terça-feira, 7 de outubro de 2025

The Haar — Capítulo 14

Capítulo 14


Vários meses após o desaparecimento de Billy, Muriel doou a maior parte de suas roupas velhas a um brechó. Claro, algumas das peças mais esfarrapadas jogou fora. Foi um dia doloroso para ela, e havia algumas peças de grande valor sentimental das quais se recusara a se desfazer.

Parando ao lado do armário do quarto, tirou uma bolsa verde, colocou-a sobre a cama e abriu o zíper. Dentro estava o terno de Billy. Ele o usara no casamento deles e em alguns funerais. Uma vida no mar o mantivera em forma, e nunca o deixara pequeno. Desempacotou as calças e o paletó do terno e encontrou uma camisa branca amassada no fundo do armário. Queria passá-la, mas não podia deixar Billy parado nu.

Avalon, lembrou a si mesma. Não Billy.

Escolheu algumas meias grossas de lã e o único par de sapatos elegantes que tinha. Precisavam de um polimento, porém, mais uma vez, não queria deixá-lo esperando.

Muriel o encontrou sentado na cadeira, olhando pela janela.

— Peguei algumas roupas para você.

Avalon se virou para ela. Cada vez que via o seu rosto, sentia o coração prestes a explodir. Será que algum dia se acostumaria a vê-lo outra vez?

Sim, acreditava que sim.

Ele se levantou.

— Obrigado.

— E tente não deixar todo esse sangue espalhado pela casa.

— Não vou. — respondeu, desviando da poça.

— O quarto é na primeira porta...

— À esquerda. — concluiu ele. — Eu sei.

Ela sorriu. Foi engraçado como aceitou tão rápido. Atribuiu isso à idade. Muriel vira muitos eventos estranhos e inexplicáveis ​​ao longo da vida. Witchaven e os arredores sempre foram assim. Havia algo no ar. Do mundano... Quedas de temperatura e portas se abrindo sozinhas... Ao inexplicável, como o destino bizarro que se abateu sobre Auchenmullan, ali perto.

Muriel estremeceu ao lembrar. Havia mais neste mundo do que as pessoas sabiam. Muito mais.

Enquanto Avalon se vestia, Muriel se ocupou em pegar seu esfregão e balde e enxugar a maior parte do sangue. Não havia muito que pudesse fazer em relação ao teto e às paredes. Pelo menos não naquele momento. Olhou para o relógio da lareira. Eram quase quatro da manhã. Não ficava acordada até tão tarde desde... Bem, provavelmente desde os anos 60.

Esfregou o chão, contudo o sangue havia manchado. Por enquanto, teria que cobri-lo com um tapete. Não importava. Não esperava visitas tão cedo.

Tommy Boden.

Era ele quem estava limpando.

O assassino de Arthur.

Era justiça. Oh, sabia que era errado pensar de tal forma. Avalon o matara. Comera. No entanto será que a vida de um assassino seria uma troca justa pela vida de um homem bom que foi levado antes do tempo?

— Sim! — disse por fim, ao mesmo tempo surpresa e horrorizada consigo mesma. — É uma troca justa.

Avalon estava demorando muito. Deixando a limpeza de lado, foi até o quarto, espiando pela porta.

— Você está bem aí?

Ele estava sentado na cama, vestido, embora inclinado para a frente e olhando para os pés. Seus sapatos estavam calçados, todavia os cadarços estavam desamarrados. Avalon olhou para Muriel.

— Não sei o que fazer com estes. — disse.

— Seus cadarços?

Ele assentiu.

— Eles não funcionam.

— Aqui, deixe-me amarrar.

Ela foi até ele, agachando-se aos seus pés e amarrando seus cadarços.

— Não encontrei nada aí. — falou, apontando para a cabeça dela. — Sobre estes.

Muriel sorriu.

— É, bem, ver meu marido amarrar os cadarços não era exatamente o ponto alto do meu dia.

Avalon olhou ao redor do quarto.

— Nada mudou. Parece o mesmo de sempre. O chalé inteiro.

— Bom, costuma não estar coberto de sangue. — resmungou Muriel. — Agora, preste atenção. Se não me ver amarrar seus cadarços, nunca vai aprender a fazer sozinho.

