Capítulo 134: A barreira cobria um espaço
A barreira cobria um espaço quase tão grande quanto à praça da vila. Seria difícil mantê-la se fosse muito grande, mas como estariam lutando contra monstros, também não poderia ser muito pequena. Graham e Percival entraram em sua extensão para examinar com cuidado a área e encontrar a base mais sólida para o combate. Kasim conduziu Charlotte enquanto faziam outra boa inspeção em cada estaca.
“Ok... Deveríamos estar bem aqui. Posso ativá-la?” Charlotte perguntou.
“Vá em frente.” disse Percival. Kasim assentiu também.
“Tudo bem então.” Charlotte fechou os olhos e respirou fundo. Então, ela virou as palmas das mãos para cima para concentrar sua mana. O poder invisível girando ao seu redor fez seus cabelos brancos se arrepiarem como se estivesse submersa em uma piscina de água.
“Bom, agora direcione.” disse Kasim.
Charlotte abriu um pouco os olhos e estendeu as mãos nervosamente. À medida que sua mana passava por uma das estacas, os símbolos gravados nesta brilhavam em um azul claro antes de um feixe de luz disparar do topo dela, estendendo-se até a estaca no lado oposto. Uma a uma, as estacas erguidas começaram a emitir a mesma luz, desenhando linhas de energia luminosa de uma a outra. Depois de algum tempo, estes se espalharam em uma cúpula fina e transparente que separava tudo dentro do perímetro estaqueado do mundo exterior.
“Muito bem, muito bem. Isso é o suficiente, Char.”
Charlotte exalou devagar e baixou os braços.
Mit correu em sua direção com prazer e agarrou suas mãos.
“Isso foi incrível, Char. Você é incrível!”
Tímida, Charlotte riu.
“Hehe... Você acha?” Charlotte se virou hesitante para Belgrieve. Ele estava observando o feitiço, fascinado, e agora olhava para a garota com orgulho. Charlotte corou, um largo sorriso se espalhando por seu rosto.
Kasim semicerrou os olhos e olhou para a barreira.
“Agora, vamos ao teste de força. Percy, pode cuidar dessa parte?”
“Sim. Voltem.”
De dentro da barreira, Percival desembainhou a espada. À sua frente, Graham desembainhou sua espada da mesma forma. A lâmina sagrada parecia empolgada, enfim tendo algo para fazer depois de ficar ociosa por tanto tempo. Sua aura poderosa fez o ar ao seu redor brilhar. Belgrieve engoliu em seco inconscientemente — era incomparável a quando ele empunhava a mesma espada em suas próprias mãos.
Todavia Percival, sem desleixo, enfrentou o terrível espetáculo de frente, sem recuar um único passo. Até tinha um leve sorriso nos lábios, embora a coroa de flores tornasse a visão um tanto peculiar.
“Está pronto, Graham?”
“Estou.” Graham assentiu, puxando a espada para trás. Esse movimento por si só causou tremores no ar.
Por um momento interminável, eles se encararam em silêncio, imóveis, antes de entrarem em ação. Belgrieve não sabia quem deu o primeiro passo. De onde estava, parecia que ambos haviam se lançado ao mesmo tempo. Suas lâminas colidiram com um grito de guerra ensurdecedor de metal contra metal, e uma imensa onda de choque explodiu em torno dos dois lutadores em seu centro. A grama e as flores dentro da barreira foram picadas pelo turbilhão de forças concussivas produzidas pelas armas em conflito. A barreira tremeluziu levemente enquanto a terra tremia sob seus pés. Suas lâminas travaram uma contra a outra por um breve momento antes que a mana explodisse de seu ponto de contato.
“Ah, isso não é bom...”
Kasim correu com as mãos estendidas, gritando. Nem um momento depois, a barreira desmoronou com o som de vidro quebrando. Belgrieve se apressou em puxar as gêmeas para si e as cobriu com seu manto enquanto se posicionava para cobrir Mit, Charlotte e Byaku.
O vendaval furioso que estava contido na barreira imediatamente inundou-se como um violento furacão à deriva sobre as planícies, levando consigo não apenas a vegetação desfiada, como também pequenos seixos e grânulos de terra. E, no entanto, nenhum dos destroços parecia cair sobre eles. Belgrieve olhou para cima e viu que todos os detritos estavam sendo bloqueados por um círculo mágico marrom-arenoso acima deles.
“Byaku, você não deveria adiar o uso de magia?”
