Capítulo Extra 136.5: Na mesma noite, só uma vez
O ar sobre Orphen estava empoeirado e a luz do sol entrava diagonalmente por qualquer abertura entre os edifícios que pudesse encontrar. Esses brilhantes raios de luz eram lindos de se ver, mas nenhum dos que passavam parou para olhar para eles, continuando ocupados em seu caminho. Nos últimos tempos, Orphen estava ainda mais lotado do que o normal. Parecia que os monstros ao redor da cidade haviam crescido em número, o que atraiu mais aventureiros para a cidade.
Embora os monstros fossem inimigos temíveis da humanidade, também eram um recurso valioso. Seus corpos eram ricos em mana e sempre havia muita demanda pelos muitos usos que suas partes de corpo poderiam ter. Depois, havia o fato de que eram perigosos e de que era possível ganhar dinheiro, mesmo que fosse matando-os. Não estava explícito na descrição do trabalho, porém não era exagero dizer que a maioria dos aventureiros ganhava a vida lutando contra monstros.
“Tudo bem, agora você foi oficialmente promovida. Parabéns, Sra. Angeline.” disse Lionel, o mestre da guilda, parecendo tão descontraído como sempre.
“Obrigada.” respondeu Angeline apenas enquanto examinava com cuidado a placa de metal dourado que havia recebido.
“Minha nossa... Você pode ser a primeira na história a alcançar o Rank S na sua idade... Isso é incrível!”
“Sério?”
“Isso mesmo. Este velho aqui, bem, eu costumava ser Rank S, acredite ou não. Contudo só cheguei lá aos vinte e poucos anos. Vocês, jovens, são todos tão cheios de talento.”
Angeline riu.
“Não creio que seja esse o caso... Mas mesmo assim estou feliz.”
Rank S era o nível mais alto no sistema de classificação de aventureiros. Angeline chegou a Orphen aos doze anos para se tornar uma aventureira e alcançou o topo em quatro anos. Ela avançou a um ritmo sem precedentes — não que estivesse muito interessada em escalar ranks. No entanto agora que estava no posto mais alto, achava que poderia manter a cabeça orgulhosa quando encontrasse o pai, e essa possibilidade a deixou mais feliz do que qualquer outra coisa. Angeline decidiu se tornar uma aventureira para seguir seus passos. Sua profunda admiração por ele remontava às suas primeiras lembranças da vida em Turnera (uma vila remota no extremo norte do ducado) e às lembranças de seu pai empunhando sua espada contra os monstros que apareciam por ali. Agora poderia ficar lado a lado com ele. Ela bufou orgulhosa com o pensamento, perguntando-se se poderia conseguir acertá-lo se lutassem de novo e se a elogiaria por ficar forte. Antes, nunca havia sido párea para seu pai quando era criança, entretanto agora o campo de jogo seria um tanto nivelado.
Quando se tornou uma aventureira, Angeline se dedicou incansavelmente para alcançar o auge da conquista que imaginava que Belgrieve poderia ter alcançado se sua carreira não tivesse sido interrompida. Porém agora que estava no topo, tudo o que queria era vê-lo, voltar para Turnera e contar-lhe todas as coisas que tinha feito, e que lhe dissesse que ela tinha se saído bem. Era outono agora, então se cronometrasse bem, talvez conseguisse voltar bem a tempo de comer amoras. Angeline imaginou a alegria de sentar-se em frente à lareira da velha casa com Belgrieve e entretê-lo com histórias dos altos e baixos da vida em Orphen durante toda a noite.
“Hey.” disse Angeline. “Posso tirar uma folga?”
“Hã? Agora mesmo?”
“Sim...”
Lionel sorriu sem jeito, parecendo estar perturbado.
“Agora não é o melhor momento. Já te expliquei, certo? Aventureiros de alto escalão são obrigados a servir a guilda — até certo ponto, de qualquer maneira. Seria um pouco problemático se você saísse agora.”
“Eu sei disso, só que...”
“Sim, claro, aceitarei seu pedido de férias em um futuro próximo. Contudo tenho que cuidar de uma papelada para que seja possível, então vai demorar um pouco.”
“Bom, tudo bem... Vou te cobrar depois.”
“Haha...” Lionel deu uma risada nervosa enquanto coçava a cabeça.
○
Angeline suspirou.
“E depois de tudo isso, não consegui voltar para casa por mais de um ano...”
Marguerite riu.
“Sim, ouvi essa história. Você está falando sobre aquele surto de monstros em massa, certo? Se ao menos eu estivesse por perto naquela época!”
“É verdade. Se você estivesse aqui, eu teria jogado tudo nas suas costas e voltado para Turnera.”
“Não, não, não acho que teria funcionado. Quero dizer, Lionel ainda teve que arrastar Dortos e Cheborg de volta à ativa.” disse Anessa.
Elas se reuniram em seu bar habitual para um agradável jantar. Com o fim das longas férias que acabaram por levá-las para o sul, e depois com a posterior promoção de Marguerite passaram algum tempo atendendo a alguns pedidos antes de virem aqui para comemorar, cheias do sentimento de júbilo que sempre seguia um trabalho bem feito. Elas já haviam desfrutado de algumas rodadas de bebidas e Miriam apoiava o queixo na mesa, balançando sonolenta de um lado para o outro.
Certamente é diferente das festas com bebidas que tivemos em Turnera, pensou Angeline. Mas também não é nada mau. Ao terminar o resto de vinho no fundo da taça, houve uma profunda exalação.
“Já passou muito tempo desde então... Todavia também parece que aconteceu ontem.”
“Bem, tudo passou num piscar de olhos. Já se passou cerca de um ano desde que conhecemos Maggie, certo?” Anessa perguntou, contando nos dedos.
Marguerite inclinou um pouco a cabeça enquanto pensava um pouco.
“Sim, tenho certeza que durou por aí. Era o início do inverno quando cheguei, então acho que mais de um ano.”
