Capítulo 52: As sombras à espreita em Gyria
“O que é isso?” Jade sussurrou, virando os olhos para um beco estreito a alguma distância.
É... Acho que é uma visão bem bizarra para quem nunca viu um desses antes.
A figura, vestida com uma capa preta esfarrapada, era mais ou menos humanoide... Embora qualquer um poderia dizer que aquela coisa não era humana. A pele que cobria seu corpo abatido... Ou melhor, anormalmente magro... Tinha o escurecimento de um cadáver necrótico. Seu rosto não tinha orelhas, nariz, boca ou cabelo, apenas dois olhos excepcionalmente grandes e arregalados olhando vidrados em nossa direção.
“Aquilo é... Um mazoku puro!” murmurei em resposta.
Ao contrário dos mazokus de baixo nível como demônios de bronze e demônios inferiores, que precisavam possuir e transmogrificar animais para se manifestarem em nosso mundo, mazokus puros podiam se manifestar aqui inteiramente por conta própria. Nem preciso dizer que significava que eles eram muito mais fortes que os demônios.
“Está distorcendo o próprio espaço para nos prender aqui.” expliquei.
“Ohh. Muito bem informada.” disse a coisa, impressionada... Ou talvez zombando de mim.
“Bem, eu já dei algumas voltas. Mas você não veio aqui para bater papo, veio?”
“É claro que não. Meu assunto com você é ainda mais trivial...” o mazoku de olhos esbugalhados começou a andar pela avenida com passos deslizantes. “Só queria te pedir para morrer.”
“Para trás, Jade. Espadas normais não podem ferir essa coisa. E... Tenha cuidado. É provável que não seja o único inimigo aqui.”
“Percepção impressionante. Vamos, vocês dois!”
Dois? Quando o mazoku de olhos esbugalhados chamou, senti uma onda de hostilidade se lançar em minha direção. Um... Acima!
Antes que pudesse sequer olhar para cima, Gourry já tinha desembainhado a espada. Que déjà vu!
Zing! Ouvi um forte zumbido acima da minha cabeça. Um instante depois, o agressor pousou na rua à minha frente e saltou para trás para abrir espaço entre nós.
Xamã... Eu sabia! De fato, já esperava por isso, porém... Outra aura hostil emergia de um beco em frente ao local onde o mazoku de olhos esbugalhados apareceu. Era quase tão alto quanto um humano e segurava espadas nas duas mãos. Era todo preto, como Xamã, contudo tinha uma situação diferente acima do seu tronco. Não que tivesse um rosto diferente, era mais que nem sequer tinha nada que se parecesse com um rosto. Onde costumava estar uma cabeça, havia um conjunto de protuberâncias longas e finas, quase como cabeças de serpente, cada uma com a espessura do pulso de uma criança. Era como se alguém tivesse transplantado uma pequena hidra para o pescoço da coisa.
“Três delas?” Mileena gritou em uma rara demonstração de nervosismo.
Olhos esbugalhados soltou uma risada baixa.
“Bem, três seres superiores parece um pouco demais para abater apenas cinco ratos humanos... Mas ordens são ordens.”
“Então essas ordens seriam da Sherra?” perguntei calmamente.
Ele estreitou os olhos.
“Quem é você, escória?”
“Alguém que você talvez não devesse chamar de escória...”
“Não sei o quanto sabe... Porém acho que preciso mesmo me livrar de você!” ele balançou a mão direita enquanto falava, produzindo lanças de miasma no ar... Que disparou em nossa direção! Todos nós nos dispersamos para nos esquivar.
“Gourry, pegue o Xamã! Luke, Mileena, vocês dois peguem a Hidra! Vou cuidar dos olhos esbugalhados!”
“Não venha dar ordens!” Luke argumentou, embora seguiu as ordens e avançou em direção ao mazoku que apelidei de Hidra.
Com um grito de guerra, Gourry atacou o Xamã. E então...
“Meu nome é Rebifor!” rugiu o mazoku de olhos esbugalhados enquanto eu o atacava, entoando um cântico baixinho. “Aplaudo sua coragem em me enfrentar sozinha! Contudo não me de um nome tão trivial!” sua mão esquerda se projetou para a frente enquanto mirava em mim, lançando uma lâmina negra em minha direção!
Desviei para o lado enquanto lançava meu feitiço.
“Lança Elemekia!”
“Tola!” Rebifor a afastou com a mão esquerda. “Não pode me machucar com algo desse nível!”
Parecendo um pouco abalada, desembainhei a espada da cintura, retomei o cântico e voltei a me aproximar do meu inimigo. Desviei de outra lança de miasma que disparou e mergulhei para perto, estocando enquanto o fazia! O golpe afundou profundamente no flanco de Rebifor. Os olhos do mazoku se estreitaram na sugestão de um sorriso.