“Não se preocupe. Não preciso do poder do demônio para fazer algo assim.”
Belgrieve percebeu que o cabelo do menino ainda estava branco. Ele colocou a mão no peito, aliviado, saindo do pânico momentâneo que fez a explosão parecer ter durado muito mais do que o instante que de fato abrangeu. Com os ventos diminuindo, o dia estava ensolarado e tranquilo mais uma vez.
“Phew...” Belgrieve ergueu a cabeça e colocou as gêmeas de volta no chão.
“Estão todos bem?”
“Estou bem.”
“Estou bem.”
As crianças ficaram um pouco surpresas, mas saíram ilesas. Na verdade, pareciam estar se divertindo. As gêmeas e Mit se entreolharam e disseram.
“Isso foi uma loucura!” e pulando. Apenas Kasim pareceu perturbado com o incidente.
“De volta à estaca zero...” Kasim murmurou, segurando a cabeça. “Olha essa bagunça. Os aventureiros quebraram a barreira antes que os monstros pudessem sair.”
“Hey, Kasim! O que há com essa coisa frágil que criou? Está falando sério mesmo?” Percival gritou.
“Cale-se! Sim, foi minha culpa, eu admito — porém tinha que fazer tudo assim?”
“Pare de tagarelar e conserte já! Estaremos esperando cem anos antes de invocarmos aquele maldito monstro nesse ritmo!”
“Eu sei, caramba! Parece que fui um pouco ingênuo... Ok, pessoal. Vamos recuperar essas estacas.”
Kasim acenou com a mão enquanto começava a andar, e Charlotte e Mit o seguiram. Então as gêmeas correram para se juntar, curiosas para saber o que estava acontecendo. Byaku logo correu atrás delas, incapaz de deixá-las em paz.
Agora então, o que fazemos sobre isso? Belgrieve se perguntou. Percival e Graham logo se juntaram a ele.
“O que houve com aquela barreira frágil? O que faria se um dragão aparecesse?”
“Percy... Foi de propósito?”
“Bem... Um pouco, sim. Tinha uma vaga sensação do que aconteceria se Graham e eu levássemos a sério.” Percival girou em torno de sua lâmina desembainhada. Era uma espada de um único gume feita de metal enegrecido com um complicado padrão ondulado que ia do punho até a ponta. Apesar do recente confronto com a grande espada de Graham, não havia sequer uma lasca em sua borda. Era sem dúvida uma boa espada.
Percival olhou para a arma de Graham.
“Ainda assim, você estava mesmo tentando quebrar minha espada ali.” disse ele, aparentemente falando com a própria lâmina. “Mostre um pouco de misericórdia, ok?”
“Desculpe...” Graham fechou os olhos se desculpando.
Percival riu ruidosamente.
“Bom, conseguiu mantê-la sob controle, então está tudo bem. E meu amigo aqui não vai desistir tão fácil. Contudo parece que foi o que ocasionou a explosão de mana que rompeu a barreira.”
A grande espada permaneceu em silêncio sem nenhum gemido. Belgrieve poderia jurar que estava de mau humor depois da bronca. Ele não pôde deixar de sorrir.
Belgrieve notou alguém vindo correndo da vila. Um momento depois, ouviu um grito animado de “Mestre!” o que lhe disse quem era, sem sequer ter que olhar — era Sasha Bordeaux correndo em direção a eles como o vento. A garota agarrou as mãos de Belgrieve e as balançou para cima e para baixo, com os olhos brilhando.
“Já faz muito tempo! Vim parabenizá-lo pelo seu casamento e nomeação como mestre de guilda!”
“Hahaha, obrigado, Sasha. Ainda não sou mestre de guilda, no entanto... Fico feliz em vê-la bem.”
“Bem, minha saúde é tudo que tenho a meu favor! Ouvi tudo da Ange, então vim o mais rápido que pude! Você parece o mesmo de sempre, Sir Graham... Hmm? E quem é aquele aí?” ela perguntou, com os olhos em Percival.
Percival olhou para ela com curiosidade.
“Quem é a garota?”
“Esta é Sasha Bordeaux. Se lembra da Helvetica e de Seren outro dia? Ela é a irmã do meio. Sasha, este é Percival... Um velho companheiro aventureiro meu.”
As bochechas de Sasha coraram quando agarrou a mão de Percival.