Angeline lembrou que foi convocada à propriedade do Arquiduque Estogal pouco antes de Marguerite chegar a Orphen com Belgrieve. Depois de passar o inverno juntos em Orphen, Angeline e os membros de seu grupo partiram para Turnera — e então houve o ataque da antiga floresta, que tentou raptar Mit. Depois, viajaram para o Umbigo da Terra. Tudo o que aconteceu durante aquela viagem ainda estava fresco em sua mente. Podia se lembrar vividamente de ter visto cavalos Tyldean no posto de checagem de Yobem pela primeira vez e da luta com Sierra enquanto estava em Mansa. Eles lutaram contra bandidos enquanto viajavam de lá para o sul, negociavam com nômades e encontraram Duncan e Ishmael em Istafar. E então veio o Umbigo da Terra, onde se lembrou de ter enfrentado o An À Bao A Qu com Percival. E depois veio a aventura na capital imperial e o encontro com sua mãe, Satie...
Angeline levantou a cabeça e soltou um suspiro. O período de pouco mais de um ano foi bastante agitado.
“Sem dúvida foi uma grande aventura, não foi?”
“Eu me diverti muito. E tenho a sensação de que nossa jornada para o leste também será muito divertida. Já estou animada com a ideia.” disse Marguerite antes de pedir outra garrafa de vinho, quase só para ela, assim como as outras seis garrafas que já havia tomado. Sua pele élfica pálida estar levemente corada, mas a própria pessoa não parecia nem um pouco bêbada.
Quanto mais os pensamentos de Angeline se demoravam no passado, mais e mais longe suas memórias pareciam ir — uma viagem nostálgica alimentada pelo vinho. Ao olhar para Anessa, que estava enxugando o molho restante da panela com um pedaço de pão, Anessa percebeu seu olhar e devolveu a atenção.
“O que?”
“Quando formamos nosso grupo pela primeira vez... Fomos beber juntas, não fomos?”
Anessa deu um sorriso irônico.
“Sim... Você continuou bebendo e bebendo como Maggie está fazendo agora. Pra ser sincera, foi um pouco chocante.”
Os olhos de Marguerite brilharam de curiosidade.
“Entendo... Sim, claro que houve um tempo em que vocês tinham acabado de formar seu grupo também. Ainda não ouvi falar de nada dessa história. Como foi?”
Anessa riu um pouco sem jeito.
“Hmm, bem... É um pouco embaraçoso...”
Angeline sorriu também, era capaz de rir agora, entretanto tinha sido um começo bastante difícil naquela época.
○
Pouco tempo se passou desde que o grupo anterior de Anessa e Miriam se separou. De repente, a guilda apresentou-lhes uma nova oportunidade.
“Vocês gostariam de formar um grupo com a Valquíria de Cabelos Negros de Rank S?”
“Hmm? Eu e Merry?”
“Sim. Vocês duas são altamente talentosas como Ranks AAA e têm mais ou menos a mesma idade que ela. Achei que Poderiam se dar bem... As duas ainda não se juntaram a outro grupo, certo?”
Anessa ficou atordoada com esse raio vindo do nada, e os olhos de Miriam estavam quase girando.
“Bom, é verdade, porém...”
Ambas tinham ouvido falar da Valquíria de Cabelos Negros, contudo não a conheciam pessoalmente, e era provável que Angeline sequer soubesse de suas existências. E embora fosse verdade que tinham quase a mesma idade, Angeline era mais jovem que as duas. Aos dezesseis anos, a garota já era um gênio que já havia subido ao Rank S em apenas quatro anos. Anessa estava ciente dela, quer quisesse ou não.
“No entanto, hmm... A Sra. Angeline fez todo o caminho até o Rank S sozinha, não foi?” Anessa apontou com certa reserva. “Vai querer mesmo formar um grupo?”
A norma para os aventureiros era trabalharem juntos como um grupo, quase sem exceções, mesmo entre os aventureiros de alto escalão. Na verdade, com monstros mais poderosos para enfrentar, era ainda mais importante que os aventureiros de alto nível tivessem uma divisão adequada de papéis. Foi necessária a força combinada de muitos aventureiros para derrotar criaturas que geralmente nunca deveriam ser combatidas sozinhas. Foi assim que Anessa e Miriam conseguiram chegar ao Rank AAA.
Todavia corria o boato de que Angeline nunca havia formado um grupo antes. Independente do monstro que enfrentasse, parecia ser capaz de cortá-lo com nada além de uma espada. Suas habilidades eram extraordinárias — e foi por essa razão que subiu tão alto em tão pouco tempo. Daí as preocupações de Anessa — ela nem sabia se Angeline poderia trabalhar com um grupo. De fato seria inútil se tratasse os membros do seu grupo com desprezo ou se elas se atrapalhassem.
“Sim, com relação a isto...” a recepcionista começou, parando um momento para organizar seus pensamentos. “Sra. Angeline com certeza é muito forte sozinha... No entanto há um limite para o que pode realizar sozinha. De acordo com o mestre da guilda, os monstros que os aventureiros Rank S devem enfrentar são exponencialmente mais difíceis de enfrentar sem membros do grupo, então ter apoio de retaguarda ou outro lutador da linha de frente diminuiria muito o fardo sobre seus ombros.”
“E monstros poderosos têm aparecido em maior número ultimamente...” acrescentou o mestre da guilda, Lionel. “Não importa quão forte a Sra. Angeline seja, ficará cansada se continuar a lutar sozinha por muito tempo. Se você pudesse apoiá-la, estaria prestando um grande serviço à guilda.”
O próprio homem era um ex-aventureiro Rank S, então suas palavras tinham muito peso.
A recepcionista olhou para Anessa e Miriam com olhos suplicantes enquanto as duas se voltavam para se consultar.
“O que nós fazemos?” Anessa perguntou.
“Ugh... Não posso só decidir na hora...” Miriam gemeu enquanto pressionava as pontas dos dedos. Ela não era exatamente tímida, mas desconfiava que os outros descobrissem que era uma mulher besta e na maior parte do tempo relutava em exibir as orelhas de gato que mantinha escondidas sob o chapéu. Porém sabia que seria impossível participar de um grupo se não cedesse nesse ponto. Foi por esse motivo que não pôde deixar de ser bastante indecisa.
