Capítulo 51: Ah, os mazokus que se encontram na estrada
Com o cair da noite, o silêncio também dominou. Uma cidade deste tamanho normalmente ainda teria bares abertos, deixando bêbados e outros delinquentes vagando pelas ruas escuras... Mas esta cidade em particular estava isolada. Afinal, vivíamos em tempos perigosos.
Isso significava que eu era a única alma na estrada. Minha capa esvoaçava na escuridão, sua cor se misturando com a noite enquanto corria, tentando disfarçar meus passos o melhor que podia. Estava indo para...
“Mais intimidação de bandidos?”
Grk! O som daquela voz inesperada atrás de mim me fez tremer.
Me virei, rígida, na direção da voz.
“Yeesh... Não me assuste desse jeito, Gourry.”
Sim. O cara parado ali sob o luar fraco, com uma expressão cansada, era meu companheiro de viagem, Gourry. Um cara era alto, loiro, bonito e um mestre espadachim... O que era ótimo. O fato de ter algas marinhas no lugar do cérebro? Nem tanto. Deve ter me visto saindo do meu quarto na pousada e me seguiu.
“É você que está reclamando aqui?” replicou. “Por que sempre tem que sair sozinha desse jeito?”
“O quê, quer um convite?”
“Claro que não!”
Nossa conversa foi mantida apenas em sussurros. Afinal, era noite, então não podíamos causar uma cena.
“Vamos lá, cara. Preciso intimidar uns bandidos para repor nossos fundos de viagem. E para desabafar!” falei, emburrada.
A expressão de Gourry permaneceu exausta.
“Ainda está irritada com aquilo?”
“Claro que estou.” admiti sem rodeios.
Gourry suspirou.
———
“Só para confirmar... Este relatório é preciso mesmo?” o velho feiticeiro perguntou, porém seu rosto e atitude diziam... ‘Essa vagabunda está tentando me enganar.’
Dez dias antes, compilei os acontecimentos recentes da Cidade de Crimson em um relatório que enviei ao conselho de feiticeiros da Cidade de Telmodd. Preenchi cinco pergaminhos com meu relato do que aconteceu, contudo quando esse velho figurão do conselho o folheou, sua reação inicial foi de ceticismo.
“Sim!” assegurei com toda confiança.
O velho feiticeiro apenas me encarou com uma careta.
“Houve... Alguma outra testemunha?”
Fiquei perplexa por um momento. Gourry estivera lá do início ao fim, no entanto onde a maioria das pessoas tinha memória de longo prazo, ele tinha uma tigela de mingau. Mesmo que o trouxesse como testemunha, é provável que apenas diria: ‘Isso tudo realmente aconteceu?’... O último prego no caixão do ‘ela está mentindo’.
Então, depois de pensar um pouco, respondi por fim.
“Meu companheiro... Não é lá muito confiável. Não há outras testemunhas vivas do relatório como está escrito.”
“Hmm... Entendo...” o feiticeiro caiu em um silêncio desconfortável. “Confesso que acho difícil de acreditar. O envolvimento da espada da General de Dinastia, a conexão com o incidente em Bezeld... É tudo extraordinário demais.”
Grr...
Podia sentir uma veia saltando na minha testa sob o olhar duvidoso do feiticeiro. No entanto, objetivamente falando, ele não estava errado em se sentir daquela forma. Enquanto o mundo estava cheio de entidades que se enquadravam na categoria de ‘mazoku’, as de patente mais alta eram poucas e distantes entre si. Resumindo, não havia registros formais documentando sua existência.
O Lorde das Trevas Shabranigdu, senhor de todos os mazokus do mundo, tinha cinco tenentes fiéis, cada um com seus vários servos Sacerdotes e Generais... Essa era a hierarquia dos escalões superiores da (que se passava por) sociedade demoníaca. Todavia a maioria dos feiticeiros, na prática, considerava tudo uma mera lenda.
Com toda a sinceridade, houve um tempo em que também achei as histórias de um Lorde das Trevas nas montanhas de Katart um tanto quanto exageradas. Se a Lina do passado tivesse lido um relatório como o que acabei de entregar, também o teria descartado como uma bobagem gananciosa. Então, por um lado, não podia culpar o velho feiticeiro por sua reação.
Por outro... Seguia me irritando!
“Bem... Aceitarei seu relatório. Mas o conselho tem um pequeno pedido a lhe fazer. Se de fato fez o que afirma ter feito, deve achar bastante simples.”
Havia um sarcasmo descarado na voz do velho feiticeiro.
———
O conselho acabou me pedindo para investigar alguns relatos recentes de surgimento em massa de demônios inferiores e de bronze. Tenho que ir para o Reino de Dils, onde havia uma onda deles surgindo. Porém, como em todos os trabalhos no conselho, o pagamento que vou receber pelo serviço era bem abaixo do valor real, sendo este o caso, como esperado, não queria fazê-lo. Não havia pistas sobre a investigação e não havia como prever quanto tempo levaria apenas para entrevistar as pessoas envolvidas. Era nojento esperar que alguém fizesse um trabalho tão chato por tão pouca remuneração. Recusar teria sido fácil...
Só que se eu simplesmente tivesse dito não, sabia muito bem o que aquele velho feiticeiro pensaria: ‘Ah, ela tem medo de demônios. Isso confirma que o seu relatório é uma mentira.’ Assim, engoli meu orgulho e aceitei o trabalho miserável.
Claro, também solicitei um aumento enorme na remuneração. O pagamento irrisório que estavam me oferecendo mal cobriria uma tarefa de menor importância. Não cobriria nem mesmo alojamento e alimentação. Em vez de dinheiro, o figurão do conselho me ofereceu pagamento em espécie... Uma carta que poderia mostrar a qualquer conselho de feiticeiros local para receber hospedagem e refeições gratuitas. Pena que nem todas as cidades em que paramos tinham uma filial, e mesmo que tivessem, a qualidade da comida não era garantida também.
