Capítulo 20: A Sombra da Roda
Ele estava parado na planície aberta, no centro de uma vasta e rasa bacia de grama, um pontinho de vida pálida e ereta em meio a uma profusão infinita de verde. Simon nunca se sentira tão exposto, tão despido do céu. Os campos ascendiam e descendiam desde onde se encontrava; o horizonte, por todos os lados, formava uma densa camada de grama e céu cinza-pedra.
Após um período que poderia ter sido de momentos ou anos em uma atemporalidade tão impessoal e fixa, o horizonte foi rompido.
Com o rangido pesado de um navio de guerra sob vento forte, um objeto escuro apareceu acima da borda que era o limite externo da visão de Simon. Subiu e subiu, impossivelmente alto, até que sua sombra caiu sobre Simon nas profundezas do vale... O impacto da sombra foi tão repentino que pareceu quase ressoar ao atingir, um zumbido profundo e reverberante que sacudiu seus ossos.
A grande envergadura da coisa se destacou contra o céu enquanto permanecia por um longo momento parada na borda do vale. Era uma roda, uma enorme roda negra, alta como uma torre. Afundado no crepúsculo de sua sombra, Simon só conseguia ficar boquiaberto quando ela começou a girar com uma deliberação excruciante, rolando lentamente pela longa encosta verde, jorrando sulcos esfolados de grama atrás de si. O garoto ficou paralisado em seu caminho enquanto esta avançava, tão inexorável quanto as mós do Inferno.
Agora estava sobre ele, a borda à frente, um tronco negro estendendo-se até o firmamento, chovendo turfa por toda parte. O chão sob os pés de Simon se inclinou para a frente enquanto o peso da roda inclinava o leito de terra. O garoto tropeçou e, ao recuperar o equilíbrio, a borda negra estava sobre ele. Enquanto olhava, mudo e horrorizado, uma sombra cinzenta passou diante de seus olhos, uma sombra cinzenta com um núcleo brilhante... Um pardal, voando sem rumo, com alguma coisa brilhante presa em suas garras ondulantes. Simon piscou os olhos para segui-lo e, então, como se de alguma forma tivesse atingido seu coração em sua rápida passagem, lançou-se atrás, fora do alcance da roda em queda...
Mas, ao mesmo tempo em que mergulhava e a borda da parede se espatifava, a perna da calça de Simon foi presa por um prego escaldante que se projetava da borda externa da grande roda. O pardal, a poucos centímetros de distância, voou livremente, espiralando cinza sobre cinza contra o céu de ardósia como uma mariposa, sua carga brilhante desaparecendo junto no crepúsculo. Uma grande voz falou.
Você foi marcado.
A roda arrastou Simon e o fez rolar, sacudindo-o como um cão quebrando o pescoço de um rato. Então, continuou a rolar, puxando-o para o alto. Balançando, foi puxado para o céu, o chão tremendo e se lançando sob sua cabeça como um mar verde pulsante. O vento da passagem da roda o envolvia enquanto subia, circulando em direção ao ápice; o sangue bombeava em seus ouvidos.
Escavando com as mãos a grama e a lama que coagulavam a borda larga, Simon se ergueu penosamente, montando a roda como se fosse o dorso de uma fera alta como uma nuvem. Ele se elevou cada vez mais perto do céu arqueado.
Chegou ao topo e, por um momento, sentou-se empoleirado no cume do mundo. Todos os campos extensos de Osten Ard eram visíveis além da borda do vale. A luz do sol atravessava o céu escuro para tocar as ameias de um castelo e uma bela torre brilhante, a única coisa no mundo que parecia tão alta quanto a roda negra. Piscou, vendo algo familiar em sua linha ampla, porém mesmo quando começou a se afastar, a roda continuou a avançar, empurrando-o para o topo e, em seguida, puxando-o rapidamente em direção ao chão lá embaixo.
Lutou com o prego, puxando a perna da calça para se soltar, todavia de alguma forma se tornaram um só; ele não conseguia se libertar. O chão se elevou. Os dois, Simon e a terra verde virgem, corriam juntos com um ruído como as trombetas do último dia ecoando pelo vale. Ele afundou, os dois se uniram, e o vento, a luz e a música se dissiparam como a chama de uma vela.
De repente...
***
Simon estava na escuridão, nas profundezas da terra que se abria diante de si como água. Ouviu vozes ao seu redor, vozes lentas e hesitantes que saíam de bocas cheias de terra sufocante.
Quem entra em nossa casa?
Quem vem perturbar nosso sono, nosso longo sono?
Eles nos roubarão! Os ladrões nos tirarão nossas camas silenciosas e escuras. Eles nos arrastarão de volta através do Portão Brilhante...
Enquanto as vozes tristes gritavam, Simon sentiu mãos o agarrarem, mãos tão frias e secas quanto osso, ou tão úmidas e macias quanto raízes escavadas, esticando-se, entrelaçando dedos tentando puxá-lo até os seios vazios... Mas não conseguiram detê-lo. A roda girou, girou, esmagando-o para baixo, cada vez mais longe, até que as vozes morreram atrás dele e deslizou pela escuridão gélida e silenciosa.
