quarta-feira, 22 de outubro de 2025

The Haar — Capítulo 16

Capítulo 16


A chuva não parava.

A chuva continuava caindo enquanto Muriel se sentava em frente à televisão, tentando prestar atenção em “The Great Pottery Throw Down”. O homem simpático na tela olhava para um pote de barro e chorava, mas Muriel pensava em Arthur. Ficara tão furiosa com a morte injusta do amigo que não se dera tempo para lamentar, e mesmo assim, ali, no conforto de sua casa, achava difícil se concentrar.

Com fome...

Aumentou o volume da TV. Embora não conseguisse abafar por completo a voz de Avalon... Afinal, estava em sua cabeça, podia muito bem tentar. O que queria que fizesse? Convidar alguém do pessoal de Grant para ser sua refeição?

Não seria exatamente assassinato. Afinal, Avalon não era humano. Era uma criatura, e criaturas não podem assassinar. Elas podem matar, é claro, porém isso era uma questão diferente. A aranha era uma assassina por capturar a mosca?

— Não é a mesma coisa. — disse ela.

Avalon andava e falava como um ser humano quando queria. Não era capaz de tomar decisões morais e éticas? Não o aceitara como a reencarnação viva do marido?

O pensamento lhe doía a cabeça. Não mataria por ele. Não podia matar por ele.

Ah, se ao menos não estivesse com tanta fome o tempo todo.

Desligou a televisão, ouvindo o tamborilar melancólico da chuva, depois se levantou e esvaziou a bacia sob o teto com vazamento na pia. Recolocou-a no lugar e olhou para o pequeno buraco.

Billy poderia consertar aquilo se estivesse ali.

— Billy está morto. — disse para si mesma.

Bastava um telefonema. Apenas um telefonema rápido, dizendo que você está pronta para aceitar o acordo. Eles vão vir, e...

Ela foi até o rádio e o ligou. Era um daqueles digitais sofisticados que seu neto Jack lhe dera. Ele a sintonizara no que chamava de “a estação das antigas”, e Muriel nunca se preocupou em mudar. Roy Orbison cantava Only The Lonely. Muriel sorriu. Tinha uns vinte e poucos anos quando a música foi lançada. Lembrava-se de dançar com os amigos. Billy nunca fora dançarino, nem socializador, aliás, porém Muriel saía com os amigos sempre que podia. Claro, eles estavam todos mortos agora.

Com fome...

Caminhou até a janela. Gotas de chuva salpicavam o vidro, o vento as soprando horizontalmente. Era uma noite traiçoeira, do tipo em que passaria a noite inteira preocupada com Billy se estivesse no mar. Desejou ter ido lá com ele, pelo menos uma vez. A ideia dos dois dormindo em um barco sob as estrelas tinha um inegável fascínio romântico.

Relâmpagos cortavam o céu. Segundos depois, um trovão ribombava acima, ameaçador.

Com fome...

— Não há nada que eu possa fazer sobre isso. — respondeu, alto o suficiente para Avalon ouvir no banheiro.

Inspecionou seus braços machucados e cortados. Eles não pareciam tão ruins ao luar. Riu secamente.

— Tudo fica melhor ao luar. Até uma velha decadente como eu.

Ela ouviu Avalon se debatendo furioso na água e se perguntou se era assim que se sentia quando se enlouquecia.

— Não tenho mais sangue para doar. — disse, sentindo-se esgotada. Ele ainda se debatia, a água do banho transbordando pelas laterais e batendo no linóleo. Não havia nada que pudesse fazer para ajudá-lo. Queria atender seu desejo, queria mesmo, mas o que fazer?

O vento aumentou, parecendo balançar a casa em seus alicerces. Era uma noite miserável, e Muriel não aguentava mais. Decidiu que era hora de dormir. Entrou no quarto para pegar o pijama e a bolsa de água quente da noite anterior e voltou para o corredor. Lá, parou, ouvindo Avalon. Parecia um viciado em drogas em crise de abstinência. Porém havia outro som também. Um leve guincho metálico que conhecia muito bem.

