Capítulo 18: Uma Rede de Estrelas
Com bolhas nos doloridos pés descalços e vestido com trapos, Simon conseguiu, pouco a pouco, vencer a sensação de desespero que tinha. Tanto a mente quanto o corpo estavam gravemente feridos pelo infortúnio, e desenvolvera um olhar assustado e um estremecimento reflexivo... Nenhum dos quais escapava ao olhar penetrante de seu novo companheiro, mas o horror que o atormentava fora brevemente repelido; tornara-se, por ora, apenas mais uma dolorosa meia-lembrança. A companhia inesperada ajudou a aliviar a dor dos amigos e do lar perdidos, pelo menos na medida em que permitiu. Uma grande parte de seus pensamentos e sentimentos secretos continuavam a ser reprimidos. Seguia desconfiado e também não estava disposto a investir outra vez e arriscar mais perdas.
Enquanto caminhavam pelas trilhas frescas e vibrantes da floresta matinal, Binabik explicou a Simon que havia saído de sua nobre casa em Yiqanuc, como aparentemente fazia uma vez por ano, a ‘negócios’, uma série de recados que o levaram ao leste de Hernystir e à Erkynlandia. Simon deduziu que envolvia algum tipo de comércio.
— Porém, ah meu jovem amigo, que perturbações encontrei nesta primavera! Vosso povo se encontra muito perturbado, assustado! — Binabik acenou com as mãos em falsa agitação. — Nas províncias remotas, o Rei não é popular, não é? E eles têm medo dele em Hernystir. Em outros lugares há raiva e fome. As pessoas têm medo de viajar; as estradas não são mais seguras. Bem... — ele sorriu. — Se quer que a verdade seja dita, as estradas nunca foram seguras, pelo menos nas áreas isoladas... Contudo é verdade que há uma mudança para pior no norte de Osten Ard.
Simon observava como o sol do meio-dia lançava colunas verticais de luz entre os troncos das árvores.
— Você já viajou para o Sul? — perguntou.
— Se por ‘Sul’ quer dizer ao sul de Erkynlandia, minha resposta é: sim, uma ou duas vezes. No entanto, por favor, lembre-se que entre o meu povo quase qualquer saída de Yiqanuc é uma ‘viagem para o Sul’.
Simon não estava prestando muita atenção.
— E tem viajado sozinho? Qantaqa... Vai... Com você?
Binabik esboçou outro sorriso.
— Não. Foi há muito tempo, antes da minha amiga loba nascer, quando eu...
— Como... Como conseguiu esse lobo? — Simon interrompeu.
Binabik soltou um chiado exasperado.
— É difícil responder a perguntas quando se tem interrupções contínuas com mais perguntas!
O garoto tentou parecer arrependido, entretanto sentia a primavera como um pássaro sente o vento em suas penas.
— Desculpe. — disse. — Já me disseram... Um amigo... Que faço perguntas demais.
— Não são ‘muitas’. — disse Binabik, usando seu bastão para empurrar um galho baixo para longe do caminho deles. — São ‘empilhadas uma em cima da outra’. — o gnomo deu uma risada curta. — Agora, qual delas quer que eu responda?
— Ah, o que preferir. Pode decidir. — respondeu Simon docilmente, e então pulou quando o gnomo lhe deu uma leve pancada no pulso com seu bastão.
— Ficaria feliz se não fosse obsequioso. Essa é uma característica das pessoas do mercado que vendem produtos de má qualidade. Tenho certeza de que prefiro perguntas idiotas e intermináveis a isso.
— Ob... Obse...?
— Obsequioso. Adulador. Não gosto desse tipo de coisa. Em Yiqanuc dizemos: ‘Mande o homem com a língua oleosa lamber os sapatos de neve’.
— O que isso significa?
— Significa que não gostamos de bajuladores. Então, deixa pra lá! — Binabik virou a cabeça para trás e riu, os cabelos negros balançando, os olhos quase desaparecendo enquanto suas bochechas redondas subiam em direção às sobrancelhas. — Não se preocupe! Nós vagamos tanto quanto Piqipeg, o Perdido... Vagamos em nossa conversa, quero dizer. Não, não pergunte nada. Pararemos aqui para descansar, e contarei agora como conheci minha amiga Qantaqa.
