Capítulo 129: O solo antes congelado
O solo antes congelado agora abrigava um mar de grama verde. Sempre que o vento soprava sobre as planícies, as folhas da grama captavam a luz do sol como ondas brilhantes e cintilantes.
Após a pisa das mudas no final do ano passado, os talos de trigo foram emergindo do solo e alcançando o céu. Sob o peso da neve do inverno, eles espalharam as raízes para a primavera, a tempo de serem pisados pela segunda vez sob os pés dos agricultores. Isto encorajaria as suas raízes a crescerem mais firmes e, em última análise, produziriam uma colheita mais abundante.
Com o fim dos últimos vestígios do inverno, o único branco que pontilhava as planícies agora eram as ovelhas que foram finalmente soltas no mundo para se empanturrarem com a folhagem fresca. Depois de sobreviver durante o inverno com feno seco, este foi um banquete maior do que qualquer coisa para o gado.
Faltando apenas um dia para o festival da primavera, os campos de trigo estavam prontos, as sementes de batata foram enterradas e agora a maior parte da vila estava concentrada em sua maior parte nos preparativos para o grande evento. Ao contrário do festival de outono, o festival de primavera era principalmente para os próprios aldeões. Ainda assim, eles receberam alguns visitantes externos. Sempre haveria certo número de vendedores ambulantes com mercadorias para vender nas terras do norte assim que a neve derretesse, então a praça já estava repleta de um punhado de suas barracas.
Em meio a essa agitação, o trabalho de preparação para a comida do festival estava em andamento. Vasos grandes foram arrastados para fora e as raízes e ervas silvestres colhidas foram lavadas e depois descascadas. Famílias com bons cozinheiros amassavam massa e dobravam frutas secas para fazer pães doces. Algumas das cabras e ovelhas mais velhas foram abatidas e os barris de cidra de maçã foram retirados do armazenamento. Enquanto os adultos se ocupavam com estes preparativos, os jovens e as crianças da vila pescavam no rio.
Esta foi uma celebração de ação de graças e gratidão por ter superado com segurança o longo inverno. Os estoques de alimentos não eram tão abundantes como no outono passado, mas mesmo assim havia o suficiente para preparar um banquete. Comer e beber até se fartar daria aos aldeões forças para começar todo o trabalho árduo que se seguiu ao repouso do inverno.
Os jovens da vila estavam bastante entusiasmados em realizar todos os trabalhos que dependiam da força física, por isso Belgrieve e Satie misturaram-se com as garotas e senhoras da vila na praça, descascando a casca das raízes. Muitas das batatas que ficaram armazenadas durante todo o inverno estragaram, por isso tiveram que ser escolhidas com cuidado. Angeline e suas camaradas tinham ido procurar verduras silvestres perto da montanha, enquanto Percival e Kasim pareciam estar sozinhos fazendo algo em outro lugar. Yakumo tinha ido pescar, enquanto Lucille se divertia tocando com alguns dos melhores músicos da vila. Por último, Graham cuidava das crianças.
“Ensopado e mingau de trigo, certo?” Satie perguntou enquanto descascava uma batata.
“Sim. Depois peixe, carne grelhada e pão doce.”
“Parece bom. E para finalizar... Bem, tenho certeza que os vendedores ambulantes trarão algumas coisas.”
Licor destilado, carne de porco da vila vizinha de Rodina, peixe marinho curado com sal — os vendedores ambulantes traziam vários produtos que de outra forma nunca seriam vistos em Turnera. Belgrieve já havia ficado completamente desanimado com uma dessas importações — mesmo agora ainda achava difícil usar ingredientes que, como aquelas sardinhas curadas com sal, tivessem sido salgados por muito tempo em sua culinária. No máximo, os usaria essencialmente como tempero para fazer caldo de sopa.
Deixando de lado essa memória específica, Belgrieve ficou bastante fascinado ao ver Satie fazendo o trabalho de preparação com tanta habilidade, já que ela já havia sido uma péssima cozinheira. Belgrieve observou-a trabalhando com um olhar distraído, cantarolando uma música para si mesma, até que ela pareceu notar sua atenção.
Os olhos de Satie se voltaram para Belgrieve.
“O que foi?” perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
“Nada... Eu só estava pensando que você aprendeu mesmo a cozinhar.”