Escuridão...
“Onde você está, garoto? Está sonhando? Quase posso te tocar.”
Era a voz de Pryrates que falou de repente, e sentiu o peso malévolo dos pensamentos do alquimista por trás dela.
“Agora sei quem é... O garoto de Morgenes, um ajudante de cozinha, um intrometido. Você viu coisas que não deveria ter visto, ajudante de cozinha... Brincou com coisas além de da sua capacidade. Agora sabe demais. Vou procurá-lo.”
“Onde você está?”
E então houve uma escuridão ainda maior, uma sombra sob a sombra da roda, e no fundo daquela sombra duas chamas vermelhas floresceram, olhos que deviam ter olhado de um crânio horrivelmente cheio de chamas.
“Não, mortal...” disse uma voz, e em sua cabeça havia o som de cinzas e terra, e o fim mudo e sem voz das coisas. “Não, isso não é para você.” os olhos flamejaram, cheios de curiosidade e alegria. “Nós ficaremos com este, sacerdote.”
Simon sentiu o domínio de Pryrates se esvaindo, o poder do alquimista murchando diante da coisa escura.
“Bem-vindo...” disse a coisa. “Esta é a casa do Rei da Tormenta, aqui além do Portão Mais Escuro...”
“Qual... É... Seu... Nome?”
E os olhos caíram, como brasas se desintegrando, e o vazio atrás deles queimou mais frio que gelo, mais quente que qualquer fogo... E mais escuro que qualquer sombra...
“Não!” Simon pensou ter gritado, porém sua boca também estava cheia de terra.
“Não vou te contar!”
“Talvez te demos um nome... Precisa ter um nome, mosquinha, pontinho de poeira... Para que a reconheçamos quando nos encontrarmos... Você precisa ser marcado...”
“Não!” Simon tentou se soltar, contudo o peso de mil anos de terra e pedra pesava sobre ele. “Não quero um nome! Não quero um nome! Não...”
“Quero um nome seu!”
Enquanto seu último grito ecoava por entre as árvores, Binabik estava agachado sobre ele, com uma expressão de real preocupação estampada em seu rosto. A fraca luz do sol da manhã, sem fonte e sem direção, enchia a clareira.
— Já tenho de cuidar de um louco, e um quase morto... — disse Binabik enquanto Simon se sentava. — E agora você também precisa começar a gritar dormindo?
O gnomo queria que fosse uma piada, contudo a manhã estava fria e rala demais para suportar a tentativa. O garoto estava tremendo.
— Ah, Binabik, eu... — sentiu um sorriso trêmulo e doentio surgir em seu rosto, forçado pelo simples fato de estar na luz, de estar em cima do chão. — Tive um sonho terrível, terrível.
— Não estou muito surpreso. — respondeu o gnomo, apertando o ombro do companheiro. — Um dia terrível como o de ontem não levaria a um sono nada tranquilo. — o homenzinho se endireitou. — Se quiser, fique à vontade para encontrar algo para comer na minha bolsa. Estou cuidando dos dois monges. — apontou para as formas escuras do outro lado da fogueira. A mais próxima, que Simon supôs ser Langrian, estava envolta em uma capa verde-escura.
— Onde está... — Simon se lembrou do nome depois de alguns instantes. — Hengfisk?
Sua cabeça doía e seu maxilar latejava como se tivesse quebrado nozes com os dentes.
— O desagradável rimmerio... Que, para ser justo é preciso dizer, deu sua capa para aquecer Langrian, está procurando comida e coisas do tipo nos destroços de sua casa. Preciso voltar para ao trabalho, Simon, se já estiver se sentindo melhor.
— Ah, claro. Como eles estão?
— Langrian, tenho o prazer de dizer, está muito melhor. — Binabik assentiu com satisfação. — Ele está dormindo tranquilamente há algum tempo, uma afirmação que você também não pode fazer, hein? — o gnomo sorriu. — O Irmão Dochais, por infelicidade, está além da minha ajuda, mas não está doente, exceto em seus pensamentos tomados de pânico. Dei algo para ajudá-lo a dormir também. Agora, por favor, me perdoe, preciso dar uma olhada nos curativos do Irmão Langrian.
Binabik se levantou e caminhou ao redor da fogueira, passando por cima de Qantaqa, que dormia perto das pedras quentes, e cujas costas Simon havia confundido com outra grande rocha.
O vento roçava as folhas do carvalho acima de sua cabeça enquanto Simon remexia na bolsa de Binabik. Tirou um pequeno saco que parecia conter o café da manhã, porém antes mesmo de abri-lo, um tilintar lhe disse que continha os estranhos ossos que vira antes. Uma busca mais aprofundada revelou carne seca e defumada, enrolada em um pano áspero, contudo assim que abriu o pacote, percebeu que a última coisa que queria era colocar qualquer tipo de comida em seu estômago revirado.
— Tem água, Binabik? Cadê o seu odre?
— Há algo melhor, Simon! — respondeu, agachado sobre o Irmão Langrian. — Há um riacho ali a uma curta caminhada por aqui. — ele apontou, abaixou-se e jogou o saco de pele para Simon. — Poderia me fazer o favor de encher isto.