Escolheram uma pedra enorme, um afloramento de granito que se projetava do chão da floresta como um punho salpicado, sua metade superior pintada por um raio de sol. O jovem e o gnomo subiram para se empoleirar no topo. A floresta ao redor estava silenciosa; a poeira de sua passagem assentou lentamente. Binabik enfiou a mão na bolsa e tirou um pedaço de carne seca e um odre de cabra com vinho ralo e azedo. Enquanto Simon mastigava, tirou os sapatos para massagear os dedos doloridos sob o sol quente. Binabik olhou para os sapatos com um olhar crítico.
— Teremos que encontrar outra coisa. — ele cutucou o couro esfarrapado e enegrecido. — A alma de um homem está em perigo quando seus pés doem.
Simon sorriu ao pensar na frase do gnomo.
Passaram um tempo em silenciosa contemplação da floresta ao redor, da vegetação viva de Aldheorte.
— Bem... — disse o gnomo por fim. — A primeira coisa que precisa ser entendida é que meu povo não evita os lobos, embora também não costumemos ter amizades com eles. Gnomos e lobos vivem lado a lado há milhares de anos, e na maioria das vezes nos deixamos em paz.
— Nossos vizinhos, se um termo tão educado pode ser usado, os homens peludos de Rimmersgardia, consideram o lobo um animal perigoso e que tende a traição. Você conhece os homens de Rimmersgardia?
— Ah, sim. — Simon ficou satisfeito por conhecê-los. — Eles estavam por toda parte... — ele se conteve. — Em Erchester. Conversei com muitos. Eles usam barbas compridas. — acrescentou, demonstrando sua familiaridade.
— Hmmm. Bem, como vivemos nas altas montanhas, nós, qanuc... Ou gnomos, não matamos esses lobos, os rimmerios pensam que somos demônios-lobos. Em seus congelados e violentos cérebros... — Binabik fez uma expressão de desgosto cômico. — Acreditam que os gnomos são seres mágicos e malignos. Houve lutas sangrentas, muitas, muitas vezes entre os rimmerios... Croohok, como os chamamos, e meu povo qanuc.
— Lamento. — disse Simon, pensando com culpa na admiração que sentira pelo velho Duque Isgrimnur... Que, pensando bem, não parecia ser do tipo que massacra gnomos inocentes, por mais irritadiço que fosse.
— Lamenta? Não deveria. Eu, pessoalmente, penso que os homens e mulheres de Rimmersgardia são desajeitados, estúpidos e sofrem com a altura excessiva, porém não acho que sejam maus ou mereçam ser mortos. Ahhh... — suspirou o gnomo, balançando a cabeça como um padre-filósofo em uma taverna sem saída. — Os homens de Rimmersgardia são um enigma para mim.
— E quanto os lobos? — perguntou Simon, e então se repreendeu por interromper. Desta vez, Binabik não pareceu se importar.
— Meu povo vive na escarpada Mintahoq, nas montanhas chamadas de ‘Montanhas dos Gnomos’ pelos rimmerios. Cavalgamos os carneiros peludos e ágeis, criando-os desde pequenos cordeiros até que tenham tamanho suficiente para nos carregar pelas passagens das montanhas. Não há nada neste mundo, Simon, que se compare a ser um cavaleiro de carneiros de Yiqanuc. Sentar em sua montura, percorrer os caminhos do Teto do Mundo... Saltar em um único salto de grandeza através de abismos montanhosos tão profundos, tão extraordinariamente profundos que, se uma pedra fosse jogada por você, levaria meio dia para atingir o fundo...
Binabik sorriu e semicerrou os olhos em devaneio feliz. Simon, tentando visualizar tais alturas, de repente sentiu-se um pouco tonto e colocou as palmas das mãos sobre a pedra reconfortante. Olhou para baixo. Este poleiro, pelo menos, ficava a apenas um homem de altura acima da terra.
— Qantaqa era um filhote quando a encontrei. — continuou Binabik por fim. — Sua mãe provavelmente havia sido morta, ou morrera de fome. Ela rosnou para mim quando a descobri, uma bola de pelo branco revelada na neve pelo nariz preto. — ele sorriu. — Sim, ela está cinza agora. Lobos, como as pessoas, mudam de cor à medida que crescem, eu me vi... Tocado por seu esforço em se defender. Trouxe-a de volta comigo. Meu mestre... — Binabik fez uma pausa. O grasnar áspero de um gaio preencheu o momento. — Meu mestre disse que se a tirasse dos braços de Qinkipa, a Donzela da Neve, então estava assumindo os deveres de um pai. Meus amigos acharam que eu não estava sendo sensato. Aha! Falei. Vou ensinar este lobo a me carregar como um carneiro com chifres. Ninguém acreditou, não era algo que já tivesse sido feito antes. Tantas coisas são coisas que nunca foram feitas antes...