Anessa cruzou os braços enquanto refletia sobre tudo. Como a recepcionista havia dito, de fato havia um número crescente de pedidos difíceis para caçar monstros em torno de Orphen. Esses pedidos de caça tendiam a ser incomuns e, sempre que apareciam, o alvo costumava ser um monstro de nível inferior. Entretanto, mais recentemente, parecia que todos os aventureiros de alto escalão estavam presos em campo enquanto um monstro poderoso após o outro aparecia. Anessa e Miriam formaram equipes temporárias com outros aventureiros e participaram de algumas dessas caçadas, todavia a situação não mostrava sinais de melhora, e se ainda mais monstros aparecessem, talvez a guilda ficasse tão com falta de pessoal que as duas acabariam sendo despachadas por conta própria — uma verdadeira situação difícil para duas lutadoras da retaguarda. E de sua parte, não importa quão forte fosse a Valquíria de Cabelos Negros dos boatos, tinha que ter seus limites.
Anessa e Miriam perceberam que já era hora de encontrar um novo grupo. Anessa poderia fazer por algum tempo um papel na linha de frente com suas habilidades de adaga, no entanto dificilmente se poderia dizer que estavam fazendo uso total de seus pontos fortes dessa maneira. Era preciso uma vanguarda confiável. Mas agora, com a perspectiva de lidar com um aventureiro Rank S, elas estavam começando a ficar com medo. Não havia dúvidas sobre suas habilidades, porém se conseguiria trabalhar em equipe era uma questão sem resposta. Talvez descobrissem que suas preocupações eram injustificadas no final, entretanto agora, Anessa sentia muito mais ansiedade do que expectativa, e Miriam estava na mesma página.
“Hmm... Podemos ter um pouco de tempo para pensar a respeito?”
“Sim, claro. Podem me procurar quando estiverem prontas.”
Assim, as duas deixaram a guilda. Os braços de Anessa ainda estavam cruzados, a cabeça pendendo enquanto andava. Ao mesmo tempo, o olhar de Miriam vagava atordoado.
“Uma Rank S, hein...” Miriam murmurou.
“O que acha? Deveríamos recusá-la?”
“Hmm...” Miriam refletiu sobre suas palavras. “Ela é... Mais nova que nós, certo? É esbelta e bonita também.”
“Sim. Contudo você mal pode vê-la conversando com as pessoas.”
Todas trabalhavam na mesma guilda, então Anessa e Miriam já haviam visto Angeline várias vezes, com um pouco de inveja de como as havia ultrapassado tão rápido no ranking. Talvez essa inveja ainda influenciasse sua reticência e, apesar de todo o orgulho que tinham de suas próprias habilidades, não conseguiam julgá-la de maneira de toda justa. Seu orgulho e sentimento de inferioridade misturaram-se num estranho coquetel de julgamento entorpecido.
Logo, estavam paradas na frente de sua casa e nenhum delas percebeu quando chegaram lá. A casa que alugaram desde que se tornaram aventureiras de alto escalão tornou-se um lugar confortável e acolhedor para ambas.
Colocando uma chaleira sobre o fogão de pedra, Anessa murmurou.
“Como ela é, eu me pergunto?”
“Eu não sei. Talvez ela seja uma desmancha-prazeres? Uma verdadeira idiota?”
“Hmm... Não sou boa em lidar com esse tipo de coisa.”
“O mesmo aqui.”
Os Ranks S estavam em um nível diferente de outros aventureiros, de qualquer maneira que analisasse — pelo menos era assim que os outros aventureiros viam. Mesmo que essas duas fossem Rank AAA, parecia que havia uma enorme lacuna entre onde estavam e o Rank S. Claro, o mestre da guilda, Lionel, realmente não tinha esse tipo de “presença”, mas outros Rank S sem dúvida exalavam uma espécie de aura — um senso de talento nato aliado à disciplina rígida e trabalho duro. Como essa linha de trabalho envolvia caminhar rotineiramente na linha entre a vida e a morte, a maioria dos aventureiros buscava refúgio em um toque de estoicismo — ainda mais à medida que subiam na hierarquia. Era difícil dizer se algum delas conseguiria realizar o esforço e a atitude exigidos do posto mais alto.
“Acho que devemos dizer não, então?” Miriam sugeriu enquanto se ocupava em preparar um chá de ervas.
Anessa suspirou enquanto colocava algumas sobras de bolo em um prato.
“Bem...”
Anessa estava ansiosa. Porém, ao mesmo tempo, havia algo na situação que era bastante atraente. Ambas eram jovens aventureiras e não tinham perdido o espírito de aventura. Se pudessem se unir a uma aventureira Rank S, talvez pudessem ver horizontes novos e desconhecidos que de outra forma não conseguiriam. Foi uma perspectiva que fez seu coração disparar.
As duas ficaram ali sentadas em silêncio por algum tempo, bebendo chá e refletindo sobre tudo. Se recusarmos, o que acontecerá? Anessa se perguntou. Talvez continuassem a aceitar trabalhos — apenas as duas — por mais algum tempo enquanto procuravam outro combatente na linha de frente. Entretanto é provável que seriam assombradas por dúvidas persistentes sobre sua decisão de não trabalhar com a Valquíria de Cabelos Negros — uma aventureira Rank S e a melhor espadachim que existe. Como lutadores de retaguarda, não poderiam pedir ninguém melhor.
Anessa deu um olhar silencioso para Miriam do outro lado da mesa. Miriam devolveu o olhar um pouco ansiosa, todavia no fim deu um leve aceno de confirmação. Haviam tomado sua decisão. Agora, só tinham que fazer o seu melhor. A essa altura, o chá floral já estava morno e o terminaram com um gole.
○
“Eu sou... Angeline.” disse a garota, fazendo uma ligeira inclinação com a cabeça enquanto se sentava em frente a elas.
“E-Eu sou Anessa. É um prazer conhecê-la.”
“E eu sou Miriam...”
Era visível que a dupla estava nervosa e parecia que seu humor era contagiante, já que Angeline também enrijeceu de maneira perceptível. Na verdade, Angeline percebeu que também já estava nervosa o tempo todo, e a estranheza das só a deixou dolorosamente consciente desse fato.
Lionel, por sua vez, sorriu imperturbável.
“Vamos, vamos. Não há necessidade de ficar tão nervosas. Afinal, vocês vão confiar suas vidas uma à outra.”
