

— Como faremos isso? — Rei-Ginsei perguntou mais uma vez.

— É isso que você deve fazer...

As discussões entre o demônio de preto e o demônio lindo continuaram por algum tempo.

No momento, o visitante de preto deixou cair algo longo, fino e parecido com uma vela na cama.

— É Incenso Enfeitiçador do Tempo. É uma ferramenta para transformar o dia em noite, ou a noite em dia. Esta é uma versão mais potente. Acenda-o quando estiver perto dele e apague-o rapidamente de novo. Dessa forma deve desequilibrar suas defesas. É quando o matará. Entretanto, apenas para evitar que tenha ideias sobre outros usos que pode dar a isso, só pode ser usado duas vezes. Só precisa sacudi-lo bem e irá acender.

— Por favor, espere um momento. — Rei-Ginsei gritou, esperando parar a figura que se afastava. — Tenho um favor adicional para lhe pedir.

— Um favor? — a figura sombria parecia confusa e irritada.

— Sim, senhor. — com um aceno e um sorriso, Rei-Ginsei fez seu pedido estranho. — Peço que me faça um da Nobreza. Oh, não precisa ficar tão bravo com esse pedido. Por favor, apenas me escute. Tenho que me perguntar por que você se incomodou em me escolher como seu parceiro nesse plano. Se esse incenso sozinho é o suficiente para fazer o truque, deve haver uma série de humanos a quem poderia ter confiado o trabalho. Vivemos em tempos em que os pais matam seus próprios filhos por uma moeda de ouro e uma nova lança. E, todavia, o próprio fato de ter se dado ao trabalho de vir me ver é prova suficiente de que precisa de alguém com minha habilidade para matar o dampiro. Eu mesmo sei uma coisa ou duas sobre dampiros. Sei que eles tendem a ser o pior tipo de inimigo que você pode ter. E há algo tão poderoso, tão assustador sobre aquele com quem estamos lidando agora, que me atinge no âmago. Esse não é um dampiro comum. Com todo o respeito, não é suficiente apenas fazê-lo ignorar os delitos do meu grupo. Não peço o favor para todos os quatro do meu grupo... Apenas eu sozinho gostaria de ascender às fileiras sagradas da Nobreza.

A figura sombria ficou em silêncio.

Qualquer um com um coração que ouvisse o pedido de Rei-Ginsei teria gritado “Traidor!”, para não falar do que seus três capangas poderiam ter feito... Mas no mundo nunca faltaram oportunistas. Mesmo que os odiassem e temessem como demônios do inferno, no fundo de seus corações as pessoas olhavam para os temidos vampiros com um olhar cobiçoso. Poder e imortalidade tinham um cheiro tão atraente.

— O que me diz? — Rei-Ginsei perguntou, pressionando seu visitante por uma resposta.

A figura sombria assentiu, e Rei-Ginsei assentiu em troca.

— Então seja feita a tua vontade.

— Cuide disso.

A figura sombria saiu da sala, ainda tinha outra visita a fazer antes de retornar ao seu castelo. À luz fraca da lamparina, não percebeu a outra pessoa no corredor.

***

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