“Sério, ainda está falando sobre isso? Quantas vezes já comeu minha comida?”
“Hahaha, desculpe, desculpe. Você deixou uma impressão bastante forte naquela época.”
“Sim, sim...” Satie resmungou. “Vamos terminar logo, certo?”
As meninas da vila que trabalhavam nas proximidades começaram a rir em seguida entre si com esse comentário.
“Ok, vamos nos apressar e libertar esses dois.”
“É interessante ver o Sr. Bell bajulando assim.”
“Sério, pensar que Bell, entre todas as pessoas, se casaria. Ainda não consigo acreditar!”
“Você conseguiu um bom homem, Satie.”
“Uh-huh, eu sei, não é? Ele é meu adorável marido.” Satie deu um sorriso malicioso e piscou para Belgrieve, cujas bochechas ficaram um pouco vermelhas enquanto coçava a cabeça sem jeito a sua provocação. Parecia que nada havia mudado — ele ainda era fraco com ela.
Mais ou menos na época em que o grupo de Belgrieve quase terminou de descascar todas as batatas, Angeline e os membros de seu grupo retornaram à cidade com uma grande colheita de brotos frescos, caules de raízes, botões de flores, cogumelos e muito mais. A montanha continha muitos tesouros se alguém soubesse onde procurar.
“Voltei!” Angeline gritou.
“Bem vinda de volta. Wow, vocês realmente trabalharam duro, não é?” Satie observou.
“Hehe... É para o banquete...” Angeline explicou, rindo.
“Hã? Onde está Maggie?” Belgrieve perguntou.
“Ainda na floresta... Ela disse que teria certeza de encontrar alguns cogumelos morel, não importa o que acontecesse.”
“Hmm... Bem, acho que não há necessidade de se preocupar com Maggie.”
Era impossível para um elfo se perder na floresta, e com as habilidades de Marguerite, seria capaz de afastar qualquer monstro que viesse atacá-la. O máximo que Belgrieve pôde fazer foi rezar para que encontrasse alguns cogumelos deliciosos.
“Qual é o próximo? Deveríamos enxaguá-los, certo?” Anessa perguntou, segurando sua cesta.
Belgrieve assentiu.
“Isso mesmo. Lave-os... E que tal usarmos um pouco no almoço de hoje?”
“Então, para começar.” disse Miriam. “Talvez devêssemos apenas lavar tudo e depois dividir tudo. Vamos, Anne.”
“Sim, voltaremos em breve.”
Anessa e Miriam levaram suas cestas para o poço, porém Angeline parecia mais interessada em ajudar aqui, então ficou para trás e se juntou ao círculo de meninas e senhoras da vila. Suas mãos trabalhavam ativamente, mesmo enquanto participava das discussões sinuosas entre as mulheres. A visão de um homem barbudo de quarenta anos entre elas foi bastante estranha.
Com todas as mulheres da vila ali reunidas, o trabalho foi feito em pouco tempo, embora a grande quantidade de tubérculos tornasse a tarefa difícil, mesmo com tantas mãos ajudando. O trabalho começou de manhã cedo, contudo continuou até o meio-dia. Assim que terminassem, a carne e os vegetais seriam cozidos lentamente durante a noite, para serem apreciados durante as festividades do dia seguinte.
Quando o trabalho de preparação foi concluído, o fogo da cozinha estava aceso e todas as panelas estavam cheias de ingredientes. Os sons de passos e rodas batendo no chão podiam ser ouvidos por toda a praça da vila. Belgrieve olhou para a comoção e viu a chegada de uma carruagem com a insígnia da Casa Bordeaux.
“É a condessa! A senhora Bordeaux está aqui!”
“Senhor Belgrieve!” Helvetica saltou da carruagem antes mesmo de parar.
“Hey! Espere!” Seren exclamou enquanto se inclinava para fora da carruagem em pânico. A saída inesperada das duas irmãs fez com que o condutor parasse a carruagem às pressas; Helvetica, completamente imperturbável pelo caos que causou, correu até Belgrieve e agarrou sua mão.
“Eu não pensei que o encontraria aqui! Você não estava viajando?”
“Sim, bem, consegui atingir meu objetivo antes do esperado. Você parece bem, Helvetica.”