O resultado? Depois de viajar um pouco e perguntar por aí, Gourry e eu já tínhamos gasto o adiantamento que o conselho nos dera. Não era o tipo de situação que nos deixa de bom humor. Sendo assim, se desabafasse minha frustração desmantelando uma gangue de bandidos e roubando... Ou melhor, reapropriando... O dinheiro deles para recuperar minhas despesas de viagem, quem poderia me culpar?
“Bem... Não há nada de errado em espancar bandidos, e não posso te dizer para parar de fazer o que claramente está na sua natureza...”
“Minha natureza?”
Não sou um animal selvagem! Estava prestes a reclamar, contudo me contive.
“Lina!” Gourry chamou de repente.
“Já sei.” devolvi um aceno firme em resposta.
A escuridão ao nosso redor tinha acabado de ficar mais profunda, e não era uma sombra passando sobre a lua. Havia uma presença misturada à própria escuridão. Ódio, tristeza, ciúme, desespero... Todas as emoções negativas que atormentavam os seres vivos impregnavam o ar numa mistura.
Miasma. Só pode significar...
“Diga, Lina... Será que essa é mais uma bela enrascada em que nos metemos?” murmurou Gourry.
Antes que pudesse responder... Thud! Ouvi um impacto à distância.
“Ali!” gritei. Nós dois partimos ao mesmo tempo. “Foi em algum lugar por aqui...”
“Lina! Olha!” Gourry parou em uma esquina e apontou. Havia fragmentos de algo espalhados pela rua. E além deles jazia...
Uma pessoa?
Corremos até o homem caído no chão. Parecia ter pouco mais de vinte anos. Um fluido escuro se acumulava ao seu redor, brilhando carmesim ao luar. Eu o levantei em meus braços, todavia era óbvio que já estava morto, sangrando de um ferimento aberto no peito.
“O que...” comecei. Entretanto, antes que pudesse terminar o pensamento, senti uma onda de malícia vindo em nossa direção.
Gourry entrou em ação. O estridente clangor de metal contra metal soou ao meu lado enquanto eu saltava para longe. Olhei para ver Gourry, espada na mão, enfrentando uma figura escura.
E quando digo ‘escura’, não quero dizer que estava escondido pelas sombras.
Quero dizer que era completamente negra da cabeça aos pés, incluindo a armadura de placas leves que usava e a espada que segurava. Curiosos padrões brancos rabiscados por todo o seu corpo se destacavam à luz fraca da lua. Esta figura sombria parecia um pouco com um xamã de alguma religião estranha, mas sua aura revelava sua verdadeira natureza...
É, temos um mazoku em nossas mãos!
Ele não apareceu do nada. Pude ver que a janela do segundo andar de um prédio próximo (que parecia uma pousada) havia sido quebrada por dentro. Suponho que essa coisa tivesse atacado um homem hospedado lá e depois pulado pela janela para confirmar a morte.
“Tenho... Negócios com... Aquele homem.” a criatura se virou para o homem caído, falando em um tom hesitante e abafado.
“Ele já está morto.” respondi a ela.
Minhas palavras fizeram a criatura ficar em silêncio por um tempo. Seu rosto-não-rosto (que na verdade era apenas um padrão em um campo preto) se virou para mim.
“Está... Morto?” pareceu pensar por um momento antes de inclinar a cabeça. “Entendo... Está morto...” sussurrou, inclinando a cabeça novamente e ficando em silêncio mais uma vez.
Acho que não é um dos mazokus mais brilhantes...
Após um período de silêncio, seu olhar se voltou para mim.
“Você me viu...”
Espere um minuto! Não ouse...
Antes que pudesse protestar, o ‘xamã’ disparou! Sua figura correu para o lado e se aproximou de mim.
É rápido! Mal consegui bloquear seu golpe com minha espada curta meio desembainhada. Então, saltei na direção oposta. E forte!
Para falar a verdade, foi pura sorte ter conseguido me defender. Se tivesse me movido uma fração de segundo mais devagar, a criatura teria decepado minha cabeça. E se tivesse desembainhado minha espada até o fim, não teria conseguido resistir completamente à força do golpe. Teria aberto meu estômago.
O xamã, percebendo que seu golpe havia sido bloqueado, sacou a espada... Então saltou para trás e, sem nem olhar, desferiu outro golpe em Gourry, que se aproximava! Se tivesse tentado um ataque subsequente contra mim, Gourry sem dúvida o teria atravessado por trás. Deve ter sido por isso que mudou de alvo.
Clang! Quando Gourry desviou o golpe do xamã, o golpe passou para o seu lado.
Desta vez foi Gourry quem saltou, distanciando-se um pouco do oponente.
“Tenha cuidado, Lina! Esse cara é bom!” ele gritou.
Obviamente, já tinha juntado as peças. Eu já estava trabalhando em um cântico mágico.
Nesse meio tempo, Gourry e o xamã se avaliavam... E o xamã tomou a iniciativa! Ergueu a lâmina bem alto e desferiu um golpe em Gourry. O grandalhão hesitou sobre como responder. Com habilidades de espada como as suas, talvez pudesse apenas ter eviscerado a coisa... Porém seria o suficiente para acabar com um mazoku? Sua hesitação produziu um momento de atraso, e...
Cling! Gourry bloqueou a espada do xamã que se aproximava. Um segundo depois, o xamã estava realizando outro movimento! Usando o ponto de encontro das espadas como ponto de apoio, saltou no ar... Bem acima da cabeça de Gourry, em minha direção! E então...
“Bola de Fogo!”
Bwoosh! Meu feitiço encontrou o mazoku no ar! Claro, uma Bola de Fogo não machucaria um de sua espécie, contudo a força da explosão ainda o fez voar para trás. Pousando a alguma distância do outro lado de Gourry, seu rosto se virou para nós.
“Espere!” gritei. O xamã estava prestes a recomeçar, no entanto parou ao meu chamado. “Você está tentando nos matar para eliminar testemunhas, certo?”
O xamã inclinou a cabeça e não disse nada por um tempo.
“Isso mesmo. Preciso matar... Todas as testemunhas...”