“Eu ouvi os rumores. E pensar que seria capaz de conhecer o renomado Lâmina Exaltada... Eu, Sasha Bordeaux, estou comovido até as lágrimas!”
“Está dando muita importância a isso...” Percival deu um sorriso irônico e se virou para Belgrieve. “Você tem uma amiga muito desordeira aqui.”
A mera presença de Sasha foi suficiente para aliviar instantaneamente o clima. Talvez fosse justo o que eles precisavam agora.
Graham sorriu cansado.
“Acho que a disciplina calma é uma habilidade que deve aprender.”
“Ugh...” Sasha baixou timidamente a cabeça com a repreensão.
“Oh, o que foi agora? Já terminaram?” outra voz gritou da mesma direção de onde Sasha veio. Era Satie, com Duncan logo atrás.
“Você corre muito rápido, Sasha. Vocês, jovens, com certeza têm muita energia.” disse ela, carregando cestas de tecido em cada mão.
“Hahaha! Você ainda é muito jovem, Satie. Pareço o mais velho daqui.” brincou Duncan, erguendo o machado de batalha sobre o ombro.
“Já terminou o que precisava?” Belgrieve perguntou.
“Sim, então corri para dar uma olhada no que estava acontecendo aqui, no entanto acho que já acabou. Corri assim que senti aquela rajada de vento incrível.”
“Não, eles estavam apenas testando a barreira, e Percy e Graham acabaram quebrando-a. Vão ter que colocá-la de novo.”
Satie deu uma risadinha.
“Imagino que esses dois são mais perigosos do que um monstro Rank S...” Graham coçou a cabeça sem jeito enquanto Percival sorria.
“Então vai levar algum tempo?” Duncan perguntou, apoiando-se em seu machado de batalha.
“Isso mesmo. Kasim e as crianças estão consertando-a agora.”
Belgrieve olhou através do vasto campo para onde Kasim conduzia as crianças, recolhendo as estacas. Ele provavelmente precisaria revisar as sequências de feitiços gravadas nelas.
Sasha parecia inquieta.
“Hmm, então... Ouvi da Dama Satie que... Vocês vão convocar um monstro de alto escalão e derrotá-lo!”
Assim que Sasha chegou a Turnera, se dirigiu para a casa de Belgrieve, mas Satie era a única lá. Depois de conversar com Satie, acabou acompanhando a elfa até aqui.
“Sim, é por esse motivo que estamos colocando uma barreira. Mesmo com Graham e Percy, nunca podemos ter muita certeza.”
“É verdade, não baixe a guarda, não importa quanta vantagem tenha... Muito instigante, como esperado do meu mestre.”
“N-Não, na verdade não disse nada tão profundo...”
“Achei que poderíamos treinar se tivesse tempo, porém parece que estão ocupados...”
“Você é muito interessante, Sasha. De qualquer forma, estamos apenas esperando até que a barreira seja reconstruída? Que tal almoçar então?” Satie disse, segurando suas cestas.
Belgrieve considerou a posição do sol e descobriu que talvez fosse um pouco cedo, e seu estômago também não estava tão interessado.
“Acho que estou bem por enquanto. É provável que as crianças estejam com mais fome do que nós.”
“Acho que está certo. Bom, vamos ver qual é o problema. Vou ajudar e depois poderemos almoçar quando terminar.”
“Por favor, deixe-me acompanhá-la! Não venho aqui com frequência e seria um desperdício se apenas ficasse de lado e assistisse!”
Assim, Satie e Sasha foram se juntar ao grupo de Kasim.
Percival encolheu os ombros.
“Parece que as irmãs daquela casa são todas muito... Intensas.”
“Sim, bem... Sim.” Belgrieve sorriu ironicamente enquanto coçava a barba. A avaliação que Percival fez das irmãs foi precisa — todas as três irmãs Bordeaux de fato tinham suas idiossincrasias. De qualquer forma, todos precisariam esperar um pouco mais. Com Kasim no comando, é provável que não ficariam ociosos por muito tempo, contudo mesmo assim não seria feito em um piscar de olhos.
Belgrieve desceu devagar até o chão suavemente inclinado, onde podia sentir a textura desgrenhada da grama através de suas roupas. Mesmo sentado, ainda podia supervisionar todo o local da barreira do seu ponto de vista e observar todos os outros trabalhando duro.
“É tão pacífico quanto um piquenique.” Duncan riu enquanto se sentava ao seu lado.
