Volume 03: Demon Deathchase — Capítulo 15: Vila dos Mortos
Parte 1
A pequena vila recusava obstinadamente as bênçãos que a luz do sol derramava tão generosamente sobre ela.
Embora uma vila da Fronteira como esta pudesse viver sua cota de anos, em geral o tamanho da comunidade não oscilava muito. As cerca de oitenta casas tremulavam sob a luz quente. Cada pedacinho de neve remanescente havia sido consumida pelo solo negro. A primavera estava próxima.
E, no entanto, a vila estava morta.
Portas de plástico reforçado e madeira tratada pendiam abertas, balançando com a fraca brisa. Na cozinha comunitária, que deveria estar fervilhando com as vozes animadas de esposas e crianças à medida que a noite se aproximava, agora a poeira dançava sozinha.
Havia algo faltando. Pessoas.
A maioria das casas permanecia em perfeita ordem, sem sinais de luta por parte dos ocupantes, porém em uma ou duas havia cadeiras viradas na sala de estar. Em uma casa, as cobertas estavam desgrenhadas, como se alguém que acabava de dormir tivesse saído da cama para cuidar de algum assunto insignificante.
Tinha saído... E nunca mais voltado.
Pequenas manchas pretas podiam ser encontradas no chão daquela casa. Uma série de manchas do tamanho da ponta do seu dedo mindinho, que poderiam ser confundidas com um pedaço de pelo de um cachorro ou gato de estimação. As manchas não chamariam a atenção de ninguém. Mesmo que chamassem, não havia ninguém por perto com olhos para notarem.
A noite se aproximava, a luz branca do sol assumiu um tom azulado tênue, o vento soprando pelas ruas desertas tornou-se mais insistente e uma atmosfera sinistra permeava a vila ao anoitecer... Como se silhuetas de ébano se unissem nas sombras e fixassem seu olhar injetado de sangue em qualquer viajante que passasse pelos portões escancarados.
Mais tempo se passou. Justo quando as sombras fracas começavam a pairar nas ruas, o som de cascos ferrados batendo na terra e o rangido de pneus em sulcos desgastados chegou à entrada da vila.
Um ônibus e três pessoas a cavalo pararam em frente a uma das torres de vigia, logo após os portões.
O ônibus movido a energia atômica era o tipo usado para comunicações através da Fronteira, contudo sua carroceria havia sido modificada, de modo que agora havia barras de ferro nas janelas e um arado cortante fixado na frente do veículo. Não era exatamente o tipo de veículo que pessoas honestas precisavam.
Cada centímetro do veículo era preto-azeviche, um complemento perfeito para o ar agourento do trio que se aproximava.
— Que diabos está acontecendo aqui? — perguntou o homem à direita. Ele usava uma camisa preta e calças de couro negro. Notável por sua expressão feroz e torso assustadoramente longo, este homem se destacaria em qualquer lugar.
— Não parece que nosso cliente está aqui para nos receber. — disse o homem na extrema esquerda. Apesar de seu rosto exibir um sorriso irônico, seus olhos finos como fios brilhavam com uma luz terrível enquanto vasculhavam os arredores. Um bastão hexagonal preso às suas costas bem definidas fazia sua sombra parecer empalada.
Como se tivessem combinado, os dois viraram a cabeça para o gigante ainda mais musculoso que estava entre eles. Do pescoço aos pulsos, seu corpo estava coberto por um protetor de metal fino sobre couro, no entanto a montanha de músculos abaixo ainda era bem definida. Seu rosto era como um pedaço de granito que havia ganhado bigodes, e transbordava de uma intensidade que faria um urso recuar se o encontrasse no escuro. Girando ao seu redor, o vento parecia carregar o fedor de uma fera enquanto voltava a soprar.
— Parece que não tiveram sorte. — murmurou ele em um tom pétreo. — A maldita vila inteira desapareceu numa noite só... Suponho que perdemos a galinha dos ovos de ouro. Só para garantir, vamos dar uma olhada em algumas casas. Com cuidado.
— Não estou muito animado com essa ideia. — disse o homem de preto. — Que tal mandarmos o Grove? Para ele, seria...
Sua voz morreu no meio da frase. O gigante o lançou um olhar. Era como ser examinado por uma pedra.
— Eu... É... Só estava brincando, mano.
Não foi apenas a diferença na constituição física que fez o homem de preto empalidecer... Parecia que de fato temia o gigante. Desmontando em seguida, o homem com o bastão hexagonal fez o mesmo, eles entraram na vila com passos deslizantes.
Ouviu-se o som da porta do ônibus se abrindo. O rosto de uma garota loira espiou o gigante do banco do motorista.
— Borgoff, o que houve? — perguntou. Aos 22 ou 23 anos, seu rosto era tão lindo quanto uma flor, todavia havia algo em seu excesso de sedução que lembrava um inseto carnívoro... Belo, mas mortal.
— É provável que a vila tenha sido devastada. Estejam prontos para partir a qualquer momento. — respondendo em um tom contido, o mundo pareceu virar de cabeça para baixo enquanto sua voz de repente se tornava suave.
— Como está o Grove? — perguntou ele.
— Está bem por ora. É improvável que tenha outra convulsão por um tempo.
Não ficou claro se o gigante ouviu ou não a resposta da garota, pois nem sequer assentiu, apenas continuou olhando para as fileiras silenciosas e solitárias de casas. Seus olhos se ergueram para o céu e para a tonalidade marfim e sombria que ali permanecia. A lua redonda já mostrava sua figura branca perolada.
— Gostaria que tivéssemos um pouco mais de cobertura de nuvens.
Assim que murmurou essas palavras, duas figuras vieram correndo pela rua como se estivessem no próprio vento.
— É exatamente como pensávamos. Nem uma única pessoa. — disse o homem de preto.
O homem com o bastão hexagonal virou-se para o céu e disse.
— O sol vai se pôr em breve. A aposta mais segura seria explodir este lugar o mais rápido possível.
Com essas palavras, apontou o dedo indicador.
Aparentemente, o gigante atravessou sem dificuldade a escuridão nebulosa para vislumbrar a minúscula mancha preta na ponta daquele dedo.
— Vão para o cemitério. — disse.
Num piscar de olhos, uma expressão tensa percorreu os rostos dos outros homens, porém logo eles também sorriram, montaram sem esforço em seus cavalos e corajosamente partiram com suas montarias pelas ruas da vila que haviam mergulhado no silêncio da morte.
Então, o que havia acontecido na vila?
Ter toda a população de um lugar desaparecendo de uma só vez não era algo tão bizarro na Fronteira. Por exemplo, as criaturas carnívoras semelhantes a balões, conhecidas como águas-vivas voadoras, pareciam produzir um espécime bastante grande a uma taxa de um a cada vinte anos, aproximadamente. Era recorrente que a besta alcançasse 2,5 quilômetros de diâmetro e podia cobrir uma vila inteira, dissolvendo seletivamente todas as criaturas vivas antes de sugá-las para dentro de sua boca.
E havia também o basilisco. Uma criatura mágica que se dizia habitar apenas ravinas profundas nas montanhas e vales assombrados, bastava esperar na entrada de uma aldeia e olhar fixo para um determinado ponto. Seu único olho gigantesco emitia um brilho avermelhado antes de enfim liberar um raio carmesim, e os aldeões caíam, primeiro um, depois outro, direto em suas temíveis mandíbulas à espreita. A única fraqueza do basilisco era que, por vezes, um dos humanos hipnotizados se despedia de sua família, e quando o faziam, era sempre com as mesmas palavras. Ao ouvir essas palavras, os sobreviventes saíam em massa para caçar o basilisco.
No entanto, a causa mais provável do desaparecimento de até a última pessoa de uma vila inteira era tanto a mais familiar das ameaças quanto a mais aterrorizante.
Quando a notícia de um acontecimento tão sinistro era transmitida por um único viajante sortudo o suficiente para passar ileso por tal comunidade, as pessoas quase podiam ouvir os passos de seus lordes sombrios, que se suponham extintos há muito tempo, pairando naquela área. Os mestres das trevas... Os vampiros.
Ao chegarem ao cemitério nos limites da cidade, o trio de cavaleiros e o veículo solitário pararam de repente. Em um local a menos de quinhentos metros da floresta, lápides incrustadas de musgo formavam fileiras sinuosas, e havia um espaço aberto onde, aos poucos, a escuridão azul-escura se erguia do chão.
O trio temível avançou, mantendo os olhos em tudo, parando nas profundezas de uma floresta que ameaçava invadir as lápides. Daquele local, uma área onde algo havia revirado uma grande extensão de terra, revelando a argila vermelha e deixando-a com a aparência de um demônio subterrâneo enlouquecido, soprava um miasma estranho. Era uma presença tão medonha que congelou a dupla da frente em seus cavalos e fez o gigante engolir em seco com tanta força que seu pomo-de-adão bateu em sua garganta.
O que se escondia sob aquela terra devastada?
Movendo apenas os olhos, os homens vasculharam a área em busca da fonte do miasma.
Foi quando ouviram um som abafado.
Não, não era um som, e sim uma voz. Um gemido longo e baixo... Atormentado e descarado, como um paciente tendo uma convulsão... Começou a serpentear pelo quadro misterioso.
Os homens não se moveram.
Em parte, era o miasma medonho, contorcendo-se firmemente em seus ossos, que os impedia de se mover. Todavia, mais do que tudo, estavam imóveis porque aquela voz, aqueles gemidos, pareciam vir de dentro do ônibus. Quando o gigante perguntou, a garota não disse que ele não tinha nenhuma convulsão? Devia ser a atmosfera bizarra que pairava naquele lugar que a fazia mentirosa. Ou talvez seus gritos fossem porque, independentemente da doença que o afligisse, havia algo que os humanos achavam perturbador e inescapável em sua condição mortal.
Poucos segundos depois, uma figura surgiu de trás de um dos enormes troncos de árvore, como se quisesse oferecer uma resposta para o enigma.
Um verdadeiro fantasma, caminhou pela argila vermelha com um passo precário, parando em um ponto a cerca de nove metros à frente dos três.
A figura que se erguia diante da lua prateada e cintilante era a de um homem mais velho, de cerca de cinquenta anos. Com um semblante digno e cabelos prateados que pareciam emitir um brilho esbranquiçado próprio, qualquer um o teria confundido com um ancião da vila. Na verdade, porém, esse velho estava fazendo duas coisas que, quando testemunhadas por aqueles que entendiam do assunto, eram tão perturbadoras quanto qualquer coisa poderia ser.
O ancião usava a mão esquerda para prender o paletó, com a gola levantada, ao peito, enquanto a mão direita aberta cobria a boca. Como se para esconder os dentes.
— Obrigado por ter vindo! — disse o velho. Sua voz parecia dolorida, como se tivesse acabado de vomitar. — Obrigado por vir... Mas agora já é tarde demais... Todas as almas da vila estão perdidas, inclusive eu, contudo...
Era certo que os homens temíveis tinham notado que, enquanto falava, o velho não desviou o olhar para eles.
Não havia nada diante de suas pupilas, estagnadas e turvas como as de um peixe morto. Apenas uma longa fileira de árvores continuando na escuridão que crescia abruptamente.
— Depressa, vá atrás dele. Ele... Fugiu com minha filha. Por favor, corra, siga-o e a traga de volta... Ou se ela já for um deles... Por favor, faça com que termine rápido...
Apelando, suplicando, o velho continuou com sua voz fina como um junco. Sem sequer olhar para os homens à sua frente, encarou um lugar vazio entre as árvores. Com a escuridão tão querida pelos demônios que se arrastavam à sua volta sem parar, era um espetáculo inquietante.
— Ele estava atrás da minha filha há algum tempo. Por várias vezes tentou levá-la, e em todas as ocasiões consegui o repelir. Contudo, ontem à noite, por fim mostrou suas presas... Assim que pegou um de nós, o resto caiu como dominó... Eu imploro, salve minha filha desse destino maldito. Ontem à noite... Partiram para o norte. Com a sua velocidade, poderá alcançá-los a tempo... Se conseguir salvar minha filha, vá para a cidade de Galiusha. Minha irmã mais nova está lá. Se explicar a situação, ela lhe dará os dez milhões de dalas que prometi... Eu imploro...
Nesse ponto do pedido do velho, o monte de terra que estava atrás sofreu uma mudança.
Um pequeno monte se ergueu de repente, e então uma mão pálida irrompeu da terra. Assemelhando-se às flores da mão do morto que só desabrochavam à noite, esta era de fato uma mão de verdade.
Um murmúrio profundo preencheu a floresta. Pura malícia, ou uma maldição, o murmúrio carregava uma sede. Uma sede insaciável de sangue, que duraria por toda a eternidade.
As figuras que se esgueiravam pela terra e se levantavam uma após a outra eram os aldeões, transformados em vampiros no espaço de uma única noite.
Tal qual em vida, só que agora com a pele tão pálida quanto parafina, quando o luar os atingia, brilhavam com uma luz azul pálida e sinistra.
Havia homens corpulentos. Havia mulheres delicadas. Havia meninas de vestido. Havia meninos de shorts. Quase quinhentos homens fortes, com os olhos injetados de sangue brilhando e as bocas cerradas, palavras como sobrenatural ou medonho não conseguiam descrever a maneira como encaravam fixos os homens. Sequer se deram ao trabalho de tirar a terra grudada em suas cabeças e ombros.
— Oh, agora é tarde demais. Mate-os de algum jeito e saia daqui... Quando anoitecer de verdade... Eu...
A mão esquerda do velho caiu. O par de ferimentos que restava em sua nuca também se manifestava nos dos outros aldeões.
É difícil dizer o que aconteceu primeiro... O velho abaixando a mão direita ou o queixo dos homens caindo. Pois entre seus lábios perigosamente abertos, um par de presas se projetava das gengivas superiores.
— Hoh, agora está ficando interessante. — disse o homem de preto em um tom compreensivelmente tenso, alcançando as lâminas crescentes em sua cintura.
Talvez o feitiço sobrenatural que os prendia tivesse sido quebrado, pois as mãos do homem com o bastão hexagonal deslizavam em direção à sua arma.
O velho avançou sem esforço. Junto com a multidão às suas costas.
— Vamos!
Como se fosse justo o que esperava, o homem de preto esporeou seu cavalo para a ação. O homem com o bastão hexagonal o seguiu, no entanto o gigante esperou atrás.
Vários aldeões tiveram suas cabeças cravadas sob os cascos, caindo para trás apenas para terem seus esternos e abdomens pisoteados também.
— O que vocês estão esperando, aberrações? Venham pegar!
Enquanto o homem de preto gritava, as cabeças de quase metade dos aldeões com presas à mostra que se aproximavam dele por todos os lados voaram pelo ar, cortadas em fatias limpas como melancias.
Um instante depois, uma luz prateada iluminou outra coroa, e as cabeças voaram da fileira seguinte. Mesmo vampiros novatos como esses sabiam que não deviam perder a cabeça ou o cérebro, embora caíram no chão, vazando massa cinzenta ou jorrando gêiseres sangrentos como se fossem fontes.
O que havia decepado as cabeças das vítimas vampíricas de forma tão precisa fora uma das lâminas penduradas na cintura do homem. As lâminas tinham cerca de 30 centímetros de diâmetro e o formato de uma meia-lua. Afiada em um arco fino, a arma era conhecida entre os guerreiros da Fronteira como a lâmina crescente. Um fio ou cordão costuma ser preso a uma das pontas, e o portador podia criar uma espécie de zona de segurança ao seu redor, mantendo seus inimigos afastados, girando a lâmina tão aberta ou fechada quanto quisesse. Devido ao treinamento intenso necessário para manuseá-la, poucos eram os que conseguiam usá-la com eficácia.