“Obrigado. Oh, Angeline. Parece que todo mundo está aqui.”
“Helvetica, já faz um tempo... Vejo que não mudou nada” Angeline a cumprimentou com um aperto de mão e um sorriso sereno.
“Irmã, por favor, não faça nenhuma loucura.” Seren implorou com uma expressão cansada no rosto enquanto se juntava a eles.
No entanto Helvetica não se intimidou, voltando-se para a irmã com um sorriso radiante.
“Quero dizer, não imaginei que poderia encontrá-lo. Não está feliz também, Seren?”
“Estou. Mas deveria pensar duas vezes antes de pular de uma carruagem em movimento!”
“Oh, fala disso, porém me lembro de alguém pulando de um cavalo em movimento.”
“Ugh...” o rosto de Seren ficou vermelho de vergonha.
A molecagem corre no sangue de Bordeaux? Belgrieve se perguntou ao cumprimentá-la com um sorriso.
“Você também parece bem, Seren.”
“Urgh... Sim, bem, ainda estou sendo arrastada, como sempre.” Seren se mexeu, esfregando as pontas dos dedos.
Angeline, rindo, jogou o braço em volta dos ombros da garota.
“Estou feliz que esteja se dando bem... Onde está Sasha?”
“Sash está patrulhando em outro lugar. As coisas tendem a ficar agitadas no início da primavera, então costumamos nos separamos para cobrir mais terreno.”
“E mesmo quando o fazemos segue sendo difícil visitar todas as cidades e aldeias. Não pudemos vir aqui no ano passado, então sabia que desta vez tinha que vir!” Helvetica disse enquanto agarrava Belgrieve pelo braço.
Os invernos eram rigorosos no norte, e não era incomum que os estoques de algumas aldeias não resistissem até o final do inverno, deixando-os sofrendo os tormentos da fome. Para aliviar esta situação, os senhores de muitos territórios visitavam rotineiramente tantos lugares quanto podiam na primavera para verificar cada aldeia e realizar esforços de socorro quando apropriado. Dito isto, era incomum que um lorde o fizesse em pessoa. O facto de a própria condessa ter visitado muitas das aldeias foi um fator na imensa popularidade da Helvetica no território de Bordeaux.
Helvetica observou a praça da vila com um sorriso radiante no rosto, antes que seus olhos contemplassem Satie.
“Oh minha nossa, essa elfa é parente do Paladino?”
Belgrieve começou a responder.
“Não, o nome dela é Satie e...”
“Ela é minha mãe.” Angeline interrompeu.
Helvetica inclinou a cabeça para o lado enquanto processava o que ouviu.
“Hã... Então significa...”
“Sim... Ela também é minha esposa.” explicou Belgrieve timidamente.
Helvetica olhou para ele com uma expressão vazia, enquanto Seren, embora parecesse surpresa também, logo se iluminou animadamente com a notícia.
“Sir Belgrieve, você se casou? Parabéns!”
“Muito obrigado. Pra ser honesto ainda não está definido para mim...” Belgrieve disse.
De repente, Helvetica apertou o braço de Belgrieve com força e com toda a força. Ela olhou para ele com os olhos marejados, o rosto vermelho e as bochechas inchadas de raiva, quase como uma criança em meio a um acesso de raiva.
“Isso é traição! Quando eu estava tão ocupada trabalhando, você foi e encontrou alguém novo?”
“D-De jeito nenhum...”
“Hmm... Você cortejou uma garota muito jovem aqui, Bell. Que encantador.” Satie cantarolou, sorrindo enquanto o cutucava nas costas. Sua estranha compostura só a fez parecer mais estranha.
Belgrieve virou-se para ela em pânico.
“Não é o que está pensando — nunca pensei nela assim!”
“Você até me beijou! Isso foi apenas uma piada para você?” Helvetica chorou, indignada.
“H-Hey, Helvetica? Foi só na bochecha!” Belgrieve protestou freneticamente.
Angeline e Satie apenas observaram o drama, com doces sorrisos, enquanto o resto das mulheres da vila ria com vontade. Pouco antes de as coisas ficarem ainda mais fora de controle, Seren agarrou Helvetica pela nuca.
“Já basta!”