Quando Simon pegou o odre, viu seus dois pacotes caídos por perto. Num impulso, pegou o manuscrito embrulhado em trapos e o levou consigo enquanto caminhava até o riacho.
O riacho se movia lentamente, e seus redemoinhos estavam obstruídos por galhos e folhas. Simon teve que abrir espaço antes de se abaixar e pegar punhados de água para molhar o rosto. Esfregou com força com os dedos... Era como se a fumaça e o sangue do fim da abadia em ruínas tivessem penetrado em cada poro e ruga. Depois, bebeu vários goles e encheu o odre de Binabik.
Sentou-se na margem e sua mente regressou ao sonho que encobrira seus pensamentos como uma névoa úmida desde que acordara. Como as palavras selvagens do Irmão Dochais na noite anterior, o sonho havia levantado sombras terríveis em seu coração, no entanto a luz do dia, mesmo agora, as derretia como fantasmas inquietos, deixando apenas um resíduo de medo. Tudo o que se lembrava era da grande roda negra que caíra sobre ele. Todo o resto se fora, deixando manchas negras e vazias em sua mente, portas do esquecimento que não conseguia abrir.
Ainda assim, sabia que estava envolvido em algo maior do que apenas a luta dos irmãos reais... Maior até do que a morte do bom velho Morgenes, ou o massacre de vinte homens santos. Eram apenas redemoinhos de uma correnteza maior e mais profunda... Ou, melhor, pequenas coisas esmagadas pelo giro descuidado de uma roda poderosa. Sua mente não conseguia compreender o que tudo aquilo poderia significar, e quanto mais pensava, mais elusivas tais ideias se tornavam. Apenas compreendia que havia caído sob a ampla sombra da roda e, se quisesse sobreviver, precisaria se endurecer diante de suas terríveis revoluções.
***
Deitado na margem, o tênue chiado dos insetos que pairavam sobre o riacho preenchendo o ar, Simon desembrulhou as páginas da biografia do Preste John, escrita por Morgenes, e começou a folheá-la. Fazia tempo que não a olhava, devido à longa marcha e à hora de dormir cedo, depois de montar o acampamento. Desdobrou algumas das páginas onde elas haviam grudado umas nas outras, lendo uma frase aqui, um punhado de palavras ali, não se importando tanto com o que dizia, mas sim se entregando à reconfortante lembrança do amigo. Olhando fixamente para o manuscrito, se lembrou das mãos esguias e cheias de veias azuis do velho, ágeis e inteligentes como pássaros construindo ninhos.
Um trecho chamou sua atenção. Estava em uma página ao lado de um mapa rudimentar desenhado à mão, que o doutor havia intitulado no final: ‘O Campo de Batalha de Nearulagh’. O esboço em si era de pouco interesse, pois, por algum motivo, o velho não se dera ao trabalho de rotular nenhum dos exércitos ou pontos de referência, nem incluíra alguma linha explicativa. O texto subsequente, no entanto, saltou aos seus olhos, uma espécie de resposta aos pensamentos que o atormentavam desde a terrível descoberta do dia anterior.
“Nem a Guerra nem a Morte Violenta...” escreveu Morgenes. “Têm algo de edificante, embora são a vela para a qual a Humanidade se volta repetidamente, tão complacentemente quanto a humilde mariposa. Aquele que já esteve em um campo de batalha e não se deixa cegar pelas concepções populares confirmará que, com base nisso, a Humanidade parece ter criado um Inferno na Terra por pura impaciência, em vez de esperar por aquele original para o qual, se os sacerdotes estiverem corretos, a maioria de nós eventualmente será conduzida.”
“Ainda assim, é o campo de guerra que determina aquelas coisas que Deus esqueceu... Seja por acidente ou não, que mortal pode saber? Para ordenar e organizar. A partir daí, se converte no árbitro da Vontade Divina, e a Morte Violenta é sua Escriba da Lei.”
Simon sorriu e bebeu um pouco de água. Lembrava-se muito bem do hábito de Morgenes de comparar coisas com outras coisas, como pessoas com insetos e a Morte com um velho e enrugado sacerdote arquivista. Em sua maior parte, essas comparações eram incompreensíveis para Simon, todavia às vezes, enquanto se esforçava para acompanhar as voltas e reviravoltas dos pensamentos do velho, um significado surgia de repente, como uma cortina se abrindo diante de uma janela ensolarada.
“John, o Presbítero...” o doutor também escrevera. “Foi sem dúvida um dos maiores guerreiros da época, e sem essa habilidade jamais teria ascendido ao seu estado real final. Entretanto não foi sua luta que o tornou um grande Rei; foi, sim, seu uso das ferramentas da realeza que a luta lhe trouxe, sua arte de governar e seu exemplo para o povo comum.”
“Na verdade, seus maiores pontos fortes no campo de combate eram suas piores falhas como Supremo Rei. No campo de batalha, era um assassino destemido e risonho, um homem que destruía as vidas daqueles que o enfrentavam com a alegria de um barão Utanyeat ao emplumar um veado com uma flecha.”