— Quem é o seu mestre?
Abaixo deles, Qantaqa, que cochilava sob um raio de sol, rolou de costas e chutou, com o pelo branco da barriga grosso como o manto de um rei.
— Essa, amigo Simon, é outra história para contar, contudo não hoje. Para terminar, direi que ensinei Qantaqa a me carregar. O ensino foi uma experiência muito... — Binabik franziu o lábio superior. — Divertida. Não me arrependo de minha decisão. Viajo com frequência para mais longe do que meus companheiros de tribo. Um carneiro é um animal saltador maravilhoso, no entanto suas mentes são muito pequenas. Um lobo é esperto, muito esperto, e é fiel como uma dívida não paga. Sabe, quando eles escolhem uma companheira, estão escolhendo apenas uma para a vida inteira? Qantaqa é minha amiga, e a considero muito preferível a qualquer carneiro. Sim, Qantaqa? Sim?
A grande loba cinzenta sentou-se, seus grandes olhos amarelos fixos em Binabik. Ela abaixou a cabeça e soltou um latido curto.
— Viu? — o gnomo sorriu. — Vamos, Simon. Acho que devemos marchar enquanto o sol está alto.
Ele deslizou pela rocha, e o garoto o seguiu, pulando enquanto calçava os sapatos arruinados.
***
Conforme a tarde passava, e eles caminhavam por entre as árvores densas, Binabik respondia a perguntas sobre suas viagens, demonstrando uma familiaridade invejável com lugares que Simon havia pisado apenas em devaneios. Seu companheiro falava do sol de verão revelando as facetas interiores brilhantes da gelada Mintahoq como o martelo hábil de um joalheiro; das regiões mais ao norte desta mesma Floresta de Aldheorte, um mundo de árvores brancas, silêncio e rastros de animais estranhos; das frias aldeias periféricas de Rimmersgardia, que mal tinham ouvido falar da Corte do Preste John, onde homens barbudos e de olhos arregalados se amontoavam em volta de fogueiras nas sombras das altas montanhas, e até mesmo os mais bravos temiam as formas que vagavam pela escuridão uivante acima. Contou histórias sobre as minas de ouro escondidas de Hernystir, túneis secretos e sinuosos que serpenteavam pela terra negra entre os ossos das montanhas Grianspog, e falava dos próprios hernystiros, pagãos astutos e sonhadores cujos deuses habitavam os campos verdejantes, o céu e as pedras... Os hernystiros, que, de todos os homens, conheciam melhor os sitha.
— E os sitha são reais... — disse Simon baixinho, com admiração e mais do que um pouco de medo, ao se lembrar. — O doutor estava certo.
Binabik arqueou uma sobrancelha.
— Claro que são reais. Acha que ficam aqui na floresta se perguntando se os homens são reais? Que absurdo! Os homens são apenas uma raridade comparados a eles... Embora uma raridade que os tenha prejudicado terrivelmente.
— É que eu nunca tinha visto um antes!
— Você também nunca tinha visto a mim ou ao meu povo. — replicou Binabik. — Nunca viu Perdruin, Nabban ou os Thrithing do Prado... Isso significa então que eles não existem? Que fundo de superstições tolas suas, erkynos! Um homem cuja sabedoria é verdadeira não fica sentado esperando que o mundo venha atrás dele, pedaço por pedaço, para provar sua existência!
O gnomo olhava fixamente para a frente, as sobrancelhas franzidas; Simon temia que o tivesse ofendido.
— Bem, o que um homem sábio faz então? — perguntou, um pouco desafiador.
— O sábio não espera que a realidade do mundo se prove a ele. Como alguém pode ser uma autoridade antes de experimentar essa realidade? Meu mestre me ensinou, e para mim parece chash, ou seja, correto... Que não se deve defender contra a entrada do conhecimento.
— Desculpe, Binabik! — Simon chutou um galho caído e o fez voar. — Mas sou apenas um ajudante de cozinha. Esse tipo de conversa não faz sentido para mim.
