Capítulo 136: O céu era de um azul brilhante
O céu era de um azul brilhante — não importava para que lado a garota virasse a cabeça, não conseguia avistar nem uma única nuvem minúscula. Na verdade, era tão intensamente azul que o próprio céu e a cordilheira das montanhas que o sustentavam pareciam irreais.
A menina de sete anos — Angeline — mexia-se nas costas de Belgrieve.
“Isso é o suficiente, pai. Eu posso andar...”
“Hmm? Tem certeza?” Belgrieve agachou-se devagar e baixou Angeline de costas. Ela se sentiu um pouco instável depois de ser carregada por tanto tempo, mas a sensação de desorientação foi anulada ao chutar o ar algumas vezes.
“Está bem aí?” Belgrieve perguntou, abaixando-se e colocando a mão na testa de Angeline. Seus olhos estavam um pouco vidrados e vermelhos, porém sua testa não estava quente e também estava firme em seus pés.
A grama jovem balançava com a brisa. Embora todas as ovelhas da vila tivessem sido soltas para pastar, não parecia que a exuberante cobertura do solo tivesse diminuído em nada. Pedras azuis apareciam aqui e ali em meio à grama, brilhando enquanto refletiam os raios do sol.
Angeline segurou a mão de Belgrieve — uma mão grande e áspera, igualmente acostumada a trabalhar com espadas e enxadas. Angeline gostou das suas mãos; o que a deixava feliz sempre que seguravam as dela ou davam tapinhas em sua cabeça.
Angeline estava acamada com febre desde ontem, contudo quando amanheceu, a febre havia diminuído. Após implorar ao pai para tomar um pouco de ar fresco, Belgrieve a levou para fora.
Angeline plantou os pés com firmeza, abriu bem os braços e respirou fundo. O ar da primavera — ainda cedo para o verão — parecia levar embora todas as coisas desagradáveis que estavam grudadas em seu peito.
Seu cabelo, que havia crescido durante o inverno, roçava suavemente sua nuca. Angeline deitou-se na grama com as mãos atrás da cabeça e olhou para o céu azul acima. Parecia interminável, sem começo nem fim — no entanto era também como se alguém tivesse esticado uma membrana azul contínua.
“O que está vendo?” Belgrieve perguntou num tom suave de onde estava sentado ao lado dela.
Angeline encostou-se no pai e piscou.
“De onde o céu... Começa? Quão alto?”
“Esta é uma boa pergunta.” Belgrieve olhou para o ar e acariciou a barba enquanto ponderava sobre o assunto. “Acho que o céu começa de onde estamos agora.”
“Hmm... Não parece certo.”
“Então, e se subisse em uma árvore? Estaria bem alto, certo?”
“Também não acho que seja isso.”
“Então os pássaros voam pelo céu? Isso é o céu, então?”
“Bem... Hmm...”
Belgrieve pegou uma pedra do chão e jogou-a para o alto. A pedra desenhou uma curva parabólica antes de cair na grama distante.
“Essa pedra conseguiu alcançar o céu?”
“Acho que sim...”
“O que significa... É o céu, desde que esteja fora do chão, talvez.”
“Hmm, talvez?”
“Hmm...”
Por um tempo, Belgrieve olhou para Angeline com uma expressão divertida antes de se levantar e de repente içá-la acima de sua cabeça.
“Hã?”
“Nesse caso, você está no céu agora, Ange. Está voando!” Belgrieve disse enquanto começava a correr. Angeline abriu os braços e gritou de alegria.
Porém não demorou muito para que a perna de pau de Belgrieve deslizasse sobre uma pedra e ele perdesse o equilíbrio do lado direito. Isto não era nada que não tivesse experimentado antes, então logo segurou Angeline contra seu peito e virou-se para pousar de costas no chão.
Angeline olhou para o pai, assustada. Belgrieve ficou deitado de costas olhando para o céu sem palavras até olhar para ela com uma risada tímida.
“Haha... Esse foi um tombo e tanto!”
“Pff!” Angeline não conseguiu se conter e os dois logo rolaram no chão de tanto rir. Por mais barulhentos que estivessem, era como se suas vozes estivessem sendo absorvidas pelo céu azul.
Do nada veio o grito estridente de uma cotovia ao voar de algum lugar próximo.
