sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A Quiet Place — Capítulo 14

Capítulo 14


— Sr. Asai. — repetiu Kubo, sua voz baixa. Eles estavam na trilha escura, Kubo olhando para Asai. — Por favor, diga o que veio dizer.

Asai sentiu a mordida do ar gelado em suas bochechas; a temperatura aqui nas montanhas era como o final de novembro na cidade. O frio penetrou em suas camadas de roupa e gelou suas costas. Seu olhar se virou para os arredores.

— Entendo. Ninguém por aqui para ouvir nossa conversa.

O sanatório não era visível de onde estavam. A cordilheira Yatsugatake formava uma parede preta e alta que bloqueava sua visão. Nada era visível além da dispersão de luzes que pareciam cair em cascata pela base da cordilheira. Um lado da trilha era densamente arborizado; do outro, além de uma estreita área de arbustos, campos se estendiam à distância.

Havia um cheiro de grama seca no ar.

— Sr. Asai, o que é tudo isso?

— Eu quero saber o que aconteceu no dia em que Eiko morreu. É sobre isso que vim lhe perguntar.

O sapato de Kubo fez um pequeno som de trituração no caminho de cascalho.

— O dia em que ela morreu? Não faço ideia. Como eu poderia saber alguma coisa?

— E ainda assim você e Eiko eram muito íntimos.

Kubo não respondeu.

— Não adianta tentar negar. Agora mesmo, quando lhe disse que era o marido de Eiko, você não entrou em pânico e me levou para longe do sanatório e para o meio do nada só para conversar? Se não estivesse envolvido com Eiko, por que se comportaria dessa maneira?

— Não estou dizendo que não a conhecia. Não estou negando, mas... Foi por essa razão que me seguiu até aqui?

— Não te segui. Só criei uma oportunidade para conversarmos. Não posso só aparecer no seu escritório ou fazer uma visita ao seu apartamento. Teria sido incrivelmente humilhante para mim.

— Então sabia da minha visita neste sanatório.

— Todo quarto sábado do mês você vem aqui para visitar sua esposa. Tenho meus meios de descobrir, Sr. Kubo. Já descobri bastante a seu respeito. Sei tudo sobre sua relação com Eiko, porém quero ouvir direto da sua boca. Idealmente, teria pedido para minha esposa me contar, contudo, por desgraça, ela não pode porque está morta. Você é o único que pode me dizer a verdade.

— Eiko... Quero dizer, sua esposa... Não lhe contou nada antes de morrer?

— Acredito que saiba muito bem que não contou. Se tivesse contado, tenho certeza que teria lhe falado sobre isso. Eiko costumava visitá-lo duas vezes por semana em sua antiga casa em Yoyogi, não é?

Kubo fez um movimento. Por um momento, Asai pensou que o homem iria correr, porém este apenas se virou e olhou para os campos. Longe no horizonte, através de uma abertura entre as montanhas, um pequeno pedaço de céu estrelado era visível. Kubo colocou sua mala no chão e tirou um maço de cigarros do bolso. Parecia que estava ganhando tempo. As lentes de seus óculos e a ponta de seu nariz foram iluminadas por um instante pela chama laranja de seu isqueiro, e então desapareceram no instante seguinte quando o isqueiro se apagou. Depois disso, não havia nada além do pequeno brilho vermelho de seu cigarro. Kubo exalou fumaça no ar, mas não fez nenhum movimento para falar.

— Parece que está tendo problemas para pensar em uma resposta, então posso começar? — disse Asai com um sorriso de escárnio. Nervoso, Kubo deu uma tragada em seu cigarro.

— Tudo bem, então. Sr. Kubo, Eiko escreveu tudo sobre você e seu relacionamento em seus diários particulares. Encontrei eles em uma gaveta trancada depois de sua morte. Eiko escreveu sobre cada visita que fez à sua casa. Presumo que se planejasse cometer suicídio, ou se encontrasse doente e perto da morte, teria se livrado dos diários. Contudo como morreu repentinamente, longe de casa, nunca teve a chance. Todo o caso está exposto naqueles diários.

Ainda assim, Kubo não disse nada.

— Você tem interesse em artes e ofícios populares, não é? Pipas, bonecas e coisas desse tipo? Esculturas em madeira e coisas feitas de papel, certo? Na sua coleção tem uma lanterna Yamaga da Prefeitura de Kumamoto. E um amuleto Somin Shorai. Eiko achou essas coisas incomuns e interessantes, e escreveu sobre elas em seu diário.