“Bem, temos muitas crianças aqui.” brincou Belgrieve, rindo também. “É difícil acreditar que um monstro de alto escalão está prestes a aparecer.”
“Eu me pergunto — o que são demônios, de verdade...? Quando olho para Mit e aquelas gêmeas, simplesmente não sei mais.”
As reflexões de Duncan estimularam Belgrieve a fechar os olhos e pensar a respeito também. Ele estava tão perdido quanto Duncan para explicar isso. Segundo a lenda, os demônios eram formas de vida artificiais criadas por Salomão que enlouqueceram depois que seu criador desapareceu, causando caos e destruição em todo o mundo. Alguns até supuseram que foi a mana dos demônios que criou os primeiros monstros. Todavia quando olhou para as crianças demoníacas andando diante de seus olhos, elas eram o epítome da inocência. Depois havia Mit, é claro, assim como Hal e Mal, Byaku e até Angeline. Nem um único deles se parecia nem o mais mínimo com os demônios da lenda. Por outro lado, o demônio que Angeline derrotou em Orphen era sem dúvida um ser temível, e também tinha ouvido falar dos demônios que Marguerite e Graham mataram em toda a terra. Algo só não estava batendo.
“Graham, como estavam os demônios que enfrentou antes?”
“Eram inimigos poderosos... Mas era como se estivessem presentes no corpo, porém não no espírito. A maneira como exerciam seu poder destrutivo não era diferente de uma criança esmagando um inseto sem maldade. Em outras palavras, não tinham inibições e eram perigosos. Foi por esse motivo que precisei dar fim a eles.”
“Sim, é como eu os descreveria também.” Percival assentiu. “São assustadores, sim. Contudo todos reclamariam algum lugar para onde queriam voltar. Não — talvez fosse sobre alguém que quisessem que voltasse...? Sim — como o pedido de uma criança abandonada. Era como se pensassem que se fizessem tal qual o papai lhes disse, este voltaria algum dia... De qualquer forma, com certeza há alguém que querem ver. Enfrentá-los foi apenas uma experiência miserável...”
É verdade, Percy também falou dos demônios que matou, pensou Belgrieve, torcendo a barba.
“Crianças, né? Pode ser exatamente o que são... Salomão os fez apenas para serem armas?”
“Não sei... Entretanto se fosse o caso, essas emoções apenas atrapalhariam. Ainda que quisesse que o adorassem como seu mestre, eles são humanos demais.” argumentou Graham.
“Talvez quisesse uma família ou algo parecido...” Percival refletiu. Embora houvesse um toque de diversão em sua voz, Belgrieve teve a sensação de que havia acertado o alvo.
“Quando se trata de demônios, não podemos só fechar os olhos para o que quer que esteja acontecendo.” murmurou.
Graham assentiu.
“Teremos que investigar para garantir que essas crianças possam viver sem preocupações.”
○
Anessa sentou-se ao lado de Miriam no banco em frente ao prédio da guilda, onde poderiam descansar um pouco sem precisar entrar. Angeline levou Marguerite para ver Lionel, pois parecia haver alguma papelada necessária para promover a princesa elfa aos níveis mais elevados de aventureira. Mesmo que todo o grupo tivesse entrado, não era como se tivessem algo para fazer lá, e aglomerar-se na sala só causaria mais problemas do que o necessário — daí o motivo pelo qual a dupla estava esperando aqui. O plano delas era desafiar uma masmorra juntas, uma vez que todos os procedimentos necessários fossem realizados.
Era uma área movimentada e todo o trânsito levantava um pouco de poeira. A luz que descia do céu iluminava cada partícula de poeira. O inverno ainda estava muito distante, contudo se sentiam bastante confortáveis sentadas sob o calor do sol. O ar não estava tão limpo como em Turnera, no entanto também não era desagradável.
“Ahh, agora estou com vontade de tirar uma soneca.”
“Afinal, está agradável e quente.” concordou Anessa, esticando os braços. Ela ouviu um leve estalo nas costas e sentiu como se todo o seu corpo estivesse se soltando.
Ao retornar para Orphen, tudo parecia estranhamente ocupado. Com Marguerite aproveitando, havia três pessoas morando na casa delas e tantas coisas para resolver quanto se poderia imaginar. Demorou um pouco para limpar depois de uma ausência tão longa. Os vegetais que não conseguiram terminar antes de partir permaneceram onde foram deixados e já estavam murchos e secos há muito tempo, tanto que era difícil dizer o que alguns eram. De qualquer forma, foi bom se livrar deles.