“Como rei, às vezes era propenso a ações rápidas e imprudentes, e foi assim que quase perdeu a Batalha do Vale de Elvritshalla, e perdeu a boa vontade dos conquistados rimmerios.”
Simon franziu a testa enquanto seguia pela passagem. Podia sentir a luz do sol penetrando por entre as árvores e aquecendo sua nuca. Em seguida deu-se conta de que deveria levar o odre de água de volta para Binabik... Porém fazia tanto tempo que não se sentava em silêncio sozinho, e ficou curiosamente surpreso ao ler Morgenes, ao que parecia, falando mal do dourado e indomável Preste John, um homem que figurava em tantas canções e histórias que apenas o nome de Jesuris Aedon era mais conhecido em todo o mundo, e não por muita diferença.
“Em contraste...” continuava a passagem. “O único homem que era páreo para John no campo de batalha era seu virtual oposto. Camaris-sá-Vinitta, último Príncipe da casa real de Nabban e irmão do atual Duque, um homem para quem a guerra parecia apenas mais uma distração carnal. Montado em seu cavalo Atarin e com a grande espada Espinho em sua mão, era provavelmente o homem mais mortal do nosso mundo... Contudo não sentia prazer em batalhas, e sua grande habilidade era apenas um fardo, pois sua poderosa reputação atraiu muitos contra ele que de outra forma não teriam causa, e o forçou a matar quando não queria.”
“Diz-se no livro do Aedon que, quando os sacerdotes de Yuvenis vieram prender o Santo Jesuris, ele foi de boa vontade, mas quando se propuseram a levar também seus acólitos, Sutrin e Granis, Jesuris Aedon não permitiu e matou os sacerdotes com um toque de sua mão. Ele chorou com a morte e abençoou seus corpos.”
“Assim foi com Camaris, se é que uma comparação tão sacrílega pode ser feita. Se alguém se aproximava do terrível poder e do amor universal que a Mãe Igreja atribui a Jesuris, Camaris era esse, um guerreiro que matava sem ódio pelos seus inimigos e, ainda assim, era o lutador mais terrível deste, ou talvez de qualquer outro...”
— Simon! Por favor, venha rápido! Preciso da água, e preciso agora!
O som da voz de Binabik, áspera e urgente, fez Simon se sentir culpado e se levantar de um pulo. Ele subiu a ribanceira em direção ao acampamento.
Porém Camaris era um grande guerreiro! Todas as canções o descreviam rindo com vontade enquanto decepava as cabeças dos homens selvagens dos Thrithings.
“Shem costumava cantar uma, como era...?”
Ele deu a eles o lado esquerdo,
deu a eles o lado direito.
Gritou e cantou
enquanto fugiam dando-lhe as costas.
Camaris veio rindo
Camaris veio lutando
Camaris veio cavalgando
Através da Batalha dos Thrithings...
Ao emergir do mato, Simon viu sob a luz brilhante do sol... Como o sol havia chegado tão alto? Notou que Hengfisk havia retornado e que, junto de Binabik, estavam agachados sobre a figura deitada do Irmão Langrian.
— Aqui, Binabik. — o garoto entregou o odre ao gnomo ajoelhado.
— Foi um belo e longo tempo que você esteve... — Binabik começou, contudo parou, sacudindo o odre de água. — Meio cheia? — perguntou, e a expressão em seu rosto fez Simon corar de vergonha.
— Eu tinha acabado de beber um pouco quando você chamou. — desculpou-se.
Hengfisk lançou lhe um olhar reptiliano e franziu a testa.
— Bem... — disse Binabik, voltando-se para Langrian, que parecia muito mais corado do que Simon se lembrava. — ‘Subir é subir, cair é cair’. Acho que nosso amigo aqui deve estar melhorando.
Ergueu o odre e esguichou algumas gotas de água na boca de Langrian. O monge inconsciente tossiu e cuspiu por um momento, então sua garganta se moveu convulsivamente enquanto engolia.
— Está vendo? — perguntou Binabik orgulhosamente. — Creio que é o ferimento na cabeça que...
Antes que Binabik pudesse terminar a explicação, os olhos de Langrian se abriram de repente. Simon ouviu Hengfisk respirar fundo. O olhar de Langrian vagou, turvo, pelos rostos que pairavam ao redor, e então seus olhos voltaram a se fechar.
— Mais água, gnomo. — sibilou Hengfisk.
— O que estou fazendo aqui é o que sei, rimmerio! — respondeu Binabik com fria dignidade. — Você já estava cumprindo seu dever quando o resgatou das ruínas. Agora estou cumprindo o meu, e não preciso de sugestões. — enquanto falava, o homenzinho deixou cair água pelos lábios rachados de Langrian.
Depois de alguns instantes, a língua do monge, inchada pela sede, saiu da boca como um urso acordando de um sono invernal. Binabik a umedeceu com o odre, depois umedeceu um pano e o colocou sobre a testa de Langrian, marcada por cortes cicatrizados.
Finalmente, ele abriu os olhos de novo e pareceu se concentrar em Hengfisk. O rimmerio segurou a mão de Langrian.