“Quero dizer...” Helvetica fez beicinho.
Este protesto fraco rendeu um suspiro frustrado de Seren.
“Não, nem mesmo se fizer essa cara. Para começar, Sir Belgrieve nunca a levou a sério.”
Helvetica segurou o rosto entre as mãos.
“Urgh... Foi meu erro pegar leve porque pensei que não tinha concorrência... Grr...”
Angeline colocou uma mão reconfortante no ombro de Helvetica.
“A mãe é uma das antigas camaradas do pai.” explicou ela. “Você já ouviu falar do antigo grupo dele antes, certo? O jogo estava fraudado desde o início, hehe...”
“Sério...? Eles devem ter se dedicado um ao outro há muito tempo, então.”
“Está tudo bem... Tenho certeza que encontrará um bom homem em pouco tempo.”
“Por que está tão feliz com isso, Angeline...? Ah, pelo amor de Deus...” Helvetica deu um último suspiro e balançou a cabeça resignadamente. “Na verdade, reclamar disso não vai me levar a lugar nenhum... Belgrieve, Satie, parabéns. Vocês tem minha bênção.”
“É uma honra.” Belgrieve baixou a cabeça, aliviado.
Satie riu.
“Hehehe... Obrigado. Você deve ter bom gosto se Bell chamou sua atenção, Senhora Condessa.”
“Sim, tenho orgulho de ser um bom juiz de caráter.”
“Mas eu não vou entregá-lo.”
“Não, claro que não. Não preciso que ele seja dado para mim.”
“Oh, que teimosa.”
“Hah... Eu me considero uma péssima perdedora.”
Helvetica parecia ter recuperado a compostura e Satie estava tão imperturbável como sempre em meio a essa conversa um tanto sinistra. Belgrieve estava começando a ficar pálido quando Kasim e Percival retornaram de repente.
“Hey, está animado aqui. Como vai indo a comida?”
O alívio tomou conta de Belgrieve. Estou salvo!
“Estamos cuidando disso agora. O que vocês dois estavam fazendo?”
“É um segredo.” disse Percival evasivamente.
“Você verá, hehehe... Oh, se não é a condessa.”
“Kasim, certo? Já faz algum tempo.”
“O que? A condessa? Essa garotinha?” Percival parecia cético ao ser apresentado às irmãs. Belgrieve explicou a ele que eles eventualmente teriam se encontrado para discutir a masmorra.
Percival assentiu.
“Entendo. Já ouvi falar de você antes, porém vejo que é jovem mesmo.”
Helvetica sorriu e fez uma reverência elegante.
“É um prazer conhecê-lo.”
“Sim, um prazer. Odeio nobres, contudo pelo que ouvi você não parece uma pessoa má.”
Satie encarou Percival.
“Percy, está sendo rude. Está parecendo um velho mal-humorado.”
“Ah, cale a boca.”
Helvetica e Seren riram.
“Eu não me importo.” disse Helvetica. “Aprecio sua honestidade.”
“Hehehe... Parece que aquela garotinha é muito mais madura do que você.” brincou Kasim.
“Olha quem fala. Então tem tempo para uma discussão?”
“É claro. No entanto o que é essa conversa de masmorra? Houve uma nova descoberta na área?”
“Teremos que começar explicando por aí, mas seria melhor incluir o chefe da vila... Ange, desculpe, poderia encontrar Graham? Diga a ele que estaremos na casa do chefe.”
“Entendi.”
“E você, Satie?”
“Não estou tão interessada. Ficarei aqui para cozinhar e terminar o almoço. Volte logo antes que a refeição esfrie, ok?”
“Entendi. Vou tentar ser rápido.”
De qualquer forma, não fazia sentido ficar vagando pela praça. Deixando a bagagem das irmãs com seus atendentes e guardas, Belgrieve e os outros conduziram Helvetica e Seren até a casa de Hoffman, o chefe da vila. Hoffman estava no quintal dando banho em um cavalo. Assim que Hoffman avistou Helvetica, ele limpou freneticamente as mãos e baixou a cabeça.
“Bem, se não é nossa graciosa condessa...”
“Já faz um tempo, chefe.”