Mas agora, as armas saíam de ambas as mãos do homem de preto, formando magníficos arcos prateados, cortando os aldeões como mágica... À direita e à esquerda, acima e abaixo, sem perder a menor mudança em sua posição. Na verdade, cada um dos aldeões havia sido claramente cortado de um ângulo diferente. Seus ataques velozes como um raio vinham de ângulos fantasmagóricos. Não parecia possível que qualquer coisa em que mirasse fosse poupada.
Outro som um tanto estranho, bem diferente do corte da lâmina crescente, vinha da arma favorita de seu companheiro... O bastão hexagonal que sempre o acompanhava. Ambas as pontas tinham saliências afiadas, verdadeiras estacas, porém essa arma costuma ser girada e usada para golpear os oponentes. Seu dono usava o cajado hexagonal dessa maneira. Contudo, a maneira como a manejava era única. Girando-o em volta da cintura como uma roda d’água tombada, acertou a cabeça de um inimigo à sua direita, girou-a em suas costas e derrubou um oponente à sua esquerda. O movimento levou menos de um décimo de segundo.
Em um piscar de olhos, quatro figuras sombrias pairaram no ar à esquerda e à direita do homem com o bastão hexagonal, e também à frente e atrás dele. Este ataque saltitante capitalizou a força sobre-humana exclusiva dos vampiros.
O homem com o bastão hexagonal desferiu o primeiro golpe. Seus movimentos eram pura magia.
Um instante depois de esfaquear a cabeça grisalha do velho à sua direita, a velha à sua frente voou pelo ar com o maxilar inferior arrancado. Quase sem demora, os dois à sua esquerda e atrás dele foram ambos trespassados no coração pelas pontas do seu bastão.
Que tipo de força essa demonstração profana exigia? Na verdade, o homem com o bastão hexagonal ainda estava com o braço direito estendido em volta do ombro. Ao que tudo indicava, sua mão direita, do pulso para baixo, não tremia nem se movia, e o bastão parecia girar por conta própria, dando a impressão de esmagar os aldeões por si só.
Não era humanamente possível.
Ainda assim, os aldeões somavam quinhentos. Incluso com tais habilidades que a dupla possuía, não conseguiram impedir os vampiros de atacarem o ônibus. Na verdade, os outros vampiros ignoraram os dois e dispararam pelo chão em direção ao veículo.
E cada vez que o vento uivava, vários deles gritavam e caíam em uníssono. O vento rugia, e os aldeões caíam como contas de um colar, apenas para serem espetados outra vez pelas flechas do arco do gigante.
O arco em si não era o tipo de produto acabado que se encontra à venda em lojas da cidade. Era algo selvagem, apenas um galho baixo e prático que havia sido quebrado e amarrado com a tripa de alguma fera. Até mesmo o conteúdo das aljavas presas aos flancos e às costas do gigante não passava de simples barras de ferro afiadas.
Todavia nas mãos deste gigante, elas se tornaram projéteis de precisão incomparável.
O gigante não as usou uma de cada vez. Recuando cinco de uma vez, disparou as flechas juntas. Os atos de sacar as flechas e depois encaixá-las pareciam ser a pura simplicidade. A julgar pela velocidade, parecia estar apenas atirando de qualquer jeito, sem mirar.
E, contudo, nenhuma flecha errou o alvo. Não só não erraram, como cada flecha perfurou o coração de pelo menos três aldeões. Essa era a maneira natural de atacar, já que vampiros não morriam ao serem atravessados no estômago, porém a questão era... Como o gigante poderia escolher um alvo e mover seu arco em menos tempo do que um piscar de olhos?
Isso permaneceu um mistério mesmo enquanto os aldeões deixavam cadáveres empilhados diante do ônibus.
Foi então que um pequeno grito surgiu atrás dos homens montados. Eles ouviram uma voz feminina vindo de dentro do ônibus.
— Isso não é bom. Recuem!
Antes que o gigante gritasse as palavras, os homens estavam se virando em direção ao ônibus atrás deles.
Com um rosnado bestial, os aldeões começaram a correr. Quando a distância diminuiu em poucos instantes para apenas quatro metros e meio, os pés dos demônios, que batiam no chão, pararam inesperadamente.
Um jovem solitário de repente se interpôs entre as criaturas e o ônibus, bloqueando-os.
No entanto não foi só isso que deteve o avanço dessas criaturas sanguinárias. Para começar, havia a questão de onde esse jovem havia surgido.
Com o leve movimento da mecha tocando sua testa, o rosto do jovem era forte e tinha um tom saudável, e, do centro deste, seus olhos inocentes fitavam as criaturas infernais sem um pingo de medo.
Os aldeões, que hesitaram devido à forma como o jovem apareceu de forma inesperada, devem tê-lo considerado uma presa mais desejável. Um instante depois, avançavam em sua direção, como uma única maré.
E então algo aconteceu.
Na escuridão, vários raios de luz nasceram.
Como peixes prateados que irrompem voando pelas ondas, as luzes pareciam tão caóticas quanto pano chicoteado por um vento forte, entretanto sua precisão era incomparável, pois cada clarão individual atravessava os corações de incontáveis aldeões. Quinhentos vampiros foram atingidos em um instante... Chamas jorraram de seus peitos, e os aldeões caíram. Contorcendo-se e depois endurecendo, os rostos serenos que acompanhavam a morte eram sem dúvida os mesmos que tinham até o anoitecer do dia anterior, retornando agora como máscaras serenas.
Da cobertura do ônibus, o homem com o bastão hexagonal mostrou aos poucos o rosto. Vendo os cadáveres amontoados, falou.
— Woah, muito intenso. — e então deu um assobio apreciativo.
Depois de assobiar, olhou para uma das janelas do ônibus e perguntou.
— O bom e velho Grove está bem? — sua expressão demonstrava preocupação.
Sequer olhou para o jovem que fizera tudo aquilo. Aquele homem já havia desaparecido. Tão misteriosamente quanto aparecera.
— Não tinha jeito, e o que está feito, feito está. — disse o homem de preto, vindo do outro lado. — Temos problemas maiores para cuidar. O velhote disse que o Nobre que agarrou a sua filha fugiu para o norte, certo? Se formos agora, com certeza poderemos alcançá-los, mano. Podemos rastreá-los, persegui-los. Dez milhões se a trouxermos de volta em segurança. Claro que ele provavelmente já conseguiu o que queria dela, mas que se dane, estaríamos lidando com uma mulher do outro lado. Poderíamos ameaçá-la, dizer que cortamos a cabeça da garota junto com a do vampiro e a transformamos de volta em humana. Ela ficaria de boca fechada e pagaria.
Atrás dele, o gigante murmurou.
— Estaria tudo bem se ele estivesse falando conosco.
— O que você quer dizer?
O homem de preto olhou para o rosto do gigante e seguiu sua linha de visão em direção ao matagal à frente deles, à direita. Mais cedo, aquele era o mesmo local para o qual o velho havia se dirigido quando falou.
— Saia!
Quando o gigante falou, uma lâmina crescente na mão direita do homem de preto brilhou ao luar, e o bastão hexagonal cortou o vento.
Eles sabiam que aquele miasma sobrenatural não pertencia ao velho. O responsável por este estava na floresta. Suas mãos foram para as armas. A aura que emanava do matagal lhes dava o mesmo calafrio que irradiava da Nobreza. Suas mãos agarraram suas armas com força, querendo esconder sua humilhação por não terem descoberto a fonte daquelas emanações.
— Se não sair, nós entraremos, contudo pelo jeito que aquele velho estava falando com você, imagino que devemos estar na mesma linha de trabalho. Diabos, parece que você é ainda mais confiável do que nós. Se for esse o caso, não queremos fazer nenhuma besteira. O que acha de negociarmos esse negócio de dez milhões de forma amigável? — o gigante esperou um pouco depois de terminar sua proposta. Não houve resposta, nem qualquer movimento. Suas sobrancelhas grossas, como as de uma lagarta, se ergueram rapidamente.
— Mano, dessa forma será bem mais rápido.
A lâmina crescente voou da mão do homem de preto. Embora não estivesse claro do que era feita, ela serpenteou por entre as árvores, acelerando até o local onde o gigante encarava. Foi um ataque sem cerimônia, porém imbuído de intenção assassina.
Houve um belo som. Um clarão prateado de luz percorreu de volta entre as árvores.
Atrás dos dois homens que ganiram e pularam para fora do caminho, ouviu-se o som de aço cortando a escuridão.
O que o gigante agora segurava na mão direita era a mesma lâmina crescente que o homem de preto acabara de jogar. Uma faixa vermelha escorreu lentamente por sua superfície finamente afiada. Sangue fresco jorrava da mão do gigante. A expressão emocional que brotava naquele rosto rochoso era de fúria e também de medo.
— Nada mal! — disse o homem com o bastão hexagonal, dando um coice nos flancos do cavalo.
O cavalo não se moveu.
Mais uma vez, ele coiceou. Suas botas tinham esporas nos calcanhares. O couro dos flancos se rompeu e o sangue fluiu. Mesmo assim, o cavalo não se moveu.
Quando percebeu que o animal estava completamente intimidado, o homem com o bastão hexagonal deixou de esporear o cavalo.
A porta do ônibus se abriu. Uma garota colocou a cabeça para fora e perguntou.
— O que está acontecendo, pessoal?
Sensível à presença ali, seu belo rosto voltou-se para as profundezas da floresta. Imitando seus irmãos mais velhos.
Nas profundezas da escuridão, a presença se agitou. O tropel de cascos se aproximava cada vez mais.
De repente, o jovem estava diante deles, banhado pelo luar. Era como se a própria escuridão tivesse se cristalizado e assumido forma humana.
Parte 2
Por mais misterioso que fosse o brilho do pingente azul que brilhava no peito de seu casaco preto, ele ocupava um distante segundo lugar, atrás do rosto deslumbrante que se exibia abaixo do chapéu do viajante.
Montado em seu cavalo, com as rédeas na mão, o belo jovem parecia tão calmo quanto qualquer viajante que passasse por ali por acaso, mas bastava um olhar e ficava claro que estava longe de ser um mero viajante.
— Que diabos você deveria ser? — perguntou o homem de preto em um tom denso e letárgico. A boa aparência do viajante foi suficiente para lhe causar arrepios na espinha. Isso, combinado com a consciência de que aquele sujeito havia acabado de rebater seu ataque letal, o fez falar com uma voz estranha.
A figura sombria não respondeu, apenas avançou, ao que parecia decidido a passar por eles casualmente.
— Espere! — gritou o homem com o bastão hexagonal, tentando detê-lo. — Olha, amigo, você pode ser um dos Caçadores que o velhote chamou, porém nós também somos. Claro, podemos ter errado e nos precipitado ao te cutucar daquele jeito, contudo não há mal nenhum em nos apresentarmos. Somos o clã Marcus... Eu sou Nolt, o segundo mais velho dos garotos.
A figura sombria interrompeu seu avanço.
— Este aqui é Kyle, o irmão mais novo. — continuou Nolt.
Com os olhos brilhando de animosidade, o homem de preto não fez nenhuma tentativa de cumprimentá-lo.
— O grandalhão é nosso irmão mais velho, Borgoff.
Assim que seu irmão terminou de apresentá-lo, um som agudo veio da coxa do gigante. A lâmina crescente, agora em dois pedaços, caiu no chão com uma chuva de partículas prateadas brilhantes. A quebra incomum não foi por ter sido dobrada. Foi por ter sido apertada. O gigante limpou a palma da mão ensanguentada na orelha do cavalo. Sangue grudou no pelo da criatura, forçando os pelos a caírem em um emaranhado.
— Temos outro irmão, no entanto ele está doente e não sai do nosso brinquedinho. E, por fim, temos Leila, nossa irmãzinha.
— Prazer em conhecê-lo, Sr. Lábios Apertados.
Por trás daquela voz tão amável, os olhos felinos e brilhantes de Leila queimavam com chamas de hostilidade. No entanto, quando o rosto do viajante se virou rapidamente em sua direção, essas chamas se dissiparam de súbito.
— O clã Marcus... Ouvi falar a seu respeito. — disse o viajante, falando pela primeira vez. Sem inflexão, sua voz era como ferro, desprovida de qualquer emoção possível. A voz não combinava com sua aparência incrivelmente bela, entretanto, por outro lado, nenhuma outra voz teria sido mais apropriada.
Todavia, o fato de falar naquele tom, mesmo depois de saber os nomes daqueles homens...
O clã Marcus era o grupo de Caçadores de vampiros mais habilidoso da Fronteira. Composta por cinco membros, a família, do mais velho ao mais novo, era composta por Borgoff, Nolt, Groveck, Kyle e Leila. O número de Nobres que haviam cuidado chegou a três dígitos, e a notícia de como, milagrosamente, nenhum membro do clã havia se perdido no processo circulou com frequência entre o povo da Fronteira.
Ao mesmo tempo, também circulavam histórias sobre a crueldade e a insensibilidade do clã.
Em nenhum lugar dizia que apenas um Caçador de Vampiros ou grupo de Caçadores poderia ser contratado para um determinado caso. Considerando a vingança que a Nobreza exerceria em caso de fracasso, era bastante normal e esperado que a pessoa em questão empregasse vários indivíduos, ou até vários grupos.
O clã Marcus sempre durou até o fim. Somente eles. Nenhum indivíduo ou grupo que tivesse trabalhado junto, ou contra eles, jamais sobrevivera.
Como nenhum dos corpos dos outros Caçadores jamais havia sido recuperado, não havia escolha a não ser acreditar nas alegações dos Marcus de que os Caçadores haviam sido mortos pela Nobreza, todavia os rumores se espalharam como um incêndio florestal, e agora uma tempestade sinistra de suspeitas pairava sobre os membros do clã.
Seja como for, ninguém duvidava de suas habilidades como Caçadores. Afinal, o número de Nobres que seu grupo havia destruído sozinho era impressionante.
Ainda assim, quando outros Caçadores ouviam o nome dos Marcus, a aversão sentida sempre vinha acompanhada de uma sensação de admiração pela ameaça que os outros assassinos sentiam diante da habilidade claramente demonstrada pelo clã e de sua disposição em usar suas habilidades para causar danos.
Com toda a probabilidade, esta deve ter sido a primeira vez que o clã ouvia um homem dizer seu nome com tanta calma.
— Olha, idiota...
Inesperadamente, o gigante, Borgoff, fez uma careta.
— Ei, amigo... Ouvi falar de alguém com a sua aparência e um pingente azul. Dez anos atrás, um ancião da aldeia nos disse que havia apenas um Caçador em toda a Fronteira que era páreo para nós. Só que era provável que fosse ainda mais forte do que todos nós juntos ou alguma besteira desse tipo... Mas não poderia ser você...
Sem responder, o jovem se virou, como se não se importasse com o bando de vilões temíveis à sua frente.
— Ei, ei, espere aí! — gritou o homem com o bastão hexagonal. — Vamos atrás do Nobre que levou a filha do velhote. Se você não estiver conosco, isso também o torna um inimigo. É assim que quer?
Não houve resposta, e a silhueta do cavalo e do cavaleiro foi engolida pela escuridão.
— Não vamos deixá-lo ir, vamos? — Leila perguntou indignada, porém Borgoff não parecia estar ouvindo.
— Um dampiro... É isso que ele é então...? — murmurou com uma expressão imbecil. Era a primeira vez que os irmãos mais novos ouviam o homem falar naquele tom. Ou dizer um nome certo e misterioso.