— He... Hen... — grasnou Langrian.
Hengfisk pressionou o pano úmido contra a pele.
— Não fale, Langrian. Descanse.
Langrian desviou o olhar de Hengfisk para Binabik e Simon, e depois de volta para o monge.
— Os outros...? — conseguiu dizer.
— Descanse por agora. Você precisa descansar.
— Este homem e eu enfim concordamos em algo. — Binabik sorriu para seu paciente. — Você deveria dormir.
Langrian pareceu querer falar mais, contudo antes que pudesse, suas pálpebras se fecharam, como se seguisse um conselho, e adormeceu.
***
Duas coisas aconteceram naquela tarde. A primeira ocorreu enquanto Simon, o monge e o gnomo faziam uma refeição escassa. Como Binabik não queria deixar Langrian, não havia caça fresca; o trio se contentou com carne seca e os produtos da coleta de Simon e Hengfisk, frutas vermelhas e algumas nozes esverdeadas.
Enquanto estavam sentados, mastigando em silêncio, cada um imerso em seus próprios pensamentos muito diferentes... O de Simon, uma mistura igual da horrível roda dos sonhos e das figuras triunfantes de John e Camaris no campo de batalha, o Irmão Dochais morreu repentinamente.
Num momento, estava sentado em silêncio, acordado, embora sem comer... Recusara as frutas que Simon lhe oferecera, encarando-o como um animal desconfiado até que o menino as retirasse... E, no momento seguinte, rolara de bruços, tremendo a princípio e depois se contorcendo em espasmos. Quando os outros conseguiram virá-lo, seus olhos já estavam revirados, revelando um branco medonho em seu rosto sujo de terra; no momento seguinte, ele parara de respirar, apesar de seu corpo permanecer rígido como uma verga. Abalado como estava, Simon tinha certeza de que, pouco antes do momento final, ouvira Dochais sussurrar ‘Rei da Tormenta’. As palavras queimavam em seus ouvidos e perturbavam seu coração, no entanto não conseguia entender por quê, a menos que as tivesse ouvido em seu sonho. Nem Binabik nem o monge disseram nada, mas Simon tinha certeza de que ambos tinham ouvido.
Hengfisk, para surpresa de Simon, chorou amargamente sobre o corpo. Ele próprio, de alguma forma estranha, sentiu-se quase aliviado, uma emoção bizarra que não conseguia entender nem reprimir. Binabik estava tão indecifrável quanto pedra.
***
A segunda coisa aconteceu enquanto Binabik e Hengfisk discutiam, mais ou menos uma hora depois.
— Estou de acordo que podemos ajudar, porém está se equivocando se pensa em me dar ordens. — a raiva de Binabik estava firmemente controlada, entretanto seus olhos se estreitaram em traços negros sob as sobrancelhas.
— Mas só vai ajudar a enterrar Dochais! Deixará os outros virarem comida para lobos? — a raiva de Hengfisk não estava nem um pouco controlada, e seus olhos se arregalaram, arregalados e fixos em seu rosto avermelhado.
— Eu tentei ajudar Dochais. — replicou o gnomo. — E falhei. Vamos enterrá-lo, se é isso que deseja. Todavia não é meu plano passar três dias enterrando todos os seus irmãos mortos. E há propósitos piores que ser ‘comida para lobos’... Coisas que talvez fizeram enquanto vivos, ao menos alguns deles!
Hengfisk levou um momento para decifrar a fala confusa de Binabik, no entanto quando o fez, sua cor ficou ainda mais intensa, se é que era possível.
— Seu... Seu monstro pagão! Como pode falar mal de mortos insepultos, seu... Anão venenoso!
Binabik sorriu, um sorriso inexpressivo e mortal.
— Se o seu Deus os ama tanto, então levou suas... Almas, não é? Para o Céu, e ficar ali deitado só fará mal aos seus corpos mortais...
Antes que outra palavra pudesse ser dita, ambos os combatentes foram interrompidos de sua disputa por um rosnado profundo de Qantaqa, que cochilava do outro lado da fogueira, ao lado de Langrian. Em um instante, ficou claro o que havia assustado a loba cinzenta.
Langrian estava falando.
— Alguém... Alguém avise o... O abade... Traição! — a voz do monge era um sussurro áspero.
— Irmão! — gritou Hengfisk, mancando o mais rápido que pôde para o seu lado. — Poupe suas forças!
— Deixe-o falar! — respondeu Binabik. — Pode estar salvando nossas vidas, rimmerio.
Antes que Hengfisk pudesse responder, os olhos de Langrian se abriram. Olhando primeiro para Hengfisk, depois para o ambiente ao redor, o monge estremeceu como se tivesse sentido um calafrio, apesar de estar envolto em um pesado manto.
— Hengfisk... — ele sussurrou. — Os outros... Estão...
— Todos mortos. — Binabik foi franco.
O rimmerio lhe lançou um olhar odioso.
— Jesuris os chamou para o seu lado, Langrian. — explicou. — Só você restou.
— Eu... Temia...
— Pode nos contar o que aconteceu? — o gnomo se inclinou para a frente e colocou outro pano úmido na testa do monge.