“Então não seria melhor correr por enquanto? Esse feitiço vai chamar a atenção das pessoas que devem vir ver a cena a qualquer momento! O que significa que terá mais testemunhas do que consegue lidar!”
Fiquei com medo de que pudesse ameaçar matar todos, entretanto depois de um longo silêncio, o xamã deu um leve salto do chão e desapareceu pela janela quebrada do segundo andar.
“Desistiu?” sussurrou Gourry, sua espada ainda em punho enquanto olhava para a janela quebrada. Nesse momento...
Fwooom! Houve uma grande explosão de dentro do quarto.
———
“Então... O que faremos?” perguntou Gourry na tarde seguinte, durante o almoço em um restaurante.
“Sobre o quê?”
“Aquilo de ontem quando...”
“Silêncio!” eu o silenciei enfiando uma asa de frango frita em sua boca e, em seguida, lancei um olhar furtivo para as mesas ao redor. “Fale baixo! Alguém pode te ouvir!”
Gourry mastigou a asa de frango, engoliu em seco e baixou a voz.
“E daí? Não é como se tivéssemos feito algo errado... E as autoridades locais estão procurando pistas sobre o que aconteceu, então por que não podemos só contar a eles o que vimos?”
Hahh... Gourry estava sendo tão míope que não pude deixar de lamentar.
Se você for esperto, já deve ter percebido. Isso mesmo... Depois de tropeçar no ataque, nós dois fugimos do local. Como esperado, minha Bola de Fogo atraiu todo tipo de atenção e tudo virou um rebuliço com os guardas locais correndo por aí interrogando as pessoas desde cedo. Obviamente, seria fácil nos apresentar e contar tudo o que tínhamos visto. Mas...
“O que acha que aconteceria se fizéssemos isso, Gourry?”
“Eles apreciariam?”
Haaaaaaaahhhhh... Minhas lamentações se intensificaram.
“Me esclareça... O que acha que era aquela coisa com quem lutamos ontem?” tive que perguntar.
“Um mazoku, certo? Parecia um.”
“Certo. Também acho, embora parecesse bem idiota para um mazoku... E usar uma explosão para encobrir o ocorrido não é algo muito demoníaco... Porém, enfim, a vítima foi morta de camisola, e o quarto onde estava foi explodido... O que significa que as autoridades não têm como identificá-lo. Agora, vamos supor que tenhamos contado o que testemunhamos ontem. Eles teriam uma explosão em uma pousada local, um cadáver não identificado e uma feiticeira manchada de sangue e seu amigo mercenário no local gritando: ‘Um mazoku fez essa bagunça’. Aqui vai uma pergunta para você: O que acha que as autoridades fariam com toda essa informação em mãos?”
“Agradecer pela nossa cooperação?”
“É, vai sonhando! Vão olhar para a dupla suspeita... Que somos nós, só para deixar claro, e dizer: ‘Um mazoku, hein? Que história! Aposto que vocês mesmos são os responsáveis!’. Aí vão nos prender e não vão dar ouvidos a mais nada do que a gente disser.”
“Hã? Assim que explicarmos o mal-entendido, tenho certeza de que vão nos soltar.”
Estalei a língua e balancei o dedo.
“Não seja ingênuo. Quando um caso é difícil de desvendar, as autoridades só querem prender o primeiro suspeito que encontrarem para sentirem que realizaram algo. É da natureza humana. Antigamente eu também fazia esse tipo de coisa com frequência.”
“Você fez?”
“Além do mais, mesmo que a gente esclareça as coisas, quanto tempo é desperdiçado no processo? Lembra que lá em Solaria, apesar de todas as identidades serem conhecidas e o curso dos acontecimentos ser bastante evidente, ainda tivemos que passar um milhão de anos refazendo nossa história para todos e seus irmãos? Espera... Acho que você não se lembra disso, lembra?”
“Hum... Na verdade...” Gourry desabou. “Não me lembro do nome da cidade... Contudo me lembro do interrogatório.”
Hmm. Então tinha sido tão ruim assim até para ele, hein?
“Ótimo. Agora, somos completos estranhos aqui e a identidade da vítima é desconhecida. Quanto tempo acha que as autoridades levariam para identificar o falecido e então estabelecer que não temos nenhuma conexão com o infeliz? Além disso, digamos que demos nosso depoimento completo de ontem. Acha que vai mesmo ajudar? Se as autoridades começarem a nos investigar, só vai atrapalhar a investigação de verdade... O que não é bom para eles nem para nós. Assim sendo, digo que a melhor coisa a fazer é ignorar e fugir da cidade o mais rápido possível!”
“Está tudo bem?”
“Claro que está!” realmente não estava. “Então, vamos ficar fora disso. Entendeu, Gourry?”
O grandalhão apenas deu de ombros em resposta.
Mesmo assim, aposto que ainda não vimos aquele mazoku pela última vez. Temos um péssimo histórico quando se trata de negócios inacabados... Com esse pensamento, soltei outro suspiro interno.
———
“Um gigante... Branco?” não pude deixar de franzir a testa abertamente diante da história bizarra que acabara de ouvir.
Gourry e eu tínhamos deixado a cidade para trás um dia antes para ouvir testemunhas em uma pequena vila que havia sido atacada há pouco tempo por um enxame de demônios. Dado esse status quo, achei bastante estranho que o lugar parecesse mais ou menos intocado e que os aldeões continuassem com suas vidas como sempre. Um senhor barbudo concordou em conversar conosco na taverna local em troca do preço de uma refeição.
“Isso mesmo. O punhado de mercenários que contratamos para proteção começou a gritar e correu para a cidade. Saímos e vimos um bando de demônios saindo da floresta ao sul!” disse o homem, gesticulando inutilmente enquanto falava. “Nunca vi um demônio antes... Parecia uma péssima notícia para mim. Achei que estava perdido.”
“Você não contratou os mercenários para te proteger?” perguntou Gourry.
O velho apenas balançou a cabeça.
“Bem, acho que havia umas cem dessas coisas...”
“Cem?” ofeguei.