— Finalmente conheci um homem que realmente temo... D.
O local ficava a 48 quilômetros ao norte da vila de Vishnu, onde um massacre em massa se seguiu à tragédia em apenas dois dias.
Uma solitária carruagem negra corria pela estrada estreita que atravessava a floresta. Os seis cavalos que a puxavam também eram de ébano, e o cocheiro, no poleiro do condutor, estava vestido de preto. Todo o veículo parecia ter nascido da escuridão.
Batendo chicotadas implacáveis nos cavalos, o cocheiro ocasionalmente olhava para o céu.
O céu estava tão cheio de estrelas que parecia estar caindo. A luz delas parecia cintilar no rosto que as fitava. O rosto gracioso do cocheiro se anuviou de repente.
— As estrelas se moveram. Aqueles que perseguem... A mim... Seis deles.
Ali, na escuridão, seus olhos começaram a emitir uma luz brilhante.
— E não meros perseguidores... Cada um possui uma habilidade extraordinária... Um deles em particular...
Como se não conseguisse conter a agitação, levantou-se do poleiro do condutor, sacudindo o veículo negro como azeviche sob seus pés.
— Não vou deixar que a levem. Não vou deixar que ninguém a leve embora.
A luz fluía dos olhos que arregalou. Luz de sangue.
Houve uma discordância repentina no zumbido monótono das rodas da carruagem.
Quando a turbulência atingiu aquele rosto gracioso, uma das rodas direitas escorregou do eixo com um estrondo. O vento gemeu e a carruagem deu um solavanco violento para a direita, levantando uma espessa nuvem de poeira ao capotar.
O que de fato foi inacreditável foram as acrobacias do cocheiro. Soltando as rédeas por vontade própria, deslizando pelo ar e girando o corpo com habilidade, recuperou o equilíbrio, aterrissando como um pedaço de pano preto a poucos metros da carruagem.
Ansiedade e desespero tomaram conta de seu rosto enquanto corria para o veículo.
Abrindo a porta como um possesso, espiou para dentro. Sua ansiedade foi substituída por alívio.
Suspirando fundo, se aproximou da roda especial de liga metálica da carroça que estava a cerca de nove metros de distância.
— Então, o infortúnio resolveu aparecer cedo demais. — murmurou, taciturno, levantando o volante e voltando para a carruagem. Olhou para o céu mais uma vez. Em voz baixa, disse. — Logo o dia vai raiar. Parece que estarei caminhando até o Abrigo e consertando isto quando anoitecer novamente. É tempo mais do que suficiente para aqueles cães nos alcançarem.
Mais ou menos na hora em que as cristas das montanhas se erguiam fracamente da escuridão como as bordas de tantas peças de quebra-cabeça, a dupla parou os cavalos. Estavam no topo de uma colina de tamanho razoável.
— O velho Borgoff nos fez fazer uma loucura, cavalgar a tal velocidade no meio da noite assim. Vou te dizer, está todo agitado por nada. — disse o homem de preto, acenando de leve com a mão direita. A grama verde abaixo estava sacudida por uma tinta mais profunda que a escuridão.
Na escuridão pálida e ofegante do amanhecer, este homem parecia vestido de negro com os restos da noite. De camisa e calça pretas, era Kyle... O mais novo dos garotos Marcus. As marcas de ébano que permaneciam como manchas não apenas em sua mão direita, como também em seu peito e ombro, eram respingos de sangue de todas as feras noturnas que eles haviam abatido durante a cavalgada.
— Achei que tinha te mandado parar com essa conversa. Aquele punk não é um Caçador qualquer. Você também deve ter ouvido a seu respeito. — disse o homem, tentando acalmar seu irmão mais novo e selvagem, com um bastão negro pendurado em suas costas. O homem que falava era Nolt, o segundo mais velho.
— Hah! Quer dizer que ele é um dampiro? — Kyle cuspiu as palavras. — Um mestiço horrível, parte Nobreza e parte humano. Ah, claro, todo mundo diz que são os melhores Caçadores de Vampiros, não é? Mas não vamos esquecer de uma coisa. Nós massacramos Nobres de verdade, puros!
— Ei, você tem razão.
— Se é um mestiço, quer dizer que é mais parecido conosco do que com a Nobreza. Nada a temer. Sem mencionar que até cavalgamos a noite toda só para ele não nos despistar, contudo, se quer saber, nosso irmão mais velho perdeu os culhões. Quem além de nós correria por uma floresta da Fronteira no meio da noite a cavalo?
Na Fronteira, as florestas estavam repletas de monstros à noite.
Embora fosse verdade que o número de feras havia diminuído com o declínio da Nobreza, para se mover pela floresta antes do amanhecer ainda era preciso ser um completo idiota ou alguém dotado de nervos de aço e considerável habilidade. Como os irmãos eram.
Foi por esse motivo que Kyle sentiu repulsa pelo mais velho dos garotos, que havia ordenado que avançassem à noite para que o jovem que haviam conhecido antes não os alcançasse. Até ele seria atacado por inúmeras criaturas antes de chegar àquela colina. A única razão pela qual conseguiram chegar lá antes do amanhecer foi porque já haviam passado pela área antes e conheciam um atalho pela floresta.
— Bem, não sei sobre isso... — disse Nolt com ironia, sendo mais filosófico do que o mais novo. — Afinal, estamos falando de um cara que se defendeu da sua lâmina crescente.
Enquanto Kyle encarava o segundo mais velho, os olhos de Nolt brilharam.
— Um cavalo... Eu não imaginaria que fosse possível.
Kyle ficou sem palavras. De fato, o som de cascos ferrados vinha das profundezas da mesma floresta de onde os dois irmãos tinham acabado de emergir.
— Não foi problema para nós, porque conhecíamos um atalho. Mas aquele filho da puta...
No momento em que os dois trocavam olhares, um cavalo e um cavaleiro surgiram de parte da floresta abaixo deles, cortando a escuridão. Fazendo uma arrancada suave para a estrada, a figura lhes pareceu mais escura que a escuridão.
— É ele mesmo! — disse Nolt.
— Não vamos deixar que escape. — retrucou Kyle.
Houve um forte estalo nos flancos das montarias da dupla, e logo os cascos começaram a chutar a grama.
Com intensa energia, perseguiram a silhueta vestida de preto. Pelo jeito como corria, parecia um demônio da noite, quase impossível de capturar.
— Recebemos ordens de Borgoff. Não tente nenhuma gracinha. — a voz de Nolt ecoou nas costas de Kyle, a cerca de um cavalo de comprimento à sua frente.
Não podiam deixar D se adiantar, todavia, mesmo que parecesse que isto poderia acontecer, não deveriam fazer nada precipitado. Borgoff ordenou que não atacassem no tom mais severo que já o ouviram usar.
Entretanto, apesar de tudo, as chamas da malícia queimavam fora de controle no peito de Kyle. Não era apenas que tivesse a natureza mais selvagem e atroz de todos os seus irmãos. Seu ataque letal com a lâmina crescente havia sido repelido por D. Para um jovem que acreditava apenas na força, aquela humilhação era intolerável. O que sentia por D superava o ódio, tornando-se nada menos do que pura intenção assassina.
A mão direita de Kyle foi em direção à lâmina crescente em sua cintura.
No entanto... Os dois não conseguiam acreditar no que viam. Simplesmente não conseguiam alcançá-lo.
Eles deveriam estar diminuindo a distância em relação ao cavalo e ao cavaleiro, que não pareciam estar indo mais rápido do que os dois, mas não estavam, na verdade, ficando cada vez mais para trás?
— Filho da puta! — Kyle gritou. Mesmo com mais força nos coices do cavalo, seu inimigo ainda disparava para longe, a cauda de seu cabelo preto esvoaçando na brisa que deixou. Em um piscar de olhos, encolheu até o tamanho de uma ervilha e desapareceu do campo de visão dos irmãos.
— Droga. Maldito monstro!
Desistindo e parando o cavalo, Kyle fixou suas pupilas flamejantes no ponto da estrada que havia engolido a figura sombria.
— Cavalgamos a noite toda, só para que que o perdêssemos no final... — disse Nolt com amargura. — Pelo visto, nunca vamos alcançá-lo pelos meios normais. Vamos esperar aqui até Borgoff aparecer.
Parte 3
O vento rodopiava ao seu redor.
Seus cabelos esvoaçavam, e a aba larga do chapéu de viajante parecia fluir como tinta. As manchas prateadas que se desfaziam oníricas contra sua testa refinada e seu nariz gracioso eram o luar. Embora o ar já tivesse um tom azulado, o luar refletido em seu olhar brilhava tão intensamente quanto na mais escura das noites. Embora fosse possível para um cavalo ciborgue especialmente modificado galopar a uma velocidade média de cerca de 96 quilômetros por hora, a velocidade deste cavalo era inacreditável.
O que se poderia dizer de um cavaleiro capaz de fazer tamanha mágica em um corcel comum que se encontra em qualquer lugar?
A estrada serpenteava para a planície distante.
Sem aviso, o cavaleiro puxou as rédeas. Os quartos dianteiros do cavalo se torceram de maneira brusca para a direita, enquanto a parada repentina das patas dianteiras levantava cascalho e terra. Esse método bastante intenso de frenagem era tão hipnotizante quanto um tanto perturbador. Mais uma vez, o luar incidia desolado sobre os ombros e costas do cavaleiro.
Sem fazer barulho, a figura vestida de preto desmontou. Curvando-se, examinou com calma as linhas na terra e no cascalho, contudo logo se endireitou e virou o rosto para o conjunto de árvores próximo.
Essa pessoa, dotada de uma beleza tão intensa que tornava o luar tímido ao seu redor, era ninguém menos que D.
— Então, foi aqui que eles deixaram a rota habitual. O que ele está fazendo? — murmurando de uma forma que não parecia uma pergunta, montou de volta em seu cavalo e galopou em direção à linha das árvores.
Tudo o que restou depois que desapareceu por entre as árvores foi o luar iluminando intensamente a estrada estreita e o eco distante de cascos que se desvaneciam.
Só a lua sabia que, cerca de seis horas antes, um cocheiro de preto, vindo pela estrada, havia mudado a direção de sua carruagem naquele mesmo local. Teria D discernido os rastros da carruagem que procurava, distinguindo-os entre todos os sulcos deixados pela enorme quantidade de ônibus elétricos e outros veículos que passavam por ali durante o dia?
Pouco depois, a lua se fundiu com o céu pálido e, em seu lugar, o sol nasceu.
Antes que o sol chegasse ao centro do céu, D e seu corcel, que galoparam o tempo todo, saíram de outra trilha em uma sequência interminável de florestas e tornaram a parar.
O chão à sua frente havia sido violentamente remexido. Este era o local onde a carruagem havia perdido uma roda e capotado.
Partindo com vinte e quatro horas de atraso, D o alcançou em meio dia. É claro que era o destino da Nobreza dormir enquanto o sol estava alto, e o clã Marcus ainda estava bem atrás. A velocidade e a precisão da perseguição da dupla de montaria e cavaleiro era assustadora.
Mas para onde tinha ido a carruagem?
Sem descer do cavalo, D olhou para o solo revirado e deu um leve chute nos flancos da montaria.
Eles se dirigiram para a colina à sua frente em um ritmo gradual, uma grande mudança em relação à maneira como galoparam até aquele ponto.
Era um monte de terra que realmente não podia ser chamado de colina, embora, de pé no topo, olhando para baixo, os olhos de D foram recebidos pelo aparecimento repentino de uma estrutura que parecia fora do lugar.
Parecia uma enorme caixa de aço. Com mais de três metros de largura e por volta de nove metros de comprimento, sua altura também ultrapassava três metros. Sob a luz brilhante do sol que caía, a superfície negra lançava chamas ofuscantes.
Este era o Abrigo que o Nobre de preto mencionara.
Por mais imortais que os vampiros pudessem ser, seguiam precisando dormir durante o dia. Embora suas proezas científicas tivessem gerado vários antídotos para a luz solar, nunca conseguiram superar a dor infernal que sentiam quando seus corpos eram expostos a ela. A agonia das células queimando uma a uma, carne e sangue apodrecendo, todos os sistemas corporais se dissolvendo... Até mesmo os mestres da Terra seguiam forçados a se submeter às lendas da antiguidade.
Embora os vampiros tivessem chegado ao ponto em que seus corpos não seriam destruídos, muitos dos indivíduos expostos a mais de dez minutos de luz solar direta enlouqueceram com a dor; aqueles expostos por até cinco minutos ficaram aleijados, com suas habilidades regenerativas destruídas. E, não importa qual tratamento recebessem posteriormente, nunca se recuperaram.
Contudo na era de prosperidade da Nobreza, isso pouco importava.
Rodovias de super velocidade serpenteavam por todos os cantos da Fronteira, automóveis lineares e similares formavam uma rede de transporte que ostentava uma operação completamente livre de acidentes, e as enormes instalações de produção de energia erguidas dentro e ao redor da Capital forneciam ônibus e vagões de carga com um estoque infinito de energia.
E então o declínio começou.
Nas mãos da onda crescente da humanidade, tudo o que a Nobreza havia construído foi destruído pedaço por pedaço, reduzindo sua civilização a ruínas que mal poderiam ser dignas desse nome. Até mesmo as usinas de energia, com seus sistemas de defesa perfeitos, entraram em colapso, vítimas do ataque tenaz da humanidade, que durou milênios. Apesar de a situação não ser tão grave nas áreas metropolitanas, a Nobreza nos setores da Fronteira foi despojada de todos os meios de transporte. Embora muitos na Nobreza esperassem que esse dia chegasse e tivessem estabelecido redes de transporte nos setores que controlavam, era inevitável que perdessem o entusiasmo e o desejo de manter as próprias redes.
Mesmo agora, trilhos prateados percorriam pradarias úmidas com a névoa da aurora, e em algum lugar, em colossais túneis subterrâneos, jaziam os esqueletos de aerobarcos automatizados e ultrarrápidos.
Antes que as carruagens se tornassem o único meio de transporte, acidentes causados por falhas no controle de radar e quedas de energia ocorriam com frequência.
Para os humanos, que haviam aprendido a usar as armas científicas da Nobreza ou conseguiam penetrar as defesas veiculares com armamentos que haviam criado por conta própria, os Nobres em trânsito e imobilizados durante o dia eram a presa ideal.
Devido à intensa demanda da Fronteira, o governo da Nobreza na Capital... Onde o poder restante estava concentrado, construiu estruturas defensivas especiais em locais estratégicos ao longo de sua rede de transporte.
Esses eram os Abrigos.
Embora construídos com uma cobertura semelhante a aço, com apenas uma fração de polegada de espessura, os abrigos podiam resistir a um impacto direto de um pequeno dispositivo nuclear, e havia uma vasta gama de mecanismos de defesa armados e prontos para eliminar quaisquer insetos que pudessem estar zumbindo por ali com estacas e martelos nas mãos.
O que tornava esses Abrigos perfeitos, mais do que qualquer outra coisa, era um simples fato...
— Não há entrada? — murmurou D de cima de seu cavalo.
Exatamente. As paredes negras que refletiam o brilho branco do sol não tinham nem uma rachadura do tamanho de um fio de cabelo.
Olhando para o céu, D começou a descer em silêncio a colina.
A agradável temperatura primaveril à parte, a luz do sol que o queimava impiedosamente era uma agonia incomparável para um dampiro como D. Somente os dampiros podiam lutar contra a Nobreza em igualdade de condições à noite, todavia para ganhar o título de Caçador de Vampiros, precisavam de força para permanecer impassíveis no inferno escaldante do dia.