Talvez fosse verdade, contudo Angeline não tinha a menor ideia do que fazer com pessoas com quem nunca havia falado antes. Nunca havia sido boa em socializar e, desde que se tornou uma aventureira em Orphen, dedicava todos os dias ao trabalho, o que só agravava as coisas. Na verdade, as cartas ocasionais que trocava com seu pai, Belgrieve, eram tudo o que desejava na vida.
É claro que aventureiros experientes muitas vezes conversavam com ela por curiosidade. Entre estes estavam Cheborg, o Destruidor, e Dortos, o Prateado, dois veteranos aposentados de Orphen que gostavam bastante dela. No entanto porque eram muito mais velhos que Angeline, os dois a adoravam como uma neta. Angeline podia interagir com eles sem se sentir muito sobrecarregada, mas agora que estava lidando com pessoas de sua idade — garotas da cidade criadas em Orphen, nada menos — só não sabia o que dizer.
As tentativas de mediação de Lionel não deram em nada — as três meninas estavam inquietas, olhando para qualquer lugar, menos uma para a outra. Ele estava começando a ficar frustrado até que a inspiração surgiu.
“É mesmo!” disse Lionel, batendo palmas. “Para começar, por que não saem para jantar para se conhecerem melhor? Posso recomendar um lugar!”
Angeline olhou para Anessa e Miriam, que pareciam tão perdidas quanto, enquanto alternavam entre olhar uma para a outra sem palavras e olhares ocasionais para Angeline.
“Então... Faremos isso. Vamos.” Angeline se levantou para sair, logo acompanhada por Anessa e Miriam.
“Tenho trabalho para vocês amanhã!” Lionel gritou antes que as garotas saíssem pela porta. “Estou contando com as três!”
Quando elas deixaram a guilda, o sol da tarde ainda brilhava no céu. A reunião ocorreu depois que Angeline retornou da subjugação de um monstro próximo, e já era bastante tarde. As ruas agora estavam lotadas de multidões para fazer compras noturnas. A forte brisa do pôr do sol evitou que tudo parecesse sufocante.
“Existe... Algum lugar... Que vocês queiram ir?” Angeline disse, parecendo rígida e formal de uma forma estranha.
“N-Não, onde você quiser está bem...” Anessa respondeu com nervosismo. Miriam concordou.
Angeline soltou um suspiro profundo.
“Por aqui, então.” ela disse e seguiu em frente. Pode ser um pouco distante, ela pensou — porém essa era a extensão de suas habilidades pessoais. Foi um alívio quando enfim chegaram ao bar de sempre, mesmo que estivesse bastante movimentado àquela hora. Angeline olhou para trás e viu Anessa e Miriam avaliando o lugar. Apesar da multidão, conseguiram encontrar uma mesa vazia e sentaram-se.
“Já vieram aqui antes?” Angeline perguntou.
“N-Não, esta é minha primeira vez aqui...” Anessa respondeu.
“Com certeza está cheio.” observou Miriam enquanto olhava em volta um tanto nervosa.
Angeline se virou para ela.
“Não vai tirar o chapéu?”
“Ah, hm, bem...” Miriam gaguejou enquanto agarrava nervosamente a aba do chapéu.
“Não precisa se não quiser. Só pensei que seria difícil comer desse jeito.”
“E-Estou acostumada, então estou bem — muito bem!” Miriam insistiu, como se estivesse tentando fazer disso uma piada, contudo estava nítido o quão nervosa estava.
Ambos os lados pareciam ansiosos para ver como o outro iniciaria a conversa, resultando em um ar de constrangimento insuportável. Angeline ergueu a mão e gritou para o homem atrás do balcão.
“Senhor! Queremos uma garrafa de vinho e três taças... Além disso, pato refogado, queijo, picles e batatas fritas... Ela se virou para suas companheiras.”
“Tem... Alguma coisa que gostariam de comer?”
“Eu... Vou deixar isso com você.”
“Entendo... Também gostaríamos de salsicha com bastante mostarda.”
O vinho foi servido primeiro. Foi colocado em copos de madeira e entregue a cada uma delas.
“Um brinde a chance de trabalhar com vocês duas...”
“O-O prazer é todo nosso!”
“Saúde!”
Seus copos tilintaram. Anessa e Miriam apenas bebericaram o delas, ainda um pouco nervosas, mas Angeline bebeu o seu de uma vez e logo depois se serviu de outro. Este também foi resolvido em um piscar de olhos. As outras duas a observaram com olhos arregalados.
“Você gosta de álcool?”
“Bem... Mais ou menos.” francamente, Angeline não suportava o clima entre as três, então só bebia para se distrair. Também tinha a vaga esperança de poder se abrir um pouco com bastante vinho. Além do mais se sentiu mais sedenta do que pensava, e isso fez com que o vinho tivesse um sabor muito melhor. Depois de guardar várias taças de vinho, as bochechas de Angeline começaram a corar um pouco. Logo a refeição foi servida e a mesa estava lotada. Porém conversa não estava rolando.
“Esta é a minha... Primeira vez em um grupo.” Angeline deixou escapar de repente depois de beber em silêncio por um bom tempo.
Anessa respondeu com pressa.
“Ah, entendo... Hum, sempre trabalhou sozinha?”
“Sim... Vocês duas... Trabalham juntas com frequência?”
“Sim. Já estivemos em alguns outros grupos, contudo sempre juntas.”
“Vocês se dão bem...”
“Haha... É mais como se eu s não conseguisse me livrar dela...”
“Bom, sirvam-se...” Angeline apontou para todos os pratos praticamente intocados ao redor da mesa. Aos poucos, a princípio e depois com maior entusiasmo, Anessa e Miriam começaram a provar os pratos. Estavam com fome e tudo estava delicioso, então passaram algum tempo comendo e bebendo enquanto Angeline pedia sua segunda garrafa de vinho.
“Amanhã será nosso primeiro trabalho...”
“I-Isso mesmo. Hmm, vamos tentar não te atrasar.” disse Anessa ainda nervosa.
Angeline piscou, com nítida surpresa.
“Não está... Confiante?”