“Sua tola! Não te disse? Isto não vai fun...”
Antes que pudesse terminar, eu entoei.
“Videira Astral!” o feitiço infundiu magia na minha espada!
“Gaaaah!” Rebifor gritou enquanto saltava para trás e para longe. Devo ter causado algum dano, no entanto não foi o suficiente para matá-lo. “Maldita seja!” ele me encarou depois de se distanciar.
Parecia que enfim tinha se recuperado. Meu ataque simplista inicial, combinado com meu comportamento abalado, era tudo uma manobra para fazê-lo abaixar a guarda. Cruzei os olhos com Rebifor, cujo olhar agora era cauteloso. Enquanto avaliava a distância e o posicionamento, comecei a entoar outro feitiço.
“Lança Elemekia! Luke! Mileena!” mantendo meus olhos fixos em Rebifor, lancei meu feitiço... Na Hidra!
Felizmente, meus gritos foram suficientes para fazer Luke e Mileena desviarem. Apesar de ter sido pego de surpresa, a Hidra também conseguiu escapar, mas o ato deixou o mazoku desequilibrado...
“Bram Blazer!”
“Fell Zaleyd!”
Permitindo que Luke e Mileena o destruíssem com um bom e velho combo de um-dois!
“Gkh!” Rebifor lançou um olhar hostil em minha direção. “Recuem!” gritou, deslizando para trás no beco. Deve ter percebido que estava em desvantagem.
Xamã, ainda em choque com Gourry, também recuou ao chamado de Rebifor.
“Eles estão fugindo!” gritou Jade.
“Não é seguro perseguir.” respondi calmamente. De fato nos pouparia problemas no futuro persegui-los e derrotá-los agora, entretanto... “Ainda estamos dentro da sua barreira, nunca seríamos capazes de alcançá-los. O mais provável é que eles dividissem nossas forças e nos eliminassem.”
Rebifor e Xamã tiveram o azar de perder a Hidra, todavia não seriam tão arrogantes na próxima vez que nos cruzássemos. Nós é que seríamos azarados se os subestimássemos.
“Então como saímos dessa barreira, Lina?” perguntou Gourry.
“Acredito que se dissipará quando Rebifor a deixar. A questão é o que vem depois. Da próxima vez que lutarmos contra eles, é bem provável que estarão mais prepa...”
Fui interrompida pelo retorno abrupto da agitação da cidade. A avenida, vazia momentos antes, de repente estava lotada de pessoas. Parecia que a barreira de Rebifor havia sido levantada.
“Hmm. Acho que tinha razão.” comentou Luke.
“No entanto ainda temos trabalho a fazer.” acrescentou Mileena.
Embora devesse parecer que surgimos do nada para as pessoas ao nosso redor, ninguém se importou. O que não era nada estranho... Eles tinham coisas mais importantes com que se preocupar. Tínhamos expulsado Rebifor e seus capangas, no entanto ainda havia uma horda inteira de demônios para lidar. Descemos a rua correndo, abrindo caminho pela multidão...
E então, nós cinco paramos de uma vez. Chegamos à praça na entrada norte da cidade, ladeada por barracas e lojas vazias e sem ninguém. Além do portão, podíamos ver uma massa contorcida de figuras descendo a rua em direção à cidade.
“Sem chance...”
“São todos...” disse alguém com a voz rouca enquanto estávamos ali.
Estavam tão longe que eu não conseguia dizer com certeza quantos eram, mas sem dúvida eram mais do que se podia contar nos dedos das mãos... E dos pés.
“O-O que vamos fazer? Acho que essa multidão pode dar mais trabalho do que aqueles mazokus puros...” Luke sussurrou, mantendo um olhar fixo para o horizonte.
Quanto a mim...
“Hah! Pode bagunçar a rua, mas vou acabar com todos antes que nos alcancem!” anunciei, indo direto para um cântico.
Tu que és mais sombrio que o crepúsculo...
Tu que és mais vermelho que o sangue...
Isso mesmo, hora de sacar o bom e velho Dragon Slave! Números não eram problema quando se tratava de explodir demônios aleatórios com esta belezinha! Exceto que...
“Ei, o que é aquela coisa branca?” perguntou Gourry de repente.
Nesse momento, vi um clarão. E naquele instante...
“O quê?” gritei, tão alarmada que abandonei meu cântico. Houve um clarão à distância, e todos os demônios ao redor saíram voando.
“O que foi aquilo?” gritou Luke.
“O que aconteceu?” Mileena o seguiu.
Gourry, que tinha a melhor visão de todos nós, aparentemente conseguia ver o que estava acontecendo, mas o resto de nós estava no escuro.
“Vou tentar chegar mais perto!” falei, correndo antes que alguém pudesse responder.