À medida que D se aproximava, parecia que o ar ao redor emitia um gemido quase imperceptível, mas que logo se dissipou na luz do sol.
No peito de D, seu pingente brilhava cada vez mais azul. Era uma tonalidade misteriosa que tornava todos os armamentos eletrônicos da Nobreza inoperantes.
Desmontando em frente à parede preta e íngreme, D colocou a mão esquerda no aço. Uma sensação de arrepios o percorreu. A temperatura provavelmente era exclusiva daquele aço especial. Talvez porque, para tornar o exterior da estrutura impermeável a todas as formas de calor ou ondas eletrônicas, as moléculas serviam como átomos.
A mão de D deslizou devagar pela superfície lisa.
Terminando a parede frontal, se moveu para o lado direito. Levou trinta minutos para passar a mão por aquele lado.
— Sheesh! — disse uma voz entediada vinda do espaço entre o aço e a palma da mão. A voz deixou escapar um suspiro enquanto D se movia para a parede dos fundos. Se houvesse alguém lá para ouvir, aquela pequena cena bizarra sem dúvida teria feito os olhos saltarem das órbitas, porém D continuou seu trabalho em silêncio.
— Sim, este metal é muito resistente. A situação lá dentro é meio nebulosa. Mesmo assim, estou conseguindo ter uma ideia geral da configuração. A fornalha superatômica lá dentro está enviando energia para o próprio metal. Não é possível romper as paredes sem destruir a fornalha atômica, contudo para fazê-lo seria preciso romper as paredes primeiro. Então, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
— Quantos estão lá dentro? — perguntou D, ainda passando a mão pela parede.
— Dois. — respondeu a voz. — Um homem e uma mulher. No entanto nem eu consigo dizer se são da Nobreza ou humanos.
Sem sequer um aceno de cabeça, D terminou de examinar a terceira parede.
Só restava o lado esquerdo.
Entretanto o que estava fazendo? A julgar pelo que a voz disse, parecia estar vasculhando o interior do Abrigo, mas, se as paredes externas não pudessem ser rompidas, isso seria inútil. Por outro lado, a voz explicou que destruir as paredes externas seria impossível.
Mais ou menos na metade da parede de aço, a mão esquerda parou.
— Entendido. — disse a voz em um tom desinteressado.
D não perdeu tempo e entrou em ação. Sem retirar a mão esquerda, recuou, estendendo a direita em direção à espada. A lâmina parecia absorver a luz do sol.
Puxando o braço direito que empunhava a espada para trás, D focou os olhos em um único ponto na parede. Um ponto bem entre o polegar e o indicador da mão esquerda.
Porém o que eles tinham ali? No instante em que uma terrível sede de sangue branca se uniu entre a ponta nua da espada e o aço...
Uma luz pálida perfurou a parede negra.
Foi a espada de D que se lançou. Por mais cortante que fosse o golpe, não havia como penetrar o aço especial das paredes externas. Seja como for, o arco gracioso afundou até a metade na parede de metal inflexível.
Era ali que ficava a entrada. A lâmina de D estava cravada na divisa entre a porta e a parede, embora essa linha fosse imperceptível a olho nu. Com o poder misterioso de sua mão esquerda, D a localizou e a perfurou. Admitindo que havia um espaço ali, como a ponta de sua espada poderia deslizar para dentro de uma fenda infinitesimal?
— Hooh! — a voz que disse isso não veio do interior, e sim da mão esquerda de D. — Ora, aqui está uma surpresa. Um deles é humano.
A expressão de D sofreu uma leve mudança.
— Eles têm Incenso Enfeitiçador do Tempo? — perguntou. Era um tipo de incenso que a Nobreza havia criado para dar ao dia a ilusão de que era noite.
— Não sei, embora o outro não se move. Um homem morto, pelo menos de dia.
— A garota está bem, então? — murmurou D. Provavelmente ela havia sido mordida pelo menos uma vez, todavia, se fosse esse o caso, destruir o responsável restauraria sua humanidade. Por que então uma sombra escura passou por um instante pelas feições de D?
Os músculos da mão que segurava na empunhadura incharam aos poucos. Não está claro que tipo de habilidade requintada estava em ação, porém o menor giro da lâmina horizontal lançou uma linha fina e afiada na superfície de aço.
Uma luz azul emanou.
D cessou toda a atividade. Em silêncio, virou o rosto para trás. Suas pupilas frias estavam desprovidas de qualquer tom de emoção.
— Mais cedo do que eu esperava. — disse a voz, como se fosse mera brincadeira. — E não era quem eu esperava.
Nesse momento, o leve ronco de um motor veio da floresta, e então uma figura escarlate saltou sobre o topo da colina.
Criando uma cacofonia, um carro de combate monoposto parou bem na base da encosta.
O veículo era uma placa de ferro oblonga apoiada em quatro pneus grotescamente grandes e à prova de furos. O veículo estava abarrotado de um motor atômico de alta capacidade e alguns controles. Produto de humanos que haviam posto as mãos em algumas das máquinas da Nobreza, sua aparência externa estava muito longe do que uma pessoa comum poderia chamar de esteticamente agradável. Um tubo de energia com marcas de solda visíveis se retorcia como uma cobra do motor montado na traseira até uma fornalha central protegida por uma placa de ferro cravejada, e o manche de direção simples em forma de barra projetava-se do chão sem arte. Girando no ar como as pernas de um louva-a-deus, os pistões conectados aos pneus... E todas as outras peças, aliás... Estavam cobertos por uma fuligem preta, talvez algum resíduo radioativo inofensivo.
Talvez o que merecesse mais atenção do que a aparência do veículo fossem seus armamentos e seu motorista. Assomando-se no flanco direito do motor traseiro, estava o cano de uma bazuca sem recuo de 70mm, travada em D, enquanto do outro lado, à esquerda, uma cápsula circular de mísseis de 20mm brilhava no espaço vazio. É claro, os mísseis eram equipados com sensores de calor corporal, e nada, exceto a morte certa, aguardava a presa dos mísseis. E, por fim, ameaçadoramente montado sobre o forno central e exibindo uma boca que parecia ter uma joia azul cravada no meio, estava o penetrador... Um canhão com grande poder de perfuração.
Contudo, apesar de possuir muitos equipamentos pesados não encontrados em um carro de combate comum, a julgar pelo tamanho da fornalha central e do motor, este veículo poderia atingir com facilidade velocidades de 120 quilômetros por hora. Ele rodaria com segurança em 99% dos terrenos e, graças à sua suspensão de arame de 1,9cm de espessura, poderia ser conduzido até mesmo nas piores estradas. Ele corria pelo chão, um gigante em miniatura.
Uma figura vestida de vermelho levantou-se do assento do motorista e tirou um par de óculos resistentes. Olhos azuis que pareciam flamejar fitaram D. Cabelos loiros emprestavam seu tom dourado ao vento. Era Leila, a irmã mais nova do clã Marcus.
— Então, nos encontramos outra vez! — disse a garota.
Talvez fosse a animosidade que irradiava de cada centímetro dela que fazia seu macacão vermelho parecer brilhar à luz do dia.
Seu corpo, sacudido pelo gemido incessante do motor, parecia se contorcer de ódio por D.
— Pode ter pensado que derrotou meus irmãos mais velhos sem problemas, no entanto enquanto eu estiver por perto, você não poderá se aproveitar do clã Marcus. Parece que te encontrei no lugar certo. Minha presa está aí? — a garota se referiu à Nobreza como sua presa, cuspindo as palavras com uma autoconfiança e hostilidade inaceitáveis.
D continuou imóvel como uma escultura, espada na mão.
— Saia da minha frente — disse Leila, em um tom que costumava usar para dar ordens. — Foi uma pena para minha presa que eles não tivessem nada além deste Abrigo quebrado, e uma sorte para você, entretanto agora vou ficar com essa boa sorte, obrigada. Se dá valor à sua vida, é melhor dar o fora nesse instante.
— E se eu não der valor, o que você fará?
A voz suave de D fez com que um tom avermelhado, tão vívido quanto suas vestes, atingisse seu rosto.
— Como assim? Quer mesmo se meter com Leila Marcus e seu carro de combate?
— Eu tenho duas vidas. Pegue a que quiser. Isto é, se puder.
A voz serena, inalterada desde a primeira vez que a ouviu, fez Leila se calar. A moleca hesitou.
Ainda não havia percebido que a lâmina perfurando a parede do Abrigo estava ali devido apenas à habilidade secreta de D. Desde o início, nunca lhe passou pela cabeça que qualquer coisa viva pudesse realizar tal feito. Ainda inconsciente de seu verdadeiro poder, a hesitação de Leila nasceu de movimentos em seu coração aos quais não tinha consciência.
O homem de preto parado à sua frente a fazia se sentir chocantemente entorpecida. Como uma droga misteriosa, sua presença agia como um anestésico que a violava até a medula dos ossos. Como se quisesse arrancar o movimento do seu coração, Leila puxou os óculos de proteção para baixo.
— Que pena. É assim que nós, Marcus, fazemos! — assim que o macacão vermelho se acomodou no banco do motorista, o motor uivou. Ela havia cortado o escapamento de propósito para antagonizar os oponentes. No instante em que suas mãos assumiram os controles, os pneus enormes achataram a grama. Não exatamente descendo a colina, o carro de combate estava mais perto de voar, e suas rodas chutaram a terra ao mesmo tempo em que pousava de novo. Em menos de um décimo de segundo, tornou a decolar. Sua velocidade não parecia possível para uma construção mecânica.
O veículo avançou loucamente direto para D.
D não se moveu.
Um som terrível sacudiu o ar, agora misturado a um fedor de peixe. O cheiro era acompanhado de fumaça. Fumaça branca saindo dos pneus queimados, o veículo parou a poucos centímetros de D.
— Vai sentir isso até os ossos. Lá vou eu! — os gritos histéricos de Leila eram apenas mais uma tentativa de esconder a inquietação de seu próprio coração. O pé que havia pisado fundo no acelerador para atropelar D pisou no freio a um triz de esmagá-lo. Mas por que D não se moveu? Era como se tivesse lido as ondas que se espalhavam pelo peito dela.
Sem dizer uma palavra, puxou a espada presa. Esta se soltou rápido demais. Embainhando-a sem fazer barulho em um único movimento fluido, D se virou.
— Pensei que entenderia do meu jeito. Deveria tê-lo feito desde o início. Poderia ter nos poupado de problemas se não tentasse bancar o durão. — Leila manteve os olhos em D até que este subiu a colina e desapareceu no cume. Um instante depois, a tensão apertou seus olhos felinos.
Com um gemido baixo, a terra tremeu com força. Embora pesasse mais de uma tonelada, o carro de combate foi lançado sem esforço no ar, se chocou contra o chão e foi lançado para cima outra vez.
Agora que D havia partido, os sistemas de defesa do Abrigo entraram em ação.
Embora parecesse impossível se firmar, Leila permaneceu impassível em seu carro. Segurava o manche com uma das mãos, porém era tudo. Permaneceu perpendicular ao carro durante toda a sua dança frenética, como se as solas dos pés estivessem coladas ao assoalho.
Em pleno ar, Leila sentou-se.
O motor emitiu um rugido ensurdecedor. Chamas atômicas azuis saíam dos bicos injetores traseiros e a fumaça do combustível radioativo usado saía dos canos de escapamento das laterais do motor. O carro de combate decolou em pleno ar.
Ao pousar, o penetrador sobre o motor girou para apontar para o Abrigo. Sem o obstáculo da terra que balançava, saltando a cada choque, o carro ainda não perdia o rumo.
O ar estava manchado de azul.
O teto do Abrigo se abriu e um canhão laser, semelhante a uma antena parabólica de radar, surgiu e jorrou um jato de fogo. Ela roçou a carroceria do carro no ar e reduziu um pedaço de terra a lava derretida.
Se esta arma fosse controlada por radar, então certamente havia motivo para alarme. A segunda e a terceira rajadas de fogo, geralmente alardeadas por sua precisão incomparável, voaram em vão, enquanto o alvo deslizava para a frente ou para trás, para a esquerda ou para a direita de onde caíam.
A habilidade de Leila ao volante superava esses dispositivos eletrônicos.
Desde que ela conseguia se lembrar, o pai do clã sempre a impressionara sobre a importância de refinar suas habilidades em manipular tudo o que fosse mecânico. Seu pai talvez até conhecesse algumas técnicas básicas de aprimoramento genético.
Os talentos de Leila só pareciam brilhar quando se tratava de meios de transporte. Seja um carro, ou mesmo algo com vida própria, como um cavalo ciborgue, sob seu toque habilidoso, os veículos mecânicos ganhavam uma nova vida.
“De a ela um motor e algumas rodas e montará um carro.” dissera seu pai com admiração. Sua habilidade em operar veículos superava a de todos os seus irmãos, com apenas o filho mais velho, Borgoff, chegando perto.
E como Leila amava seu carro de combate. Este havia sido criado com peças coletadas em ferros-velhos durante suas viagens. Algumas peças até vieram das ruínas da Nobreza, quando a oportunidade de pegá-las surgiu. Leila até se esquecia de comer ou dormir enquanto trabalhava nele. Numa manhã de inverno, o carro de combate foi concluído pela luz fraca e aquosa do amanhecer. Dois anos se passaram desde então. Amando aquele carro como um bebê que havia vindo de seu próprio ventre, Leila aprendeu a dirigi-lo com um nível milagroso de habilidade. O próprio epítome dessa habilidade estava sendo exibido naquele pedaço de terra cercado por colinas. Evitando todos os ataques dos dispositivos eletrônicos, o veículo mudou de direção no ar e, assim que o atraso de uma fração de segundo do laser na mira estava terminando, o penetrador disparou um feixe prateado.
Era uma forma de metal líquido. Expulso a velocidades superiores a Mach 1, a estrutura molecular do metal se alterou, transformando-se em uma lança de cinco metros de comprimento que atravessou o mecanismo do canhão laser. Enviando ondas eletromagnéticas em todas as direções como tentáculos, o laser foi silenciado. Ao apontar o cano do penetrador para uma das paredes do Abrigo, um sorriso sangrento surgiu nos lábios de Leila.
De repente, seu alvo ficou borrado. Ou, mais precisamente, o carro afundou. Como se o terreno ao redor do Abrigo tivesse se transformado em um pântano, o carro afundou de frente no chão.
O comportamento tenso de Leila desmoronou, deteriorando-se em uma risada despreocupada.
Os bicos traseiros giraram com um guincho, expelindo fogo. Chamas percorreram as laterais do veículo, soprando para longe o solo rochoso que engolia seu cano. Os pneus giraram a toda velocidade. Levantando um rastro de poeira, o carro de combate decolou com a cauda primeiro. Girou para encarar a colina antes mesmo de tocar o solo, e a torre do penetrador girou para trás, lançando uma rajada de luz prateada contra a parede do Abrigo.
A explosão se partiu em duas e, no mesmo instante, foi reduzida a incontáveis partículas de luz que voaram em todas as direções. Nem mesmo as habilidades de direção de Leila conseguiram atravessá-lo através daquela teia de estilhaços.
No entanto...
Aterrissando de volta em solo firme, o carro de combate continuou em linha reta em direção à tempestade de partículas metálicas, com a carroceria inclinada descontroladamente enquanto empinava. As balas que destruíam a escuridão afundaram na barriga do carro.
Acelerando o motor a todo vapor, Leila empurrou seu veículo até o topo da colina em uma corrida alucinante.