Kubo estremeceu levemente, como se o ar frio da noite tivesse invadido seu corpo de repente.

— No entanto há uma coisa que não sei. Como vocês dois se tornaram próximos? Essa foi a única coisa que o diário não mencionou. Parecia que no começo estava com um pouco de medo de escrever, e deixou essa parte de fora. Como e onde vocês se conheceram?

Kubo jogou fora seu cigarro, fumado pela metade.

— Tudo bem. Vou te dizer. Vai explicar por que não lhe devo nenhum tipo de pedido de desculpas.

Seu corpo alto se virou mais uma vez para encarar Asai.

— Admito que Eiko e eu éramos amantes. Começou há cerca de dois anos. Nós nos conhecemos em um antigo templo em Fuchu. Ouvi dizer que vendiam amuletos Somin Shorai e fomos comprar um. Eiko estava lá, caminhando no terreno do templo. O terreno estava deserto, era um lugar muito tranquilo. Acabei falando com ela e Eiko me disse que estava lá para buscar inspiração para seus haicais.

Asai sabia que Eiko costumava fazer viagens a vários lugares em Tóquio e seus subúrbios para encontrar inspiração para seus poemas. Todavia, nunca imaginou que foi assim que seu relacionamento com Kubo começou. Tinha todos os tipos de teorias sobre o primeiro encontro dos dois, entretanto nunca imaginou que tivesse sido puro acaso.

— Naquele dia, nós dois caminhamos cerca de uma milha de volta para a estação juntos conversando sobre isso e aquilo, e então, cerca de uma semana depois, tornei a encontrá-la, desta vez em uma loja de departamentos em Shinjuku. Peguei a escada rolante para subir para o primeiro andar, e a encontrei parada um degrau abaixo de mim.

Asai imaginou que coincidências como essa fortaleceriam o vínculo entre duas pessoas. Eles foram almoçar juntos em um restaurante próximo. Kubo explicou que se divertiram tanto conversando que planejaram se encontrar de novo na semana seguinte.

— Se Eiko escreveu sobre mim em seu diário, então não posso negar. Não sei o que escreveu ao certo, mas digamos que confirmo tudo o que disse sobre nós.

Kubo deixou escapar essas palavras e então começou de novo em um tom mais comedido.

— Dito isto, não quero que entenda mal meus motivos. No começo, Eiko nunca me disse que era casada. Ela disse que ainda era solteira.

Asai engasgou.

— Só dormi com Eiko porque me disse que não era casada. Como poderia ter feito algo assim se eu soubesse desde o começo que havia um marido envolvido? Estava completamente convencido de que era uma mulher solteira que de alguma forma perdeu o barco na coisa do casamento. Você entendeu, Sr. Asai? Fui enganado por Eiko, da mesma forma que você.

Asai ficou sem palavras.

— Eiko por fim me contou a verdade depois de estarmos juntos por cerca de um ano. Ela chorou quando admitiu, e... Tenho que te dizer, fiquei horrorizado, porém já era tarde demais. Estava muito envolvido para terminar as coisas. Eiko disse que tinha me enganado e que entenderia se quisesse terminar, contudo que queria do fundo do coração continuar me vendo. E foi assim que nosso caso de amor continuou. Essa é a verdade, Sr. Asai. Nunca roubei a esposa de outro homem. Dormi com Eiko acreditando que fosse solteira. Se soubesse que era sua esposa, seria culpado de adultério, e lhe deveria um pedido de desculpas. Seria moralmente culpado. Contudo eu não sabia. Fui enganado. E então não tenho intenção de me ajoelhar para pedir perdão. Quero dizer, suponho que o que fiz depois que Eiko confessou a verdade não foi exatamente inocente, continuamos nosso caso por mais um ano. No entanto Eiko me implorou em lágrimas para não deixar seu marido descobrir. Apenas fui pego e arrastado junto com a coisa toda, e essa é a verdade.

Kubo contou a história toda sem parar, agarrando-se à desculpa “Desde o começo Eiko me disse que era solteira” e baseou toda sua lógica a partir daí. Parecia que havia construído um bom argumento. Havia recuperado toda sua autoconfiança e até começava a soar agressivo.

Asai tinha certeza de que era mentira. Estava convencido de que Kubo havia seduzido Eiko. E que Eiko tinha lhe dito desde o começo que era casada. Com alguém como Kubo, era bem provável que aumentasse sua atração a ideia de que estivesse brincando com a esposa de outra pessoa. E agora empregava sua astúcia habitual para convencer Asai a acreditar no exato oposto. Sem dúvida ele ficou em silêncio durante a caminhada até aqui porque ocupara-se inventando essa história.