“Sim. E por mais fortes que os mercenários fossem, havia apenas um punhado deles. Não tiveram a menor chance, então só deram o alarme sobre a chegada dos demônios e fugiram. Não posso culpá-los. Todos nós pensamos que estávamos perdidos, correndo como galinhas com as cabeças decepadas...”
“E foi aí que o gigante branco apareceu?”
“Sim. Ah, posso pegar mais romarl frito?”
“Claro. Senhora! Traga outro prato de peixe romarl frito para este homem! E quero mais três pratos de amostra fritos, almoço combinado C e uma salada especial de acompanhamento!”
“Ah, e vou querer um pedido de cada: linguiça coroa, bacon, batatas e ovos, além dos combos de almoço de A à C!”
“Ei, Gourry, não pense que não percebi que estava colocando esses pedidos! Dois podem jogar esse jogo! Quero o cordeiro assado, a terrine de fígado de peixe e a sopa de ovo de pato também! Enfim, que história é essa de gigante branco?”
“E-Essa reviravolta me deu uma chicotada. Enfim... Os demônios estavam prestes a atacar quando de repente o lugar inteiro se iluminou.”
“Iluminou?”
“Bem, foi como...Um clarão. Ele espantou os demônios num instante.”
“Hã?”
“Eu disse que espantou os demônios. Ainda havia muitos, mas algo estava queimando por perto... Não sei se eram as árvores, e consegui ver o gigante um pouco mais adiante.”
Não sabia bem como reagir a essa informação, porém o velho continuou falando mesmo assim.
“Parecia do tamanho de uma grande colina, eu diria, e era todo branco. Enquanto observava, o gigante lançou mais dois ou três desses clarões e expulsou o resto dos demônios. Os demônios tentaram revidar com suas flechas de fogo, contudo não pareceram ferir o gigante. Se quer saber, deve ser um deus da montanha.”
“Entendo...” respondi vagamente à história do velho.
Mesmo que as variedades de demônios inferiores e bronze fossem o ramo mais baixo da árvore genealógica dos mazokus, a ideia de algo destruir cem deles com apenas algumas rajadas... Com certeza não soa crível. Por outro lado, muito do que Gourry e eu passamos soaria assim para um estranho também. Além do mais, quando chegamos à cidade, vimos as marcas remanescentes de uma batalha na entrada da vila... Enormes trincheiras escavadas na terra, suas paredes derretidas em vidro liso. Sabia que nenhum humano conseguiria fazer tal coisa, então fiquei curiosa sobre sua origem. Seriam vestígios do ataque do gigante?
No entanto que diabos é esse gigante?
“Poderia me contar mais sobre como os demônios ou o gigante se comportaram quando apareceram?”
“Não sei o que mais posso dizer...” o velho franziu o rosto, pensativo. “O gigante desapareceu logo depois, e os outros aldeões apenas assistiram de longe, como foi comigo. Aposto que não devem saber muito mais.”
“Hmm... E os mercenários, então? Aposto que saberiam mais sobre como os demônios apareceram, se não o gigante.”
“Já te disse, todos fugiram antes de tudo acontecer. Nunca mais os vimos, mesmo depois que os demônios se foram. Não que fossem obrigados a voltar.”
“Você tem alguma ideia de para onde teriam ido, então? Bem, acho que não...”
“Não tenho. Entretanto imagino...”
“Imagina o quê?”
“Ouvi dizer que a Cidade de Gyria está recrutando mercenários em grande número. Talvez seja para lá que foram.”
“Bugh!” não consegui conter um gemido ao ouvir esse nome.
———
Hahh... Suspirei melancolicamente, olhando com os olhos vidrados para a cena pacífica ao nosso redor.
“O que houve, Lina?” perguntou Gourry.
“O que te faz pensar que há algo errado?” respondi, apática.
“Você tem estado super deprimida desde que saímos daquela vila. O que houve?”
“Ah... Isso.” falei com outro pequeno suspiro. “É o que aquele aldeão disse... Sobre como a Cidade de Gyria estava recrutando mercenários e que deveríamos dar uma olhada por lá...”
“O que tem?”
“Eu só tenho... Más lembranças de Gyria, sabe?” perguntei com um ar melancólico. Já tinha me metido em... Digamos... Problemas complicados lá antes.
Todavia Gourry apenas devolveu um sorriso brilhante.
“Oh, é só isso? Não é nada típico seu.”
“‘Só isso’? Quem ficaria feliz em revisitar uma cidade da qual tem más lembranças?”
“Bem, vamos lá. Tem alguma cidade da qual tenha boas lembranças?”
“Grk!”
“Viu? Se deixar esse tipo de coisa te abalar, vai ficar deprimida pelo resto da vida. Deixa pra lá!” disse ele todo alegre e me deu um tapinha no ombro.
Quer saber... Tanto faz, cara. Você não está ajudando em nada!
“De qualquer forma. Só suspirar não vai...” começou Gourry, mas parou de repente.
“Hmm? O que...” virei-me, prestes a perguntar o que havia de errado, quando percebi por mim mesma. Havia uma presença tênue espreitando nas profundezas da floresta ao nosso lado.
Isto é...
Antes que pudesse terminar minha linha de pensamento, a presença estava bem em cima de nós! Gourry sacou sua espada e comecei a entoar um feitiço. Uma figura saltou em nossa direção, vinda das sombras do mato. Gourry desviou um golpe silencioso com sua lâmina. Nosso atacante então pulou para longe, para o meio da estrada principal, como se para bloquear nosso caminho.
Ah, essa coisa de novo...
Não sabia o nome da criatura, então comecei a chamá-la de ‘Xamã’.
“Agora... Não haverá... Mais testemunhas...” disse ela.
Em seguida, avançou direto em direção a Gourry! Clang! Assim que suas espadas colidiram...
“Skree!” Xamã soltou um grito como um raptor.
Duas coisas aconteceram ao mesmo tempo: Gourry instintivamente saltou para trás, e uma dúzia de flechas de fogo apareceram onde estivera um momento antes. Elas dispararam, voando em sua direção! Enquanto continuava a correr para trás, ele desviou de algumas e derrubou outras.