Enquanto avançava, a luz pulsou uma segunda vez, depois uma terceira. Cada clarão ceifava mais demônios. E então...
Não sei o quão longe cheguei antes de finalmente parar no meio do caminho, em silêncio. Àquela altura, mal havia sobrado algum membro do enxame de demônios para lutar.
Kra-pash! A luz cortou o ar de forma audível, e ainda mais demônios foram levados embora. A fonte das explosões que destruíam o chão e os demônios era...
“Aquele é... O gigante branco?” murmurei como uma mulher em transe.
O aldeão com quem conversamos antes descreveu o gigante branco como uma pequena montanha. Era óbvio que havia sido um exagero, porém não podia culpá-lo por usar a palavra ‘gigante’ quando este era bem maior do que os já enormes seres demoníacos. Seu corpo branco brilhava com uma luz ofuscante. Sua forma geral era humanoide, contudo sua cabeça estava meio afundada nos ombros. Parecia um pouco com um golem de alabastro, se esculpido com muita licença artística.
“Ei, Lina... Você já viu algo assim antes?” perguntou Gourry.
“Não. Não que eu me lembre.” respondi, ainda em transe.
O gigante disparou outra rajada de luz da palma da mão direita estendida. Mais demônios de bronze e inferiores atingiram o chão. Quase não havia sinal de movimento demoníaco ao nosso redor. Sem sequer olhar para sua plateia silenciosa e boquiaberta (ou seja, nós), o gigante se virou e começou a se afastar.
“Ele... Está indo embora!” sussurrou Luke.
Ninguém respondeu. Nenhum de nós sabia como reagir ao que acabávamos de ver. Se o gigante estava eliminando demônios, não parecia ser uma ameaça imediata. No entanto não significava que fosse seguro presumir que estivesse do nosso lado. Por fim, enquanto o observávamos partir...
“Hã?”
O gigante branco literalmente desapareceu.
“O que era aquela coisa?” Jade gritou, todavia ninguém sabia o que responder. Se não fossem os cadáveres de demônios espalhados pelo chão ao nosso redor, eu teria dito que estávamos sonhando ou alucinando.
“Bem, de qualquer forma... Ficar parados aqui não vai nos levar a lugar nenhum. Vamos informar aos moradores da cidade que o perigo mais ou menos passou.” propus.
“Verdade... Tranquilizá-los vem primeiro.” concordou Jade.
“Mas eu vou dizer que nós derrotamos os demônios para pegar uma bela recompensa!”
“Ei, ótima ideia!” Luke concordou. Porém...
“Como você ousa?” Jade protestou. “Isto é fraude! Nós não fizemos nada!”
“Oh, fizemos sim! Nós assistimos encorajadoramente enquanto o gigante fazia o que fazia!”
“O que não ajudou em nada!”
“Cresça, cara!” Luke interrompeu. “Ações merecem recompensas tanto quanto resultados.”
“Só que nós não agimos! A luta foi resolvida sem levantarmos um dedo sequer!”
“Nossa... Tão cabeça dura.”
“Não, você que é!”
Luke e eu tentamos o nosso melhor para persuadir Jade, contudo, seja por integridade ou pura teimosia, este se recusou a ceder. Depois se virou para Gourry e Mileena em busca de apoio.
“Tenho certeza que vocês concordam comigo! Por favor, digam alguma coisa!”
“Hã? Tipo o quê?” perguntou Gourry.
“Platitudes só te levam até certo ponto neste mundo.” respondeu Mileena.
“Waaagh! Parem com isso!” Jade gritou, segurando sua cabeça.
Eu conseguia entender a reação de Mileena lamentando-se, no entanto a culpa era definitivamente dele por contar com o Gourry.
“M-Mas ainda sou um nobre cavaleiro de Dils... Não posso ser cúmplice de tal farsa.” murmurou, e enfim se levantou com um semblante decidido. “Muito bem! Façam o que quiserem! Porém, vou contar às pessoas o que realmen...”
“Durma.”
Thump! Zzzzz...
“Certo! Problema resolvido, vou voltar para a cidade e espalhar a notícia!”
Deixando Jade em seu sono mágico, saí correndo.
———
Chegando ao topo da colina, avistei uma metrópole cercada por uma muralha... A capital do Reino de Dils, Gyria.
“Enfim em casa.” disse Jade, sua voz tomada de melancolia, enquanto olhava para a cidade distante. Ele andava um pouco irritado desde o ataque dos demônios por algum motivo, entretanto a visão de sua cidade natal aparentemente foi o suficiente para animá-lo de novo.
“Desculpe estragar o momento, só que não é hora de ficar nostálgico.” disse Luke em um tom muito mais sombrio enquanto se aproximava de Jade. “Chegar aqui significa que a luta de verdade vai começar.”