— Então devo entender que acha que não me deve nenhum tipo de pedido de desculpas? — perguntou Asai, seu tom bem menos calmo do que antes.

Kubo olhou ao redor como se para verificar se não havia ninguém por perto na pista remota. Mas Asai também imaginou que Kubo se sentia confiante porque era alguns anos mais novo e bem maior que seu adversário.

— Não acredito que preciso responder a nada. Não sou nada além de uma vítima inocente do engano de Eiko. Um pedido de desculpas é algo que se oferece quando é culpado de algo, ok? Certo, então, diga que, para efeito de argumentação, o que Eiko e eu fizemos foi adultério; percebe que adultério não é mais ilegal? Nem mesmo a lei o reconhece mais como crime. Sem falar no fato de que, como já disse, comecei a dormir com Eiko porque me foi dito que não era casada. Não faz diferença o que me disse depois... A responsabilidade é toda dela!

— Então não sente nenhuma responsabilidade moral comigo?

— Eu me oponho a ser forçado a dizer isso! Sinto pena de você, claro que sinto. Porém quando alguém me segue até Nagano e me leva para o meio do nada no escuro total só para me intimidar e extorquir algum tipo de pedido de desculpas, bem... Mesmo que tenha sentido vontade de me desculpar em algum momento, certamente não sinto mais vontade!

— Entendo. Bom, a única razão pela qual te segui até aqui é que em Tóquio não há lugar onde poderíamos ter essa conversa. Já mencionei antes. Você reclama que estamos no escuro total no meio do nada, contudo é porque seu trem chegou neste momento. E foi você quem escolheu uma estrada rural para ter uma conversa. Sugeri que fôssemos conversar dentro do sanatório, no entanto minha proposta foi recusada com o argumento de ser impossível. Você me trouxe aqui, não o contrário.

— É verdade. Porque me ameaçou a ter essa conversa na frente da minha esposa. Então me diga, o que quer depois?

— Depois?

— Bem, não imagino que tenha vindo até aqui só para me intimidar a me ajoelhar e implorar seu perdão. Há mais do que isso, não é verdade?

— Hah! — Asai deu um passo tão à frente que Kubo deve ter sentido sua respiração no rosto. — Eu diria que tem muitos outros motivos além de mim para se sentir intimidado.

— Do que está falando?

— Chiyoko Takahashi e a casa em Yoyogi que ela lhe tomou. Sim, descobri quase tudo com minhas investigações. Hah! É inútil tentar parecer tão inocente. Você pediu à sua vizinha, Sra. Takahashi, para ajudá-lo a se livrar do corpo da minha pobre esposa depois que morreu em sua casa, porque não conseguiu entregar o seu corpo para a sua família sozinho. Então, para salvar sua própria reputação, em vez de encontrar um terreno vazio em algum lugar para despejar o cadáver, teve a brilhante ideia de pedir a dona da loja de cosméticos ao lado para lidar com a situação. Inventou a história de que Eiko estava andando na rua quando de repente se sentiu mal e tropeçou em uma loja de cosméticos próxima, onde faleceu. Fácil de acreditar vindo de alguém da sua índole, um homem obcecado com aparências e com a moral de uma cobra. Fazer uma mulher que mal conhece concordar tão facilmente com um plano tão sórdido... Bem, cavou sua própria cova lá, não é? Chiyoko Takahashi acabou sendo mais difícil do que imaginou. Ela se aproveitou do seu dilema e conseguiu sua casa e seu terreno por um preço de banana. Entretanto chantagem nesse nível deve ter tido uma colaboração. Sei que houve uma mão de seu patrono, um certo atacadista no comércio de cosméticos. Não estou apenas inventando essas coisas. Contratei um detetive particular para investigar seu negócio. Esses ex-policiais de fato sabem o que fazem. A Sra. Takahashi contou tudo. Não admitiu de verdade tê-lo chantageado, mas ficou bem claro pelo que disse a eles. Aqui está, este é o relatório de suas descobertas, caso esteja interessado.

Asai tirou o envelope do bolso do paletó e puxou as páginas até a metade para revelar algumas das palavras impressas. As folhas brancas de papel refletiam o pouco de luz lá fora na pista.

