Capítulo 17
Aaron Walters tirou a balaclava da cabeça. A lã lhe ardia na pele, e esfregou a mão na testa enquanto se aproximava da banheira e espiava lá dentro.
A velha vagabunda flutuava de bruços no próprio sangue. Era uma visão medonha, mas não o incomodava. Já tinha visto pior. Que diabos, já tinha feito pior, como espancar um lojista até a morte com um cano de chumbo por ameaçar processar o Sr. Grant. Aquele pobre coitado ficou irreconhecível, com o rosto reduzido a uma massa amassada. Pelo menos tentou se defender.
Ele se virou para seu parceiro, Kevin Henker.
— Merda. Essa foi fácil.
Kevin tirou a própria máscara e a enfiou no cós da calça jeans preta.
— Achei que teríamos mais trabalho.
— É. Ela tem sido muito durona com as vendas. — Aaron lançou um olhar conspiratório para Kevin. — E aí, cara. Vamos dizer ao Conor que ela lutou. Não queremos que pense que pode nos pagar menos ou nada.
— Ele não ousaria. Temos sujeira suficiente sobre a Organização Grant para enterrá-los de vez.
Aaron deu um sorriso irônico.
— Eu não diria isso muito alto, a menos que queira acabar como a velha.
Kevin se aproximou e olhou para a mulher, recuando diante da cena.
— Que nojento. Vamos deixá-la lá?
Aaron suspirou. Kevin nunca conseguia lidar com um pouco de sangue. Ele estava no ramo errado.
— Por que não? É um lugar tão bom quanto qualquer outro. Agora vamos lá, vamos verificar se não deixamos nenhuma impressão digital e sair daqui.
— Pensei que a polícia tivesse sido paga?
— Foram... — disse Aaron. — O que não quer dizer que quero correr riscos.
Ele conduziu Kevin para fora da porta e a fechou atrás de si. Ao fazê-lo, ouviu algo borbulhando na banheira. Talvez algum gás escapando do corpo, imaginou, lembrando-se da vez em que estrangulou um dos rivais de Grant até a morte em sua piscina particular, o corpo inchando e liberando gás enquanto Aaron limpava e removia qualquer vestígio de que já tivesse estado lá.
Verificou o corredor e, de fato, haviam espalhado lama e sujeira no carpete. Nessas circunstâncias, Aaron teria incendiado o prédio. Fogo era a melhor maneira de remover evidências, todavia Conor Grant lhe dera instruções estritas para não fazer isso. Depois que a casa dos Eastman pegou fogo algumas noites antes, seria óbvio demais.
Teriam de limpar a bagunça desta vez.
— Tire as botas e deixe-as na porta. — disse ao parceiro. Os dois caminharam até a cozinha com meias puídas, o chão frio sob as solas dos pés. Enquanto Aaron enchia uma tigela de água, Kevin observou as manchas de sangue nas paredes da sala de estar.
— O que você acha que fez isso? Um urso?
Aaron bufou.
— Na Escócia? Não seja idiota. Não têm ursos aqui.
— Nem mesmo pequenos?
Aaron olhou de soslaio para o parceiro.
— Não. — respondeu devagar. — Nem mesmo... Quer dizer, qual é, cara, que porra é essa? O que está querendo dizer? Ursinhos?
— Sei lá. Eles têm essas coisas, não têm? Haggis¹, ou algo assim. São pequenos.
— Você é um idiota. — disse Aaron. — Haggis vivem no subsolo. Eles não...
Um respingo.
De alguma forma, estava distante e próximo. Aaron fechou a torneira e os dois homens esperaram em silêncio.
— Aquilo foi...
— Silêncio. — sibilou Aaron. Ele empurrou o outro homem para o lado e entrou sorrateiramente na sala de estar. A velha não podia estar viva ainda. Aquela banheira estava cheia de sangue. Estava transbordando. Um homem com o dobro do tamanho não teria sobrevivido.
Um baque.
Veio do fim do corredor.
A boca de Aaron estava seca. Sabia que deveria investigar, mas algo o impediu. Uma sensação de autopreservação? Olhou para Kevin, com uma expressão de perplexidade no rosto do homem.
Passos dolorosamente pesados ressoaram no pequeno banheiro no final do corredor. Aaron tentou clarear a mente. Que diabos estava acontecendo? A velha estava morta. E se não estivesse, então, merda, iria a matar de novo com prazer.
Porém não parecia ser ela. Não parecia ser de jeito nenhum.
— Tem mais alguém aqui? — perguntou Kevin.
Aaron balançou a cabeça.
— Não tinha ninguém.
— Talvez eles tenham entrado pela janela? — sua voz se transformou em um sussurro assustado. — Talvez seja um haggis.