Um pensamento a atingiu. Perto do fim, Billy havia mostrado sinais de demência precoce. Não o suficiente para levá-lo a um exame, mas o suficiente para preocupá-la. Agora, ensinando o marido a amarrar os sapatos, se perguntava se a vida teria sido assim se... Não tivesse ido embora por um tempo.

Ele morreu.

— Talvez não. — sussurrou.

Avalon a olhou com curiosidade.

Ela sorriu e deu um tapinha em seu joelho. No terno, a ilusão era completa.

Não se parecia apenas com Billy. Era Billy.

— Como estou? — perguntou.

Muriel engoliu em seco.

— Maravilhoso. Simplesmente maravilhoso.

Avalon se inclinou para a frente, e ela pensou que fosse beijá-la. Mas não, colocou as mãos nos joelhos e se levantou. Muriel se perguntou o que teria feito se ele tivesse tentado.

— Venha. — ele a chamou, interrompendo seus pensamentos. — Quero experimentar meu novo corpo. Vamos dar uma volta.

———

As ondas batiam nas pedras. O vento havia aumentado, e uma espuma branca borbulhava no mar escuro. Eles saíram da casa e caminharam juntos pelo caminho do jardim, depois pelo capim-marram em direção à praia. Nenhum dos dois falou, até Avalon parar na areia e olhar para o oceano.

— Aquela é a minha casa. — disse. — Lá fora.

— Sempre foi.

Ele pareceu prestes a corrigi-la, porém se virou novamente para o mar. O vento bagunçou seus cabelos. Muriel não conseguia desviar os olhos da sua figura. Seu corpo formigava com o toque suave de Avalon, sua mente agitada.

— Você me olha de um jeito estranho. — disse Avalon sem desviar o olhar da água.

— É difícil aceitar. Você esteve... Billy se foi há tanto tempo.

Os ombros de Avalon se contraíram, imitando um encolher de ombros.

— Você sempre teve esperança de que voltasse para casa. Nunca aceitou a sua morte.

— Eu me conformei.

— Não, não se conformou.

Muriel pensou em discordar, contudo era inútil. Avalon conseguia ver dentro da sua mente. Não tinha segredos para ele.

— A morte é difícil de entender. — disse Avalon. — Especialmente para humanos. Suas vidas são tão curtas. Qual é, se me permite perguntar, a expectativa de vida atual?

— Eu... Não sei. Cerca de oitenta anos, creio.

Avalon olhou para a própria mão com interesse, abrindo e fechando os dedos.

— Aumentou consideravelmente. Estou surpreso. — sua mão baixou e voltou a olhar para a água.

— Qual a sua idade? — perguntou Muriel.

— A idade não tem importância para mim. Nem acreditava que pudesse morrer, não até aquele dia na praia. Você salvou minha vida. Por que fez isso?

— Você precisava de ajuda. — disse ela. — O que deveria ter feito? Ido embora?

— A maioria teria ido. No entanto você não, Muriel McAuley. Agora preciso retribuir o favor.

— Já o fez. — ela o abraçou, e Avalon respondeu da mesma forma.

— O que você é? — perguntou Muriel.

— Sou Billy.

— Sim, mas... Antes disso.

— Eu era Avalon.

Muriel suspirou. Típico de Billy, sendo obtuso. Voltou a reformular a pergunta.

— Quando te encontrei na praia... O que era?

Ele não disse nada por tanto tempo que Muriel pensou que nunca responderia. Então, falou.

— Não sei. Apenas sou, e sempre fui.

— Há mais como você?

— Acredito que sim.

— Não sabe?

Avalon ficou em silêncio por um tempo desconfortável.

— Houve outra, uma vez.

— Uma... — ela procurou a palavra certa. — Uma namorada?

— Nós não temos o que vocês chamam de gênero.

Muriel assentiu.

— Porém estava apaixonado?

Outro longo silêncio.

— Sim.

— O que aconteceu?

— Não me lembro. Foi há muito tempo. Contudo me lembro de sentir o que descreve como amor.

— Não se sente solitário?

— Solitário? — questionou, como se estivesse saboreando a palavra. — Sim. Sim, estou.

Pela primeira vez, ele sorriu.

— Solitário. Uma palavra tão triste.

— Sim. É isso mesmo. — Muriel se encostou nele. Tinha tantas perguntas, todavia não queria ser um incômodo. Ainda assim, mais uma não faria mal, e era algo que sempre quis saber. — Como é lá fora?