Enquanto arrumavam o lugar, Anessa relembrou o tempo que passou na casa de Belgrieve. Com quase todos os convidados fora, acho que enfim vai se acalmar lá, pensou enquanto desviava os olhos para Miriam.
“Sim?” a garota em questão perguntou.
“Bem, estava pensando em como nossas longas férias terminaram.”
Miriam deu uma risadinha.
“Eu acho que sim. Foi realmente uma grande aventura.”
Quando Anessa pensou em tudo o que aconteceu, foi como se estivesse correndo a toda velocidade o tempo todo. Ela nunca teria experimentado nenhuma dessas coisas se não estivesse em equipe com Angeline — não importa que ela nem tivesse tido a oportunidade de conhecer Belgrieve e seus antigos camaradas, ou também não teria motivos para visitar Turnera.
“Naquela época...” Anessa murmurou. “Se a guilda não tivesse nos convidado para nos juntarmos ao grupo de Ange, nunca teríamos conhecido ninguém em Turnera.”
“Afinal, achamos Ange bastante assustadora no início. Mas estou feliz por termos aceitado a oferta.”
Anessa e Miriam alcançaram o Rank AAA muito jovens, porém se sentiram estranhamente apreensivas perto da jovem genial que havia subido ainda mais alto do que isso. No início, certamente interagiram com tanta cautela como se Angeline fosse feita de porcelana. Quando elas tocaram no assunto, muito depois de sua amizade ter se solidificado, Angeline apenas disse.
“Vocês fizeram isso? Não me lembro.” todas riram muito disso.
De qualquer forma, agora que voltaram para casa, em Orphen, estava de volta às suas vidas cotidianas. Atenderiam pedidos, deixariam a cidade para lutar e coletar materiais, e inspecionariam e manteriam seus equipamentos nesse meio tempo. E então passaremos para o próximo trabalho. Esse tipo de vida repetitiva é... Normal? Anessa se perguntou.
Angeline disse que queria fazer outra viagem para o leste e, claro, Anessa pretendia acompanhá-la, contudo assim que acabasse, elas voltariam ao mesmo ciclo de novo. Talvez partir novamente em outra viagem para terras distantes depois se tornasse parte desse ciclo no tempo.
“Até quando irá continuar? Sigh...”
Parece que estou preocupada de novo, pensou Anessa enquanto apoiava o cotovelo nos joelhos e apoiava a cabeça nas mãos. O fim de uma grande aventura parecia o fim de um capítulo de sua vida — uma constatação acompanhada por um toque de melancolia. O fato é que estava começando a se sentir desanimada com sua vida.
Ver Belgrieve e seus velhos amigos a fez refletir sobre seu próprio grupo — sobre como se conheceram e suportaram aquele período de constrangimento, e então como aos poucos se abriram uma para a outra também, naturalmente. No entanto o grupo de Belgrieve foi, em certo sentido, uma imagem do que estava reservado para ela. Um dia também terei quarenta anos e o que farei então? E assim seus pensamentos passaram do passado para o futuro.
Não apenas quarenta anos — ficarei mais velha, e mais velha ainda. Ainda poderei continuar como aventureira quando meu corpo não estiver mais tão flexível como é agora? Percival e Kasim ainda estavam saudáveis em sua idade e podiam se manter como aventureiros ativos. Anessa poderia imaginar sem qualquer dificuldade aqueles dois lutando com mais de sessenta anos, assim como Maria, Dortos e Cheborg. Quanto a Satie, sua idade real pouco importava, desde que não ficasse doente, e até mesmo Belgrieve poderia facilmente retornar como aventureiro se o quisesse. Considerando aqueles quatro, Anessa se perguntou se algum dia seu próprio grupo também seria assim.
Da mesma forma, estava sem dúvida sentindo um pouco de fadiga por esse estilo de vida de estímulo constante, a tensão da batalha, todavia uma mera faceta de sua existência diária. Depois que o perigo se tornou rotina, foi como se a cor desaparecesse de quase tudo em sua vida. Entretanto quando estava relaxando em Turnera, interagia com as garotas da vila que passavam todos os dias de suas vidas cultivando, sem nenhuma conexão com aventuras. Cada vez que conversava com uma delas, pensava: Esta vida também não parece tão ruim.