“Hã? Não, não é assim. No entanto...”
“Ok, então está tudo bem. Confiarei em vocês.” disse Angeline antes de esvaziar outro copo. Com esse, já havia consumido metade de sua segunda garrafa.
Anessa ficou um pouco surpresa com a confiança de Angeline. Sua incerteza se refletiu em seus olhos enquanto olhava para Angeline através dos cílios.
“Hmm... Há algo específico em termos de apoio que deseja de nós enquanto luta?”
“Bem, na verdade... Que apoio podem me oferecer? Nunca estive em um grupo antes, então não sei o que seria bom... Mas sempre pensei que seria legal.”
Anessa, vendo Angeline ficar com os olhos vidrados, engoliu em seco.
“E-Eu sou uma arqueira... Hum, fico atenta a quaisquer inimigos enquanto forneço fogo de apoio da linha de trás.”
“Entendo... Seria muito útil. Não sou muito boa em... Em nada disso.”
“Hã? Então o que faz quando esta sozinha?”
“Quando estou sozinha, avanço muito devagar enquanto fico atenta a quaisquer outros inimigos ao meu redor... Como não tenho nenhum apoio, evito enfrentar muitos monstros ao mesmo tempo. Por sorte, os fortes não costumam viajar em bandos grandes, e nunca perderia para nenhum deles se for um contra um.” explicou Angeline cheia de alegria.
Os lábios de Anessa se contraíram com essa afirmação bastante surpreendente, enquanto Miriam ouvia com admiração.
Angeline terminou seu copo antes de se servir de outro.
“Porém é cansativo fazer tudo sozinha...” ela murmurou. “Estou feliz por tê-las a bordo...”
“S-Sério?”
“Sim, e... Beber juntas como se fôssemos amigas... É divertido.”
A expressão de Anessa suavizou-se um pouco e Miriam sorriu timidamente.
O vinho com certeza havia afrouxado a língua de Angeline, entretanto sua visão estava começando a girar. Ela se lembrou de ter murmurado mais algumas coisas depois disso, todavia acabou caindo na escuridão.
○
Marguerite, tomando seu décimo segundo copo de destilado no momento, cutucou Angeline.
“Você estava acabada em apenas duas garrafas de vinho? Controle-se, Ange!”
“Não me compare com você, Maggie... De qualquer forma, estava bebendo muito rápido na época.”
Anessa riu.
“Estávamos todas muito nervosas naquela época. Achei que Ange estava com raiva ou algo assim, e foi meio assustador.”
Angeline deu uma risadinha.
“Quero dizer, não tinha ideia do que fazer... E você e Merry não estavam dizendo nada.”
“Bom, não queria dizer nada de estranho que pudesse piorar as coisas... Olhando para trás, sei que foi uma preocupação inútil.”
“Estava perdendo a coragem por causa da pequena Ange aqui? Haha! Isso é ridículo!” Marguerite gargalhou, o que fez Anessa fazer beicinho.
“E no seu caso? Ouvi dizer que foi excêntrica com o Sr. Bell quando chegou em Turnera. Será que gostava de conversar?”
“Quem contou — Uh, não vamos falar desse assunto! É embaraçoso.”
As bochechas de Marguerite coraram quando cutucou Anessa desajeitadamente.
Foi então que Miriam de repente acordou de seu cochilo.
“Miau!”
“Hã? O que?” Anessa gritou, assustada com o movimento repentino da amiga.
Contudo Miriam apenas olhou em volta, confusa.
“Hã... Eu estava dormindo?”
“Ok, alarme falso. Tudo bem aí? Quer ir para casa?”
Miriam choramingou em protesto enquanto Anessa cutucava suas bochechas.
“Vamos beber mais.” respondeu. “A noite ainda é uma criança.”
“Diz a garota que desmaiou primeiro...”
“Oh, quer beber de novo? Que tal um pouco do meu?” Marguerite ofereceu sua garrafa de destilado para Miriam e serviu um pouco em seu copo.
Miriam, esperando vinho, começou a beber apenas para começar a tossir. “Cough, hack, choke! Queima! Que diabos é isso?”
“Hahaha! Algo de errado?” Marguerite riu ruidosamente, depois bebeu o copo como se fosse água. Miriam protestou um pouco antes de cair de novo na mesa, roncando baixinho.
“Está dormindo de novo...”
“Minha nossa. O que fazemos com ela?” Anessa resmungou enquanto arrumava o chapéu da garota, que estava torto.
Marguerite serviu-se de outro copo enquanto se virava para Angeline.
“Então, o que aconteceu depois?”
“Sobre?”
“A história, continua. Você bebeu até cair, desmaiou e depois?”
“Oh... Bem, já sabe...”
○
Anessa olhou para Angeline, que estava esparramada na cama, antes de se virar para Miriam.
“Foi mesmo certo trazê-la aqui?”
“Hmm... Bem, não poderíamos só deixá-la...”
Depois que Angeline caiu de tanto beber no bar, as outras duas garotas a levaram para a casa delas por enquanto. Ainda que quisessem levá-la de volta para sua casa, não sabiam onde Angeline morava e, como iriam trabalhar como um grupo a partir de então, também não poderiam só abandoná-la. Como Angeline parecia frequentar com alguma frequência aquele bar, talvez não houvesse problema em deixá-la, afinal, no entanto certamente levaria a um reencontro desconfortável no dia seguinte, quando teriam que fazer um trabalho juntas. Além disso, embora Angeline fosse de um ranking mais elevado do que elas, ainda era uma menina e mais nova do que elas. Não importava o quão forte fosse — não teria sido certo deixá-la desmaiada entre os outros bêbados.
“Mas... Ela não era tão assustadora, afinal.”
“Sim, embora ainda haja algumas coisas que não entendo.” disse Miriam enquanto examinava Angeline.
Angeline estava em um sono profundo, com os olhos bem fechados. Suas bochechas estavam vermelhas, e algumas mechas de seu cabelo preto e brilhante estavam caídas sobre seu rosto, descendo pelo nariz e descendo até o queixo. Depois de levá-la para casa e colocá-la na cama, Angeline só se virou durante o sono uma vez e depois não se mexeu mais. A suave subida e descida de seus seios era a prova de que estava em um sono profundo e não morta.