Simon podia ver agora pela primeira vez, por trás do sangue, das cicatrizes e da doença, que o Irmão Langrian era bem jovem, talvez não tivesse vinte anos.
— Não se canse. — acrescentou Binabik. — Contudo nos diga o que sabe.
O ferido fechou os olhos outra vez, como se estivesse voltando a dormir, no entanto estava apenas reunindo forças.
— Havia... Uma dúzia ou mais de homens que vieram... Entraram, abrigando-se... Da estrada. — ele lambeu os lábios; Binabik aproximou o odre de água. — Muitos grupos grandes... Estão viajando ultimamente. Nós os demos de comer, e o Irmão Scenesefa... Os colocou no Salão do Viajante.
Enquanto bebia água e conversava, o monge pareceu ir retomando suas forças.
— Eram um grupo estranho... Não desceram ao salão principal naquela noite, exceto o líder... Um homem de olhos claros que usava... Um elmo de aparência maligna... E uma armadura escura... Ele perguntou... Perguntou se tínhamos ouvido falar de um grupo indo para o Norte... De Erchester...
— Rimmerios? — pensou Hengfisk, franzindo a testa.
“Erchester?” pensou Simon, atormentado. “Quem poderia ser?”
— O abade Quincines disse ao homem que não tínhamos ouvido falar de nenhum grupo assim... E ele pareceu... Satisfeito. O abade pareceu preocupado, mas é claro que não compartilhou sua preocupação com... Nós, os irmãos mais novos... Na manhã seguinte, um dos irmãos veio dos campos montanhosos para relatar uma companhia de cavaleiros vinda do sul... Os estranhos pareceram... Muito interessados, dizendo que era... O restante do grupo original que viera ao seu encontro. Seu líder de olhos claros... Levou seus homens ao grande pátio para saudar os recém-chegados... Ou assim pensávamos...
— Assim que a nova companhia chegou ao topo da colina e foi avistada da abadia, eles pareciam ser apenas uma... Ou duas cabeças a menos que nossos hóspedes atuais...
Langrian teve que parar para descansar um pouco, ofegando. Binabik teria lhe dado algo para fazê-lo dormir, porém o monge ferido dispensou a oferta.
— Não há muito... Mais a contar. Um dos outros irmãos... Viu um dos convidados sair correndo, atrasado, do Salão do Viajante. Este não havia terminado de vestir sua capa, todos estavam encapuzados, embora a manhã estivesse quente... E sob ela havia o brilho da lâmina de uma espada. O irmão correu até o abade, que temia algo parecido. Quincines foi confrontar o líder. Nesse meio tempo, podíamos ver os homens descendo a colina a cavalo, todos rimmerios, barbudos e com tranças. O abade disse ao líder que ele e seus homens deveriam partir, que a Igreja de São Hoderund não seria palco de uma luta de bandidos. O líder sacou sua espada e a colocou na garganta de Quincines.
— Misericordioso Aedon! — sussurrou Hengfisk.
— Um momento depois, ouvimos cascos. O Irmão Scenesefa correu de repente para o portão do pátio e gritou um aviso aos estranhos que se aproximavam. Um dos... ‘Convidados’... Acertou uma flecha em suas costas, e o líder cortou a garganta do abade.
Hengfisk conteve um soluço e fez o sinal da Árvore sobre o coração, contudo o rosto de Langrian estava solene, sem emoção, e continuou sua narrativa sem pausa.
— Então houve uma carnificina, os estranhos pulando sobre os irmãos com faca e espada, ou puxando arcos e flechas de esconderijos. Quando os recém-chegados passaram pelo portão, foi com suas próprias espadas desembainhadas... Suponho que ouviram o aviso de Scenesefa e o viram ser abatido no arco do portal.
— Não sei o que aconteceu então, pois tudo era loucura. Alguém jogou uma tocha no telhado da capela, e ela pegou fogo. Corri para buscar água enquanto as pessoas gritavam e os cavalos relinchavam e... E alguma coisa me atingiu na cabeça. É tudo que lembro.
— Então você não sabe quem estava em nenhum desses dois bandos em guerra? — perguntou Binabik. — Eles lutaram entre si ou eram parceiros?
Langrian assentiu com seriedade.
— Eles lutaram. Os emboscadores tiveram muito mais dificuldade com eles do que com monges desarmados. Isso é tudo que posso dizer... Tudo o que sei.
— Que queimem no inferno! — sibilou o Irmão Hengfisk.
— Queimarão, sei que vão. — Langrian suspirou. — Acho que preciso dormir de novo.
Ele fechou os olhos, mas sua respiração não mudou.
Binabik se endireitou.
— Acho que vou caminhar um pouco. — disse o homenzinho. Simon assentiu. — Ninit, Qantaqa. — chamou, e a loba saltou, espreguiçou-se e o seguiu. Os dois desapareceram na floresta em instantes, deixando Simon com os três monges, dois vivos e um morto.