A pequena vila recusava obstinadamente as bênçãos que a luz do sol derramava tão generosamente sobre ela.
Embora uma vila da Fronteira como esta pudesse viver sua cota de anos, em geral o tamanho da comunidade não oscilava muito. As cerca de oitenta casas tremulavam sob a luz quente. Cada pedacinho de neve remanescente havia sido consumida pelo solo negro. A primavera estava próxima.
E, no entanto, a vila estava morta.
Portas de plástico reforçado e madeira tratada pendiam abertas, balançando com a fraca brisa. Na cozinha comunitária, que deveria estar fervilhando com as vozes animadas de esposas e crianças à medida que a noite se aproximava, agora a poeira dançava sozinha.
Havia algo faltando. Pessoas.
A maioria das casas permanecia em perfeita ordem, sem sinais de luta por parte dos ocupantes, porém em uma ou duas havia cadeiras viradas na sala de estar. Em uma casa, as cobertas estavam desgrenhadas, como se alguém que acabava de dormir tivesse saído da cama para cuidar de algum assunto insignificante.
Tinha saído... E nunca mais voltado.
Pequenas manchas pretas podiam ser encontradas no chão daquela casa. Uma série de manchas do tamanho da ponta do seu dedo mindinho, que poderiam ser confundidas com um pedaço de pelo de um cachorro ou gato de estimação. As manchas não chamariam a atenção de ninguém. Mesmo que chamassem, não havia ninguém por perto com olhos para notarem.
A noite se aproximava, a luz branca do sol assumiu um tom azulado tênue, o vento soprando pelas ruas desertas tornou-se mais insistente e uma atmosfera sinistra permeava a vila ao anoitecer... Como se silhuetas de ébano se unissem nas sombras e fixassem seu olhar injetado de sangue em qualquer viajante que passasse pelos portões escancarados.
Mais tempo se passou. Justo quando as sombras fracas começavam a pairar nas ruas, o som de cascos ferrados batendo na terra e o rangido de pneus em sulcos desgastados chegou à entrada da vila.
Um ônibus e três pessoas a cavalo pararam em frente a uma das torres de vigia, logo após os portões.
O ônibus movido a energia atômica era o tipo usado para comunicações através da Fronteira, contudo sua carroceria havia sido modificada, de modo que agora havia barras de ferro nas janelas e um arado cortante fixado na frente do veículo. Não era exatamente o tipo de veículo que pessoas honestas precisavam.
Cada centímetro do veículo era preto-azeviche, um complemento perfeito para o ar agourento do trio que se aproximava.
— Que diabos está acontecendo aqui? — perguntou o homem à direita. Ele usava uma camisa preta e calças de couro negro. Notável por sua expressão feroz e torso assustadoramente longo, este homem se destacaria em qualquer lugar.
— Não parece que nosso cliente está aqui para nos receber. — disse o homem na extrema esquerda. Apesar de seu rosto exibir um sorriso irônico, seus olhos finos como fios brilhavam com uma luz terrível enquanto vasculhavam os arredores. Um bastão hexagonal preso às suas costas bem definidas fazia sua sombra parecer empalada.
Como se tivessem combinado, os dois viraram a cabeça para o gigante ainda mais musculoso que estava entre eles. Do pescoço aos pulsos, seu corpo estava coberto por um protetor de metal fino sobre couro, no entanto a montanha de músculos abaixo ainda era bem definida. Seu rosto era como um pedaço de granito que havia ganhado bigodes, e transbordava de uma intensidade que faria um urso recuar se o encontrasse no escuro. Girando ao seu redor, o vento parecia carregar o fedor de uma fera enquanto voltava a soprar.
— Parece que não tiveram sorte. — murmurou ele em um tom pétreo. — A maldita vila inteira desapareceu numa noite só... Suponho que perdemos a galinha dos ovos de ouro. Só para garantir, vamos dar uma olhada em algumas casas. Com cuidado.
— Não estou muito animado com essa ideia. — disse o homem de preto. — Que tal mandarmos o Grove? Para ele, seria...
Sua voz morreu no meio da frase. O gigante o lançou um olhar. Era como ser examinado por uma pedra.
— Eu... É... Só estava brincando, mano.
Não foi apenas a diferença na constituição física que fez o homem de preto empalidecer... Parecia que de fato temia o gigante. Desmontando em seguida, o homem com o bastão hexagonal fez o mesmo, eles entraram na vila com passos deslizantes.
Ouviu-se o som da porta do ônibus se abrindo. O rosto de uma garota loira espiou o gigante do banco do motorista.
— Borgoff, o que houve? — perguntou. Aos 22 ou 23 anos, seu rosto era tão lindo quanto uma flor, todavia havia algo em seu excesso de sedução que lembrava um inseto carnívoro... Belo, mas mortal.
— É provável que a vila tenha sido devastada. Estejam prontos para partir a qualquer momento. — respondendo em um tom contido, o mundo pareceu virar de cabeça para baixo enquanto sua voz de repente se tornava suave.
— Como está o Grove? — perguntou ele.
— Está bem por ora. É improvável que tenha outra convulsão por um tempo.
Não ficou claro se o gigante ouviu ou não a resposta da garota, pois nem sequer assentiu, apenas continuou olhando para as fileiras silenciosas e solitárias de casas. Seus olhos se ergueram para o céu e para a tonalidade marfim e sombria que ali permanecia. A lua redonda já mostrava sua figura branca perolada.
— Gostaria que tivéssemos um pouco mais de cobertura de nuvens.
Assim que murmurou essas palavras, duas figuras vieram correndo pela rua como se estivessem no próprio vento.
— É exatamente como pensávamos. Nem uma única pessoa. — disse o homem de preto.
O homem com o bastão hexagonal virou-se para o céu e disse.
— O sol vai se pôr em breve. A aposta mais segura seria explodir este lugar o mais rápido possível.
Com essas palavras, apontou o dedo indicador.
Aparentemente, o gigante atravessou sem dificuldade a escuridão nebulosa para vislumbrar a minúscula mancha preta na ponta daquele dedo.
— Vão para o cemitério. — disse.
Num piscar de olhos, uma expressão tensa percorreu os rostos dos outros homens, porém logo eles também sorriram, montaram sem esforço em seus cavalos e corajosamente partiram com suas montarias pelas ruas da vila que haviam mergulhado no silêncio da morte.
Então, o que havia acontecido na vila?
Ter toda a população de um lugar desaparecendo de uma só vez não era algo tão bizarro na Fronteira. Por exemplo, as criaturas carnívoras semelhantes a balões, conhecidas como águas-vivas voadoras, pareciam produzir um espécime bastante grande a uma taxa de um a cada vinte anos, aproximadamente. Era recorrente que a besta alcançasse 2,5 quilômetros de diâmetro e podia cobrir uma vila inteira, dissolvendo seletivamente todas as criaturas vivas antes de sugá-las para dentro de sua boca.
E havia também o basilisco. Uma criatura mágica que se dizia habitar apenas ravinas profundas nas montanhas e vales assombrados, bastava esperar na entrada de uma aldeia e olhar fixo para um determinado ponto. Seu único olho gigantesco emitia um brilho avermelhado antes de enfim liberar um raio carmesim, e os aldeões caíam, primeiro um, depois outro, direto em suas temíveis mandíbulas à espreita. A única fraqueza do basilisco era que, por vezes, um dos humanos hipnotizados se despedia de sua família, e quando o faziam, era sempre com as mesmas palavras. Ao ouvir essas palavras, os sobreviventes saíam em massa para caçar o basilisco.
No entanto, a causa mais provável do desaparecimento de até a última pessoa de uma vila inteira era tanto a mais familiar das ameaças quanto a mais aterrorizante.
Quando a notícia de um acontecimento tão sinistro era transmitida por um único viajante sortudo o suficiente para passar ileso por tal comunidade, as pessoas quase podiam ouvir os passos de seus lordes sombrios, que se suponham extintos há muito tempo, pairando naquela área. Os mestres das trevas... Os vampiros.
Ao chegarem ao cemitério nos limites da cidade, o trio de cavaleiros e o veículo solitário pararam de repente. Em um local a menos de quinhentos metros da floresta, lápides incrustadas de musgo formavam fileiras sinuosas, e havia um espaço aberto onde, aos poucos, a escuridão azul-escura se erguia do chão.
O trio temível avançou, mantendo os olhos em tudo, parando nas profundezas de uma floresta que ameaçava invadir as lápides. Daquele local, uma área onde algo havia revirado uma grande extensão de terra, revelando a argila vermelha e deixando-a com a aparência de um demônio subterrâneo enlouquecido, soprava um miasma estranho. Era uma presença tão medonha que congelou a dupla da frente em seus cavalos e fez o gigante engolir em seco com tanta força que seu pomo-de-adão bateu em sua garganta.
O que se escondia sob aquela terra devastada?
Movendo apenas os olhos, os homens vasculharam a área em busca da fonte do miasma.
Foi quando ouviram um som abafado.
Não, não era um som, e sim uma voz. Um gemido longo e baixo... Atormentado e descarado, como um paciente tendo uma convulsão... Começou a serpentear pelo quadro misterioso.
Os homens não se moveram.
Em parte, era o miasma medonho, contorcendo-se firmemente em seus ossos, que os impedia de se mover. Todavia, mais do que tudo, estavam imóveis porque aquela voz, aqueles gemidos, pareciam vir de dentro do ônibus. Quando o gigante perguntou, a garota não disse que ele não tinha nenhuma convulsão? Devia ser a atmosfera bizarra que pairava naquele lugar que a fazia mentirosa. Ou talvez seus gritos fossem porque, independentemente da doença que o afligisse, havia algo que os humanos achavam perturbador e inescapável em sua condição mortal.
Poucos segundos depois, uma figura surgiu de trás de um dos enormes troncos de árvore, como se quisesse oferecer uma resposta para o enigma.
Um verdadeiro fantasma, caminhou pela argila vermelha com um passo precário, parando em um ponto a cerca de nove metros à frente dos três.
A figura que se erguia diante da lua prateada e cintilante era a de um homem mais velho, de cerca de cinquenta anos. Com um semblante digno e cabelos prateados que pareciam emitir um brilho esbranquiçado próprio, qualquer um o teria confundido com um ancião da vila. Na verdade, porém, esse velho estava fazendo duas coisas que, quando testemunhadas por aqueles que entendiam do assunto, eram tão perturbadoras quanto qualquer coisa poderia ser.
O ancião usava a mão esquerda para prender o paletó, com a gola levantada, ao peito, enquanto a mão direita aberta cobria a boca. Como se para esconder os dentes.
— Obrigado por ter vindo! — disse o velho. Sua voz parecia dolorida, como se tivesse acabado de vomitar. — Obrigado por vir... Mas agora já é tarde demais... Todas as almas da vila estão perdidas, inclusive eu, contudo...
Era certo que os homens temíveis tinham notado que, enquanto falava, o velho não desviou o olhar para eles.
Não havia nada diante de suas pupilas, estagnadas e turvas como as de um peixe morto. Apenas uma longa fileira de árvores continuando na escuridão que crescia abruptamente.
— Depressa, vá atrás dele. Ele... Fugiu com minha filha. Por favor, corra, siga-o e a traga de volta... Ou se ela já for um deles... Por favor, faça com que termine rápido...
Apelando, suplicando, o velho continuou com sua voz fina como um junco. Sem sequer olhar para os homens à sua frente, encarou um lugar vazio entre as árvores. Com a escuridão tão querida pelos demônios que se arrastavam à sua volta sem parar, era um espetáculo inquietante.
— Ele estava atrás da minha filha há algum tempo. Por várias vezes tentou levá-la, e em todas as ocasiões consegui o repelir. Contudo, ontem à noite, por fim mostrou suas presas... Assim que pegou um de nós, o resto caiu como dominó... Eu imploro, salve minha filha desse destino maldito. Ontem à noite... Partiram para o norte. Com a sua velocidade, poderá alcançá-los a tempo... Se conseguir salvar minha filha, vá para a cidade de Galiusha. Minha irmã mais nova está lá. Se explicar a situação, ela lhe dará os dez milhões de dalas que prometi... Eu imploro...
Nesse ponto do pedido do velho, o monte de terra que estava atrás sofreu uma mudança.
Um pequeno monte se ergueu de repente, e então uma mão pálida irrompeu da terra. Assemelhando-se às flores da mão do morto que só desabrochavam à noite, esta era de fato uma mão de verdade.
Um murmúrio profundo preencheu a floresta. Pura malícia, ou uma maldição, o murmúrio carregava uma sede. Uma sede insaciável de sangue, que duraria por toda a eternidade.
As figuras que se esgueiravam pela terra e se levantavam uma após a outra eram os aldeões, transformados em vampiros no espaço de uma única noite.
Tal qual em vida, só que agora com a pele tão pálida quanto parafina, quando o luar os atingia, brilhavam com uma luz azul pálida e sinistra.
Havia homens corpulentos. Havia mulheres delicadas. Havia meninas de vestido. Havia meninos de shorts. Quase quinhentos homens fortes, com os olhos injetados de sangue brilhando e as bocas cerradas, palavras como sobrenatural ou medonho não conseguiam descrever a maneira como encaravam fixos os homens. Sequer se deram ao trabalho de tirar a terra grudada em suas cabeças e ombros.
— Oh, agora é tarde demais. Mate-os de algum jeito e saia daqui... Quando anoitecer de verdade... Eu...
A mão esquerda do velho caiu. O par de ferimentos que restava em sua nuca também se manifestava nos dos outros aldeões.
É difícil dizer o que aconteceu primeiro... O velho abaixando a mão direita ou o queixo dos homens caindo. Pois entre seus lábios perigosamente abertos, um par de presas se projetava das gengivas superiores.
— Hoh, agora está ficando interessante. — disse o homem de preto em um tom compreensivelmente tenso, alcançando as lâminas crescentes em sua cintura.
Talvez o feitiço sobrenatural que os prendia tivesse sido quebrado, pois as mãos do homem com o bastão hexagonal deslizavam em direção à sua arma.
O velho avançou sem esforço. Junto com a multidão às suas costas.
— Vamos!
Como se fosse justo o que esperava, o homem de preto esporeou seu cavalo para a ação. O homem com o bastão hexagonal o seguiu, no entanto o gigante esperou atrás.
Vários aldeões tiveram suas cabeças cravadas sob os cascos, caindo para trás apenas para terem seus esternos e abdomens pisoteados também.
— O que vocês estão esperando, aberrações? Venham pegar!
Enquanto o homem de preto gritava, as cabeças de quase metade dos aldeões com presas à mostra que se aproximavam dele por todos os lados voaram pelo ar, cortadas em fatias limpas como melancias.
Um instante depois, uma luz prateada iluminou outra coroa, e as cabeças voaram da fileira seguinte. Mesmo vampiros novatos como esses sabiam que não deviam perder a cabeça ou o cérebro, embora caíram no chão, vazando massa cinzenta ou jorrando gêiseres sangrentos como se fossem fontes.
O que havia decepado as cabeças das vítimas vampíricas de forma tão precisa fora uma das lâminas penduradas na cintura do homem. As lâminas tinham cerca de 30 centímetros de diâmetro e o formato de uma meia-lua. Afiada em um arco fino, a arma era conhecida entre os guerreiros da Fronteira como a lâmina crescente. Um fio ou cordão costuma ser preso a uma das pontas, e o portador podia criar uma espécie de zona de segurança ao seu redor, mantendo seus inimigos afastados, girando a lâmina tão aberta ou fechada quanto quisesse. Devido ao treinamento intenso necessário para manuseá-la, poucos eram os que conseguiam usá-la com eficácia.