Suas reflexões foram interrompidas pelo som repentino de alguém dedilhando um instrumento de cordas. Seu olhar se voltou no momento em que Lucille estava passando com Yakumo.
“Ba-da-da-daaa-da, ba-da-da-daaa — quando eu tiver sessenta e quatro...”
“Hey, vocês duas!” Miriam acenou e as duas perceberam.
“Oh, o que estão fazendo aqui? Esperando por Ange?”
“Isso mesmo.”
“Eles estão cuidando da papelada para a promoção de Maggie. Ela vai se juntar ao nosso grupo.”
Yakumo acenou com a cabeça enquanto batia no cachimbo para tirar algumas cinzas.
“Vocês se dão bem o suficiente. Que bom. Com Ange e Maggie, terão duas lutadoras na linha de frente. Depois, uma arqueira e maga na linha de trás. Essa é uma formação sólida.”
“Verdade. Acho que será mais fácil lutar agora.”
“E será mais fácil ganhar dinheiro, imagino. Me deixa com inveja.”
A habilidade de Marguerite com a espada também foi reconhecida pelos aventureiros seniores. Talvez devido à diferença de experiência, ainda ficou um pouco aquém de Angeline, mas tinha um golpe forte digno de um aventureiro de alto escalão. Sua personalidade pouco refinada também poderia ser um pouco cativante, e Anessa e Miriam gostavam bastante da garota elfa. Depois de trazê-la para sua própria casa e se acostumar a morar juntas, se convenceram de que também poderiam se dar bem em um grupo.
Porém Marguerite era uma elfa. Sua aparência provavelmente não mudaria mesmo que vinte anos se passassem. Foi fácil imaginar depois de conhecer Satie. Enquanto o resto das garotas envelhecia sem parar, Marguerite poderia acabar sendo a única que poderia continuar sendo uma aventureira. Anessa se perguntou como o resto delas se sentiria quando isso acontecesse. Ninguém poderia saber o futuro, contudo a única coisa de que Anessa tinha certeza era que essa preocupação a perseguiria por muito tempo, o que a fez suspirar outra vez.
Yakumo riu enquanto enfiava tabaco fresco em seu cachimbo.
“O que foi? Lá em casa, dizem que a felicidade escapa sempre que suspira.”
Miriam olhou com curiosidade para o rosto de Anessa.
“Anne, você está agindo de forma estranha há algum tempo. Está ficando sentimental?”
“Claro que não... Bem, talvez.”
“Por quê? Queria ficar em Turnera mais um pouco?”
“Não, não é assim. Estou um pouco distraída, ou como devo dizer...? Tenho pensado muito sobre o futuro e essas coisas.”
“O futuro?”
“Sim. Não é como se a aventura fosse um trabalho que pudesse ser mantido para sempre. E sabe como é...”
“Aw, está parecendo uma senhora idosa.”
“Cale a boca. Quero dizer, é verdade, certo? Está tudo bem por enquanto, contudo não há como dizer o que vai acontecer mais tarde.”
“Hmmm. Então quer se tornar uma instrutora de tiro com arco na guilda de Turnera no futuro?” Miriam sugeriu maliciosamente.
Anessa riu. O fato de Miriam ter mencionado Turnera deixou claras as verdadeiras intenções de sua amiga — não que se importasse.
“Hehehe... Acho que sim. Esse não é um plano ruim... Então você será a instrutora de magia?”
“Hmm... Eu não sou boa em ensinar. Se for, será para fazer pesquisas ou talvez para criar itens encantados.”
“Ser mago deve ser legal. Há todos os tipos de opções. Bom, se abrir uma loja de itens em Turnera, posso imaginar a demanda.”
“Se eu me aposentasse agora, talvez. No entanto ainda serei uma aventureira por algum tempo...” as orelhas de Miriam balançavam para frente e para trás sob o chapéu enquanto seus olhos vagavam. “Mesmo assim, sou a mesma. Não sei se vou continuar da mesma forma quando ficar muito velha. Posso me cansar algum dia, ou posso me machucar gravemente em algum lugar ao longo do caminho...”
“É o que você diz, logo depois de me provocar por parecer velha.”
“Quero dizer, é meu dever te provocar, Anne.”
Anessa fez beicinho, depois tirou o chapéu de Miriam da cabeça e beliscou as orelhas de gato, virando-as do avesso. Ela sabia que elas iriam se recuperar sozinhas em pouco tempo, então os ajustou cuidadosamente para que ficassem presos assim. Anessa acenou com a cabeça satisfeita quando viu que ambas as orelhas de Miriam permaneceram viradas.