— O que quer dizer?

— No mar. Debaixo d’água. — ela sorriu. — Nunca estive mais fundo no mar do que o meu pescoço. — seu olhar se deteve em Avalon. — Tenho medo.

— Tem medo da água?

— Bem, não água, bobo. O oceano. Casada com um pescador, nunca pisei no seu barco. Sempre me perguntei como era. Billy adorava. Voltava para casa e me contava sobre todas as coisas maravilhosas que via. Eu achava que era só porque ele não gostava de outras pessoas, entretanto acho que havia algo no mar aberto que o afetava. Como se aquele fosse o único lugar na Terra ao qual de fato pertencia.

— É diferente. Muito diferente.

— É perigoso?

— Não mais do que em terra.

— Então você já esteve aqui antes? — ela perguntou baixinho.

Ele assentiu.

— Antes, sim. Muitas vezes. Estive aqui antes da era do homem. Com meu... Amigo. As coisas eram diferentes naquela época. Era mais pacífico. E o ar tinha um cheiro melhor. Mas algumas coisas nunca mudam.

Avalon apontou para o sol, que começava a nascer no horizonte.

— Como aquilo. É tão bonito agora quanto era antes.

— Eu costumava ver o barco do Billy sair do porto e navegar sob aquele nascer do sol todas as manhãs. Todos os dias beijava sua bochecha, acenava e observava seu barco até não poder mais vê-lo. E então, no dia em que morreu, ele acordou cedo e não me acordou. Apenas deixou um bilhete dizendo que eu merecia dormir mais um pouco. — ela o abraçou com mais força. — Nunca mais o vi. É o meu maior arrependimento.

— O quê?

Muriel respirou fundo.

— Que nunca tenha podido me despedir.

Avalon assentiu, embora ela não tinha certeza se ele tinha entendido.

— Aquela... Aquela pessoa que você comeu...

— Tommy Christopher Boden. — disse Avalon.

— É, ele. Você... — Muriel se esforçou para encontrar as palavras. — Você leu sua mente também?

— As memórias, sim.

— Todas elas?

— Absorvi todas. — disse sem olhar para ela. — Não demora muito.

Muriel respirou fundo e perguntou.

— Arthur sofreu muito?

— Sim! — disse Avalon. — Muito sofrimento. Ele morreu em tremenda agonia. Sua pele...

— Chega! — disse Muriel bruscamente, enquanto mais lágrimas brotavam em seus olhos. — Um simples sim teria bastado.

Avalon olhou para ela.

— Desculpe. Faz muito tempo que não falo com alguém em terra firme. A etiqueta mudou consideravelmente desde a minha última visita.

— Sim. — disse Muriel, e isso era algo que Avalon não conseguia reproduzir. O jeito como Billy falava. Tinha a voz, os maneirismos e até algumas das inflexões corretas... Porém o vocabulário estava todo errado. Billy era um homem da classe trabalhadora com uma linguagem tão picante que se poderia salpicar em um prato de batatas fritas.

— Quanto dele tem aí? — perguntou ela. — Quanto de você é o meu Billy?

— Tanto quanto queira acreditar.

Muriel se virou e o encarou profundamente em seus olhos.

— É assustador. Quase parece real.

— As memórias são reais?

— É claro. — disse ela.

— Então também sou.

Delicadamente, como se temesse assustá-lo, Muriel colocou a mão na bochecha de Billy e o virou para si. Ela fechou os olhos e se inclinou com um frio na barriga que não sentia há décadas. O sol nascente aqueceu seu rosto. Seus lábios se tocaram e, de repente, Billy soluçou. Muriel riu baixinho, recuando quando o feitiço foi momentaneamente quebrado. Ela abriu os olhos para encará-lo de novo.

Ele estava tremendo.

— Billy?

Seu corpo inteiro tremeu. Uma fina linha de líquido preto escorreu por seu queixo, e emitiu um som como se estivesse prestes a vomitar. Ele a empurrou para trás, dobrando-se, expelindo um bocado de água imunda na areia.

— Minha nossa, o que houve? — perguntou Muriel.

Avalon a encarou com olhos arregalados e assustados. A pele de suas bochechas estremeceu.

— Leve-me para casa! — rosnou, e desta vez não era a voz de Billy.

Era um tom profundo e gutural.