— Aha! — rápido como uma serpente, Binabik se inclinou e bateu no tornozelo de Simon com seu bastão. — Isso é um exemplo, exatamente! Aha!
O gnomo sacudiu seu pequeno punho. Qantaqa, acreditando ter sido convocada, voltou galopando para correr em círculos ao redor da dupla, até que tiveram que parar para não tropeçar na loba saltitante.
— Hinik, Qantaqa! — Binabik sibilou.
Ela saiu correndo, o rabo balançando como qualquer cão domesticado do castelo.
— Agora, amigo Simon. — disse o gnomo. — Por favor, perdoe meu enfado, mas você já está me cansando. — ele ergueu a mão para interromper a pergunta de Simon. O jovem sentiu um sorriso se contorcer em seus lábios ao ver seu companheiro tão absorto e sério. — Primeiro... — disse Binabik. — Ajudantes de cozinha não nascem de peixes ou ovos de galinha chocados. Eles podem pensar como os mais sábios, se não resistirem a obter conhecimento. Se não disserem ‘não posso’ ou ‘não quero’. Bom, agora estava explicando o que ia fazer a respeito... Você se importa?
Simon achou graça. Nem se importou em ser atingido no tornozelo, pelo menos não doeu muito.
— Por favor, me explique.
— Então, consideremos o conhecimento como um rio. Se você é um pedaço de pano, como descobrirá mais sobre essa água... Se alguém o mergulhar no seu canto e depois o retirar, ou se for jogado lá dentro sem resistência, de modo que essa água flua por você, ao seu redor, e ficando encharcado? E então?
A ideia de ser jogado em um rio frio fez Simon estremecer um pouco. A luz do sol começava a tomar uma trajetória angulosa: a tarde estava chegando ao fim.
— Suponho... Suponho que se jogar no rio possa ajudá-lo a saber mais sobre água.
— Exato! — Binabik ficou satisfeito. — Com toda certeza! Assim, está entendendo o meu ponto da lição. — o gnomo retomou a caminhada.
Na verdade, o garoto havia se esquecido da pergunta original, porém pouco se importava. Havia algo encantador naquela pequena pessoa, uma sinceridade por trás do bom humor. Simon sentia-se em boas, embora pequenas, mãos.
***
Era difícil não notar que agora seguiam para o oeste; enquanto caminhavam, os raios oblíquos do sol quase os atingiam em cheio. Às vezes, um raio ofuscante atravessava uma fresta nas árvores e Simon tropeçava por um instante, o ar da floresta subitamente ficou repleto de pontinhos brilhantes de luz. Ele perguntou a Binabik sobre a mudança para o oeste.
— Ah, sim. — respondeu o gnomo. — Estamos indo em direção à Batida. Contudo não chegaremos lá hoje. Em breve, pararemos para acampar e comer.
Simon ficou feliz em ouvir a resposta, no entanto não pôde deixar de fazer outra pergunta, afinal, era a sua aventura também.
— O que é a Batida?
— Ah, não é nada perigoso. É o ponto em que o sopé sul de Wealdhelm se inclina com um ar de sela, e pode-se facilmente deixar a floresta densa e não muito segura e atravessar para a Estrada de Wealdhelm. Entretanto, como disse, não chegaremos lá hoje. Vamos ver se encontramos um lugar para montar acampamento.
A poucos metros de distância, encontraram um local que parecia promissor: um aglomerado de grandes rochas em uma margem levemente inclinada ao lado de um riacho na floresta. A água espirrava ao longo de um curso de pedras redondas, cor de pombo, redemoinhando ao redor dos galhos retorcidos que haviam caído no riacho, desaparecendo por fim em um matagal alguns metros abaixo. Um bosque de álamos, de brilhantes folhas verdes, dançava ao início da suave brisa noturna.
Em pouco tempo a dupla construiu uma fogueira com pedras secas encontradas perto do curso d’água. Qantaqa parecia fascinada pelo projeto, aproximando-se às vezes a intervalos para rosnar e morder de leve as pedras enquanto eram carregadas laboriosamente para o lugar. Pouco depois, o gnomo acendeu uma fogueira, pálida e espectral sob os últimos raios de sol potentes da tarde que se esvaía.