Enquanto aquilo acontecia, lancei meu próprio feitiço!
“Zellas Bullid!”
O feixe de luz que produzia podia mudar de curso no ar para perseguir seu oponente, e era poderoso o suficiente para eliminar a maioria dos mazokus com um único golpe.
“Hraaagh!” Xamã soltou outro gemido. Um pequeno e fino escudo de luz apareceu ao seu lado para bloquear meu feitiço.
Hah, mazoku tolo! Meu feixe de luz estilhaçou seu escudo! Eu venci!
Ou assim pensei... Todavia então Xamã deslizou sem esforço para se esquivar por um triz.
Bwuh? Meu ataque voltou para Xamã, mas a coisa mais uma vez invocou um escudo de luz e se esquivou quando este se estilhaçou. Nesse ponto, Gourry já havia lidado com todas as flechas flamejantes e estava pronto para voltar à ação, porém não podia só saltar para o combate nas circunstâncias atuais. Nosso inimigo repetiu a mesma jogada de esquiva do escudo duas, depois três vezes, e... Plink! Meu raio de luz, por fim suficientemente enfraquecido, desapareceu ao perfurar o último escudo.
De jeito nenhum...
Não consegui conter meu espanto. Já tinha visto mazokus resistirem aos meus ataques e não se machucarem. Até os vi evitá-los mudando para o plano astral. Contudo... Esta foi a primeira vez que via um deles combinar habilidade física e magia defensiva leve para neutralizar um feitiço. Obviamente tal feito era muito mais fácil de dizer do que de fazer. O Xamã havia se esquivado de cada um dos ataques do meu raio por um triz. Subestimei a criatura quando nos conhecemos, pensando que era um mazoku idiota e de terceira categoria... No entanto talvez fosse um osso duro de roer, afinal.
Seu rosto se virou para mim.
“Hyah!” ao mesmo tempo, Gourry avançou com um grito e um golpe.
O Xamã desviou o golpe e desferiu um contra-ataque, que Gourry bloqueou com sua lâmina no golpe para trás. Talvez percebendo que outra rodada de flechas flamejantes não seria mais eficaz uma segunda vez, Xamã parecia decidido a prender Gourry em uma luta de espadas.
É claro, eu não iria interferir. Se começasse a lançar feitiços à esmo, acabaria acertando Gourry. Poderia atacar com minha própria espada para chamar a atenção de Xamã, entretanto, com meu nível de habilidade, era mais provável que apenas atrapalhasse Gourry. Resumindo, fiquei parada assistindo de lado.
Ainda assim, estava claro que não chegaríamos a lugar nenhum desse jeito. Precisava de uma maneira de lançar um feitiço na briga sem machucar meu amigo espadachim...
Claro! Saquei minha espada e comecei um cântico, depois corri para os dois. Ambos notaram minha aproximação e voltaram a atenção para mim.
“Não é seguro, Lina! Pare!” gritou Gourry.
Eu o ignorei e pressionei meu avanço. Pouco antes de alcançá-los, mudei de curso, passei por trás do Gourry e o agarrei pelos cabelos!
“O quê?”
Em seguida, entoei minhas palavras de poder.
“Lei Asa!”
Graças ao meu feitiço de voo rápido amplificado, nos afastamos do Xamã. Virei-me e vi a criatura primeiro olhar para o nada, confusa, e depois disparar.
“Ow, ow, ow! Estamos fugindo, Lina?”
“Sem chance! Essa coisa já está na nossa cola!”
Assim que nos distanciamos o suficiente, coloquei-nos no chão e descartei meu feitiço. Antes que Gourry pudesse reclamar que estava puxando seu cabelo, fui para trás dele de novo e pulei em suas costas.
“E-Ei...”
Ignorando sua tentativa de protestar, comecei a entoar outro feitiço.
“Ah, entendi...” enfim percebendo o que estive planejando, Gourry se virou para interceptar a aproximação iminente de Xamã.
Isso mesmo. Só fugi para ganhar tempo para entoar um novo feitiço. Eu ia dispará-lo das costas de Gourry... O que significava que não tinha como acertá-lo! Então, pularia para baixo depois de disparar, para que, mesmo que o feitiço errasse, Gourry pudesse imediatamente pressionar a ofensiva. Só havia uma falha nesse plano: parecia terrivelmente bobo!
Eu havia calculado a distância com perfeição. Quando o Xamã entrou no alcance da espada do Gourry, já havia terminado meu feitiço. Ele bloqueou o golpe do Xamã com um dos seus. Só pude presumir que o mazoku estava em guarda para magia de curto alcance. Ele poderia se esquivar, não importa o quão abruptamente o liberasse, então estava esperando o momento certo por enquanto.
As espadas do Gourry e do Xamã se chocaram outra vez.
Ainda não...
Então uma terceira vez.
Não, não ain... Comecei a dizer a mim mesma, mas reavaliei.
“Bram Blazer!” lancei a luz azul a curta distância, e ela consumiu o Xamã junto com sua espada!
“Graaaah!” o grito do Xamã ecoou pela área ao redor.
Sim!
A luz azul era uma onda de choque que também causava dano espiritual ao oponente. No geral, não faria muito efeito contra um mazoku, porém aumentei sua potência com meu cântico de amplificação. Não seria um abate de um golpe só, embora com certeza seria eficaz!
Só que, enquanto estava pensando, o Xamã cortou a luz em duas!
“O quê?” gritei, tão chocada que esqueci de pular das costas do Gourry.
A espada do Xamã cortou meu feitiço ao meio. Era provável que o uivo anterior não fosse de dor, e sim um encantamento. Ele havia lançado algum tipo de feitiço em sua espada, permitindo que cortasse o meu. Talvez o Xamã ainda tivesse sofrido algum dano no processo... Contudo se sofreu, não foi muito. Como se para atestar isso, assim que terminou de cortar a luz azul, voltou a preparar sua espada para atacar.
“Dam Blas!”