Mas agora, as armas saíam de ambas as mãos do homem de preto, formando magníficos arcos prateados, cortando os aldeões como mágica... À direita e à esquerda, acima e abaixo, sem perder a menor mudança em sua posição. Na verdade, cada um dos aldeões havia sido claramente cortado de um ângulo diferente. Seus ataques velozes como um raio vinham de ângulos fantasmagóricos. Não parecia possível que qualquer coisa em que mirasse fosse poupada.
Outro som um tanto estranho, bem diferente do corte da lâmina crescente, vinha da arma favorita de seu companheiro... O bastão hexagonal que sempre o acompanhava. Ambas as pontas tinham saliências afiadas, verdadeiras estacas, porém essa arma costuma ser girada e usada para golpear os oponentes. Seu dono usava o cajado hexagonal dessa maneira. Contudo, a maneira como a manejava era única. Girando-o em volta da cintura como uma roda d’água tombada, acertou a cabeça de um inimigo à sua direita, girou-a em suas costas e derrubou um oponente à sua esquerda. O movimento levou menos de um décimo de segundo.
Em um piscar de olhos, quatro figuras sombrias pairaram no ar à esquerda e à direita do homem com o bastão hexagonal, e também à frente e atrás dele. Este ataque saltitante capitalizou a força sobre-humana exclusiva dos vampiros.
O homem com o bastão hexagonal desferiu o primeiro golpe. Seus movimentos eram pura magia.
Um instante depois de esfaquear a cabeça grisalha do velho à sua direita, a velha à sua frente voou pelo ar com o maxilar inferior arrancado. Quase sem demora, os dois à sua esquerda e atrás dele foram ambos trespassados no coração pelas pontas do seu bastão.
Que tipo de força essa demonstração profana exigia? Na verdade, o homem com o bastão hexagonal ainda estava com o braço direito estendido em volta do ombro. Ao que tudo indicava, sua mão direita, do pulso para baixo, não tremia nem se movia, e o bastão parecia girar por conta própria, dando a impressão de esmagar os aldeões por si só.
Não era humanamente possível.
Ainda assim, os aldeões somavam quinhentos. Incluso com tais habilidades que a dupla possuía, não conseguiram impedir os vampiros de atacarem o ônibus. Na verdade, os outros vampiros ignoraram os dois e dispararam pelo chão em direção ao veículo.
E cada vez que o vento uivava, vários deles gritavam e caíam em uníssono. O vento rugia, e os aldeões caíam como contas de um colar, apenas para serem espetados outra vez pelas flechas do arco do gigante.
O arco em si não era o tipo de produto acabado que se encontra à venda em lojas da cidade. Era algo selvagem, apenas um galho baixo e prático que havia sido quebrado e amarrado com a tripa de alguma fera. Até mesmo o conteúdo das aljavas presas aos flancos e às costas do gigante não passava de simples barras de ferro afiadas.
Todavia nas mãos deste gigante, elas se tornaram projéteis de precisão incomparável.
O gigante não as usou uma de cada vez. Recuando cinco de uma vez, disparou as flechas juntas. Os atos de sacar as flechas e depois encaixá-las pareciam ser a pura simplicidade. A julgar pela velocidade, parecia estar apenas atirando de qualquer jeito, sem mirar.
E, contudo, nenhuma flecha errou o alvo. Não só não erraram, como cada flecha perfurou o coração de pelo menos três aldeões. Essa era a maneira natural de atacar, já que vampiros não morriam ao serem atravessados no estômago, porém a questão era... Como o gigante poderia escolher um alvo e mover seu arco em menos tempo do que um piscar de olhos?
Isso permaneceu um mistério mesmo enquanto os aldeões deixavam cadáveres empilhados diante do ônibus.
Foi então que um pequeno grito surgiu atrás dos homens montados. Eles ouviram uma voz feminina vindo de dentro do ônibus.
— Isso não é bom. Recuem!
Antes que o gigante gritasse as palavras, os homens estavam se virando em direção ao ônibus atrás deles.
Com um rosnado bestial, os aldeões começaram a correr. Quando a distância diminuiu em poucos instantes para apenas quatro metros e meio, os pés dos demônios, que batiam no chão, pararam inesperadamente.
Um jovem solitário de repente se interpôs entre as criaturas e o ônibus, bloqueando-os.
No entanto não foi só isso que deteve o avanço dessas criaturas sanguinárias. Para começar, havia a questão de onde esse jovem havia surgido.
Com o leve movimento da mecha tocando sua testa, o rosto do jovem era forte e tinha um tom saudável, e, do centro deste, seus olhos inocentes fitavam as criaturas infernais sem um pingo de medo.
Os aldeões, que hesitaram devido à forma como o jovem apareceu de forma inesperada, devem tê-lo considerado uma presa mais desejável. Um instante depois, avançavam em sua direção, como uma única maré.
E então algo aconteceu.
Na escuridão, vários raios de luz nasceram.
Como peixes prateados que irrompem voando pelas ondas, as luzes pareciam tão caóticas quanto pano chicoteado por um vento forte, entretanto sua precisão era incomparável, pois cada clarão individual atravessava os corações de incontáveis aldeões. Quinhentos vampiros foram atingidos em um instante... Chamas jorraram de seus peitos, e os aldeões caíram. Contorcendo-se e depois endurecendo, os rostos serenos que acompanhavam a morte eram sem dúvida os mesmos que tinham até o anoitecer do dia anterior, retornando agora como máscaras serenas.
Da cobertura do ônibus, o homem com o bastão hexagonal mostrou aos poucos o rosto. Vendo os cadáveres amontoados, falou.
— Woah, muito intenso. — e então deu um assobio apreciativo.
Depois de assobiar, olhou para uma das janelas do ônibus e perguntou.
— O bom e velho Grove está bem? — sua expressão demonstrava preocupação.
Sequer olhou para o jovem que fizera tudo aquilo. Aquele homem já havia desaparecido. Tão misteriosamente quanto aparecera.
— Não tinha jeito, e o que está feito, feito está. — disse o homem de preto, vindo do outro lado. — Temos problemas maiores para cuidar. O velhote disse que o Nobre que agarrou a sua filha fugiu para o norte, certo? Se formos agora, com certeza poderemos alcançá-los, mano. Podemos rastreá-los, persegui-los. Dez milhões se a trouxermos de volta em segurança. Claro que ele provavelmente já conseguiu o que queria dela, mas que se dane, estaríamos lidando com uma mulher do outro lado. Poderíamos ameaçá-la, dizer que cortamos a cabeça da garota junto com a do vampiro e a transformamos de volta em humana. Ela ficaria de boca fechada e pagaria.
Atrás dele, o gigante murmurou.
— Estaria tudo bem se ele estivesse falando conosco.
— O que você quer dizer?
O homem de preto olhou para o rosto do gigante e seguiu sua linha de visão em direção ao matagal à frente deles, à direita. Mais cedo, aquele era o mesmo local para o qual o velho havia se dirigido quando falou.
— Saia!
Quando o gigante falou, uma lâmina crescente na mão direita do homem de preto brilhou ao luar, e o bastão hexagonal cortou o vento.
Eles sabiam que aquele miasma sobrenatural não pertencia ao velho. O responsável por este estava na floresta. Suas mãos foram para as armas. A aura que emanava do matagal lhes dava o mesmo calafrio que irradiava da Nobreza. Suas mãos agarraram suas armas com força, querendo esconder sua humilhação por não terem descoberto a fonte daquelas emanações.
— Se não sair, nós entraremos, contudo pelo jeito que aquele velho estava falando com você, imagino que devemos estar na mesma linha de trabalho. Diabos, parece que você é ainda mais confiável do que nós. Se for esse o caso, não queremos fazer nenhuma besteira. O que acha de negociarmos esse negócio de dez milhões de forma amigável? — o gigante esperou um pouco depois de terminar sua proposta. Não houve resposta, nem qualquer movimento. Suas sobrancelhas grossas, como as de uma lagarta, se ergueram rapidamente.
— Mano, dessa forma será bem mais rápido.
A lâmina crescente voou da mão do homem de preto. Embora não estivesse claro do que era feita, ela serpenteou por entre as árvores, acelerando até o local onde o gigante encarava. Foi um ataque sem cerimônia, porém imbuído de intenção assassina.
Houve um belo som. Um clarão prateado de luz percorreu de volta entre as árvores.
Atrás dos dois homens que ganiram e pularam para fora do caminho, ouviu-se o som de aço cortando a escuridão.
O que o gigante agora segurava na mão direita era a mesma lâmina crescente que o homem de preto acabara de jogar. Uma faixa vermelha escorreu lentamente por sua superfície finamente afiada. Sangue fresco jorrava da mão do gigante. A expressão emocional que brotava naquele rosto rochoso era de fúria e também de medo.
— Nada mal! — disse o homem com o bastão hexagonal, dando um coice nos flancos do cavalo.
O cavalo não se moveu.
Mais uma vez, ele coiceou. Suas botas tinham esporas nos calcanhares. O couro dos flancos se rompeu e o sangue fluiu. Mesmo assim, o cavalo não se moveu.
Quando percebeu que o animal estava completamente intimidado, o homem com o bastão hexagonal deixou de esporear o cavalo.
A porta do ônibus se abriu. Uma garota colocou a cabeça para fora e perguntou.
— O que está acontecendo, pessoal?
Sensível à presença ali, seu belo rosto voltou-se para as profundezas da floresta. Imitando seus irmãos mais velhos.
Nas profundezas da escuridão, a presença se agitou. O tropel de cascos se aproximava cada vez mais.
De repente, o jovem estava diante deles, banhado pelo luar. Era como se a própria escuridão tivesse se cristalizado e assumido forma humana.
Parte 2
Por mais misterioso que fosse o brilho do pingente azul que brilhava no peito de seu casaco preto, ele ocupava um distante segundo lugar, atrás do rosto deslumbrante que se exibia abaixo do chapéu do viajante.
Montado em seu cavalo, com as rédeas na mão, o belo jovem parecia tão calmo quanto qualquer viajante que passasse por ali por acaso, mas bastava um olhar e ficava claro que estava longe de ser um mero viajante.
— Que diabos você deveria ser? — perguntou o homem de preto em um tom denso e letárgico. A boa aparência do viajante foi suficiente para lhe causar arrepios na espinha. Isso, combinado com a consciência de que aquele sujeito havia acabado de rebater seu ataque letal, o fez falar com uma voz estranha.
A figura sombria não respondeu, apenas avançou, ao que parecia decidido a passar por eles casualmente.
— Espere! — gritou o homem com o bastão hexagonal, tentando detê-lo. — Olha, amigo, você pode ser um dos Caçadores que o velhote chamou, porém nós também somos. Claro, podemos ter errado e nos precipitado ao te cutucar daquele jeito, contudo não há mal nenhum em nos apresentarmos. Somos o clã Marcus... Eu sou Nolt, o segundo mais velho dos garotos.
A figura sombria interrompeu seu avanço.
— Este aqui é Kyle, o irmão mais novo. — continuou Nolt.
Com os olhos brilhando de animosidade, o homem de preto não fez nenhuma tentativa de cumprimentá-lo.
— O grandalhão é nosso irmão mais velho, Borgoff.
Assim que seu irmão terminou de apresentá-lo, um som agudo veio da coxa do gigante. A lâmina crescente, agora em dois pedaços, caiu no chão com uma chuva de partículas prateadas brilhantes. A quebra incomum não foi por ter sido dobrada. Foi por ter sido apertada. O gigante limpou a palma da mão ensanguentada na orelha do cavalo. Sangue grudou no pelo da criatura, forçando os pelos a caírem em um emaranhado.
— Temos outro irmão, no entanto ele está doente e não sai do nosso brinquedinho. E, por fim, temos Leila, nossa irmãzinha.
— Prazer em conhecê-lo, Sr. Lábios Apertados.
Por trás daquela voz tão amável, os olhos felinos e brilhantes de Leila queimavam com chamas de hostilidade. No entanto, quando o rosto do viajante se virou rapidamente em sua direção, essas chamas se dissiparam de súbito.
— O clã Marcus... Ouvi falar a seu respeito. — disse o viajante, falando pela primeira vez. Sem inflexão, sua voz era como ferro, desprovida de qualquer emoção possível. A voz não combinava com sua aparência incrivelmente bela, entretanto, por outro lado, nenhuma outra voz teria sido mais apropriada.
Todavia, o fato de falar naquele tom, mesmo depois de saber os nomes daqueles homens...
O clã Marcus era o grupo de Caçadores de vampiros mais habilidoso da Fronteira. Composta por cinco membros, a família, do mais velho ao mais novo, era composta por Borgoff, Nolt, Groveck, Kyle e Leila. O número de Nobres que haviam cuidado chegou a três dígitos, e a notícia de como, milagrosamente, nenhum membro do clã havia se perdido no processo circulou com frequência entre o povo da Fronteira.
Ao mesmo tempo, também circulavam histórias sobre a crueldade e a insensibilidade do clã.
Em nenhum lugar dizia que apenas um Caçador de Vampiros ou grupo de Caçadores poderia ser contratado para um determinado caso. Considerando a vingança que a Nobreza exerceria em caso de fracasso, era bastante normal e esperado que a pessoa em questão empregasse vários indivíduos, ou até vários grupos.
O clã Marcus sempre durou até o fim. Somente eles. Nenhum indivíduo ou grupo que tivesse trabalhado junto, ou contra eles, jamais sobrevivera.
Como nenhum dos corpos dos outros Caçadores jamais havia sido recuperado, não havia escolha a não ser acreditar nas alegações dos Marcus de que os Caçadores haviam sido mortos pela Nobreza, todavia os rumores se espalharam como um incêndio florestal, e agora uma tempestade sinistra de suspeitas pairava sobre os membros do clã.
Seja como for, ninguém duvidava de suas habilidades como Caçadores. Afinal, o número de Nobres que seu grupo havia destruído sozinho era impressionante.
Ainda assim, quando outros Caçadores ouviam o nome dos Marcus, a aversão sentida sempre vinha acompanhada de uma sensação de admiração pela ameaça que os outros assassinos sentiam diante da habilidade claramente demonstrada pelo clã e de sua disposição em usar suas habilidades para causar danos.
Com toda a probabilidade, esta deve ter sido a primeira vez que o clã ouvia um homem dizer seu nome com tanta calma.
— Olha, idiota...
Inesperadamente, o gigante, Borgoff, fez uma careta.
— Ei, amigo... Ouvi falar de alguém com a sua aparência e um pingente azul. Dez anos atrás, um ancião da aldeia nos disse que havia apenas um Caçador em toda a Fronteira que era páreo para nós. Só que era provável que fosse ainda mais forte do que todos nós juntos ou alguma besteira desse tipo... Mas não poderia ser você...
Sem responder, o jovem se virou, como se não se importasse com o bando de vilões temíveis à sua frente.
— Ei, ei, espere aí! — gritou o homem com o bastão hexagonal. — Vamos atrás do Nobre que levou a filha do velhote. Se você não estiver conosco, isso também o torna um inimigo. É assim que quer?
Não houve resposta, e a silhueta do cavalo e do cavaleiro foi engolida pela escuridão.
— Não vamos deixá-lo ir, vamos? — Leila perguntou indignada, porém Borgoff não parecia estar ouvindo.
— Um dampiro... É isso que ele é então...? — murmurou com uma expressão imbecil. Era a primeira vez que os irmãos mais novos ouviam o homem falar naquele tom. Ou dizer um nome certo e misterioso.
— Finalmente conheci um homem que realmente temo... D.