— Agora, Simon... — disse Binabik, empurrando a intrusa Qantaqa com o cotovelo para que se agachasse. — Acho que é hora de caçar. Vamos ver se encontramos alguma ave para o jantar e lhe mostrarei truques inteligentes.
O homenzinho esfregou as mãos.
— Mas como vamos pegá-las? — Simon olhou para a Flecha Branca agarrada em sua própria mão suja de suor. — Teremos que disparar nelas?
Binabik riu baixinho, batendo no joelho coberto de couro.
— Você é engraçado para um ajudante de cozinha! Não, não, disse que vou te mostrar truques inteligentes. Veja bem, onde eu moro só há uma curta temporada para caçar pássaros. No inverno frio, não há pássaros, exceto os gansos-das-neves, voando alto nas nuvens, que passam por nossa casa nas montanhas a caminho dos Ermos do Nordeste. Porém em algumas das terras ao sul por onde passei, eles caçam e comem apenas pássaros. Lá, aprendi algumas coisas inteligentes. Vou te mostrar!
Binabik pegou seu bastão e fez sinal para Simon segui-lo.
Qantaqa saltou, contudo o gnomo a dispensou com um gesto.
— Hinik aia, velha amiga. — disse, com carinho.
Suas orelhas se contraíram e sua testa grisalha franziu.
— Estamos partindo em uma missão furtiva, e suas patas grandes não vão ajudar.
A loba se virou e se recostou para se espreguiçar perto da fogueira.
— Não que ela não possa ser mortalmente silenciosa. — disse o gnomo a Simon. — No entanto é apenas quando ela quer.
Os dois cruzaram o riacho e entraram na vegetação rasteira. Em pouco tempo estavam de volta em meio à mata fechada; o barulho da água atrás deles havia se transformado em um murmúrio. Binabik agachou-se, convidando Simon a se juntar a ele.
— Agora vamos trabalhar. — disse.
Segurando seu bastão, deu um rápido giro; para a surpresa de Simon, este se partiu em dois segmentos. O menor, agora via, era o cabo de uma faca cuja lâmina estivera escondida dentro do comprimento oco da seção maior. O gnomo virou o segmento maior e o sacudiu, e uma bolsa de couro deslizou para o chão. Removendo um pequeno pedaço da outra extremidade; o segmento maior agora era um tubo oco. Simon riu de puro deleite.
— Que maravilha! — exclamou. — Como um truque de mágica.
Binabik assentiu sabiamente.
— Surpresas em embalagens pequenas... O credo Qanuc, claro!
O homenzinho pegou a faca pelo cabo cilíndrico de osso e cutucou por um momento o tubo oco. Outro tubo de osso deslizou parcialmente para fora, e terminou de removê-lo com os dedos. Quando o ergueu para inspeção, Simon pôde ver que esse tubo tinha uma fileira de furos em um dos lados.
— Uma... Flauta?
— Sim, uma flauta. De que serve um jantar sem música?
Binabik colocou o instrumento de lado e abriu a bolsa de couro com a ponta da faca. Desdobrada, revelou um amontoado prensado de lã cardada e ainda um tubo fino, este do tamanho de um dedo.
— Cada vez menor, sim? — o gnomo abriu a embalagem para mostrar a Simon o conteúdo, minúsculas agulhas de osso ou marfim, compactadas juntas. Simon estendeu a mão para tocar uma das delicadas lascas, todavia Binabik afastou rapidamente as agulhas.
— Por favor, não. — alertou. — Fique observando.
Binabik pegou uma das agulhas com o polegar e o indicador arqueado, erguendo-a para captar a luz moribunda da tarde; a ponta afiada do dardo estava manchada com uma substância preta e pegajosa.
— Veneno? — sussurrou Simon.
Binabik devolveu um aceno sério em resposta, entretanto seus olhos demonstravam certa excitação.
— Claro! — disse. — Nem todos são tão envenenados... Não é necessário para matar pássaros pequenos e tem uma tendência desagradável a estragar a carne, mas não se pode deter um urso ou outra criatura grande e enfurecida com apenas um pequeno dardo.
Ele deslizou a agulha envenenada entre as outras e selecionou outro dardo sem mancha.
— Você matou um urso com uma? — perguntou Simon, impressionado.
— Sim, eu fiz isso, embora o gnomo sábio não fica na área esperando o urso saber que está morto. O veneno não faz efeito de imediato, entende? Ursos são muito grandes.