Clink! Nesse momento, um feitiço de ataque atingiu a espada do Xamã pela lateral e a estilhaçou! O Xamã saltou para trás.
“Tch... Errou!” sibilou uma voz familiar do pedaço da floresta onde o feitiço se originara.
“Parece que não nos cansamos um do outro.” falei, num tom descompromissado.
“É, é como uma maldição!” respondeu Luke num tom verdadeiramente azedo.
Três pessoas emergiram da floresta. A primeira foi Luke, de olhos austeros e cabelos negros, em seu traje de espadachim; a segunda foi Mileena, de cabelos prateados e estoica. Já tínhamos nos envolvido em incidentes com esses dois duas vezes antes, entretanto desta vez, eles tinham um homem de cabelos escuros os acompanhando. Ele parecia ter uns 20 anos e também estava vestido como um guerreiro, com uma espada larga pendurada no quadril.
Nunca vi esse cara antes. Embora... Espera, não. Tem coisa mais séria para se fazer aqui...
Olhei para trás e vi o Xamã olhando cuidadosamente entre sua espada quebrada e o novo trio em cena. Pelo menos, presumi que era isso que estava fazendo... Quer dizer, não era como se a coisa tivesse olhos!
“Achei que vocês estivessem lutando contra um assassino comum, mas vejo que me enganei.” disse Mileena, inalterada, com os olhos em Xamã.
Luke assentiu.
“É. Esse cara não me parece humano.” ele então desembainhou a espada e apontou-a para o mazoku.
O Xamã virou o rosto para Luke e os outros.
“Mais... Testemunhas?” sussurrou em um tom quase maravilhoso. Inclinou a cabeça por um momento, como se estivesse pensando em algo, e então... De repente saltou para longe e desapareceu na floresta. Eu podia ouvir o som do passo na grama se distanciando enquanto sentia sua presença se afastando.
“Hã...” comentei.
“A maldita coisa fugiu!” gritou Luke.
Não tenho certeza se o Xamã havia percebido que estava em desvantagem ou se apenas fugiu porque ficou confuso e não conseguia decidir o que fazer. Eu não sabia o que fazer com a disparidade entre seu raciocínio rápido em batalha e sua lentidão em outras situações... Mas, pelo menos por enquanto, parecia seguro presumir que a batalha havia terminado.
Luke parece ter chegado à mesma conclusão, embainhou a espada e voltou o olhar para mim.
“Parece que você se envolveu em mais uma bagunça estranha, hein? Olha, preciso te perguntar uma coisa...”
“Que tal eu guardar a explicação para a vila mais próxima?” propus.
Porém Luke estalou a língua e apontou o dedo para mim.
“Não foi isso que eu quis dizer.”
“O que é então?”
“Quis dizer... Por quanto tempo vocês dois vão brincar de andar de cavalinho?”
———
“Já te disse, era uma estratégia!”
“Tá, entendi. Você subiu nos ombros dele por motivos estratégicos e gostou da sensação, então ficou lá. Mmhmm. Dá para ver como vocês dois são próximos. Foi perfeito... Como um espírito possuído.”
Paramos em um restaurante na cidade mais próxima e fizemos nossos pedidos. Luke ainda não tinha parado de falar sobre minha cavalgada, e senti uma veia pulsando na minha testa.
“Nnnngh... Você precisa parar com isso, amigo.”
“Provoque-os enquanto a provocação é boa. Esse é o meu lema.”
“Qual o problema de uma cavalgada? Não deveríamos falar sobre...”
“Cala a boca, Gourry. Bem, Luke, esse é um lema e tanto! Com certeza explica por que Mileena está tão cansada da sua pessoa.”
“Geh! D-Do que está falando? Mileena sempre diz: ‘É isso que mais amo em você.’...”
“Nunca disse nada minimamente parecido.” interrompeu Mileena, com a expressão inalterada.
“Hah! Viu?”
“Ei, Lina...”
“Já te disse para ficar quieto, Gourry. Estou chegando na parte boa!”
“A parte boa?”
“Snerk! Luke tem uma queda pela Mileena e a segue por toda parte contra a vontade dela!”
“C-Cala a boca! Entenda isso, ok? Mileena é minha...”
“Sua o quê?” foi Mileena, não eu, quem o interrompeu. Luke ficou em silêncio, envergonhado. Antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, Mileena se virou para mim. “Agora, quem era aquele homem com quem estavam? A presença sugeria um mazoku, contudo...” ela parecia um pouco desconfiada.
Havia muita coisa no Xamã que não parecia demoníaca. O fato de empunhar uma espada que podia ser quebrada com um Dam Blas, suas reações lentas... Conseguia entender por que Mileena tinha dúvidas sobre sua natureza, no entanto sua aura sem dúvida me dizia ‘mazoku’. Eu já havia encontrado fusões demoníacas, sínteses de humano e mazoku, antes, e era totalmente diferente. O Xamã tinha o tipo de hostilidade fria que criaturas como demônios de bronze emitem. Acho que, no mínimo, não poderia ser um demônio de alto escalão...
“Também não sei ao certo o que é. Não deve levar muito tempo para explicar, entretanto duas noites atrás... Ah!” gritei inconscientemente.
Por fim me dei conta. O homem viajando com Luke e Mileena... Nunca o tinha visto antes, mas seu rosto me causava uma estranheza familiar, e tinha acabado de perceber o porquê. Ele parecia o homem que o Xamã havia matado naquela noite. Não um sósia, apenas... Parecido. Irmãos, talvez?
“O que é?” perguntou Mileena sem rodeios.
“Oh... Nada!” respondi hesitante enquanto bebia meu suco de qaran. A semelhança podia ser apenas uma coincidência, afinal, e sempre posso perguntar a respeito depois de ouvir sua história. “De qualquer forma, duas noites atrás, aquela criatura... Não sei o seu nome, então vou chamá-la de Xamã. Nós a encontramos logo depois de ter matado alguém. Desde esse encontro, essa coisa está atrás de nós, alegando que precisa matar as testemunhas. O cara que ela matou estava de camisola e hospedado em uma pousada, e Xamã explodiu o seu quarto logo depois... Então ainda não sei quem era, porém...” com essa deixa, lancei um olhar para o homem que acompanhava Mileena e Luke.