Em contraste com o sorriso afável de Helvetica, Hoffman continuou a se curvar com reverência. Embora a mascate de cabelos azuis tivesse avisado da chegada da condessa há algum tempo, Hoffman sempre ficava nervoso na sua presença.
Como já era seu costume, trouxe uma mesa e algumas cadeiras para o pátio para todos. Lindas flores desabrochavam na sebe que cercava o quintal, farfalhando suavemente com a brisa da primavera. Antes que os preparativos para esta reunião fossem concluídos, Angeline chegou com Graham e Mit também.
Mesmo entre crianças sem ligação com o estilo de vida aventureiro, as histórias ilustres do Paladino eram conhecidas como contos de fadas ou histórias para dormir. Helvetica enrijeceu em um primeiro momento ao ver a própria lenda vestida como uma dona de casa e cercada por crianças antes de cair na gargalhada. Graham, estoico como sempre, ignorou a risada e baixou levemente a cabeça, ainda segurando um bebê nos braços.
“É uma honra conhecê-la... Eu sou Graham.”
“Hehe... A honra é toda minha. Meu nome é Helvetica Bordeaux.”
“Há quanto tempo não nos vemos, Graham.” Seren baixou a cabeça, tremendo de tanto rir.
“Peço desculpas por parecer assim... As crianças apenas se recusam a me deixar.”
“Oh, não, está tudo bem.”
Em meio a esse clima alegre, o grupo reunido tomou o chá e conversou um pouco até que o assunto mudou para a masmorra. Neste ponto, a identidade de Mit não podia mais ser mantida em segredo. Porém Helvetica era confiável, então eles se abriram com ela sobre as circunstâncias do menino. As irmãs ficaram surpresas, é claro, entretanto confiaram implicitamente em Belgrieve e Angeline — para não mencionar a excelente reputação de Graham — por essa razão não prosseguiram com o assunto.
A explicação continuou com os detalhes do cristal de mana que Belgrieve e companhia obtiveram no decorrer de suas jornadas e como Graham criou uma ferramenta especial com este. Helvetica, com a mão na boca, olhou para Mit em um tom avaliador. De sua parte, Mit só a encarou sem expressão.
“Então... Pretende usar a mana do pequeno Mit para criar uma masmorra?”
“Esse é o resultado desejado. Não há precedentes para isso, por esse motivo não podemos falar com certeza.”
“Eu não estou surpresa. Nunca ouvi falar de tal coisa.”
“Então, que tal?” perguntou Kasim. “Uma nova masmorra não deveria ser um mau negócio para Bordeaux.”
Helvetica sorriu.
“Sendo honesta... É problemático.”
Sua resposta provocou reações de olhos arregalados por toda parte.
“Helvetica... Você está tão frustrada porque o pai te rejeitou?” Angeline perguntou, inclinando-se mais perto dela sobre a mesa.
“H-Hey! Não faça parecer que estou apenas sendo rancorosa.”
“Não está...?”
“Absolutamente não! Ahem...” depois de limpar a garganta, Helvetica olhou ao redor da mesa antes de se explicar. “Primeiro, se este objeto é de fato tão conveniente como você diz, então, para ser sincera, preferiria que fosse usado em algum lugar mais perto de Bordeaux. Afinal, é seguro presumir que você pode ajustar o nível de perigo da masmorra resultante com base na produção de mana de Mit. Todavia, na eventualidade de algo acontecer, seria mais fácil lidar com qualquer problema se estivesse mais perto de uma das guildas maiores.”
“Compreensível. Era o que pensávamos inicialmente.” reconheceu Belgrieve.
“Hã?”
Belgrieve contou a ela como o plano inicial era instalá-lo perto de Bordeaux e que Graham estava se preparando para falar com ela a respeito do assunto.
“Mas nossos jovens aqui deixaram claro que queriam uma masmorra em Turnera. Será sem dúvida um benefício econômico para nós... Porém, mais do que tudo, sentimos que estaria melhor aqui para lhes fornecer uma razão para permanecerem em Turnera, em vez de procurarem aventura no resto do mundo.”
“Ah ha... Entendo. Parece que a admiração deles por você e Angeline realmente cresceu.”
Belgrieve deu um sorriso irônico.
“Não posso negar... Contudo esse é o principal motivo. Claro, há alguns que não estão tão interessados em ter uma masmorra perto da vila, no entanto ninguém está se opondo de maneira aberta a ideia agora.”