Enquanto conversavam, Binabik arrancava um pedaço da lã grossa e desfiava as fibras com a ponta da faca, os dedos trabalhando com a mesma rapidez e competência de Sara, a serva do andar de cima, que remendava. Antes que essa lembrança familiar pudesse evocar qualquer companhia, a atenção de Simon foi capturada outra vez quando Binabik começou a enrolar os fios rapidamente na base do dardo, entrelaçando-os até que a ponta se transformasse em um globo macio de lã. Quando terminou, enfiou tudo, agulha e chumaço, em uma das pontas do bastão oco. Enrolou as outras agulhas na bolsa, guardou-a no cinto e entregou o restante do bastão desmontado a Simon.
— Segure-os, por favor. — pediu o homenzinho. — Não vejo muitos pássaros por aqui, embora agora estejam saindo com bastante frequência para se alimentar dos insetos. Talvez tenhamos que nos contentar com um esquilo... Não que eles não tenham um gosto bom. — apressou-se a explicar enquanto passavam por cima de uma árvore caída. — Porém há um toque e uma experiência mais delicados na caça de passarinhos. Quando o dardo atingir, você compreenderá. Acho que é o voo deles que me toca tanto, e a rapidez com que seus pequenos corações batem.
***
Mais tarde, no sussurro das folhas da noite de primavera, enquanto Simon e o pequeno gnomo preguiçavam perto do fogo digerindo sua refeição... Dois pombos e um esquilo rechonchudo... Simon pensou no que Binabik havia dito. Era estranho perceber o quão pouco se entende alguém de quem se passou a gostar. Como o gnomo podia sentir tanta afeição por algo que ia matar?
“Eu certamente não me sinto assim por aquele maldito lenhador.” pensou. “Ele provavelmente teria me matado tão rápido quanto mataria o homem sitha.”
Será que teria? Teria o homem levantado o machado contra Simon? Talvez não. O lenhador havia pensado que o sitha era um demônio. Havia virado as costas para Simon, algo que não teria feito se o temesse.
“Será que tinha uma esposa?” Simon pensou de repente. “Teria filhos? Mas era um homem perverso! Mesmo assim, homens maus podem ter filhos... O Rei Elias tem uma filha. Ela se sentiria mal se o pai morresse? Eu com certeza não. E não me sinto mal pela morte do lenhador, porém fico triste pela sua família se o encontrassem morto na floresta daquele jeito. Espero que não tivesse família, que estivesse sozinho, que vivesse sozinho na floresta... Sozinho na floresta...”
Simon se levantou de repente, cheio de medo. Quase havia adormecido, sozinho e indefeso... Ainda não. Lá estava Binabik sentado contra a margem, cantarolando para si mesmo. Simon sentiu-se repentinamente muito grato pela presença do homenzinho.
— Obrigado... Pelo jantar, Binabik.
Este se virou para olhá-lo, com um sorriso indolente nos cantos da boca.
— Foi feito com alegria. Agora que viu o que as zarabatanas do sul podem fazer, talvez queira aprender a usá-las?
— Sim, quero muito.
— Muito bem. Vou te mostrar amanhã... Talvez você possa caçar para o nosso jantar, hmm?
— Por quanto tempo... — Simon encontrou um galho e mexeu nas brasas. — Por quanto tempo viajaremos juntos?
O gnomo fechou os olhos e se recostou, coçando a cabeça através dos cabelos negros e grossos.
— Ah, pelo menos um tempo mais, acredito. Você vai para Naglimund, certo? Bem, tenho certeza de que viajarei pelo menos a maior parte do caminho até lá. Soa bem?
— Sim! Hmm, soa sim. — Simon se sentiu muito melhor. Também se recostou, mexendo os dedos dos pés descalços diante das brasas.
— Contudo... — disse Binabik ao seu lado. — Ainda não entendi por que deseja ir para lá. Estou ouvindo relatos de que a fortaleza de Naglimund está sendo guarnecida para a guerra. Estou ouvindo rumores de que o príncipe Josua, cujo desaparecimento se tornou conhecido até mesmo nos lugares remotos de minhas viagens, pode estar escondido lá para guerrear contra seu irmão, o Rei. Será que não ouviu nada a respeito? Por que, se me permite presumir, está indo para lá?
O momento de indiferença de Simon evaporou.