“Ah!” Angeline gritou enquanto se sentava, assustada. A cotovia já era um pequeno ponto preto ao longe e, um momento depois, não conseguia mais vê-la. Angeline ficou olhando-o por um tempo, até que de repente percebeu algo. Suas mãos pressionaram sua barriga — a fome que não sentiu enquanto estava deitada na cama no dia anterior agora estava apertando insistentemente seu estômago.
“Estou com fome!”
“Oh, está? Vamos para casa então.”
“Sim!”
Os dois se levantaram e voltaram para a aldeia de mãos dadas, o céu ainda radiantemente azul.
○
“Agh! Para, para! Não me puxe!”
Marguerite corria tentando escapar da alegre perseguição das crianças, principalmente dos meninos. Os garotos pareciam estar se divertindo e não tinham vergonha de fazer cócegas na jovem elfa ou puxar seu cardigã de pele ou o cinto enrolado em seus quadris.
Marguerite não conseguia reagir com muita força — afinal, estava lidando com crianças — e ficou um pouco perdida. Suas amigas não ajudaram muito, contentando-se em recuar e rir de sua agitação.
“Não pare, Maggie!”
“Vamos, precisa continuar correndo ou eles vão te pegar!”
“Você está tratando tudo isso como se fosse assunto de outra pessoa! Ahh, esse lado não! Isso... Agh!” Marguerite se contorceu em agonia enquanto faziam cócegas impiedosamente em seus flancos.
A maioria das meninas estava reunida em torno de Miriam, com a atenção atraída pelas orelhas de gato.
“Merry, suas orelhas são tão bonitas...”
“Elas são tão fofas. Eu nunca soube.”
“Não é? Pode tocá-las se quiser.” disse Miriam enquanto abaixava a cabeça. Todas as meninas se revezaram estendendo a mão com arrulhos entusiasmados.
Mas uma das meninas era um pouco mesquinha e apenas zombou da oportunidade que lhe foi apresentada.
“Essas orelhas de gato não são estranhas?” insistiu.
“Estranhas? Como?”
“Quero dizer, ela tem um rosto humano, porém suas orelhas...”
“Hehe... Bem, são meus preciosos ouvidos. E olhe aqui, posso movê-los assim. Você consegue mover suas orelhas assim?” Miriam se gabava enquanto suas orelhas de gato se mexiam para frente e para trás.
Os olhos da garota se arregalaram. Suas mãos se agitavam como se estivesse ansiosa para tocá-las.
“N-Não posso, só que...”
“Hehehe... Você quer tocá-las, não é? Vá em frente.”
“Ugh... B-Bem, se você insiste...” corando, a garota cedeu e ficou surpresa com o quão macias eles eram. “São tão fofas!”
“Miau haha! No entanto, sabe, todo o resto em mim é igual a você. Também sou uma pessoa — como e durmo, e tenho sangue vermelho correndo em minhas veias.”
“Sim...” a garota se mexeu. “Desculpe por te chamar de estranha.” a menina se desculpou baixinho, quase inaudível.
Angeline e Anessa observaram calorosamente a interação das garotas. No passado, Miriam nunca teria deixado as crianças tocarem-lhe nas orelhas; até relutava em expô-las. E se alguém a tivesse chamado de estranha, teria ficado cheia de uma sensação de pavor.
“Merry mudou.”
“Sim... No bom sentido, eu acho.”
“Hehe... Pode ser graças ao Sr. Bell e ao povo de Turnera.” há muito tempo Anessa pensava em Miriam como uma irmã mais nova, então ficou encantada com essa mudança repentina em sua visão das outras pessoas.
Elas tinham vindo para o orfanato da igreja. Quando retornaram a Orphen, concentraram suas energias no trabalho por um tempo, mas hoje era seu dia de folga. De qualquer forma, já fazia algum tempo desde a sua última visita, então vieram ao orfanato para ajudar na jardinagem do início da primavera. O trabalho havia chegado a um bom ponto de parada do dia, então agora estavam aproveitando algum tempo de lazer — embora não parecesse que Marguerite estivesse tendo muita folga no momento.
“Hey, não sejam tão agressivos! Vejam, a irmãzona Ange trouxe alguns doces para vocês! Juntem-se!” irmã Rosetta apareceu com uma bandeja de salgadinhos. As crianças gritaram de alegria ao abandonar Marguerite por Rosetta.
“Whoa! Hey, não se apressem! Tenham certeza de agradecer primeiro a essas adoráveis senhoritas!” Rosetta parecia bastante acostumada com isso e facilmente rechaçou todas as mãos que procuravam sua bandeja. Obedientes, as crianças disseram.