“Essa é a parte assustadora, Belgrieve.” Helvetica encarou-o com perfeita seriedade. “O descontentamento tende a aumentar com o tempo. Mesmo que o ressentimento não seja revelado, o coração humano pode explodir sem aviso prévio. Ainda não houve um problema real, então as coisas seguem calmas. Entretanto considere isto: uma masmorra é um lugar para as pessoas irem e virem, certo? Se quisermos que reforce a nossa economia, é inevitável que alguém que não seja os jovens aldeões queira desafiá-la. De uma perspectiva realista, não pode evitar que aventureiros venham de fora.”
“Bem, claro. Mas qual é o problema?” perguntou Percival.
“Digamos que Turnera sempre foi um centro comercial — então é bem provável que não seria um problema. Todavia Turnera é uma vila agrícola. É tão pequena que nem eu sabia que existia até ouvir os rumores de Sir Belgrieve.”
Angeline pareceu confusa.
“Hmm... O que quer dizer?”
“O fato é que, até agora, muito poucas pessoas vieram visitar Turnera e o novo afluxo de tráfego produzirá uma reação — rejeição dos estrangeiros. A cultura de uma vila agrícola está sintonizada com a paz e a estabilidade — o que está fundamentalmente em contradição com o impulso dos aventureiros em procurar mudança e estímulo. Não tenho dúvidas de que este choque de valores causará problemas.”
“Por favor, espere um segundo. Turnera não é tão excludente.” disse Kasim. “Somos estranhos, porém eles nos aceitaram com toda gentileza.”
“Imagino que se deva à sua conexão com Belgrieve. Kasim, Percival — vocês vieram aqui como antigos camaradas de Belgrieve. Presumo que todos os forasteiros que residem nesse momento em Turnera — todos e cada um — tiveram Belgrieve para endossá-los.” Helvetica virou-se para Hoffman.
O velho chefe fechou os olhos e coçou a bochecha.
“É verdade... Não são apenas Kasim, Percy e Satie. Graham e Duncan também se enquadram no padrão, com Belgrieve para mediar em seus nomes... Contudo não — foi principalmente porque são boas pessoas que os abraçamos.”
“Naturalmente. No entanto se criar uma masmorra e vier administrar uma guilda, é bem possível que receba aventureiros sem nenhuma relação com sua vila — verdadeiros canalhas, alguns deles. É quase uma certeza. Portanto, para todos os aldeões que não veem a masmorra de uma forma positiva, mesmo questões triviais farão com que seu descontentamento aumente. Mesmo que não surjam problemas reais, alguns podem ficar descontentes apenas com a forma como a atmosfera em torno da vila muda. Só que não é tudo. Se pessoas de fora vierem com o propósito expresso de tirar vantagem da sua ignorância, pouco poderá ser feito para salvar os danos que causarão. A vila poderá até correr o risco de desmoronar.”
“Graham e eu não somos suficientes para mantê-los na linha?” Percival perguntou carrancudo.
Mas Helvetica foi inabalável.
“Os dois são lutadores muito confiáveis. Porém este não é um problema que possa ser resolvido derrubando alguns bandidos. Ainda que fosse, pretende ficar alerta a cada hora, por todos os dias?”
Percival fechou os olhos em silêncio. Como um aventureiro experiente, não era tão impetuoso a ponto de insistir teimosamente que poderia fazer o impossível.
“E-Espere, Helvetica!” Angeline interrompeu com pressa. “Entendo o que está dizendo e por que esses seriam grandes problemas... Contudo tudo isso segue sendo apenas conjectura. Se todos esses problemas de fato fossem um dado adquirido, ninguém jamais seria capaz de fazer algo novo... E não haverá tantas pessoas más, e se aparecerem, teremos o pai e o vovô...”
“Foi esse tipo de negligência que abriu caminho à conspiração do conde Malta para derrubar Bordeaux.”
Angeline e Belgrieve ficaram sem palavras. Estavam cientes de que Helvetica não estava sendo maliciosa — por sua própria amarga experiência, ela estava tentando considerar o que era melhor para Turnera. Portanto, foi difícil para os dois se manifestarem em contra, dada a sua participação naquele caso.