A maçaneta da porta da frente.

Colocou o pijama e a garrafa de água na sapateira e se aproximou nervosamente da porta.

A maçaneta estava se mexendo.

— Quem está aí?

Nenhuma resposta por um longo tempo, e então um baque brutal quando um corpo se chocou contra a porta. Ela deu um passo assustado para trás quando a porta fez um som de se partir.

— Vou chamar a polícia! — gritou.

Outra tentativa de abrir a porta. Desta vez, a fechadura se estilhaçou, abrindo-se vários centímetros antes de prender na corrente. Graças a Deus, havia começado a trancar a porta depois da morte de Arthur.

Através da estreita fresta, viu uma figura, um homem vestido de preto, com o rosto coberto. Virando-se, correu para a sala de estar quando um terceiro golpe arrancou a corrente do batente e a porta se abriu, atingindo a parede. Muriel conseguiu entrar na sala de estar, pegando o fone do gancho e apertando os botões.

9... 9...

Seu dedo pairou sobre o último botão. O que estava fazendo? A polícia nunca chegaria a tempo. E se chegasse, será que se importaria? Tinha que haver algo mais que pudesse fazer, alguma maneira de resolver os problemas que fosse mais... Benéfica para si.

Muriel respirou fundo e calmamente colocou o telefone de volta no gancho. Não havia dúvidas em sua mente.

Sabia o que tinha que fazer.

A porta da sala se abriu. Dois homens entraram, balaclavas cobrindo o rosto de forma que apenas os olhos e a boca estavam visíveis.

— Boa noite, vadia! — disse um deles. Algo longo e fino pendia de sua mão.

Uma corda.

Ele deu um passo em sua direção, a corda balançando para frente e para trás, o vento uivando pela porta quebrada no corredor.

— Jesus Cristo, o que aconteceu aqui? — disse ele, olhando para as paredes e o teto cobertos de sangue. — É um banho de sangue, porra! — o homem encarou Muriel, os lábios se curvando em um sorriso. — Você fez isso? É a porra de uma maldita serial killer ou algo assim?

— Algo assim. — respondeu Muriel.

O homem se virou para o parceiro.

— Verifique o resto do lugar. Certifique-se de que estamos sozinhos.

Muriel observou o outro homem vagar de volta pelo corredor. Ele chutou a porta do quarto e entrou.

A corda balançou hipnoticamente na mão do primeiro homem.

— Chamou a polícia?

— Não! — disse Muriel.

O homem bufou.

— Não faria diferença se chamasse. Você vai morrer esta noite.

— É o que presumo.

— O quarto está limpo. — disse o segundo homem ao aparecer no corredor. — Tem aquele cheiro de velha.

— Cale a boca e olhe a outra porta.

O banheiro.

Muriel se mexia de um pé para o outro. Era agora. Uma refeição para Avalon, entregue direto na porta. E sem culpa, também! Não havia chamado aqueles homens. Não os havia convidado. Os dois tinham vindo para matá-la... E o mundo não sentiria falta de mais duas pessoas más.

O homem com a corda estava falando, contudo ela não estava ouvindo. Em vez disso, tentou espiar o corredor por trás do homem. O segundo homem empurrou a porta do banheiro. Ouviu o ranger nas dobradiças, e Muriel cravou as unhas nas palmas das mãos, esperando por sons de luta, pelos gritos de dor do homem, por...

— Tudo limpo. — disse, recuando para o corredor.

O coração de Muriel batia forte. Onde estava Avalon? Estaria muito fraco, muito desnutrido? Se fosse o caso, a culpa era sua. Ele precisava de sangue, e não o fornecera. Agora, sofreria as consequências de sua própria inação.

— Tudo bem. — disse o primeiro homem. — Vamos ao que interessa. — seu olhar fixou em Muriel. — Sabe por que estamos aqui.

— Vieram para me matar. — disse ela suavemente. Daria qualquer coisa pela aura feliz de Avalon naquele momento, algo para acalmar seus nervos.