“Ele é apenas pequeno...” repreendeu-se. “Não estúpido!”
Forçou-se a respirar fundo várias vezes antes de responder.
— Não sei muito sobre essas coisas, Binabik. Meus pais estão mortos, e... Tenho um amigo em Naglimund... Um harpista.
“Tudo verdade, mais ou menos... No entanto foi convincente?”
— Hmmmm. — Binabik não havia aberto os olhos. — Talvez existam destinos melhores do que uma fortaleza que espera ser sitiada. Mesmo assim, você demonstra muita coragem partindo sozinho, embora, como dizemos, ‘Corajosos e Tolos frequentemente vivem na mesma caverna’. Talvez, se o seu destino não lhe agradar, possa vir morar conosco, os Qanuc. Seria um gnomo enorme e imponente! — Binabik riu, uma risada alta e boba, como a de um esquilo repreendendo. Simon, apesar de um certo nervosismo, não pôde deixar de participar.
***
O fogo havia se reduzido a um brilho opaco, e a floresta ao redor era uma indeterminada e indistinta massa de escuridão. Simon havia se enrolado firmemente em seu manto. Binabik passava distraidamente os dedos pelos buracos de sua flauta enquanto olhava para o pedaço aveludado de céu visível através de uma abertura nas árvores.
— Olhe! — exclamou, estendendo seu instrumento para apontar para a noite. — Você ve?
O garoto inclinou a cabeça para mais perto da do homenzinho. Não havia nada à vista acima, exceto uma fina fileira de estrelas.
— Não vejo nada.
— Não ve a Rede?
— Que rede?
Binabik olhou para ele com estranheza.
— Não estão lhe ensinando nada naquele castelo quadrado? A Rede de Mezumiiru.
— Quem é esse?
— Aha. — Binabik deixou a cabeça cair para trás. — As estrelas. Aquele monte que está vendo ali em cima é a Rede de Mezumiiru. Dizem que ela a espalha para capturar seu marido Isiki, que fugiu. Nós, qanuc, a chamamos de Sedda, a Mãe Negra.
Simon olhou para os pontos luminosos; parecia que o grosso tecido preto que separava Osten Ard de algum mundo de luz estava se desgastando. Se apertasse os olhos, conseguia distinguir um certo formato de leque no arranjo.
— São tão tênues.
— Tem razão, o céu não está claro. Dizem que Mezumiiru prefere assim, pois, caso contrário, a luz brilhante que as joias de sua rede emitem alerta Isiki para que escape. Mesmo assim, frequentemente há noites nubladas, e ela ainda não o capturou...
Simon apertou os olhos.
— Mezza... Mezo...
— Mezumiiru. Mezumiiru, a Mulher-Lua.
— Mas você disse que seu povo a chama de... Sedda?
— Isso mesmo. Ela é a mãe de todos, como os qanuc acreditam.
Simon pensou por um momento.
— Então por que a chama assim... — ele apontou para cima. — ‘Rede de Mezumiiru’. Por que não ‘Rede de Sedda’?
Binabik sorriu e ergueu as sobrancelhas.
— Uma boa pergunta. Meu povo a chama assim... Ou, na verdade, eles a chamam de ‘Manta de Sedda’ agora. Como viajo mais conheço outros nomes, e parece que foram os sitha que estiveram aqui primeiro. Foram os sitha que, há muito tempo, nomearam todas as estrelas.
O gnomo se sentou por um momento, olhando com Simon para o teto negro do mundo.
— Já sei. — disse ele de repente. — Vou cantar para você a canção de Sedda, ou um pequeno trecho, talvez. Afinal, é uma canção longa. Posso começar?
— Sim! — Simon se aconchegou ainda mais em sua capa. — Cante, por favor!
Qantaqa, que roncava baixinho entre as pernas do gnomo, acordou, erguendo a cabeça para olhar para todos os lados e soltando um rosnado baixo. Binabik também olhou ao redor, estreitando os olhos enquanto tentava penetrar a penumbra do lado de fora da fogueira. Um momento depois, Qantaqa, aparentemente satisfeita por tudo estar bem, cutucou Binabik em uma posição mais agradável com sua enorme cabeça, depois se acomodou de novo e fechou os olhos. Binabik a afagou, pegou sua flauta e soprou algumas notas preparatórias.