Helvetica, vendo a expressão preocupada no rosto de todos quando se viraram, riu e bateu palmas.
“Agora que entende os problemas potenciais, devemos abordar o tema de forma mais construtiva?”
“Hã...?”
Todos olharam para Helvetica com os olhos arregalados novamente, contudo por um motivo diferente do anterior.
“Helvetica...” Angeline murmurou com timidez. “Você não é contra?”
“Eu disse que era problemático — não disse que era contra.” esclareceu Helvetica com um sorriso malicioso.
Kasim ergueu as duas mãos em sinal de rendição.
“Bem, você me pegou aí. Como esperado de uma condessa.”
“Quando se trata de gerenciamento de masmorras... Isso só mostra que a política supera a esgrima. Tiro o chapéu.” disse Percival com um sorriso amargo.
Angeline fez beicinho, olhando para Helvetica e depois para Seren.
“Você previu isso?”
Seren assentiu, rindo.
“Os olhos da irmã estavam brilhando, sabe? Tinha certeza de que ela estava a bordo.”
Então é por esse motivo que ela ficou quieta o tempo todo... Belgrieve coçou a cabeça. Desta vez, as irmãs conseguiram superá-lo.
Graham — que, como Seren, tinha apenas uma vaga compreensão da situação e permaneceu em silêncio — enfim falou.
“Está preocupada que o resto da vila direcione seu descontentamento para Bell e aqueles ao seu redor?”
“Hehe... Me pegou. Pode ser uma má maneira de colocar a questão, no entanto embora o chefe e os jovens da vila também estivessem implicados, toda esta conversa nas masmorras gira em torno dos forasteiros. Se surgir um problema, essas pessoas de fora seriam um bode expiatório conveniente para desabafar alguma frustração.”
“Não, nós... Bem, não posso negar de tudo essa possibilidade.” disse Hoffman, decidindo segurar a língua. O fato de Belgrieve ter sido tratado com bastante frieza o fez hesitar em falar em termos absolutos sobre como alguém se comportaria ou não.
Belgrieve deu um tapinha no ombro dele.
“Não é nada com que precise se preocupar, chefe.”
“Apesar de tudo o que eu disse.” disse Helvetica. “Acho que há algo um pouco diferente em Turnera em relação a outras aldeias. Então talvez — apenas talvez — meus medos sejam infundados. Ainda assim, nunca pode ter muita certeza.”
Belgrieve assentiu.
“É natural ficar preocupada. Esse é o seu dever como condessa.”
“Ela está certa sobre Turnera ser diferente. Quero dizer, quando Mit desapareceu, todos e cada um deles queriam resgatá-lo, certo? Tenho certeza que vai dar certo.” disse Kasim, rindo.
“Então, Condessa...” Percival começou, inclinando-se em sua direção. “O que acha que deveríamos fazer, pra ser específico?”
“Neste momento, vocês já concordaram com a masmorra em uma reunião da vila, certo? Significa que quem tocou no assunto acabará assumindo a responsabilidade. O fato de ter sido Belgrieve me deixa um pouco ansiosa.”
“Percy foi quem sugeriu primeiro...” Angeline entrou na conversa. Percival desviou os olhos.
Helvetica riu.
“De qualquer forma, Sir Belgrieve é quem está em uma posição de responsabilidade. Se ele tivesse alguém acima... Por exemplo, se estivesse sob o comando direto da Casa Bordeaux...”
Belgrieve deu um aceno de compreensão.
“Entendo... Em vez de ser uma iniciativa da vila, seria enquadrada como estando sob a gestão direta da Casa Bordeaux.”
“Correto. Será difícil mitigar por completo qualquer ressentimento, mas ainda assim...” Helvetica parou antes de tomar um gole de chá, e Seren assumiu.
“Parece presunçoso dizê-lo, porém a autoridade da Casa Bordeaux não deve ser menosprezada. Acho que pode ser suficiente para impedir que qualquer descontentamento crescente se transforme em uma questão importante.”
Para o bem ou para o mal, Turnera estava determinada em seus caminhos. Os aldeões tinham a dignidade de serem descendentes de pioneiros, contudo também se viam como caipiras, obedientes à condessa e a outros nobres. Seria muito mais fácil para eles aceitarem um decreto direto da Casa Bordeaux. Em Bordeaux, já havia sido estabelecida uma forte relação de cooperação entre a condessa e a guilda dos aventureiros. Não seria tão difícil estender esse relacionamento a Turnera.