“Obrigado, senhorita.” para Angeline, Anessa e Miriam.
Agora que enfim estava livre, Marguerite mancou até suas amigas, olhando-as com raiva.
“Vocês tiveram coragem de me abandonar.”
“Seu treinamento estava incompleto.” disse Angeline em um tom solene.
“Você percorreu um caminho que todas nós tivemos que trilhar.” acrescentou Anessa, incapaz de reprimir uma risada.
Com mais energia do que sabiam o que fazer, as crianças estavam famintas por companheiros de brincadeira que pudessem acompanhá-las. Esta era uma tarefa adequada para jovens aventureiros, e Anessa e Miriam também foram perseguidas pelas crianças assim depois que deixaram o orfanato em busca de fortuna, assim como Angeline. A energia inesgotável das crianças era suficiente para abater até mesmo um aventureiro de alto escalão.
Marguerite respirou fundo. Quando se virou para observar Rosetta, foi com um olhar de total e absoluto respeito por sua capacidade de lidar com essas mesmas crianças com tanta facilidade.
“Ela é incrível... Aquelas feras eram mais problemáticas do que monstros de alto escalão.”
Angeline assentiu.
“Bem, não dá derrotá-los, afinal...”
“Não agrupe crianças com monstros.” Anessa repreendeu.
Assim que terminou de distribuir os lanches, Rosetta se aproximou delas.
“Desculpe pelo trabalho, Maggie. Deve ter sido cansativo.”
“Sim, eu diria que sim. Você é realmente incrível, Rosetta. Como consegue manejá-los?”
“Tudo vem com a prática. Não pode ser muito enérgica... E gosto de crianças, afinal.”
Em última análise, essa é a coisa mais importante, percebeu Angeline. Pensando bem, as crianças estavam em cima de Graham em Turnera, porém ele nunca parecia cansado. No seu caso, seu corpo é feito de um material mais resistente, contudo talvez não o incomode tanto porque gosta de brincar com crianças.
Rosetta vestiu o véu que havia tirado.
“O Sr. Belgrieve e Char estão bem? Byaku está tão rabugento como sempre?”
“Sim. No entanto Bucky suavizou... Certo?”
“Certo, certo. Além de ser surpreendentemente bom em tarefas domésticas.”
“As pessoas mudam, imagino... Você parou de usar seu chapéu, Merry?” Rosetta perguntou, seu tom sugerindo que estava ansiosa para perguntar já há algum tempo.
“Sim.” respondeu Miriam enquanto mexia as orelhas. Ainda usava o chapéu enquanto caminhava pelas ruas da cidade, contudo o tirou para não atrapalhar seu trabalho de jardinagem e não o colocou de novo desde então.
“Ela manteve o chapéu tirado durante todo o tempo em que esteve em Turnera!” Anessa disse jubilosamente. “Até deixou as crianças tocarem suas orelhas há pouco.”
“Hã? Sério? Wow, temos que comemorar!”
Miriam esfregou as mãos, nervosa.
“H-Hey, vocês estão dando muita importância pra algo assim...”
Rosetta ficou encantada. Por conhecer Miriam há muito tempo, essa era uma das muitas preocupações que a afligiam.
Logo, o grupo ficou animado com histórias de sua época em Turnera e da visita de Belgrieve a Orphen. A história parecia mais distante ao ser contada, e colocar tudo em palavras as fez perceber o quanto havia acontecido naquele tempo. As garotas então falaram sobre a masmorra em Turnera e sobre Belgrieve se tornar um mestre de guilda. Rosetta ficou surpresa, é claro, porém pareceu aceitá-lo com bastante facilidade.
“Senhor Bell, hein... Contudo ele parece uma boa opção. É sem dúvida alguém confiável.”
“Hehe... Não é verdade?” Angeline sentiu grande satisfação — tal qual esperava, a reputação de seu pai no mundo havia aumentado.
Rosetta deu uma risadinha.
“Turnera deve ser um lugar legal. Talvez eu devesse ter aceitado sua oferta e me casado com o Sr. Belgrieve.”
“Uh... M-Mas eu já tenho uma mãe...”
“Só estava brincando. Não leve tão a sério.” Rosetta riu enquanto cutucava Angeline.
“Apesar de toda a questão do casamento, você ainda poderia vir para Turnera.” Miriam ofereceu enquanto se espreguiçava.
“Voltaremos de novo no outono. Quer vir...?”
“Adoraria, no entanto este lugar é importante para mim e não posso deixar as crianças sozinhas.”