— Seja compreensivo... — disse ele. — Isso só pode ser um resumo da canção inteira. Explicarei as coisas. O esposo de Sedda, chamado Isiki pelos sitha, meu povo chama de Kikkasut. Ele é o Senhor de todos os Pássaros...
Solenemente, o gnomo começou a cantarolar com uma voz aguda... Estranhamente melodiosa, como o vento em um lugar alto, parando ao final de cada verso para flautar notas agudas.
A água flui
pela caverna de Tohug.
Na brilhante caverna celeste
Sedda está fiando.
A filha morena do Senhor do Céu
pálida e de cabelos negros, Sedda.
O Rei-pássaro voa
pelo caminho das estrelas
caminho brilhante e reluzente.
Agora ele ve Sedda
Kikkasut a ve
E jura que ela será sua.
“Dê-me sua filha.
Sua filha que fia.
Fia fios finos.”
Kikkasut chama então.
“Eu a vestirei no fim
Em todas as penas brilhantes!”
Tohuq o escuta.
Ouve estas belas palavras
palavras do rico rei-pássaro
Pensa na honra...
Sedda concederá aos desejos
Velho e ganancioso Tohuq.
— Assim que... — explicou Binabik em sua voz falante. — O velho Tohuq, o senhor do céu, está vendendo sua filha para Kikkasut por uma bela capa de penas, que usará para fazer as nuvens. Sedda então parte com seu novo marido para seu país além das montanhas, onde se tornará a Rainha dos Pássaros. Mas a felicidade do casamento não dura muito. Logo, Kikkasut começa a ignorá-la, voltando para casa apenas para comer e xingar Sedda. — o gnomo riu baixinho, limpando a ponta da flauta na gola de pele. — Oh, Simon, sempre foi uma história tão longa... Bem, Sedda vai até uma mulher sábia, que lhe diz que ela poderia reconquistar o coração errante de Kikkasut se lhe desse filhos.
— Com um amuleto que a mulher sábia lhe deu, feito de ossos, malvavisco e neve negra, Sedda consegue então conceber e dá à luz nove filhos. Kikkasut ouve e manda dizer que vem tirá-los dela, para que sejam criados adequadamente como pássaros, e não por Sedda, como filhos inúteis da lua.
— Ao ouvir aquilo, Sedda pega os dois mais jovens e os esconde. Kikkasut vem buscar os outros e pergunta a ela o que aconteceu com os dois desaparecidos. Sedda lhe conta que eles ficaram doentes e morreram. Ele se afasta dela, e ela o amaldiçoa.
Binabik voltou a cantar.
Kikkasut partiu voado
e Sedda chorou
Lamentos por seus filhos perdidos.
Seus filhos todos levados
exceto pelo casal escondido
Lingit e Yana.
Netos do Senhor do Céu
gêmeos da Mulher-Lua.
Secretos e pálidos
Yana e Lingit
escondidos de seu pai
Imortais para sempre ela os manterá...
— Está vendo... — Binabik interrompeu-se. — Sedda não queria que seus filhos tivessem a mortalidade e morressem, como os pássaros e os animais dos campos. Eles eram tudo o que tinha...
Sedda está de luto
solitária e traída.
Vingança ela trama
suas joias brilhantes leva
presente de amor de Kikkasut
e as entrelaça.
No alto da montanha elevada
a morena Sedda escala
com uma manta recém tecida.
Ela se estende no céu noturno
Uma armadilha para seu marido
Ladrão de seus filhos...
Binabik cantou a melodia por um tempo, balançando a cabeça lentamente de um lado para o outro. Por fim, largou a flauta.
— É uma canção de longa duração, Simon, contudo fala de coisas muito importantes. Continua contando sobre as crianças Lingit e Yana, e sua escolha entre a Morte da Lua e a Morte do Pássaro... A lua, como está vendo, morre, no entanto retorna como ela mesma. Os pássaros morrem, mas deixam seus filhotes nascidos para sobreviver. Yana, nós, gnomos, pensamos, escolheu o caminho da Morte da Lua e estava sendo a matriarca... Uma palavra que significa avó, a matriarca dos sitha. Os mortais, eu e você, amigo Simon, somos descendentes de Lingit. É uma canção longa, muito longa... Gostaria de ouvir mais algum dia?
Simon não respondeu. A canção da lua e o suave roçar das asas emplumadas da noite o fizeram adormecer rapidamente.
***
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