“No entanto se o fizer... Não vai precisar mandar alguém de Bordeaux para cá?” Belgrieve perguntou.
Parecia que Helvetica estava esperando por essa pergunta o tempo todo.
“Ora, é claro.” disse ela, colocando teatralmente a mão sobre o peito estufado. “É por isso que mudarei minha base de operações para Turnera.”
“O que está dizendo, irmã?”
“Acha que eu não posso? Temos Ashe para cuidar das coisas em casa.”
“Claro que não pode! Haverá todo tipo de problemas se a condessa estiver ausente do domínio central. Você terá que nomear outra pessoa!”
“Entendo. Então você fará isso, Seren.”
“Hã?”
“Há muito tempo pensei que era hora de deixá-la adquirir alguma experiência no gerenciamento de uma cidade ou vila. Se for Turnera, terá Belgrieve e todos os outros para apoiá-la, então eu a estaria deixando em boas mãos.”
“N-Não pode só jogar isso em mim assim tão de repente...”
“Receberemos Seren de braços abertos!” Angeline exclamou alegremente, passando um braço em volta dos ombros de Seren.
Seren estava inquieta.
“Isto é... Bem, é claro, sempre pensei que chegaria a hora... Mas Turnera tem Hoffman como seu atual chefe, então ter uma jovem como eu intervindo seria...”
“Não se preocupe. Se alguém tão digno como a Senhorita Seren viesse aqui, então alguém como eu apenas se afastaria...”
“M-Mas...”
Belgrieve refletiu sobre a situação antes de oferecer uma sugestão.
“Por que não mantemos Hoffman como chefe por enquanto e nomeamos Seren como sua assessora?”
“Certo, deve evitar balançar o barco. Seren, tem alguma objeção?” Helvetica perguntou.
“Não, não exatamente...”
“Então tudo está certo. Não é como se estivesse dizendo para ficar em Turnera para sempre — eles estão buscando um novo normal aqui, então os ajude com sua mudança. Deve ser uma boa experiência para você.”
Seren fechou os olhos e suspirou.
“Entendido... Contudo não será de imediato. Preciso preparar algumas coisas.”
“É óbvio. Não é como se a masmorra fosse estar operacional amanhã. Certo, Belgrieve?”
Belgrieve sorriu ironicamente e assentiu.
“Somos amadores nesse campo... Teremos que estabelecer um pouco mais de base antes de ativá-la.”
“Viu? Está tudo bem. Vou passar aqui de vez em quando para ver como estão as coisas.”
“Tem certeza de que esse não é seu objetivo principal, Helvetica?” Angeline perguntou com cautelosa.
A condessa respondeu mostrando a língua irritada para Angeline.
“As coisas estão começando a melhorar.” disse Percival, rindo. “É mais reconfortante do que apenas ter todos nós, aventureiros e ex-aventureiros, cuidando do assunto.”
“Bem, não há necessidade de apressar as coisas agora. Será um prazer fazer negócios com você, Seren.” Kasim sorriu enquanto girava o chapéu em um dedo.
Hoffman pareceu aliviado.
“Então podemos dizer que o assunto está resolvido por enquanto. Senhora Helvetica, amanhã é o festival de primavera da nossa vila — sinta-se à vontade para participar.”
“Obrigado, terei prazer em aceitar o convite.”
É uma surpresa atrás da outra... Belgrieve refletiu enquanto tomava um gole do chá agora frio. Graham sorriu, satisfeito com o resultado das negociações, enquanto Mit olhava curiosamente para todos os outros. A conversa passou em grande parte pela cabeça do menino.
Angeline, sorrindo de orelha a orelha, abraçou o braço de Belgrieve.
“Seren vai ser a chefe! Isso é incrível!”
“É verdade.” a conexão deles remonta a quando Angeline salvou Seren dos bandidos. Para ter chegado até aqui... Belgrieve sorriu. Agora é hora do almoço. Assim, ele conduziu todos de volta à praça da vil.
O sol estava alto no céu e o tempo estava realmente bom.
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