“Hey, não seja tão rígida. E espere, mesmo que não considere Bell, não tem nenhuma outra história de amor ou algo do tipo?” Marguerite perguntou, cruzando as mãos atrás da cabeça.
Rosetta fez beicinho.
“O que está falando? Que bobagem... Esqueça de mim. E vocês? Não tem nada a dizer sobre si mesmas? Todas são muito mais novas que eu, não é?”
“Bem, uh...” Marguerite gaguejou.
Angeline interveio.
“Quando os comparo ao meu pai, todo homem fica aquém...”
Rosetta encolheu os ombros, cansada.
“Pode ser verdade. Entretanto se Ange conseguir um namorado, fará com que ele a mime como o Sr. Belgrieve faz? Pelo contrário, suspeito que ela seja o tipo de garota que arrasta o namorado para todo lado.”
“Acha mesmo... Hmm...?”
“Por que está olhando para mim?” Anessa perguntou, franzindo a testa.
Com um olhar divertido, Miriam começou a balançar as pernas.
“Estamos falando sobre nosso gosto por homens, certo? Bem, Ange já tem o Sr. Bell para mimá-la. Então pode ter uma queda pelos tipos de caras que fazem você querer protegê-los.”
“Tão chato. Não quero.” disse Angeline, estufando as bochechas.
Marguerite assentiu.
“Está certa. Eles pelo menos têm que ser mais fortes que você!”
“Esse é um obstáculo muito grande que está colocando aí.” era completamente impossível pedir alguém que pudesse derrotar um aventureiro Rank S.
“Oh, vamos lá.” disse Rosetta. “Nunca sabe quando se trata dessas coisas. Posso entender seu coração se emocionando por causa de um homem forte, porém o que acha de um homem que apenas agrada seus instintos maternais?”
“M-Maternal?” Angeline engoliu em seco. Será que algum dia serei como uma mãe? ela se perguntou, gentilmente colocando a mão sobre seu peito modesto. “Então a maternidade não tem nada a ver com dotes físicos, Sra. Rosetta?”
“Do que está falando?”
Rosetta olhou para Angeline sem expressão enquanto as outras três riam, todavia Angeline estava falando o mais sério possível. Como mulher, não podia negar por completo a possibilidade de um dia ser mãe. E, como era filha de Belgrieve e Satie, tinha uma vaga expectativa de que seria uma ótima mãe. Ela gostava de crianças e o trabalho doméstico era um de seus pontos fortes. E, mesmo assim, não conseguia se livrar da ansiedade pelo fato de que seus humildes seios apenas se recusavam a crescer. Não que tivesse um grande interesse em ter um corpo sensual — só não sabia como se sairia caso algum dia tivesse um filho. Afinal, um bebê mamaria no leite dos seios de sua mãe. Angeline cresceu sem mãe, por isso foi criada com leite de cabra, mas viu como todas as outras crianças da vila foram criadas, por isso sabia como funcionava. O leite de cabra era muito bom, porém achava que teria sido bom ter crescido com o calor dos cuidados de sua mãe.
Contudo será que esses meus seios achatados produzirão alguma coisa? Questiou-se ansiosamente. Angeline também temia que, se um bebê se amamentasse, eles passariam a ser totalmente planos a côncavos.
Resumindo, Angeline acreditava que peitos maiores estavam cheios de leite mais abundante.
“Acho que de fato há um componente físico nisso, afinal.” Angeline murmurou, dando um tapinha no peito triste.
“Sério, do que está falando?”
Embora Angeline parecesse ter se conformado com suas limitações, Rosetta estava tão confusa como sempre. É claro que o tamanho do peito não tinha absolutamente nada a ver com a lactação, no entanto Angeline nunca tinha aprendido nada sobre isso.
De qualquer forma, passaram o tempo em paz até o final da tarde. Elas deixaram o orfanato assim que perceberam que suas sombras estavam ficando mais longas.
“Ahh... Estou com um pouco de sono.” disse Angeline, espreguiçando-se enquanto caminhavam.
“É um dia perfeito para uma soneca à tarde.” concordou Miriam.
O tempo estava realmente perfeito — nem muito quente nem muito frio. Assim que o sol se punha, a temperatura caía, todavia a luz suave e quente do dia era agradável e reconfortante. O mercado não ficava longe do orfanato, então as garotas chegaram lá pouco depois durante o horário mais movimentado do dia, quando todo tipo de gente frequentava as diversas barracas. O pensamento de todas essas pessoas diferentes vivendo aqui causou um sentimento bastante peculiar em Angeline.