***
Os serviços para Dochais foram breves e modestos. Hengfisk encontrara um sudário nas ruínas da abadia. Enrolaram-no em volta do corpo magro de Dochais e o baixaram para um buraco que os três homens saudáveis haviam cavado no cemitério da abadia, enquanto Langrian dormia na floresta com Qantaqa como guardiã. A escavação fora um trabalho árduo... O fogo no grande celeiro queimara os cabos de madeira das pás, deixando apenas as lâminas para serem manuseadas à mão, um trabalho extenuante e suado. Quando o Irmão Hengfisk concluiu suas orações fervorosas, unindo-as a promessas de justiça divina, parecendo esquecer em seu fervor que Dochais estivera longe da abadia quando os assassinos fizeram seu trabalho, era o finalzinho da tarde. O sol havia se posto até não restar nada além de um resíduo brilhante ao longo do cume da colina, e a grama do cemitério estava escura e fresca. Binabik e Simon deixaram Hengfisk agachado ao lado do túmulo, com os olhos bem fechados em prece, e foram procurar comida e explorar as terras da abadia.
Embora o gnomo tivesse o cuidado de evitar o máximo possível a cena da tragédia, seus resultados se estendiam de tal maneira que Simon rapidamente começou a desejar ter retornado ao acampamento na floresta para esperar com Langrian e Qantaqa.
Um segundo dia de calor não fizera nada para melhorar a condição dos corpos. Em sua cor rosada e inchada, Simon viu uma semelhança desagradável com o porco assado que coroava a mesa do Dia da Senhora em casa. Uma parte sua desprezava essa fraqueza... Já não havia visto uma morte violenta, um campo de batalha cheio em poucas semanas? Porém percebeu enquanto caminhava... Tentando manter os olhos à frente, para evitar a visão de outros olhos, vidrados e rachados pelo sol... Que a morte, pelo menos para ele, nunca era a mesma, não importava o quão veterano observador se tornasse. Cada um desses sacos de ossos e moelas destruídos já fora uma vida, um coração pulsante, uma voz que reclamava, ria ou cantava.
“Um dia isso vai acontecer comigo.” pensou enquanto contornavam a lateral da capela. “E quem se lembrará de mim?”
Não conseguiu encontrar uma resposta, e a visão do pequeno campo de lápides, com sua limpeza cruelmente satirizada pelos corpos esparramados de monges assassinados, lhe ofereceu pouco conforto.
Binabik havia encontrado os restos carbonizados da porta lateral da capela, áreas de madeira sólida aparecendo através da superfície negra como carvão, como listras de latão recém-limpo em uma lâmpada velha. O gnomo cutucou a porta, soltando fragmentos queimados, contudo a estrutura resistiu. Deu uma cutucada mais vigorosa com seu bastão, no entanto ela ainda estava presa, uma sentinela que havia morrido em serviço.
— Ótimo! — disse. — Está sugerindo que podemos entrar sem que toda a estrutura desabe sobre nossas cabeças.
Ele pegou seu bastão e o enfiou através de uma fissura entre a porta e o batente, depois a usou como uma alavanca, empurrando e alavancando até que, com uma pequena ajuda de Simon, esta se abriu em uma chuva de poeira preta.
Depois de tanto esforço para abrir uma porta, era realmente estranho entrar e descobrir que o teto havia desaparecido, a capela tão aberta para o ar quanto um barril sem tampa. Simon olhou para cima e viu o céu emoldurado acima, ficando vermelho na parte inferior e cinza no topo com o início da noite. Ao redor do topo das paredes, as janelas estavam enegrecidas em seus batentes, a parte superior torcida para fora, derramando seu vidro fuliginoso como se uma mão gigante tivesse arrancado o teto, estendido através das vigas e cutucado cada janela com um dedo titânico.
Uma rápida inspeção não revelou nada de útil. A capela, talvez por causa de suas ricas cortinas e tapeçarias, havia queimado até as paredes. Esculturas de cinzas em ruínas representando bancos, escadas e um altar permaneciam no lugar, e os degraus de pedra do altar exibiam o fantasma de uma coroa de flores, uma coroa perfeita e impossivelmente delicada de folhas finas como papel e flores diáfanas de freixo cinza.
Em seguida, Simon e Binabik atravessaram a área comum até as residências, um longo corredor baixo com pequenas habitações. Os danos ali foram moderados... Uma extremidade pegou fogo, todavia por algum motivo apagou antes que o incêndio se alastrasse.
— Procure especialmente por botas. — disse Binabik. — São sandálias que esses homens da abadia na maior parte do tempo usam, mas alguns deles podem precisar cavalgar ou viajar em tempo frio as vezes. Algumas que lhe sirvam são melhores, porém, em caso de necessidade, pegue as muito grandes em vez das muito pequenas.
Os dois começaram em extremidades opostas do longo corredor. Nenhuma das portas estava trancada, contudo eram cômodos pequenos e angustiantemente vazios, com uma árvore na parede como única decoração na maioria. Um monge pendurara um galho florido de sorveira-brava acima de seu catre duro; sua alegria em um ambiente tão modesto animou Simon, até que se lembrou do destino do residente do quarto.