— Errado. Você vai se matar. Só estamos aqui para agilizar a situação.

Seu sotaque era americano. Talvez capangas treinados, trazidos dos Estados Unidos especialmente para situações como aquela, bandidos mais acostumados a extorquir gângsteres do que a ameaçar velhinhas.

Aquilo a enfureceu.

Reuniu toda a sua coragem e olhou o homem firmemente em seus olhos frios e impiedosos.

— Vão incendiar minha casa como fizeram com a de Arthur?

— Isso não teve nada a ver com a gente. Um babaca contratou esses amadores por pouco e quase estragou tudo. Você tem sorte. Somos os profissionais. — ele riu baixinho. — E, de qualquer forma, acho que dois incêndios em uma semana seriam bastante suspeitos, não acha?

— Acho que um só já é suspeito.

O sorriso do homem se alargou.

— Você é uma mulher cheia de energia, não é? No entanto já passou por muitas tragédias, eu sei. E é por esse motivo que estamos aqui. A Organização Grant se importa com você. Estão preocupados. Uma senhora idosa morando sozinha. E se alguma coisa acontecesse? E se caísse e não conseguisse se levantar? Talvez sua fiação elétrica esteja com defeito e leve um choque? — sua voz foi diminuindo de tom. — E se... E ouça, estou só dando palpites, porém e se uma senhora solitária estivesse tão triste que todos os homens da sua vida morreram, e seus amigos e vizinhos a abandonaram... E se estivesse tão triste que tirou a própria vida? Ninguém ficaria surpreso. As pessoas concordariam e diriam: sim, faz sentido. Ela não tinha mais nada pelo que viver, então se matou. Não vai virar manchete, com certeza.

Muriel olhou dos olhos dele para a corda e de volta para ela.

— Não tenho medo de morrer. Vivi uma vida longa. Uma vida boa.

— Não perguntei sobre suas memórias, porra.

— E não acredito que te convidei para entrar.

O homem olhou para o parceiro.

— Está ouvindo essa merda? A velha é maluca. — o homem levantou a corda e a deixou balançar. — Coloque isso. — disse, jogando a corda em sua direção. Ela bateu em seu esterno e caiu no chão.

Muriel olhou para a corda. Incapaz de se conter, um leve sorriso cruzou seus lábios.

— Quer que eu me enforque?

— Essa é a ideia.

— Entendo. — ela inclinou a cabeça para ele em uma imitação inconsciente de Avalon. — E onde gostaria que me enforcasse, exatamente?

— Al... — o homem parou de falar enquanto olhava para cima. Não havia vigas. Nada além de um teto plano, coberto de sangue, e uma única luminária que jamais suportaria o peso de uma mulher adulta.

— Vejo que não pensou direito nisso, pensou? — disse Muriel, sua confiança crescendo à medida que um plano tomava forma.

— Não foda comigo, porra! — disse o homem. Seu olhar cruzou ao redor da sala.

— Procurando inspiração?

— Cale a boca! — rosnou. — Ou eu te mato, porra.

— É para parecer suicídio. — interviu o segundo homem.

— Já sei! Será que todo mundo pode ficar quieto e me deixar pensar? — ele esfregou a testa e a encarou. — Você tem comprimidos?

— Como é?

— Comprimidos, vadia. Comprimidos. É uma velha não é? Deve ter remédios por aí. O suficiente para uma overdose.

— Tem paracetamol no armário. — respondeu Muriel friamente. — Acho que só sobraram dois. — ela sorriu para eles. — Será que basta?

O primeiro homem avançou em sua direção, perdendo o temperamento.

— Você está prestes a morrer. Ainda não entendeu?

— Já te disse. Não tenho medo da morte. E com certeza não tenho medo de você. De qualquer forma, se quer saber, tenho uma faca na cozinha.

Ele a olhou inexpressivamente.

— O quê?

— Oh, pense. Uma faca. Posso... — Muriel fez um gesto de cortar os pulsos. — Sabe.