Mais passos. Mais pesados, mais rápidos, ecoando pelo corredor. Aaron recuou, esbarrando em Kevin. Os homens se entreolharam, e então a porta se abriu e algo veio correndo em sua direção.
Fosse o que fosse, não era humano.
As pernas eram deformadas e descoloridas, quase um verde-rosado, com um pênis nodoso e meio formado entre elas. E acima da cintura?
Bem, movia-se como um homem. Contudo faltavam muitas... Partes.
Não tinha rosto, apenas uma cabeça bulbosa, no centro da qual se encontrava um vasto olho branco, cercado por veias e nervos brilhantes. Sem pele, a massa gelatinosa e elástica estremecia a cada passo.
Estava vindo em direção a Aaron.
Ele se jogou para o lado, batendo no chão quando a coisa colidiu com Kevin.
Seu parceiro não teve chance.
Os dois desabaram sobre a mesa de centro, quebrando a madeira e lançando uma caneca de chá frio pelo ar. A criatura estava em cima de Kevin, abafando seus gritos frenéticos. Aaron tentou se levantar para ajudar o amigo, no entanto só conseguiu assistir, horrorizado, à fera derreter da cintura para baixo, acumulando-se no chão e encharcando as pernas de Kevin. A calça jeans preta do homem secou até desaparecer, e Kevin gritou enquanto a fumaça subia de sua parte inferior, sua pele descascando ao toque ácido do monstro.
Aaron se forçou a se levantar, suas mãos encontrando um abajur de metal. Cambaleou em direção à atrocidade à sua frente e desceu a base pesada sobre o que parecia ser a cabeça da criatura. A cúpula se partiu em metades desordenadas como frutas podres, a gosma branca do globo ocular explodindo e chovendo sobre o rosto uivante de Kevin.
Dois braços humanoides distendidos se estenderam para Aaron. Ele recuou um passo para trás, mas os membros dispararam em direção à sua cabeça, as mãos macias e translúcidas agarrando suas orelhas e puxando-o para a frente com grande força. Ele caiu de joelhos, tremendo diante do horror inimaginável. Os gritos de Kevin haviam se transformado em gemidos baixos e estrondosos enquanto a criatura o consumia. Aaron podia ver o sangue jorrando pelas veias da fera, iluminando-a até que brilhasse como um farol, cores vívidas de beleza obscena girando pela sala.
As mãos da coisa forçaram a entrada na boca de Aaron, agarrando suas bochechas. Ela as rasgou, a pele nos cantos de seus lábios se rasgando enquanto uma sensação curiosa e indolor o dominava. Ele se viu refletido no espelho, o pescoço inchando enquanto a criatura empurrava o braço ainda mais para baixo em sua garganta, porém não sentiu dor. Testemunhou seu próprio corpo cedendo e ouviu o estalar de suas costelas, uma a uma, até que seu torso não passasse de um saco horrível de sangue.
Como ainda estava vivo? Como?
A carne em sua barriga se moveu, a mão da criatura agarrou sua pele por dentro, puxando-a para um aperto firme.
Aaron olhou para cima e viu a velha parada na porta, observando. Embora seus braços estivessem manchados de sangue, os cortes profundos haviam cicatrizado. Era um milagre.
Um milagre!
Existe um Deus, pensou Aaron, e então a criatura puxou com força sua pele e o virou do avesso como uma fronha carnuda e repugnante.
———
Muriel se encostou no batente da porta.
Que bagunça Avalon estava fazendo. Ainda bem que não tinha limpado depois da última vez.
Ela observou os dois homens evaporarem à sua frente, seus corpos se desfazendo, os pedaços nadando no organismo de Avalon como purpurina. O som era a pior parte, como uma criança sugando o resto do suco com um canudo. Queria tapar os ouvidos, porém seus braços estavam dormentes de onde Avalon havia fechado seus ferimentos, então eles pendiam ao lado do corpo, inúteis e esquecidos.
Ela se encostou na porta, esperando que Avalon terminasse. Não demorou muito.
Uma nova cabeça começou a crescer nos ombros, um balão inflado de uma feiura enlouquecedora e sem traços característicos.
O grande olho se abriu e olhou diretamente para ela.
— Deixe-me vê-lo. — disse Muriel.
Um rodopiante caos pastel brilhava lá de dentro, enquanto a forma sobrenatural de Avalon se transformava e se distorcia em algo semelhante a um humano.
Muriel fechou os olhos e sorriu.
Eles estariam juntos novamente em breve.
Notas:
1. Haggis é uma criatura fictícia do folclore escocês, considerada nativa das Terras Altas da Escócia. É comicamente considerado a fonte do haggis, um prato tradicional escocês que na verdade é feito com as entranhas de ovelha (incluindo coração, pulmões e fígado).
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