“Quer saber sobre ele? É nosso empregador atual.” disse Mileena, interpretando o gesto como um sinal para apresentá-lo. Assim, trocou um olhar com Luke.
Luke devolveu um leve aceno.
“Desculpem a apresentação tardia. Este aqui é Jade, hum...”
“Caudwell. Jade Caudwell.” murmurou o homem em resposta à sugestão de Luke.
Havia algo visivelmente sombrio em sua voz e expressão. Quase como um homem passando por uma situação difícil.
“A verdade é que tem uma coisa bem estranha acontecendo agora na capital de Dils, a cidade Gyria. Ele foi informar os lordes locais, só que nenhum deles quis falar com ele. Mas como nos encontrou e contou a história toda...” explicou Luke sem que eu pedisse.
“E-Espera aí!” tive que insistir. “Tem certeza de que quer nos contar tudo isso? Não está tentando nos arrastar para essa confusão, está?”
“Só me escuta. Faz um tempo... Cerca de um ano, acho? Aposto que você já ouviu falar. Houve um grande e misterioso incêndio em Gyria. Todo o lugar e seu exército acabaram em ruínas.”
“É, sei...”
“A cidade enfim se recuperou... O exército, nem tanto. Afinal, mesmo contratando novos recrutas, eles levam um tempo para se tornarem soldados de verdade, certo? Então estão recrutando mercenários para reforçar suas forças.”
“Sinto que já ouvi falar algo assim em algum lugar...” disse Gourry, mastigando um sanduíche de baguete que pedira de entrada. Era como se tivesse esquecido que também era um mercenário...
“Bem, um dos mercenários era muito superior aos demais. O rei decidiu que gostava deste e o promoveu às pressas, e agora não acontece nada no reino sem a sua permissão. As coisas andam estranhas desde então.”
“É, às vezes se encontra tipos ambiciosos como esse subindo na hierarquia.” Comentei como se não fosse problema meu nem um pouco...
O que, quero dizer, não era! Essa pessoa estava destruindo o status quo do reino, e Jade talvez esteja pedindo aos lordes locais que fizessem algo a respeito, porém entendo por que nenhum estaria disposto a encarar a tarefa. É isso que os grandes cérebros gostam de chamar de ‘assunto interno’. Nenhum lorde se meteria em uma questão tão espinhosa. Eu com certeza não me meteria se estivesse nos seus lugares. Então... Embora não soubesse se era Luke ou Mileena quem tinha aceitado o trabalho, de qualquer forma, era meio estranho que aceitassem.
Como se Luke tivesse lido minha mente, continuou.
“Para ser sincero, também não queria me envolver no começo. Mudei de ideia quando Jade me disse que a nova mercenária figurão era uma garota chamada Sherra.”
“O quê?”
O nome arrancou um grito involuntário da minha garganta.
Não muito tempo atrás, Gourry, Luke, Mileena e eu havíamos lutado com Sherra, a General a serviço de Dinastia Graushera e portadora da espada demoníaca Dulgoffa. Consegui improvisar uma maneira de tirá-la do nosso pé na época, contudo...
Veja bem, era possível que fosse uma pessoa diferente com o mesmo nome. Considerando que sabíamos que a General Sherra já estava tramando ativamente nas proximidades, parecia seguro presumir que era ela e que também estava tramando algo ruim por ali. Falando de forma especulativa, também poderia ser a responsável pelos atuais surgimentos de demônios. A cronologia disso e de suas travessuras mais recentes batem com perfeição. Dito isto, qual seria o seu motivo? E o que estava tramando na Cidade de Gyria agora?
“Ninguém sabe o que tem planejando, é claro.” disse Luke em um tom grave. Ele então apontou para Jade com o olhar. “Pelo que ele disse sobre ela, o nome não é mera coincidência. Ela é Sherra, com certeza. O que significa que tem mais em mente do que um posto confortável no castelo. Jade diz que o seu pai era general do exército real e que vivia dizendo ao rei que Sherra era má notícia, no entanto o rei não deu ouvidos. E então os principais vassalos que se opunham a Sherra começaram a desaparecer um após o outro. Foi quando o seu pai decidiu avisar os lordes locais...”
“E o enviou como mensageiro?” perguntei.
Jade assentiu.
“Visitei vários lordes locais, no entanto todos rejeitaram minha petição, dizendo que não era um assunto com o qual estivessem aptos a lidar. E... É verdade. Quando tento explicar, de fato soa como pura política interna. Só que... Algo parece... Errado.”
“Como assim?” perguntei.
Jade franziu a testa, incerto.
“Isso é... Difícil de articular. Parece mais do que uma mera luta pelo poder. É só que... Tem um cheiro diferente.”
“Cheira diferente, né? Bons instintos, amigo!” interveio Luke.
“Hã?” Jade perguntou, confuso.
Seu companheiro mercenário acenou com a mão, dispensando-o.
“Ah, explicamos depois. Enfim, continue.”
“Certo. Acredito que meu irmão também foi enviado com a petição do meu pai... Entretanto suspeito que não tenha se saído melhor do que eu.”
“Seu irmão?” olhei para cima. “Quer dizer que havia um mensageiro além de você?”
“Sim, havia. Por que pergunta?”
Devo contar ou não? Poderia ter sido uma coincidência total, afinal...
“Posso estar me confundido de pessoa... Apenas mantenha a calma e me escute, ok? O homem que mencionei antes que foi morto pelo Xamã... Ele se parecia muito com você.”
Houve um silêncio considerável. Então, parecendo entender o que implicava, Jade baixou os olhos.
“Er, claro, é possível que esteja imaginando a semelhança e tenha sido outra pessoa. Aconteceu em uma cidade um dia de viagem ao sul daqui... Quer verificar?” perguntei.
O homem permaneceu em silêncio por um tempo, depois balançou a cabeça lentamente.