“Devíamos comprar alguma coisa para o jantar.” disse Anessa. “Quer vir, Ange?”
“Hmm... Não, estou com vontade de dormir cedo hoje, então vou para casa.”
“Entendo.”
“Sim, sempre ficamos acordadas até tarde depois de comermos juntas, hein.”
“Entretanto vou comprar algo pronto aqui, então vou ficar por aqui um pouco...”
“Há muitas lojas aqui. Ah, alguma coisa está cheirando bem!”
“Hey, Maggie! Não saia sozinha! Você com certeza vai se perder!”
Marguerite, sendo a criança habitualmente perdida que era, desapareceu no meio da multidão, e Anessa correu atrás, com Angeline e Miriam não muito atrás. Elas passaram por todo tipo de gente até chegarem a uma barraca um pouco distante de onde haviam começado. Lá encontraram Marguerite perguntando em voz alta sobre uma farinha de peixe frito vendida ali. Parece gostoso — acho que vou levar um pouco para casa...
Angeline bocejou, olhando para o céu. Estava começando a escurecer, contudo ainda brilhava em laranja e vermelho no horizonte. Eles estão olhando para o mesmo céu em Turnera? ela imaginou.
○
Belgrieve e seus camaradas ficaram na parte de trás da congregação. Apesar da reunião bastante numerosa de aldeões, todos ficaram em silêncio. Aqueles que usavam chapéus agora os tiraram e os seguraram nas mãos, e todos tinham uma expressão solene no rosto. Na frente, o padre Maurice realizava os ritos fúnebres enquanto todos os outros juntavam as mãos ou seguravam o chapéu contra o peito.
Percival estava ao lado de Belgrieve, parecendo um pouco perturbado.
“Não sou bom com esse tipo de coisa.” ele comentou em um suave sussurro.
“Nem eu.” concordou Kasim.
Belgrieve devolveu um sorriso irônico.
“Aguente um pouco mais.” respondeu.
Percival cruzou os braços e passou o peso de um pé para o outro.
Kasim coçou a barba.
“No entanto não é tão ruim.”
Percival assentiu.
“Sim, você está certo.”
Eles estavam participando do funeral de um dos mais anciões de Turnera, que havia falecido há pouco tempo. Embora o homem estivesse naquela idade em que poderia ser considerada uma morte agradável e pacífica, sua morte ainda deixou um buraco em suas vidas, e isso se refletiu na atmosfera tranquila que permeou toda a vila. Depois de concluídos os ritos fúnebres na igreja, seguiram com o caixão até o cemitério norte. O padre conduziria outra oração, desta vez para que a alma saísse com a graça da Todo-Poderosa Viena — e então, o caixão seria enterrado na terra.
Belgrieve olhou ao redor do cemitério. Era um lugar ensolarado que se abria para o sul e, embora estivesse repleto de inúmeras sepulturas, a maioria estava lá há tanto tempo que ninguém se lembrava de quem dormia embaixo delas. Mesmo assim, Turnera valorizava os espíritos de seus ancestrais, por essa razão os túmulos eram sempre limpos e mantidos em cuidado.
Ele já tinha vindo aqui várias vezes. Os pais de Belgrieve foram sepultados aqui, e aparecia várias vezes por ano para visitar e limpar suas lápides. Outrora trouxe Angeline aqui também quando a garota era mais jovem. Belgrieve se lembrou de como ela tinha uma expressão tão séria no rosto enquanto juntava as mãos e orava pelos avós que nunca conheceu na vida.
O padre concluiu o seu serviço e o caixão foi baixado ao seio da terra. Vários rapazes com pás começaram a trabalhar, jogando terra no buraco, sobre os sons de soluços silenciosos dos amigos próximos e familiares do falecido.
Com a sepultura cheia, os aldeões começaram a regressar às suas casas em grupos de dois ou três. Quando tudo foi dito e feito, a tensão pareceu se dissipar e o rosto de todos voltou ao normal — afinal, nem acidente nem doença haviam reivindicado o ancião. Embora a vila estivesse um pouco mais solitária do que antes, não parecia que alguém ficaria triste por uma morte que de outra forma seria gentil.
Charlotte piscou e agarrou a manga de Belgrieve.
“É um pouco... Curioso. É um funeral, mas não foi tão triste ou desesperador como pensei que seria.”