O local ficava a 48 quilômetros ao norte da vila de Vishnu, onde um massacre em massa se seguiu à tragédia em apenas dois dias.
Uma solitária carruagem negra corria pela estrada estreita que atravessava a floresta. Os seis cavalos que a puxavam também eram de ébano, e o cocheiro, no poleiro do condutor, estava vestido de preto. Todo o veículo parecia ter nascido da escuridão.
Batendo chicotadas implacáveis nos cavalos, o cocheiro ocasionalmente olhava para o céu.
O céu estava tão cheio de estrelas que parecia estar caindo. A luz delas parecia cintilar no rosto que as fitava. O rosto gracioso do cocheiro se anuviou de repente.
— As estrelas se moveram. Aqueles que perseguem... A mim... Seis deles.
Ali, na escuridão, seus olhos começaram a emitir uma luz brilhante.
— E não meros perseguidores... Cada um possui uma habilidade extraordinária... Um deles em particular...
Como se não conseguisse conter a agitação, levantou-se do poleiro do condutor, sacudindo o veículo negro como azeviche sob seus pés.
— Não vou deixar que a levem. Não vou deixar que ninguém a leve embora.
A luz fluía dos olhos que arregalou. Luz de sangue.
Houve uma discordância repentina no zumbido monótono das rodas da carruagem.
Quando a turbulência atingiu aquele rosto gracioso, uma das rodas direitas escorregou do eixo com um estrondo. O vento gemeu e a carruagem deu um solavanco violento para a direita, levantando uma espessa nuvem de poeira ao capotar.
O que de fato foi inacreditável foram as acrobacias do cocheiro. Soltando as rédeas por vontade própria, deslizando pelo ar e girando o corpo com habilidade, recuperou o equilíbrio, aterrissando como um pedaço de pano preto a poucos metros da carruagem.
Ansiedade e desespero tomaram conta de seu rosto enquanto corria para o veículo.
Abrindo a porta como um possesso, espiou para dentro. Sua ansiedade foi substituída por alívio.
Suspirando fundo, se aproximou da roda especial de liga metálica da carroça que estava a cerca de nove metros de distância.
— Então, o infortúnio resolveu aparecer cedo demais. — murmurou, taciturno, levantando o volante e voltando para a carruagem. Olhou para o céu mais uma vez. Em voz baixa, disse. — Logo o dia vai raiar. Parece que estarei caminhando até o Abrigo e consertando isto quando anoitecer novamente. É tempo mais do que suficiente para aqueles cães nos alcançarem.
Mais ou menos na hora em que as cristas das montanhas se erguiam fracamente da escuridão como as bordas de tantas peças de quebra-cabeça, a dupla parou os cavalos. Estavam no topo de uma colina de tamanho razoável.
— O velho Borgoff nos fez fazer uma loucura, cavalgar a tal velocidade no meio da noite assim. Vou te dizer, está todo agitado por nada. — disse o homem de preto, acenando de leve com a mão direita. A grama verde abaixo estava sacudida por uma tinta mais profunda que a escuridão.
Na escuridão pálida e ofegante do amanhecer, este homem parecia vestido de negro com os restos da noite. De camisa e calça pretas, era Kyle... O mais novo dos garotos Marcus. As marcas de ébano que permaneciam como manchas não apenas em sua mão direita, como também em seu peito e ombro, eram respingos de sangue de todas as feras noturnas que eles haviam abatido durante a cavalgada.
— Achei que tinha te mandado parar com essa conversa. Aquele punk não é um Caçador qualquer. Você também deve ter ouvido a seu respeito. — disse o homem, tentando acalmar seu irmão mais novo e selvagem, com um bastão negro pendurado em suas costas. O homem que falava era Nolt, o segundo mais velho.
— Hah! Quer dizer que ele é um dampiro? — Kyle cuspiu as palavras. — Um mestiço horrível, parte Nobreza e parte humano. Ah, claro, todo mundo diz que são os melhores Caçadores de Vampiros, não é? Mas não vamos esquecer de uma coisa. Nós massacramos Nobres de verdade, puros!
— Ei, você tem razão.
— Se é um mestiço, quer dizer que é mais parecido conosco do que com a Nobreza. Nada a temer. Sem mencionar que até cavalgamos a noite toda só para ele não nos despistar, contudo, se quer saber, nosso irmão mais velho perdeu os culhões. Quem além de nós correria por uma floresta da Fronteira no meio da noite a cavalo?
Na Fronteira, as florestas estavam repletas de monstros à noite.
Embora fosse verdade que o número de feras havia diminuído com o declínio da Nobreza, para se mover pela floresta antes do amanhecer ainda era preciso ser um completo idiota ou alguém dotado de nervos de aço e considerável habilidade. Como os irmãos eram.
Foi por esse motivo que Kyle sentiu repulsa pelo mais velho dos garotos, que havia ordenado que avançassem à noite para que o jovem que haviam conhecido antes não os alcançasse. Até ele seria atacado por inúmeras criaturas antes de chegar àquela colina. A única razão pela qual conseguiram chegar lá antes do amanhecer foi porque já haviam passado pela área antes e conheciam um atalho pela floresta.
— Bem, não sei sobre isso... — disse Nolt com ironia, sendo mais filosófico do que o mais novo. — Afinal, estamos falando de um cara que se defendeu da sua lâmina crescente.
Enquanto Kyle encarava o segundo mais velho, os olhos de Nolt brilharam.
— Um cavalo... Eu não imaginaria que fosse possível.
Kyle ficou sem palavras. De fato, o som de cascos ferrados vinha das profundezas da mesma floresta de onde os dois irmãos tinham acabado de emergir.
— Não foi problema para nós, porque conhecíamos um atalho. Mas aquele filho da puta...
No momento em que os dois trocavam olhares, um cavalo e um cavaleiro surgiram de parte da floresta abaixo deles, cortando a escuridão. Fazendo uma arrancada suave para a estrada, a figura lhes pareceu mais escura que a escuridão.
— É ele mesmo! — disse Nolt.
— Não vamos deixar que escape. — retrucou Kyle.
Houve um forte estalo nos flancos das montarias da dupla, e logo os cascos começaram a chutar a grama.
Com intensa energia, perseguiram a silhueta vestida de preto. Pelo jeito como corria, parecia um demônio da noite, quase impossível de capturar.
— Recebemos ordens de Borgoff. Não tente nenhuma gracinha. — a voz de Nolt ecoou nas costas de Kyle, a cerca de um cavalo de comprimento à sua frente.
Não podiam deixar D se adiantar, todavia, mesmo que parecesse que isto poderia acontecer, não deveriam fazer nada precipitado. Borgoff ordenou que não atacassem no tom mais severo que já o ouviram usar.
Entretanto, apesar de tudo, as chamas da malícia queimavam fora de controle no peito de Kyle. Não era apenas que tivesse a natureza mais selvagem e atroz de todos os seus irmãos. Seu ataque letal com a lâmina crescente havia sido repelido por D. Para um jovem que acreditava apenas na força, aquela humilhação era intolerável. O que sentia por D superava o ódio, tornando-se nada menos do que pura intenção assassina.
A mão direita de Kyle foi em direção à lâmina crescente em sua cintura.
No entanto... Os dois não conseguiam acreditar no que viam. Simplesmente não conseguiam alcançá-lo.
Eles deveriam estar diminuindo a distância em relação ao cavalo e ao cavaleiro, que não pareciam estar indo mais rápido do que os dois, mas não estavam, na verdade, ficando cada vez mais para trás?
— Filho da puta! — Kyle gritou. Mesmo com mais força nos coices do cavalo, seu inimigo ainda disparava para longe, a cauda de seu cabelo preto esvoaçando na brisa que deixou. Em um piscar de olhos, encolheu até o tamanho de uma ervilha e desapareceu do campo de visão dos irmãos.
— Droga. Maldito monstro!
Desistindo e parando o cavalo, Kyle fixou suas pupilas flamejantes no ponto da estrada que havia engolido a figura sombria.
— Cavalgamos a noite toda, só para que que o perdêssemos no final... — disse Nolt com amargura. — Pelo visto, nunca vamos alcançá-lo pelos meios normais. Vamos esperar aqui até Borgoff aparecer.
Parte 3
O vento rodopiava ao seu redor.
Seus cabelos esvoaçavam, e a aba larga do chapéu de viajante parecia fluir como tinta. As manchas prateadas que se desfaziam oníricas contra sua testa refinada e seu nariz gracioso eram o luar. Embora o ar já tivesse um tom azulado, o luar refletido em seu olhar brilhava tão intensamente quanto na mais escura das noites. Embora fosse possível para um cavalo ciborgue especialmente modificado galopar a uma velocidade média de cerca de 96 quilômetros por hora, a velocidade deste cavalo era inacreditável.
O que se poderia dizer de um cavaleiro capaz de fazer tamanha mágica em um corcel comum que se encontra em qualquer lugar?
A estrada serpenteava para a planície distante.
Sem aviso, o cavaleiro puxou as rédeas. Os quartos dianteiros do cavalo se torceram de maneira brusca para a direita, enquanto a parada repentina das patas dianteiras levantava cascalho e terra. Esse método bastante intenso de frenagem era tão hipnotizante quanto um tanto perturbador. Mais uma vez, o luar incidia desolado sobre os ombros e costas do cavaleiro.
Sem fazer barulho, a figura vestida de preto desmontou. Curvando-se, examinou com calma as linhas na terra e no cascalho, contudo logo se endireitou e virou o rosto para o conjunto de árvores próximo.
Essa pessoa, dotada de uma beleza tão intensa que tornava o luar tímido ao seu redor, era ninguém menos que D.
— Então, foi aqui que eles deixaram a rota habitual. O que ele está fazendo? — murmurando de uma forma que não parecia uma pergunta, montou de volta em seu cavalo e galopou em direção à linha das árvores.
Tudo o que restou depois que desapareceu por entre as árvores foi o luar iluminando intensamente a estrada estreita e o eco distante de cascos que se desvaneciam.
Só a lua sabia que, cerca de seis horas antes, um cocheiro de preto, vindo pela estrada, havia mudado a direção de sua carruagem naquele mesmo local. Teria D discernido os rastros da carruagem que procurava, distinguindo-os entre todos os sulcos deixados pela enorme quantidade de ônibus elétricos e outros veículos que passavam por ali durante o dia?
Pouco depois, a lua se fundiu com o céu pálido e, em seu lugar, o sol nasceu.
Antes que o sol chegasse ao centro do céu, D e seu corcel, que galoparam o tempo todo, saíram de outra trilha em uma sequência interminável de florestas e tornaram a parar.
O chão à sua frente havia sido violentamente remexido. Este era o local onde a carruagem havia perdido uma roda e capotado.
Partindo com vinte e quatro horas de atraso, D o alcançou em meio dia. É claro que era o destino da Nobreza dormir enquanto o sol estava alto, e o clã Marcus ainda estava bem atrás. A velocidade e a precisão da perseguição da dupla de montaria e cavaleiro era assustadora.
Mas para onde tinha ido a carruagem?
Sem descer do cavalo, D olhou para o solo revirado e deu um leve chute nos flancos da montaria.
Eles se dirigiram para a colina à sua frente em um ritmo gradual, uma grande mudança em relação à maneira como galoparam até aquele ponto.
Era um monte de terra que realmente não podia ser chamado de colina, embora, de pé no topo, olhando para baixo, os olhos de D foram recebidos pelo aparecimento repentino de uma estrutura que parecia fora do lugar.
Parecia uma enorme caixa de aço. Com mais de três metros de largura e por volta de nove metros de comprimento, sua altura também ultrapassava três metros. Sob a luz brilhante do sol que caía, a superfície negra lançava chamas ofuscantes.
Este era o Abrigo que o Nobre de preto mencionara.
Por mais imortais que os vampiros pudessem ser, seguiam precisando dormir durante o dia. Embora suas proezas científicas tivessem gerado vários antídotos para a luz solar, nunca conseguiram superar a dor infernal que sentiam quando seus corpos eram expostos a ela. A agonia das células queimando uma a uma, carne e sangue apodrecendo, todos os sistemas corporais se dissolvendo... Até mesmo os mestres da Terra seguiam forçados a se submeter às lendas da antiguidade.
Embora os vampiros tivessem chegado ao ponto em que seus corpos não seriam destruídos, muitos dos indivíduos expostos a mais de dez minutos de luz solar direta enlouqueceram com a dor; aqueles expostos por até cinco minutos ficaram aleijados, com suas habilidades regenerativas destruídas. E, não importa qual tratamento recebessem posteriormente, nunca se recuperaram.
Contudo na era de prosperidade da Nobreza, isso pouco importava.
Rodovias de super velocidade serpenteavam por todos os cantos da Fronteira, automóveis lineares e similares formavam uma rede de transporte que ostentava uma operação completamente livre de acidentes, e as enormes instalações de produção de energia erguidas dentro e ao redor da Capital forneciam ônibus e vagões de carga com um estoque infinito de energia.
E então o declínio começou.
Nas mãos da onda crescente da humanidade, tudo o que a Nobreza havia construído foi destruído pedaço por pedaço, reduzindo sua civilização a ruínas que mal poderiam ser dignas desse nome. Até mesmo as usinas de energia, com seus sistemas de defesa perfeitos, entraram em colapso, vítimas do ataque tenaz da humanidade, que durou milênios. Apesar de a situação não ser tão grave nas áreas metropolitanas, a Nobreza nos setores da Fronteira foi despojada de todos os meios de transporte. Embora muitos na Nobreza esperassem que esse dia chegasse e tivessem estabelecido redes de transporte nos setores que controlavam, era inevitável que perdessem o entusiasmo e o desejo de manter as próprias redes.
Mesmo agora, trilhos prateados percorriam pradarias úmidas com a névoa da aurora, e em algum lugar, em colossais túneis subterrâneos, jaziam os esqueletos de aerobarcos automatizados e ultrarrápidos.
Antes que as carruagens se tornassem o único meio de transporte, acidentes causados por falhas no controle de radar e quedas de energia ocorriam com frequência.
Para os humanos, que haviam aprendido a usar as armas científicas da Nobreza ou conseguiam penetrar as defesas veiculares com armamentos que haviam criado por conta própria, os Nobres em trânsito e imobilizados durante o dia eram a presa ideal.
Devido à intensa demanda da Fronteira, o governo da Nobreza na Capital... Onde o poder restante estava concentrado, construiu estruturas defensivas especiais em locais estratégicos ao longo de sua rede de transporte.
Esses eram os Abrigos.
Embora construídos com uma cobertura semelhante a aço, com apenas uma fração de polegada de espessura, os abrigos podiam resistir a um impacto direto de um pequeno dispositivo nuclear, e havia uma vasta gama de mecanismos de defesa armados e prontos para eliminar quaisquer insetos que pudessem estar zumbindo por ali com estacas e martelos nas mãos.
O que tornava esses Abrigos perfeitos, mais do que qualquer outra coisa, era um simples fato...
— Não há entrada? — murmurou D de cima de seu cavalo.
Exatamente. As paredes negras que refletiam o brilho branco do sol não tinham nem uma rachadura do tamanho de um fio de cabelo.
Olhando para o céu, D começou a descer em silêncio a colina.
A agradável temperatura primaveril à parte, a luz do sol que o queimava impiedosamente era uma agonia incomparável para um dampiro como D. Somente os dampiros podiam lutar contra a Nobreza em igualdade de condições à noite, todavia para ganhar o título de Caçador de Vampiros, precisavam de força para permanecer impassíveis no inferno escaldante do dia.