“Ok, tudo bem.”
“Não está nada bem.” disse Miriam, estufando as bochechas. Ela habilmente mexeu as orelhas até que ambas voltassem a aparecer.
“Vocês são bem próximas.” disse Yakumo enquanto respirava uma nuvem de fumaça. “De qualquer forma, não deveria ter uma visão tão estreita quando é ainda mais jovem que eu.”
“Sra. Yakumo, você planeja ser ativa por toda a vida?”
“Bem, não é da minha natureza fazer mais nada. Não é como se alguém fosse me aceitar como noiva. Mesmo que me casasse, toda aquela tarefa de cozinhar e limpar me deixaria louca.”
“Sério? Quando você é tão bonita? É uma pena.” Miriam cantarolou.
“O que está dizendo? Não provoque os mais velhos.”
“E você, Lucille? Tem alguma coisa em mente para o futuro?”
“Eu sou rock and roll!”
“Perdão?”
“Amanhã, pegarei o vento de amanhã... Soprando no vento...” deixando por isso mesmo, Lucille pontuou suas palavras com um acorde de seu instrumento. As outras três não tinham ideia do que ela queria dizer e ignoraram o esforço de interpretar suas palavras.
“Lá vai você de novo com seu sulismo... Bom, não é como se esta fosse a primeira vez que diz algo incompreensível.”
“Bem, é Lucille, eu acho.”
As mãos de Lucille congelaram. Seu olhar se voltou para Anessa e depois para Miriam.
“Vocês duas serão noivas adoráveis, então?”
“Hã?”
Anessa e Miriam foram pegas de surpresa com a pergunta inesperada.
“Por que perguntando sobre isso?”
“A cerimônia de casamento em Turnera foi adorável. Satie estava muito bonita.” disse Lucille antes de voltar a dedilhar.
Anessa e Miriam trocaram um olhar.
“Bom... Achei que a coisa toda parecia legal.”
“Mas não é como se alguma de nós tivesse alguém, de qualquer maneira...”
“Como diziam as pessoas do passado — coisas boas acontecem para aqueles que esperam. Porém não espere muito.”
“Agh...” Miriam estava sem palavras. Talvez eu não tenha feito nenhum esforço para encontrar alguém...
Yakumo gargalhou.
“É mesmo uma pena, com você sendo tão fofa e tudo mais. Em vez de fatiar monstros por aí, não seria tão ruim governar em uma casa pacífica, sabe.”
“Não espere muito também, Yakky-baby.”
Yakumo bateu silenciosamente na cabeça de Lucille, provocando um grito.
Sua rotina foi interrompida por Angeline e Marguerite saindo da guilda, com seus negócios encerrados. Marguerite parecia estar animada; ela tinha uma nova placa de ouro encantada pendurada em seu cinto — o sinal de um aventureiro de alto escalão.
Angeline ficou um pouco surpresa ao ver Yakumo e Lucille ali.
“Oh, vocês vieram também?”
“Para pegar um trabalho, sim. Pelo que parece, recebeu uma grande promoção.”
“Pode apostar! Eu sou Rank AA!” Marguerite emocionou-se, acariciando sua nova placa.
Mesmo com alguém como Angeline atestando por ela, era incrível alguém subir ao Rank AA em uma promoção. Contudo depois de todo o combate que viu na Terra Navel, dominado pelo perigo, qualquer coisa abaixo disso teria sido uma avaliação injusta de seu nível de habilidade. Na verdade, se não tivesse começado de um baixo Rank D, poderia muito bem ter avançado mais. Com as quatro trabalhando juntas agora, não demoraria muito para que Marguerite fosse classificada como AAA como Anessa e Miriam.
Yakumo despejou a cinza do cachimbo mais uma vez antes de guardá-la no bolso.
“Agora, devemos seguir nosso caminho. Até outra hora.”
“Da próxima vez, vamos compartilhar uma refeição.”
Depois que a dupla desapareceu pela porta, Angeline se espreguiçou sob a luz quente do sol.
“O tempo está bom... Vamos indo também.”
“Tudo bem. Estamos todas prontas então?”
“É hora de testar esse novo grupo, hehe...”
“Ok! Eu farei o meu melhor!” Marguerite estava visivelmente ansiosa para ir.
As outras três riram enquanto pegavam suas bagagens.
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