“Teria sido mais triste se estivesse ferido ou doente quando morreu, porém o velho Orca faleceu em paz.”
“Seria ruim se dissesse que o invejo?” Satie murmurou com uma risada seca. Belgrieve deu um tapinha no ombro dela, sorrindo. Eles se juntaram com os outros aldeões no caminho de volta do cemitério, conversando sobre a velha Orca.
“Então finalmente chegou o dia e o velho Orca foi chamado a Viena. É sempre triste vê-los partir.” disse Kerry, coçando a cabeça.
“Bem, o velho Orca estava cheio de vigor até o último minuto, então não foi tão ruim.” disse Atla, a farmacêutica da vila.
“Seu corpo estava ficando fraco, contudo seu coração estava sempre firme. Não creio que aquele velho gostaria de uma despedida sentimental.”
Belgrieve coçou a barba.
“Você estava cuidando dele, certo? Como estava, no final?”
“Bem, tinha me dito que queria sair, então seu filho o ajudou a andar e a sentar-se em uma cadeira no final do gramado. Ele observou a paisagem por um tempo e depois tomou um gole de cidra de maçã disse, ‘Isso é bom. Posso ir agora’. E então de fato partiu. Parecia que sabia exatamente quando seria sua hora.”
“Sim, esse é o tipo de homem que o velho Orca era.”
“Lembro-me de como me repreendia quando eu era criança. Roubei um pouco de sua cidra e ele me deu uma boa surra e disse que era muito cedo para um pirralho como eu.”
“Ele ainda estava me repreendendo mesmo depois de que me tornei adulto.”
“Um velhote assustador — sempre tinha uma carranca no rosto. No entanto as crianças o adoravam por algum motivo. Quero dizer, já sabia que iria me corrigir de um jeito excessivo, mas... Também gostava bastante do velho.”
“Foi Orca quem me ensinou tudo sobre agricultura, até como segurar a enxada da maneira certa.”
“Sim, sem dúvida foi alguém incrível quando se tratava de cultivar o solo. Suas cristas eram imaculadas.”
“Quando morreu, ele parecia tão pacífico quanto poderia estar. Era como se estivesse dormindo. Deve ter escapado, sem mais nem menos.”
“Hey, que tal nos reunirmos para jantar mais tarde?”
“Claro.”
“Até mais então.”
Ao chegarem à vila, todos seguiram caminhos separados.
Na maioria dos casos, os aldeões reuniam-se na noite de um funeral para jantar e tomar vinho para torcer pela alma falecida que se juntou aos seus antepassados e a Viena. Durante toda a noite, todos compartilharam histórias vívidas de memórias com o falecido, provocando risos misturados com lágrimas — era assim que as coisas eram em Turnera. Embora o clima tendesse a ser mais sombrio sempre que se tratava de uma morte infeliz ou prematura, era, em certo sentido, motivo de comemoração sempre que alguém partia para conhecer Viena depois de uma vida bem vivida.
Enquanto os adultos se misturavam, as crianças da vila mantinham-se ocupadas brincando sob o olhar atento de Graham.
Belgrieve entrou na fila a tempo de ouvir Percival rindo suavemente.
“Uma morte pacífica, hein? Sei que é rude dizer, porém gosto de como soa.”
“Pode ser um fim difícil de conquistar para um aventureiro.”
“Sim. É bom pensar em morrer em nossas próprias camas, contudo a maioria de nós morre no trabalho — e sofremos envenenamento e ferimentos, na maioria das vezes.”
Na época em que Percival ainda vivia como um homem selvagem, tinha visto seu quinhão de inferno, testemunhado inúmeras cenas de morte medonhas e horríveis. Para ele, uma morte pacífica como essa era invejável, mas irrealista. Kasim e Satie assentiram, aparentemente compartilhando seus sentimentos.
Olhando para o céu, Percival estreitou os olhos.
“Eu ceifei muitas vidas humanas no meu tempo. Poderia dizer a mim mesmo que todos mereciam isso, entretanto estando aqui agora, não tenho tanta certeza... Depois de um funeral tão confortável, me faz pensar em todos eles. Deviam ter amigos que também contariam histórias suas após a morte, certo?”
“O mesmo aqui. Já fiz minha cota de coisas ruins.” admitiu Kasim.
“É assim que funciona... Para aventureiros.”
“Hey, Bell. Você já matou um humano antes?”
Belgrieve coçou a barba.
“Sim. Todavia foi há muito tempo.”