À medida que D se aproximava, parecia que o ar ao redor emitia um gemido quase imperceptível, mas que logo se dissipou na luz do sol.
No peito de D, seu pingente brilhava cada vez mais azul. Era uma tonalidade misteriosa que tornava todos os armamentos eletrônicos da Nobreza inoperantes.
Desmontando em frente à parede preta e íngreme, D colocou a mão esquerda no aço. Uma sensação de arrepios o percorreu. A temperatura provavelmente era exclusiva daquele aço especial. Talvez porque, para tornar o exterior da estrutura impermeável a todas as formas de calor ou ondas eletrônicas, as moléculas serviam como átomos.
A mão de D deslizou devagar pela superfície lisa.
Terminando a parede frontal, se moveu para o lado direito. Levou trinta minutos para passar a mão por aquele lado.
— Sheesh! — disse uma voz entediada vinda do espaço entre o aço e a palma da mão. A voz deixou escapar um suspiro enquanto D se movia para a parede dos fundos. Se houvesse alguém lá para ouvir, aquela pequena cena bizarra sem dúvida teria feito os olhos saltarem das órbitas, porém D continuou seu trabalho em silêncio.
— Sim, este metal é muito resistente. A situação lá dentro é meio nebulosa. Mesmo assim, estou conseguindo ter uma ideia geral da configuração. A fornalha superatômica lá dentro está enviando energia para o próprio metal. Não é possível romper as paredes sem destruir a fornalha atômica, contudo para fazê-lo seria preciso romper as paredes primeiro. Então, quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
— Quantos estão lá dentro? — perguntou D, ainda passando a mão pela parede.
— Dois. — respondeu a voz. — Um homem e uma mulher. No entanto nem eu consigo dizer se são da Nobreza ou humanos.
Sem sequer um aceno de cabeça, D terminou de examinar a terceira parede.
Só restava o lado esquerdo.
Entretanto o que estava fazendo? A julgar pelo que a voz disse, parecia estar vasculhando o interior do Abrigo, mas, se as paredes externas não pudessem ser rompidas, isso seria inútil. Por outro lado, a voz explicou que destruir as paredes externas seria impossível.
Mais ou menos na metade da parede de aço, a mão esquerda parou.
— Entendido. — disse a voz em um tom desinteressado.
D não perdeu tempo e entrou em ação. Sem retirar a mão esquerda, recuou, estendendo a direita em direção à espada. A lâmina parecia absorver a luz do sol.
Puxando o braço direito que empunhava a espada para trás, D focou os olhos em um único ponto na parede. Um ponto bem entre o polegar e o indicador da mão esquerda.
Porém o que eles tinham ali? No instante em que uma terrível sede de sangue branca se uniu entre a ponta nua da espada e o aço...
Uma luz pálida perfurou a parede negra.
Foi a espada de D que se lançou. Por mais cortante que fosse o golpe, não havia como penetrar o aço especial das paredes externas. Seja como for, o arco gracioso afundou até a metade na parede de metal inflexível.
Era ali que ficava a entrada. A lâmina de D estava cravada na divisa entre a porta e a parede, embora essa linha fosse imperceptível a olho nu. Com o poder misterioso de sua mão esquerda, D a localizou e a perfurou. Admitindo que havia um espaço ali, como a ponta de sua espada poderia deslizar para dentro de uma fenda infinitesimal?
— Hooh! — a voz que disse isso não veio do interior, e sim da mão esquerda de D. — Ora, aqui está uma surpresa. Um deles é humano.
A expressão de D sofreu uma leve mudança.
— Eles têm Incenso Enfeitiçador do Tempo? — perguntou. Era um tipo de incenso que a Nobreza havia criado para dar ao dia a ilusão de que era noite.
— Não sei, embora o outro não se move. Um homem morto, pelo menos de dia.
— A garota está bem, então? — murmurou D. Provavelmente ela havia sido mordida pelo menos uma vez, todavia, se fosse esse o caso, destruir o responsável restauraria sua humanidade. Por que então uma sombra escura passou por um instante pelas feições de D?
Os músculos da mão que segurava na empunhadura incharam aos poucos. Não está claro que tipo de habilidade requintada estava em ação, porém o menor giro da lâmina horizontal lançou uma linha fina e afiada na superfície de aço.
Uma luz azul emanou.
D cessou toda a atividade. Em silêncio, virou o rosto para trás. Suas pupilas frias estavam desprovidas de qualquer tom de emoção.
— Mais cedo do que eu esperava. — disse a voz, como se fosse mera brincadeira. — E não era quem eu esperava.
Nesse momento, o leve ronco de um motor veio da floresta, e então uma figura escarlate saltou sobre o topo da colina.
Criando uma cacofonia, um carro de combate monoposto parou bem na base da encosta.
O veículo era uma placa de ferro oblonga apoiada em quatro pneus grotescamente grandes e à prova de furos. O veículo estava abarrotado de um motor atômico de alta capacidade e alguns controles. Produto de humanos que haviam posto as mãos em algumas das máquinas da Nobreza, sua aparência externa estava muito longe do que uma pessoa comum poderia chamar de esteticamente agradável. Um tubo de energia com marcas de solda visíveis se retorcia como uma cobra do motor montado na traseira até uma fornalha central protegida por uma placa de ferro cravejada, e o manche de direção simples em forma de barra projetava-se do chão sem arte. Girando no ar como as pernas de um louva-a-deus, os pistões conectados aos pneus... E todas as outras peças, aliás... Estavam cobertos por uma fuligem preta, talvez algum resíduo radioativo inofensivo.
Talvez o que merecesse mais atenção do que a aparência do veículo fossem seus armamentos e seu motorista. Assomando-se no flanco direito do motor traseiro, estava o cano de uma bazuca sem recuo de 70mm, travada em D, enquanto do outro lado, à esquerda, uma cápsula circular de mísseis de 20mm brilhava no espaço vazio. É claro, os mísseis eram equipados com sensores de calor corporal, e nada, exceto a morte certa, aguardava a presa dos mísseis. E, por fim, ameaçadoramente montado sobre o forno central e exibindo uma boca que parecia ter uma joia azul cravada no meio, estava o penetrador... Um canhão com grande poder de perfuração.
Contudo, apesar de possuir muitos equipamentos pesados não encontrados em um carro de combate comum, a julgar pelo tamanho da fornalha central e do motor, este veículo poderia atingir com facilidade velocidades de 120 quilômetros por hora. Ele rodaria com segurança em 99% dos terrenos e, graças à sua suspensão de arame de 1,9cm de espessura, poderia ser conduzido até mesmo nas piores estradas. Ele corria pelo chão, um gigante em miniatura.
Uma figura vestida de vermelho levantou-se do assento do motorista e tirou um par de óculos resistentes. Olhos azuis que pareciam flamejar fitaram D. Cabelos loiros emprestavam seu tom dourado ao vento. Era Leila, a irmã mais nova do clã Marcus.
— Então, nos encontramos outra vez! — disse a garota.
Talvez fosse a animosidade que irradiava de cada centímetro dela que fazia seu macacão vermelho parecer brilhar à luz do dia.
Seu corpo, sacudido pelo gemido incessante do motor, parecia se contorcer de ódio por D.
— Pode ter pensado que derrotou meus irmãos mais velhos sem problemas, no entanto enquanto eu estiver por perto, você não poderá se aproveitar do clã Marcus. Parece que te encontrei no lugar certo. Minha presa está aí? — a garota se referiu à Nobreza como sua presa, cuspindo as palavras com uma autoconfiança e hostilidade inaceitáveis.
D continuou imóvel como uma escultura, espada na mão.
— Saia da minha frente — disse Leila, em um tom que costumava usar para dar ordens. — Foi uma pena para minha presa que eles não tivessem nada além deste Abrigo quebrado, e uma sorte para você, entretanto agora vou ficar com essa boa sorte, obrigada. Se dá valor à sua vida, é melhor dar o fora nesse instante.
— E se eu não der valor, o que você fará?
A voz suave de D fez com que um tom avermelhado, tão vívido quanto suas vestes, atingisse seu rosto.
— Como assim? Quer mesmo se meter com Leila Marcus e seu carro de combate?
— Eu tenho duas vidas. Pegue a que quiser. Isto é, se puder.
A voz serena, inalterada desde a primeira vez que a ouviu, fez Leila se calar. A moleca hesitou.
Ainda não havia percebido que a lâmina perfurando a parede do Abrigo estava ali devido apenas à habilidade secreta de D. Desde o início, nunca lhe passou pela cabeça que qualquer coisa viva pudesse realizar tal feito. Ainda inconsciente de seu verdadeiro poder, a hesitação de Leila nasceu de movimentos em seu coração aos quais não tinha consciência.
O homem de preto parado à sua frente a fazia se sentir chocantemente entorpecida. Como uma droga misteriosa, sua presença agia como um anestésico que a violava até a medula dos ossos. Como se quisesse arrancar o movimento do seu coração, Leila puxou os óculos de proteção para baixo.
— Que pena. É assim que nós, Marcus, fazemos! — assim que o macacão vermelho se acomodou no banco do motorista, o motor uivou. Ela havia cortado o escapamento de propósito para antagonizar os oponentes. No instante em que suas mãos assumiram os controles, os pneus enormes achataram a grama. Não exatamente descendo a colina, o carro de combate estava mais perto de voar, e suas rodas chutaram a terra ao mesmo tempo em que pousava de novo. Em menos de um décimo de segundo, tornou a decolar. Sua velocidade não parecia possível para uma construção mecânica.
O veículo avançou loucamente direto para D.
D não se moveu.
Um som terrível sacudiu o ar, agora misturado a um fedor de peixe. O cheiro era acompanhado de fumaça. Fumaça branca saindo dos pneus queimados, o veículo parou a poucos centímetros de D.
— Vai sentir isso até os ossos. Lá vou eu! — os gritos histéricos de Leila eram apenas mais uma tentativa de esconder a inquietação de seu próprio coração. O pé que havia pisado fundo no acelerador para atropelar D pisou no freio a um triz de esmagá-lo. Mas por que D não se moveu? Era como se tivesse lido as ondas que se espalhavam pelo peito dela.
Sem dizer uma palavra, puxou a espada presa. Esta se soltou rápido demais. Embainhando-a sem fazer barulho em um único movimento fluido, D se virou.
— Pensei que entenderia do meu jeito. Deveria tê-lo feito desde o início. Poderia ter nos poupado de problemas se não tentasse bancar o durão. — Leila manteve os olhos em D até que este subiu a colina e desapareceu no cume. Um instante depois, a tensão apertou seus olhos felinos.
Com um gemido baixo, a terra tremeu com força. Embora pesasse mais de uma tonelada, o carro de combate foi lançado sem esforço no ar, se chocou contra o chão e foi lançado para cima outra vez.
Agora que D havia partido, os sistemas de defesa do Abrigo entraram em ação.
Embora parecesse impossível se firmar, Leila permaneceu impassível em seu carro. Segurava o manche com uma das mãos, porém era tudo. Permaneceu perpendicular ao carro durante toda a sua dança frenética, como se as solas dos pés estivessem coladas ao assoalho.
Em pleno ar, Leila sentou-se.
O motor emitiu um rugido ensurdecedor. Chamas atômicas azuis saíam dos bicos injetores traseiros e a fumaça do combustível radioativo usado saía dos canos de escapamento das laterais do motor. O carro de combate decolou em pleno ar.
Ao pousar, o penetrador sobre o motor girou para apontar para o Abrigo. Sem o obstáculo da terra que balançava, saltando a cada choque, o carro ainda não perdia o rumo.
O ar estava manchado de azul.
O teto do Abrigo se abriu e um canhão laser, semelhante a uma antena parabólica de radar, surgiu e jorrou um jato de fogo. Ela roçou a carroceria do carro no ar e reduziu um pedaço de terra a lava derretida.
Se esta arma fosse controlada por radar, então certamente havia motivo para alarme. A segunda e a terceira rajadas de fogo, geralmente alardeadas por sua precisão incomparável, voaram em vão, enquanto o alvo deslizava para a frente ou para trás, para a esquerda ou para a direita de onde caíam.
A habilidade de Leila ao volante superava esses dispositivos eletrônicos.
Desde que ela conseguia se lembrar, o pai do clã sempre a impressionara sobre a importância de refinar suas habilidades em manipular tudo o que fosse mecânico. Seu pai talvez até conhecesse algumas técnicas básicas de aprimoramento genético.
Os talentos de Leila só pareciam brilhar quando se tratava de meios de transporte. Seja um carro, ou mesmo algo com vida própria, como um cavalo ciborgue, sob seu toque habilidoso, os veículos mecânicos ganhavam uma nova vida.
“De a ela um motor e algumas rodas e montará um carro.” dissera seu pai com admiração. Sua habilidade em operar veículos superava a de todos os seus irmãos, com apenas o filho mais velho, Borgoff, chegando perto.
E como Leila amava seu carro de combate. Este havia sido criado com peças coletadas em ferros-velhos durante suas viagens. Algumas peças até vieram das ruínas da Nobreza, quando a oportunidade de pegá-las surgiu. Leila até se esquecia de comer ou dormir enquanto trabalhava nele. Numa manhã de inverno, o carro de combate foi concluído pela luz fraca e aquosa do amanhecer. Dois anos se passaram desde então. Amando aquele carro como um bebê que havia vindo de seu próprio ventre, Leila aprendeu a dirigi-lo com um nível milagroso de habilidade. O próprio epítome dessa habilidade estava sendo exibido naquele pedaço de terra cercado por colinas. Evitando todos os ataques dos dispositivos eletrônicos, o veículo mudou de direção no ar e, assim que o atraso de uma fração de segundo do laser na mira estava terminando, o penetrador disparou um feixe prateado.
Era uma forma de metal líquido. Expulso a velocidades superiores a Mach 1, a estrutura molecular do metal se alterou, transformando-se em uma lança de cinco metros de comprimento que atravessou o mecanismo do canhão laser. Enviando ondas eletromagnéticas em todas as direções como tentáculos, o laser foi silenciado. Ao apontar o cano do penetrador para uma das paredes do Abrigo, um sorriso sangrento surgiu nos lábios de Leila.
De repente, seu alvo ficou borrado. Ou, mais precisamente, o carro afundou. Como se o terreno ao redor do Abrigo tivesse se transformado em um pântano, o carro afundou de frente no chão.
O comportamento tenso de Leila desmoronou, deteriorando-se em uma risada despreocupada.
Os bicos traseiros giraram com um guincho, expelindo fogo. Chamas percorreram as laterais do veículo, soprando para longe o solo rochoso que engolia seu cano. Os pneus giraram a toda velocidade. Levantando um rastro de poeira, o carro de combate decolou com a cauda primeiro. Girou para encarar a colina antes mesmo de tocar o solo, e a torre do penetrador girou para trás, lançando uma rajada de luz prateada contra a parede do Abrigo.
A explosão se partiu em duas e, no mesmo instante, foi reduzida a incontáveis partículas de luz que voaram em todas as direções. Nem mesmo as habilidades de direção de Leila conseguiram atravessá-lo através daquela teia de estilhaços.
No entanto...
Aterrissando de volta em solo firme, o carro de combate continuou em linha reta em direção à tempestade de partículas metálicas, com a carroceria inclinada descontroladamente enquanto empinava. As balas que destruíam a escuridão afundaram na barriga do carro.
Acelerando o motor a todo vapor, Leila empurrou seu veículo até o topo da colina em uma corrida alucinante.
***
Link para o índice de capítulos: Vampire Hunter D
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com







Nenhum comentário:
Postar um comentário