As garotas a deitaram na cama de Anessa, com sua arma, bolsa e outros pertences, todos empacotados e colocados ao lado da cama. As meninas a deixaram quando foram para a sala e se sentaram à mesa.
“Ela estava nervosa?” Miriam perguntou.
Anessa assentiu.
“Talvez. Estava bebendo rápido o suficiente para desmaiar... É meio fofo quando pensa sobre isso.”
“Seu rosto adormecido também era fofo.”
As duas se entreolharam e riram.
“Anne, o que vai fazer esta noite? Quer dormir juntos na minha cama como costumávamos fazer?”
“Sem chance. Você é uma péssima companheira de cama. Fico com o sofá.”
A Valquíria de Cabelos Negros acabou sendo um pouco diferente do que imaginavam que fosse. Como tinha as habilidades necessárias para chegar ao topo na sua idade, Anessa suspeitava que fosse pragmática, ou rígida, ou mesmo condescendente. Porém enquanto bebiam juntas, sua atitude era como de uma menina da sua idade.
Quando a olhou sob essa luz, a inveja que costumava sentir estranhamente pareceu se dissipar. É claro que se conheciam há muito pouco tempo e nem sequer haviam saído juntas para o campo — seguia sendo muito cedo para confiar plenamente nela, é claro. Só podiam falar de forma tão casual a seu respeito porque a própria garota não estava ouvindo, entretanto quando ficassem cara a cara mais uma vez, Anessa não sentiu que seria capaz de tocar no assunto. Amanhã, enfrentariam seu primeiro trabalho juntas, e o que quer que acontecesse provavelmente decidiria tudo o que se seguiria.
Com o próximo trabalho em mente, Anessa pegou seu arco para fazer alguma manutenção. Miriam esfregou as mãos sem muito mais o que fazer, no entanto acabou fechando os olhos e firmando a respiração para meditar.
O grupo original ao qual pertenciam tinha dois lutadores na linha de frente e mais um mago na linha de trás. Com esses membros, conseguiram chegar ao Rank AAA. Seu sucesso não foi resultado de nenhum de seus talentos individuais, e sim do grupo como um todo. Mesmo assim, Anessa e Miriam ostentavam habilidades dignas de aventureiros de alto escalão. Isso não era presunção — estavam confiantes em suas habilidades por um bom motivo. Então a única coisa com a qual não estavam preocupadas neste momento era decepcionar Angeline amanhã.
Assim ocupadas, a noite avançava. Na manhã seguinte, Angeline foi a primeira a levantar-se. Ela estava bastante indisposta quando acordou em um quarto desconhecido, juntou suas coisas, que haviam sido todas deixadas ao lado da cama, e foi até a sala onde encontrou Anessa dormindo no sofá. De repente, percebeu onde dormiu na noite passada.
“Eu bebi demais...” Angeline murmurou, batendo na têmpora. A sensação desagradável e monótona de uma leve ressaca permanecia em seu peito e em sua cabeça. Nesse ritmo, prejudicaria seu desempenho, entretanto desta vez o trabalho envolvia caçar um monstro que havia aparecido nos arredores de uma cidade a uma curta distância de Orphen. Angeline acreditava, com um pouco de otimismo, que poderia se recuperar no caminho para lá.
Sua garganta estava sedenta por um pouco de água, mas era falta de educação vasculhar a casa de outra pessoa, então ficou ali, inquieta, impotente, porém não por muito tempo, pois Anessa logo começou a se mexer.
“Ugh.” ela murmurou enquanto esticava os membros e lentamente se apoiava. Seu cabelo estava uma bagunça encaracolada e preso em alguns lugares. Estava um pouco pior depois de uma noite no sofá desconfortável. Coçando a cabeça, olhou em volta até que seus olhos pararam em Angeline, o que a fez congelar no lugar e seu coração disparar.
“Bom dia...” Angeline disse suavemente.
“Hã? Oh... Bom dia.” Anessa baixou a cabeça antes de tentar revistar com pressa a cabeceira da cama.
“Obrigado por ontem.”
“Não, isso não foi nada.”
Angeline deu outra boa olhada na sala. Não estava de toda arrumada, contudo também não estava muito bagunçada. Parecia habitado, como uma casa normal deveria. Não havia nada de estranho a respeito, todavia era uma experiência nova para Angeline — que só tinha estado na casa de outra pessoa em Turnera, nunca em Orphen.
“Hmm, e a maga?”
“Merry? Quer dizer, Miriam? Acho que ainda está dormindo.” disse Anessa, levantando-se para acordar a garota antes que Angeline a impedisse.
“Tudo bem, não estou com pressa. Hum, posso tomar um copo de água... Senhora?”
“Oh, claro.”
Angeline observou calmamente Anessa tirar um pouco de água antes de falar o que pensava.
“Então... Ela se chama Merry?”
“Hmm? Sim, está certo. No entanto é só um apelido, entretanto...”
“Entendo...”
Ao pegar a água, entornou o copo e bebeu tudo de uma vez. Estava deliciosa e parecia que estava penetrando em todas as partes do seu corpo. Angeline exalou e avaliou mentalmente sua situação. Tinha suas armas e suprimentos, e era sem dúvida possível que saísse para o trabalho neste exato momento. Portanto, não havia nenhuma necessidade urgente de passar pelo seu próprio apartamento agora. E a julgar pela posição do sol, que podia ver pela janela, seguia sendo de manhã cedo.
“Devemos sair agora quando todas estiverem prontas?”
“Certo, deveríamos acabar com aquele monstro antes que ele cause algum dano à cidade... Merry! Acorde!” Anessa gritou enquanto batia na porta do quarto de Miriam. A garota pediu a Angeline que se sentasse enquanto esperava. Depois daquele chamado para acordar, Anessa se juntou a Angeline na mesa.
“Então, deveríamos, uh, revisar nosso equipamento.” Anessa murmurou.
“Claro... Estaremos enfrentando um dragão da terra blindado. Ouvi dizer que bombas e cortinas de fumaça são eficazes contra eles, mas não tenho nada parecido... E você?”