O homem fez um aceno em concordância, o sorriso retornando. Era um sorriso desagradável. Grotesco, na verdade.

— É, entendi. — fez uma pausa. — Você é maluca, sabia?

— Já fui chamada de coisas piores.

Deixando o homem parado ali, foi até a cozinha onde abriu a gaveta de talheres e escolheu a maior e mais afiada faca que conseguiu encontrar. A lâmina brilhava sob o brilho intenso da lâmpada.

— Depressa. — disse o homem.

Ela se virou para ele, com a faca na mão. Ele deu um passo para trás.

— Você não está medo de mim, está? — falou.

— Não confio em ninguém com uma lâmina. Mesmo em uma velha seca como você.

— Que másculo. — zombou, e se dirigiu para a porta.

— Aonde diabos está indo?

— Bem, não é provável que eu me mate na sala de estar, né? Não quando há um banheiro perfeitamente bom com piso de linóleo.

Ela não lhe deu tempo para responder. A adrenalina inundou suas veias enquanto caminhava para o corredor. Ao passar pelo segundo homem, fingiu atacá-lo com a faca. Este gritou e cambaleou para trás, batendo na parede.

Muriel riu baixinho.

— Homens grandes e durões, com medo de uma pequena senhora como eu. — disse ela, ao chegar ao banheiro. Os homens a seguiram, mantendo uma distância cautelosa. Muriel os esperou perto da banheira, a faca tremendo na mão, olhando para a água, para o olho amplo e claro de Avalon.

— Faça logo. — disse o homem. — Estou ficando cansado dessa merda.

O rádio ainda estava ligado na sala de estar, a música vazando pela parede. Over The Rainbow. Sempre amou essa música, mesmo não gostando do filme de onde veio.

Uma música bonita para morrer?

Supôs que sim.

Os homens estavam à espreita na porta, esperando. Ninguém falou. Muriel levantou o braço, as feridas e cortes olhando zombeteiramente para ela, e colocou a lâmina da faca contra sua pele flácida. Já havia feito isso dezenas de vezes nos últimos dias, mas nessas vezes, Avalon se agarrou a ela e a acalmou. Ele removeu a dor, removeu o medo e selou as feridas antes que qualquer dano real pudesse ser causado. Agora estava correndo o maior risco de sua vida. Sabia que poderia morrer. Porém não havia outras opções, não mais. Posicionou a faca na horizontal, pressionou contra o pulso e...

— Assim não. Faça no sentido do comprimento. — o homem se virou para o parceiro. — É mais mortal dessa forma. — explicou.

Ela o lançou um olhar gélido e, em um movimento fluido, puxou a lâmina para trás, estremecendo com o toque gélido. Nada aconteceu por vários segundos, o quarto e seus habitantes congelados. Então o sangue começou a escorrer. Esguichou do ferimento, e Muriel inclinou o pulso para encarar a banheira. O líquido vermelho derramou na banheira, manchando a água enquanto Avalon subia à superfície, lambendo-a. Muriel passou a faca para a outra mão, embora já estivesse enfraquecendo. Tonta, passou a lâmina pela pele. Doeu, contudo não era fundo o suficiente.

Precisava de mais sangue.

— Faça de uma vez. — zombou o homem. — Se mate.

— Estou tentando... — disse Muriel. Suas pernas cederam e cortou o braço, uma, duas vezes. O sangue jorrou livremente, espirrando na água.

— De novo!

Muriel estava perdendo a consciência. O chão pareceu se erguer, o linóleo quadriculado se transformando em um redemoinho monocromático. Agarrou a faca, fechou os olhos e a cravou no antebraço com um grito selvagem.

Enquanto Muriel permanecia ali, com o sangue fluindo, visões do passado ecoavam em sua mente. O homem esbravejou mais ordens, no entanto estava além de qualquer audição, além de qualquer preocupação. Com a faca de cozinha espetada no braço, tombou para a frente, com uma vaga consciência de seu rosto batendo na água, e então tudo ficou completa, verdadeiramente escuro.

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