“Não... Se não for meu irmão, seria perda de tempo. E se for... Mais um motivo para apressar minha volta para Gyria com ajuda.”
“Certo. Entendi.” sem saber o que mais dizer, apenas assenti com a cabeça.
No silêncio que se seguiu, senti alguém puxar minha capa. Olhei e vi Gourry me encarando, em uma clara expressão de alguém esperando uma explicação.
“Então, parece que...” falei, coçando a cabeça. “Há notícias bem ruins rolando na Cidade de Gyria, e precisamos decidir se devemos ir para lá ou não.”
“Oh. Deveria ter dito isso desde o começo.” ele respondeu alegremente.
Hmm. Acho que não estava acompanhando a conversa...
“Er...” Jade começou a parecer preocupado.
Luke acenou com a mão de novo.
“Ah, não se preocupe. Ele é esse tipo de cara.”
“Entendo...”
“Então, vamos para a Cidade de Gyria, Lina?” perguntou Gourry.
“Sim, vamos!” respondi confiante.
Não conseguia ignorar tudo o que tinha ouvido.
———
A viagem para Gyria foi estranhamente tranquila. Claro, é aqui que acrescento ‘até agora’.
Não esquecemos de perguntar às pessoas nas cidades em que paramos ao longo do caminho sobre quaisquer incidentes de invasão demoníaca dos quais tivessem participado. É claro que, como estávamos tentando chegar em um bom tempo, estávamos fazendo um trabalho bem malfeito. De vez em quando, ouvíamos outra história sobre o chamado ‘gigante branco’, mas nada que pudessem me dizer esclareceu o que era ou o que tinha a ver com qualquer coisa. Porém ainda mais preocupante do que isso...
“É estranho que não tenham nos atacado desde então.” murmurou Gourry enquanto desfrutávamos de um jantar tardio a quatro dias da cidade de Gyria.
Estávamos no tipo de restaurante/bar que encontraria em qualquer cidadezinha. Já passava bem da hora do jantar, contudo muita gente tinha vindo beber, então o lugar estava lotado.
“Quem não veio?” perguntou Luke, insuportável, pelo visto sem perceber minha cuidadosa ignorância ao comentário de Gourry.
“Sabe, o mazoku de preto que atacou a mim e à Lina antes.” continuou o grandalhão.
“Quer dizer aquele que estão chamando de Xamã?” interrompeu Mileena.
Guh!
“É verdade que não o vemos há algum tempo. Será que desistiu?” acrescentou Jade.
Gente! Vamos lá!
“O que você acha, Lina?” perguntou Gourry.
“Nem me pergunte, droga!” gritei sem querer.
Todos me olharam surpresos.
“Ei, Lina. O que houve?”
“Aaargh! Você não sabe como essas coisas funcionam? Quando diz ‘aquele mazoku não nos ataca há um tempo’, é justo quando o mazoku ataca! É uma lei do universo!”
“É-É mesmo?”
“Sim! É por isso que estou decididamente tentando evitar o assunto!”
“Ah, não seja idiota. Não tem como...”
Fwoom! O som de uma explosão distante interrompeu as palavras de Luke, e todos, exceto eu, olharam ao redor em choque.
Eu te disse!
“E-Ei! Você só pode estar brincando comigo...” Luke resmungou, começando a se levantar.
Nesse momento, a porta da loja se abriu de repente. Um homem entrou correndo, tropeçando na pressa.
“Pessoal, é uma emergência! Demônios! Indo para a cidade!” gritou ele com a voz rouca, batendo as mãos em uma mesa próxima para se endireitar.
Uma comoção irrompeu entre as pessoas no bar, seguida por... Fwoom! Outra explosão distante.
Não o Xamã, mas um enxame de demônios?
“Ah, ei. Demônios diferentes, pelo menos.”
“Isso não é motivo para relaxar na sua cadeira, Gourry! Ainda é um grande problema! Anda logo!”
Luke, Mileena e Jade, não precisando das minhas ordens, já haviam saído. Gourry e eu corremos para fora do bar atrás deles e encontramos as pessoas da cidade correndo em pânico.
“Nem consigo dizer de onde os demônios estão vindo!” Luke cuspiu, irritado.
Os moradores da cidade estavam em histeria, o que tornava impossível obter as informações de que precisávamos. Queria agarrar alguém e perguntar, porém não havia garantia de que receberia uma resposta correta. Sendo assim...
“Levitação!” antes que pudesse começar meu cântico, Mileena lançou seu próprio feitiço de voo para ascender sobre o teto do bar. Ela olhou ao redor e retornou em seguida.
Conseguir uma visão aérea... Parecia que tínhamos tido a mesma ideia.
“Por aqui!” ela relatou, pousando em segurança e saindo correndo.
Nós a seguimos.
“Usaremos os becos.” declarou Mileena, e mergulhamos no mais próximo para evitar a multidão.
Foi uma boa decisão. Atravessar uma multidão em pânico nunca é fácil. Viramos à direita e à esquerda pelos becos vazios, nós cinco em fila, até que...
“?”
Quando voltamos para a avenida principal, Mileena parou. Corri logo atrás dela. E não vimos... Ninguém. A rua parecia estar deserta.
“Tem certeza de que este era o caminho certo? Não pegamos o caminho errado?” perguntou Jade.
“Não seja idiota. Minha Mileena tem um senso de direção perfeito!” protestou Luke em resposta, com sutil interesse próprio e tudo. (Típico.)
“Eu não sou sua.” objetou Mileena, colocando-o em seu devido lugar. (Também típico.)
“Isso é mais do que apenas ir na direção errada.” murmurei. “O barulho sumiu por completo.”
“Ah!” gritou Jade, aparentemente só agora percebendo isso.
De fato, as vozes em pânico que ouvíamos todo esse tempo haviam parado completamente.
Jade olhou ao redor, perturbado, pois talvez fosse sua primeira experiência com o fenômeno.
“O-O que está acontecendo aqui?”
“É uma barreira.” respondi.
“Exatamente.” respondeu uma nova voz profunda.
***
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