“Tenho algumas — e se tudo mais falhar, podemos usar Mer — quero dizer, a magia de Miriam no lugar.”
Enquanto as duas meninas conversavam sobre logística, Miriam saiu cambaleando do quarto. Seu cabelo naturalmente cacheado estava ainda mais bagunçado, então o prendeu com força com o chapéu.
“B-Bom dia.”
“Bom dia... Obrigado por ontem.”
“Não foi nada!”
Mesmo que Miriam tivesse dito que o rosto adormecido da garota era fofo na noite passada, a expressão indiferente de Angeline seguia sendo um pouco desanimadora agora que estava acordada de novo. Miriam juntou-se à estratégia, ainda um pouco nervosa. Não demorou muito para que elas examinassem o equipamento que cada uma tinha em mãos, reunissem todo o equipamento necessário e saíssem.
À luz do dia, Orphen estava tão lotado e barulhento como sempre, embora o clima parecesse menos vibrante e alegre desde que os monstros começaram a aparecer em maior número. Havia uma sensação palpável de ansiedade no ar quando começaram a jornada.
Angeline olhou nos olhos de cada uma de suas novas companheiras.
“Faremos o nosso melhor, ok?” as outras duas assentiram sinceramente.
○
Já era tarde, porém mesmo quando as quatro saíram do bar, não ficaram sem histórias antigas para compartilhar. Dessa forma, Angeline acabou voltando com as outras para sua casa. Miriam já estava bêbada e teve que ser carregada por Marguerite, que tinha energia de sobra.
Acenderam a luz da sala e colocaram Miriam na cama. Anessa colocou uma chaleira sobre o fogão enquanto Marguerite se sentava no sofá. Bocejando, Angeline puxou uma cadeira e sentou-se também.
“Acho que provavelmente fui carregada de volta desse jeito...”
“Entendo. Então, como foi seu primeiro trabalho juntas?” Marguerite perguntou.
Anessa sorriu.
“Foi um sucesso, contudo não diria que nos saímos muito bem como grupo, para ser honesta.”
“Concordo... Anne e Merry pareciam estar passando por momentos difíceis, e eu não sabia o que deveria estar fazendo...” Angeline explicou enquanto recordava.
O dragão de terra blindado era um tipo de dragão com uma carapaça caracteristicamente robusta. Embora fosse incapaz de voar, usaria seus membros poderosos para abrir um túnel através da terra e atacar por baixo. Devido a essas características especiais, era um oponente desafiador para qualquer espadachim, no entanto com os movimentos ágeis de Angeline, conseguiu mirar nas lacunas de sua armadura e desferir uma série de golpes. A luta se arrastou, todavia no fim conseguiu derrubá-lo sem muita dificuldade.
“Pensando agora... Tudo teria acabado na hora se Merry tivesse apenas disparado sua magia...”
Apesar de sua resistência contra espadas, não era tão resistente à magia. Em vez de Angeline lançar-se para travar uma batalha prolongada, Miriam poderia tê-lo derrotado de uma só vez com seu feitiço Imperador Relâmpago — mas Angeline só descobriu depois que estava lutando muito perto do dragão para que Miriam pudesse empregá-lo.
A expressão no rosto de Marguerite era de óbvio entretenimento.
“Isso é estranho. Você não teve uma reunião de estratégia? Achei que Anne pelo menos teria um bom controle sobre essas coisas.”
Anessa despejou água quente em um bule antes de se defender.
“Bom... Se estiver guardando uma caravana ou tiver que coordenar de repente com novos membros em uma solicitação conjunta, é normal elaborar um plano. Só que daquela vez formamos um grupo a pedido da guilda e não sabíamos nada sobre Ange. Achei que seria ruim se eu fosse impor muitas ideias e não sabia como iria aparecer na guilda se acabasse estragando o grupo por causa de algo assim...”
Todos os grupos em que Anessa e Miriam participaram tinham um líder, porém todos os membros tinham status igual, então todos puderam falar de maneira livre sem medo de ultrapassar os limites. Contudo Angeline era uma Rank S — um ser muito acima até mesmo de seu próprio Rank AAA. Daí o porquê Anessa ser reticente em afirmar a liderança e propor um plano de batalha.
Angeline fez beicinho ao se lembrar da situação.
“Eu te disse que nunca tinha estado em um grupo antes, então não sabia de nada...”
“Sinto muito, ok?” Anessa sorriu ironicamente enquanto enchia algumas xícaras com tisana. “Quero dizer, agora sei que fui uma idiota por me preocupar com isso... Contudo naquela época, eu realmente não sabia. Não tive nenhuma experiência em trabalhar com alguém com quem nunca tinha interagido antes. E você estava totalmente ilegível. Quase não falava e tinha uma classificação mais alta apesar de ser mais jovem que nós... Pra ser honesta, de todas as pessoas que conheci antes, você foi quem mais me deixou perplexa.”
Angeline fez beicinho outra vez.
“Também estava nervosa...”
“Sim, acho que sim. Depois que descobri isso, as coisas ficaram muito mais fáceis. Podemos rir agora, no entanto naquela época perdi muito sono por causa dessa situação.”
“Digamos apenas que a culpa é do mestre da guilda.”
“Lionel, hein? Então ele sempre esteve além da salvação.” disse Marguerite.
Angeline e Anessa riram do comentário.
Enquanto bebiam o chá, uma sensação de clareza começou a emergir de suas cabeças obcecadas pelo álcool. Embora a estação tivesse chegado à primavera, as noites ainda eram frias. Uma bebida quente era justo o que elas precisavam.
Angeline estava olhando distraída para a lâmpada pendurada no teto quando Anessa falou.
“Vai ficar aqui, Ange?” perguntou.
“Sim... Vou dormir em qualquer lugar. Temos folga amanhã.”
Os tempos mudaram; elas não estavam sendo enviadas para matar monstros todos os dias. Sem sobrecarregar suas agendas, poderiam apenas aceitar trabalhos com grandes pagamentos sempre que quisessem. Esta era a vida de aventureiros de alto escalão.
Marguerite caiu novamente no sofá.
“Hey, pelo que ouvi, vocês estavam todos desarticuladas. Como acabaram se dando tão bem?”