Há muito tempo, um condenado escapou da custódia em algum lugar nos arredores de Bordeaux e causou tumulto na vila. Belgrieve não teve escolha senão matá-lo com sua espada. Isso foi quando não estava de todo acostumado a manobrar com a perna de pau e não tinha o luxo de se conter — matar era sua única opção. Se tivesse sido tão hábil como é agora, talvez tivesse sido capaz de conter o homem sem matá-lo. Ele se lembrou de como a sensação de cortar carne e ossos humanos reverberou através da lâmina até sua mão. Era nítida a diferença de matar um monstro.
Sabia que se não o tivesse feito, ele e os outros aldeões estariam em perigo — e mesmo assim, um homem que estava de pé e se movendo momentos antes caiu sem vida pela força de seu braço. Belgrieve sentiu algo naquele dia, algo mais aterrorizante do que qualquer medo que sentiu no combate contra um monstro. Mais do que tudo, se lembrava de maneira vívida como seu golpe mortal foi um golpe diagonal do ombro para baixo, de modo que o homem não morreu na hora — e como, nos últimos momentos do condenado, o homem o atormentou com seus olhos que estavam agarrando-se desesperadamente à vida.
“Ange me disse que já caçou bandidos algumas vezes antes. Contudo se sente mal quando mata pessoas.”
“É o normal. Eu simplesmente me acostumei. Não há nada de bom nisso.” Percival deu um profundo suspiro. “Depois de morrer, acha que existe de verdade um reino dos céus lá em cima? Se houver, acha que tenho o direito de passar por esses portões? Estou começando a me perguntar, sabe.”
“Bom, nunca morri antes, então não poderia te contar.” disse Belgrieve.
Percival riu.
“Claro que não. Meu Deus, isso não é nada típico de mim.”
“Posso entender como se sente. Naquela época, quando corríamos tão obstinadamente em direção ao futuro, não tínhamos tempo de olhar para trás...” Satie raciocinou. “No entanto agora, todos nós temos muito em que pensar.”
Kasim assentiu.
“Quanto a esse ponto... Só mostra que todos nós envelhecemos.” respondeu, rindo.
Acho que sim, pensou Belgrieve. Até aquele momento, a estrada à frente parecia tão longa, todavia agora podia voltar e ver que o caminho que percorreu para chegar até aqui hoje parecia ainda mais longo. Em meio a essas reflexões, ouviu Mal conversando com Byaku em algum lugar à sua frente.
“Por que ele foi enterrado?”
“Ele foi enterrado porque morreu.”
“Morreu? O que é isso?”
“A morte é... Bem...”
Byaku parecia profundamente preocupado com a pergunta, entretanto antes que pudesse encontrar uma resposta, Hal cutucou Mal no ombro.
“É igual à mãe. Ele está dormindo no subsolo.”
“Oh. E quando vai se levantar então? Mamãe ainda não se levantou.”
“Todo mundo parecia tão triste.”
“É... Triste dormir? É divertido.”
O coração de Belgrieve disparou. Essas crianças ainda não sabiam de fato o que era a morte. Elas ainda pensavam que a mãe estava apenas dormindo. Ao olhar para Satie, viu que seus lábios estavam franzidos com força. Era difícil descrever a expressão em seu rosto. Ela sabia que algum dia precisava explicar isso as meninas, porém estava tão envolvida com a felicidade deles que não teve coragem de fazê-lo. Em vez de Byaku, que ainda tropeçava nas palavras, Graham abriu a boca.
“A morte é dizer adeus a este mundo.”
Graham foi tão direto em sua resposta que Belgrieve e os outros engoliram em seco, contudo as gêmeas inclinaram a cabeça com curiosidade.
“Adeus?”
“A morte não é como o sono?”
“Você já pegou um peixe antes, não é verdade?”
“Sim.”
“Quando fomos para o rio. Vocês estavam lá.”
“O peixe que pescou foi cozido por Bell... Por seu pai e Satie, certo? O peixe em movimento não se moveria mais. Isso é a morte. Aqueles que morrem nunca mais se moverão. É por esse motivo que são enterrados na terra.”
As gêmeas não pareceram entender o ponto fundamental, contudo seus olhos se arregalaram ao ouvir algumas palavras.
“Nunca mais?”
“Então... Não pode encontrá-los se estiverem mortos?”
“A mãe também está morta? Foi por isso que ela foi enterrada?”
“Não podemos vê-la de novo...?”
Graham gentilmente colocou a mão em cada uma das cabeças ansiosas.