Kubo enrijeceu. A aparição do relatório da agência de detetives em seu envelope pardo pareceu ter lhe dado um golpe e tanto. Sequer teve energia para dar uma olhada no conteúdo e verificar se Asai estava dizendo a verdade. Deve ter sido um choque ouvir que Chiyoko Takahashi havia admitido tudo para um detetive particular.

— E os detetives também fizeram uma visita a Komako Hanai, que deu a eles muitas informações também. Komako Hanai, lembra dela? A mulher que o serviço de limpeza costumava enviar para sua casa? A agência de detetives fez um belo esforço aqui. Sua ex-empregada deixou o serviço de limpeza e foi morar na parte mais remota da Prefeitura de Yamanashi, contudo conseguiram localizá-la, só para fazê-la falar.

Este foi outro golpe que Kubo não esperava. Pode ter sido apenas o frio, todavia todo o seu corpo tremia. Ele ficou de pé, enraizado no local, enquanto Asai continuava. Sobre as portas fusuma e o tatame que queimaram no terremoto de 7 de março; como a Sra. Hanai mencionou que Kubo usou três baldes para apagar o fogo. Reconstruiu o relato da governanta e acrescentou que Eiko deve ter desmaiado devido à mistura de choque emocional e trauma físico.

— Você não tinha ideia de que Eiko tinha problemas cardíacos, não é? Pelo que vejo, ela não lhe confidenciou nada. Ela agiu como se não soubesse que estava doente e seguiu sua vida normalmente, embora na verdade tivesse medo de contá-lo, caso isso te assustasse. A única coisa mais perigosa para seu coração fraco era sexo. Mas de alguma forma Eiko acabou tão apaixonada por você que se esqueceu desse detalhe. Você praticamente matou Eiko. Na verdade, o que fez pode ser considerado um ato criminoso.

— O quê...

— Transporte de um cadáver, sem justa causa, para a casa de uma terceira pessoa não relacionada. Acredito que seja o suficiente para acusá-lo de abandono de cadáver.

Kubo bateu o pé em fúria.

— O que diabos você quer? Não é melhor do que aquela mulher Takahashi com suas ameaças! O que quer de mim? Dinheiro?

Kubo estava berrando agora.

— Dinheiro, né? Sim, aposto que sim!

— Dinheiro não.

— Mentiroso! Seu plano era me seguir até aqui e extorquir dinheiro de mim. Porém não vai me enganar tão fácil assim. Tenho uma pequena contramedida que posso colocar em prática.

— Uma contramedida?

— Exato. Se for em frente com essas acusações, vou contar tudo para minha esposa. Chiyoko Takahashi já me enganou para sair de casa; não tenho mais nada a temer. Ouvi de Eiko que você é chefe de seção do Ministério da Agricultura e Florestas. Um alto funcionário público de um ministério do governo usando o adultério da própria esposa para chantagear alguém? É abuso de poder e cheira a algum tipo de golpe.

Asai foi pego de surpresa, como se tivesse colidido com uma pedra no escuro.

— É muito engraçado para mim... — continuou Kubo. — Eu, um humilde assalariado na modesta empresa do meu tio. Sério, nada disso teria efeito na minha reputação. Meu tio não vai me demitir. Parece que minha esposa tem câncer de pulmão, então ela não vai durar muito neste mundo. Em outras palavras, não tenho mais nada a perder. Por outro lado, com relação a sua situação… Se eu apresentasse uma queixa contra você por tentativa de chantagem… Bem, não seria mais capaz de trabalhar como funcionário público. Quer dizer, suponho que seria capaz de continuar até o resultado do julgamento, contudo tenho certeza de que o fariam desistir de sua posição como chefe de seção. No entanto não, antes mesmo de chegar a esse ponto, a imprensa de rua, aquelas ‘revistas de notícias’ semanais, estariam por toda a história. Você não ousaria nem mostrar sua cara no trabalho outra vez, porque não gostaria de parecer um tolo na frente de todos aqueles chefes e superiores aos quais tem se curvado todos esses anos.

O que Tsuneo Asai tinha em comum com todos os outros servidores públicos sem carreira que lutaram para chegar às suas posições era um forte senso de orgulho e lealdade ao seu próprio ministério, onde faria qualquer coisa para manter seu emprego. Agora que sua posição se via ameaçada, um poderoso instinto de autopreservação entrou em ação. E esse foi o motivo do que aconteceu a seguir.

Asai foi auxiliado e instigado pela pesada escuridão do planalto de Fujimi.


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