Na sexta ou sétima habitação, Simon se assustou quando, ao abrir a porta do cômodo, ouviu um chiado e o som de algo passando rapidamente perto de seu tornozelo. A princípio, pensou que uma flecha havia sido disparada contra ele, embora uma olhada para a pequena habitação vazia mostrou a impossibilidade de tal coisa. Um momento depois, percebeu o que era e esboçou um meio sorriso. Um dos monges, sem dúvida em violação às regras da abadia, tinha um animal de estimação... Um gato, nada mais, nada menos, igual ao pequeno gato cinzento com quem fizera amizade em Hayholt. Depois de dois dias trancado, esperando pelo mestre que não voltaria, ficou faminto, furioso e assustado. Simon voltou pelo corredor procurando pelo gato, no entanto o animal havia sumido.
Binabik o ouviu andando.
— Está tudo bem, Simon? — chamou, fora de vista em uma das outras habitações.
— Sim! — gritou em resposta.
A luz nas pequenas janelas acima de sua cabeça estava bastante cinzenta agora. O garoto se perguntou se deveria voltar para a porta, encontrando Binabik no caminho, ou seguir e procurar mais um pouco. Estava interessado, pelo menos, em examinar o quarto do monge com o gato contrabandeado.
Alguns momentos depois, Simon se lembrou dos problemas de manter animais confinados por muito tempo. Tapando o nariz, deu uma rápida olhada ao redor do local e avistou um livro, pequeno, entretanto bem encadernado em couro. Atravessou na ponta dos pés o chão suspeito, pegou o livro em cima do baixo leito e tornou a sair.
Tinha acabado de se sentar no quarto ao lado para dar uma olhada em seu prêmio quando Binabik apareceu na porta.
— Estou com pouca sorte aqui. E você? — perguntou o gnomo.
— Sem botas.
— Bem, já está anoitecendo. Acho que devo dar uma olhada no Salão do Viajante, onde os estranhos assassinos estavam dormindo, caso haja algum objeto lá que nos diga alguma coisa. Espere por mim aqui, hmmm?
Simon assentiu e Binabik saiu.
O livro era, como Simon esperava, um Livro de Aedon, apesar de ser um livro muito caro e bem-feito para um monge pobre ter em sua posse; Simon imaginou que fosse um presente de um parente rico. O volume em si não tinha nada de especial, embora as iluminuras fossem muito bonitas... Pelo menos até onde Simon podia perceber na luz fraca, mas havia uma coisa que chamou sua atenção.
Na primeira página, onde as pessoas costumavam escrever seus nomes, ou palavras de saudação se o livro fosse um presente, havia esta frase, escrita com cuidado, porém de forma trêmula...
“Perfurando meu coração, há uma adaga de ouro;
É Deus
Perfurando o coração de Deus, há uma agulha de ouro;
Este sou eu.”
Enquanto Simon observava as palavras, sua recém-descoberta determinação foi testada; sentiu uma onda o percorrer, um oceano avassalador de remorso e medo, e uma sensação de coisas que, embora invisíveis, estavam se esvaindo dolorosamente.
Em meio ao seu devaneio, Binabik enfiou a cabeça pela porta e jogou um par de botas no chão ao seu lado com um barulho abafado. O garoto não ergueu os olhos.
— Há muitas coisas interessantes no Salão do Viajante, como suas botas novas. Contudo a escuridão está chegando, e talvez eu demore apenas mais um momento. Nos encontramos na frente do salão, daqui a pouco.
E ele se foi novamente.
Após longos momentos de silêncio após a saída do gnomo, Simon largou o livro... Planejara pegá-lo, no entanto mudara de ideia, e experimentou as botas. Em outras circunstâncias, teria ficado satisfeito em ver como elas serviam, mas agora apenas deixou seus sapatos esfarrapados no chão e caminhou pelo corredor em direção à entrada principal.
A luz fraca do entardecer havia descido. Do outro lado do pátio ficava o Salão do Viajante, um prédio gêmeo do qual acabara de sair. Por algum motivo, a visão da porta à sua frente balançando indiferentemente para frente e para trás o encheu de um vago medo. Onde estava o gnomo?
Assim que se lembrou do portão oscilante do cercado que fora o primeiro sinal de que nem tudo estava bem na abadia, Simon se assustou com uma mão áspera agarrando seu ombro, puxando-o para trás.
— Binabik! — conseguiu gritar, e então uma palma grossa cobriu sua boca, e foi esmagado contra um corpo duro como pedra.
— Vawer es do kunde? — rosnou uma voz em seu ouvido com o sotaque pétreo de Rimmersgardia.
— Im tosdten-grukker! — zombou outra voz.
Em pânico cego, Simon abriu a boca atrás da mão protetora e mordeu. Ouviu-se um grunhido de dor e, por um momento, sua boca ficou livre.
— Socorro! Binabik! — gritou, e então a mão o cobriu outra vez, agora com uma dor esmagadora, e um segundo depois sentiu um impacto negro atrás da orelha.
Ainda conseguia ouvir os ecos do seu grito se dissipando enquanto o mundo se transformava em água diante de seus olhos. A porta do Salão do Viajante se abriu, e Binabik não apareceu.
***
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