Angeline virou-se para Anessa no mesmo momento em que a garota a encarou.
“Hmm... Quando foi? É fácil dizer com Maggie, mas para nós...”
“Sim, com Maggie, ela atacou Mit na floresta e foi espancada, certo? E então, o Sr. Bell a consolou e...”
“Hey, chega dessa história!”
As duas riram do desvio frenético de Marguerite, o barulho de tudo acabou por despertar Miriam de seu quarto nos fundos. Esfregando os olhos sonolentos, cambaleou até as meninas e desabou no sofá. Marguerite gritou quando Miriam caiu em cima dela.
“O que há com você?”
“Quando voltamos...? Hã?”
Miriam ainda não tinha ficado sóbria e, com Marguerite servindo de travesseiro corporal, uma vez mais adormeceu. Logo estava roncando. Marguerite olhou para Miriam com cansaço, porém logo cedeu e começou a brincar com suas orelhas de gato. Elas tinham uma textura adorável e eram muito divertidas de mexer quando a oportunidade se apresentava.
A visão da brincadeira estimulou mais memórias de Angeline.
“Eu me lembro agora. Foi muito divertido a primeira vez que toquei as orelhas de Merry...”
“Hã? Foi isso? Merry estava morrendo de medo... Contudo tomou gostou por você depois disso.”
“Sim. Eu não sabia nada sobre a discriminação dos homens bestas... Só pensei que eram legais e fofas.”
“Pensando bem, o Sr. Bell reagiu de forma semelhante em Turnera. Parece que Merry relaxou um pouco, graças a isso.”
“Oh, aquilo? Sobre suas orelhas estarem frias, certo?” Marguerite perguntou enquanto mexia nas orelhas de Miriam, fazendo-as se mexer para frente e para trás.
“Certo, foi aí.” Anessa e Angeline compartilharam um sorriso.
“Tal o pai tal a filha, hein?”
“Precisamente.”
“E espere, afinal, houve um gatilho então.” disse Marguerite.
“Não, na verdade estávamos nos dando muito bem antes desse acontecimento também. Bem, nos víamos todos os dias e estávamos todas otimistas com o grupo. Se não gostássemos ativamente uma da outra, é bem provável não teríamos conseguido continuar por muito tempo.”
Embora tenha sido a guilda que propôs a união, as três nunca relutaram em formar um grupo em primeiro lugar. Era inegável que estavam se sentindo nervosas há algum tempo, no entanto nunca fizeram menos do que o melhor para se darem bem. Talvez tivesse demorado um pouco mais para quebrar o gelo se não tivesse havido um surto massivo de monstros na época. Embora as conversas mundanas e a ida a lugares juntos fossem importantes, não havia melhor meio de comunicação para os aventureiros do que lutar lado a lado no campo de batalha. Através de combates intermináveis, as duas combatentes da retaguarda compreenderam Angeline, e Angeline foi capaz de determinar seus papéis e personalidades. Terminadas as lutas do dia, refletiriam sobre o que havia acontecido juntas e, por meio dessas lutas compartilhadas, aprofundaram sua amizade. Mesmo assim, passou muito tempo até que Angeline se sentisse confortável o suficiente com as duas para começar a mencionar seu amado pai e sua terra natal em suas conversas. Em retrospectiva, tinha que agradecer a esse enorme surto de monstros por ajudar a melhorar seus relacionamentos interpessoais. Talvez isso fosse encobrir muitos detalhes de eventos sobre os quais tinha sentimentos muito diferentes na época, mas agora não seria tão rápida em descartá-los como uma perda de tempo.
Angeline tomou outro gole de chá.
“‘O que será, será’, como dizem...”
“Agora esta parecendo o Bell.” disse Marguerite.
Angeline se animou.
“Parecida com o pai?”
“Hã? S-Sim.”
“Entendo… Hehe... Hehehehe...” Angeline sorriu de orelha a orelha e apoiou o queixo na mesa.
Durante o inverno que passaram em Turnera, todas as histórias que Belgrieve e seus camaradas contaram os ajudariam a passar as longas noites. Angeline e suas amigas, reunidas em volta da lareira, eram um público ávido pelas histórias dos aventureiros mais velhos. Quatro anos se passaram desde que o grupo de Angeline foi formado, enquanto o grupo de Belgrieve estava reunido há apenas um ou dois anos, no máximo. Mesmo assim, não havia fim para suas histórias. Por vezes, era atingida pelo medo de que eles tivessem aproveitado mais naquele curto espaço de tempo do que ela conseguiria em toda a vida.
Angeline se perguntou que forma suas próprias histórias assumiriam se chegasse o dia em que todas elas fossem tão velhas quanto Belgrieve e seu grupo eram agora. Talvez tivesse suas próprias histórias agridoces para contar. Foi difícil para Angeline imaginar — aquele dia seguia estando muito distante.
O bocejo de Marguerite fez com que Angeline percebesse o peso de suas próprias pálpebras.
“Vamos dormir então.” disse Anessa, levantando-se decididamente. “Não podemos mais ficar acordadas até tarde como fazíamos em Turnera.”
“Sim... Já que trabalhamos durante o dia... Estou com muito sono.”
“Tudo bem, vamos dormir. Hey, Merry, vamos lá, recomponha-se e durma na sua própria cama. Com isso, todas se levantaram e foram para onde iriam dormir naquela noite.”
Houve muitos momentos em que Angeline pensava, se ao menos este tempo pudesse durar para sempre. Entretanto nada durava tanto tempo. Se de fato quisesse criar memórias que brilhassem em um futuro distante, talvez tivesse que tomar cuidado para não desperdiçar seus dias na ociosidade. Se momentos como esses já eram tão queridos para ela, certamente as lembranças que permaneceriam no futuro seriam ainda melhores.
O que devemos fazer amanhã? Deveríamos ir a algum lugar, nós quatro?
Angeline estava esparramada no sofá, com os pensamentos confusos e incoerentes. Não havia nenhuma razão específica para antecipar sonhos reconfortantes esta noite, contudo sabia que eles viriam do mesmo jeito.
O crepúsculo pairava sobre a cidade, como acontecia todas as noites. Mas esta era uma noite que ela só poderia vivenciar uma vez.
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