— Você está bem?

Ela tocou o seu rosto e seus dedos afundaram na pele. Seu estômago se revirou e, quando se afastou, a carne grudou em seus dedos como queijo derretido. Tentou se livrar e arrancou a pele da bochecha. Por baixo não havia nada. Nenhum crânio, nenhum osso, apenas um vazio negro e dolorido, um vazio abominável sob a fachada.

— Leve-me para casa! — rugiu. Seus dentes se soltaram nas gengivas em decomposição, tombando como lápides após um terremoto. Eles se chocaram em sua boca flácida até que a língua enegrecida os absorveu. Billy cambaleou pela areia em direção à casa. Muriel o alcançou, passando um braço em volta de sua cintura. Parecia não pesar nada. Líquido escorreu por dentro de seu torso. Ele se virou para ela, o rosto parecendo uma máscara de Halloween deixada muito perto da lareira, uma atrocidade gotejante e derretida, arrancada de um pesadelo terrível. O queixo pingava até ficar fino, a boca medonha deslizando pelo rosto. Conforme suas órbitas se arregalavam, um globo ocular caiu nas rochas abaixo. Bateu na pedra e explodiu com um plop suave.

Estavam quase na porta quando Billy caiu. Muriel tentou segurá-lo, contudo foi como pegar água. Seu marido tombou para a frente e seu rosto atingiu o caminho de cascalho com um baque úmido que revirou o estômago de Muriel.

Sangue e carne molhada respingaram nas pedras enquanto Muriel gritava. Com um punhado de seu cabelo, levantou sua cabeça do caminho e, embora tivesse visto algumas coisas terríveis e horríveis em sua vida, esta foi a primeira vez que desejou nunca ter nascido para não testemunhar.

O rosto de Billy havia sumido. Estava achatado. Pequenos pedaços de cascalho se projetavam da massa macia e úmida, com limo espirrando dos ferimentos enquanto o balão carnudo de sua cabeça desabava sobre si mesmo. A pele se rasgou ao se dobrar, Muriel se esforçando para levantá-lo, para carregá-lo. Ela o pegou no colo... Era como se alguém tivesse enchido um terno com ketchup, e correu para o corredor. Pequenos pedaços do corpo de Billy se espalharam pelo corredor, aterrissando no chão com um baque. Empurrou a porta do banheiro com o ombro e o jogou na água rasa, abrindo as torneiras. As mãos murchas de Billy alcançaram sua camisa e a rasgaram. Seu peito ondulou e se abriu em algo parecido com uma boca.

— Sangue. — chiou.

Muriel saiu correndo do quarto. O esfregão e o balde estavam perto da porta da cozinha, a água dentro deles de um vermelho profundo. Jogou o esfregão para o lado e levantou o balde, esforçando-se com o peso. Ele espirrou pelas laterais quando entrou no banheiro e o despejou na banheira. A água ensanguentada jorrou pela borda, encharcando o chão, suas roupas, o tapete do banheiro.

— Billy! — gritou Muriel. — Billy!

Um terno preto vazio e os restos esfarrapados de uma camisa branca flutuaram até a superfície. Ela os puxou para fora e os jogou no chão. A água do banho estava tão vermelha que não conseguia ver o que havia dentro, então enfiou os braços até os cotovelos, desesperada para localizá-lo.

Mas o vermelho estava desaparecendo. Ficou mais fraco, o nível da água baixando e deixando uma borda vermelha ao redor da banheira. Logo, ficou tão claro quanto uma fonte na montanha, e lá, flutuando serenamente, estava a criatura. Ele brilhava sob a superfície, com o olho meio aberto ou meio fechado, não sabia dizer.

— Para onde você foi? — gritou ela. — Para onde você foi?

Avalon olhava preguiçosamente para além dela.

— Traga-o de volta!

Seu punho bateu na água, o líquido escorrendo pelas laterais.

— Traga-o de volta! Traga-o de volta! Traga-o... Traga...

Não conseguia continuar. Muriel encostou a cabeça na banheira. Ele havia sumido. Billy havia sumido. Havia voltado, permanecido por um curto período, e agora sumira.

— Traga-o de volta. — disse, desabando no chão.

Ela ainda estava lá horas depois, quando o relógio soou sete vezes, sinalizando o início do fim para Muriel Margaret McAuley.

***

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