“Isto não é verdade. Por exemplo, digamos que um único esquilo morra. Sabem o que é um esquilo, certo?”
As gêmeas assentiram. Quando entraram na floresta com Graham, viram muitos esquilos correndo entre as copas das árvores.
“O corpo do esquilo acabará apodrecendo e se tornará terra. Essa terra criará uma árvore, a árvore crescerá e, algum dia, muitos esquilos brincarão em seus galhos e criarão seus próprios novos esquilos.”
“O esquilo... Vira uma árvore?”
“Sim. Então a árvore um dia apodrecerá e retornará ao solo. Alguém queimará partes dela como lenha e a fumaça dançará no ar. A sujeira dará lugar a uma nova vida e, à medida que respirarmos, o ar entrará em nossos corpos. Então, aqui e ali, e para onde quer que olhe, os esquilos de tempos passados... Todos os mortos estão ao nosso redor. Mesmo que não possa vê-los ou ouvir suas vozes.”
“A mãe também...?”
“Sim. Ela está sempre com vocês, ao seu lado... Então não precisa ficar triste. Talvez ela tenha se separado dessa forma, mas todas as vidas mudarão de forma e continuarão vivas.”
As gêmeas seguraram a mão de Graham e olharam em volta.
“A mãe está aí?”
“Está nos observando?”
“Então isso é... Incrível.” as gêmeas de repente se viraram e correram para Satie.
“Satie, o vovô disse que a mãe está aqui!”
“Mesmo quando não consigo vê-la! Que estranho!”
Satie abraçou-as e segurou-as com força. Havia lágrimas escorrendo de seus olhos bem fechados.
“Sinto muito... Por ser tão fraca...”
“O que foi?”
“Porque você está chorando? Sua barriga dói?”
As gêmeas pareceram bastantes surpresas enquanto acariciavam sua cabeça e enxugavam as lágrimas que caíam com os dedos. Satie ficou algum tempo sem falar, porém quando voltou a virar o rosto para elas, estava sorrindo.
“Desculpe, desculpe, foi só um pouco... Sabe. Agora vamos nos apressar.” disse ela enquanto as virava e começavam a caminhar juntas.
Charlotte, Byaku e Mit estavam esperando na frente, observando com cautela, e assim que viram que estava tudo bem, se viraram para continuar seu caminho.
Belgrieve caminhou até Graham, que ainda estava onde o haviam deixado.
“Desculpe, Graham. Deveríamos ter sido nós a contá-las”
“Não há necessidade de carregar tudo em seus ombros.” Graham deu um leve sorriso enquanto batia suavemente nas costas de Belgrieve. “Um velho também tem seus deveres de velho. Não me deixe de fora.”
“Obrigado...”
Graham fechou os olhos e virou-se para seguir seu caminho.
Percival riu.
“Então toda a vida muda de forma e continua viva, hein? Essa é uma boa. Gosto muito mais disso do que de ir para o céu.”
“Certo, é melhor para mim também.” Kasim riu enquanto trocava o chapéu.
Graham provavelmente estava certo sobre isso — toda a vida continuaria viva. As árvores da floresta persistiam sobre as cascas apodrecidas das árvores antigas e apodrecidas. Até mesmo seus próprios corpos se moviam consumindo outras vidas. Se tomassem uma sopa de carne de veado, o cervo passaria a fazer parte deles, e se comessem batatas, os tubérculos também fariam parte deles. Contudo o que tinham sido veados e batatas também tinha sido muitas formas de vida até então, e estas eram apenas o que estava no final de uma cadeia de vidas. A velha vida criaria uma nova vida à medida que desaparecesse. No entanto se mudou de forma e persistiu, certamente não foi o seu fim. A fronteira entre a vida e a morte era muito menos definida do que jamais havia considerado.
Belgrieve olhou para as palmas das mãos. Seu corpo foi construído sobre a morte de inúmeras outras formas de vida. Quando pensava a respeito, a vida que todos viviam parecia nada mais do que uma continuação. Os adultos aprimorariam suas habilidades e dariam continuidade ao que valorizavam ao conectá-lo à próxima geração. De uma geração para outra. De mim para Angeline; de Angeline aos filhos que vêm depois dela...
Contra toda a extensão da história, sua vida nada mais foi do que um piscar de olhos — e ainda assim, tanto amor foi amontoado naquele breve momento cósmico.
Belgrieve ergueu lentamente o olhar. Através da forte luz da tarde, podia ver o céu azul brilhante acima.
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