Ele tinha razão. Rebifor e Xamã estavam, sem dúvida, agindo sob as ordens de Sherra, que estava aqui nesta cidade. O fato de não terem feito nenhum movimento contra nós desde o nosso último encontro sugeria que estavam concentrando suas forças aqui na cidade, prontos para atacar assim que chegássemos.
Sherra sozinha já era uma oponente e tanto. E embora tivéssemos sorte de ter chegado até aqui, ainda não havia garantia de que sairíamos vitoriosos. Para ser sincera, parte de mim seguia considerando a possibilidade dar o fora e fingir que nunca tínhamos ouvido falar de nada a respeito... Todavia, no fundo, sabia que essa não era uma opção real.
Não sabia dizer ao certo o que vinha acontecendo, no entanto se um mazoku da classe General estivesse metido no meio, é bem provável que é muito mais assustador do que um sequestro de reino comum. Se deixássemos passar a oportunidade de fazer algo a respeito, não havia a mínima possibilidade de que a situação se resolvesse sozinha. Tínhamos que atacar antes que fosse tarde demais.
Eu teria apreciado alguma ajuda, mas o conselho de feiticeiros não acreditaria se contássemos. Dois antigos companheiros de viagem me vieram à mente como potenciais aliados, porém um deles estava em Saillune e o outro, sabe-se lá onde. Provavelmente não tínhamos tempo para encontrá-los.
Bom... Acho que teremos que fazer isso nós mesmos, pensei comigo mesma com um leve suspiro interno enquanto eu e meus quatro companheiros começávamos a descer a colina... Pela estrada para a Cidade de Gyria.
———
“Desculpe, contudo não podemos deixá-los entrar.” disse o jovem soldado, sem jeito, enquanto bloqueava nosso caminho com sua alabarda.
Tínhamos acabado de chegar a um dos portões embutidos na muralha ao redor de Gyria.
“Do que está falando?” perguntou Jade, compreensivelmente atordoado com aquela postura hostil.
Provavelmente não preciso dizer que o propósito de ter uma grande muralha ao redor de uma cidade-castelo como esta era protegê-la de invasores externos... Reinos rivais em guerra, hordas de monstros furiosos, esse tipo de coisa. De modo geral, pessoas comuns que entravam e saíam de uma cidade não eram submetidas a muito escrutínio. Afinal, impor restrições excessivas exige mão de obra e desestimula o comércio e o turismo, o que cria estagnação na economia. E, de fato, mesmo com o soldado bloqueando nossa passagem, podíamos ver menestréis, mercadores e outros viajantes chegando.
Claro, esperaria que personagens suspeitos e criminosos fossem barrados, no entanto qualquer um que parecesse normal o suficiente e tivesse um motivo plausível para entrar na cidade deveria estar liberado. Além disso, em um momento como este, aposto que até alguém que parecesse meio suspeito ainda teria permissão para entrar, desde que dissesse ser um mercenário respondendo ao chamado.
E ainda assim fomos impedidos de entrar, mesmo com o cavaleiro local Jade em nossa companhia?
“Isto é um absurdo! Vou me repetir... Eu sou Jade Caudwell, cavaleiro do segundo esquadrão dos Cavaleiros Azuis do Palácio de Gyria, retornando de uma missão! Atesto as quatro pessoas que viajam comigo! Por que isso não é suficiente?” Jade perguntou, elevando a voz.
Mas o soldado respondeu sem jeito.
“Na verdade... Sei quem você é. É por essa razão que não posso deixá-lo entrar.”
“O que quer dizer?”
“Essas... Foram minhas ordens.”
“Ordens?”
“Sim... Em relação a você e seu irmão Grya...”
“O que são? Pare de gaguejar e me diga!”
“Ah... Bem... Você foi destituído de seus títulos por ter se ausentado sem licença...”
“O quê?”
“Então... Nos disseram para não o deixar entrar... Mesmo que retornasse.”
Destituídos de seus títulos e exilados! Parece uma punição muito dura, até para terceiros como nós, e a notícia foi claramente um choque incrível para o próprio homem.
“Quem... Quem decretou?” ele perguntou.
“Bem... Foi...” o jovem soldado começou a suar sob o olhar dos outros soldados ao seu redor. “General Allus...”
“General Allus?” Jade gaguejou com raiva.
O soldado continuou na defensiva.
“Bem, ele disse que nosso suserano autorizou... Sendo assim não posso discutir...” estava se referindo ao rei, é claro.
“Tudo bem, que seja. Não é sua culpa. Se não conseguimos entrar, não conseguiremos... Porém posso lhe pedir um favor? Poderia, por favor, passar uma mensagem para meu pai, o General Grancis Caudwell?”
“Bom... Na verdade...” o soldado caiu em um silêncio constrangedor outra vez.
“O quê? Não me diga que recebeu ordens de nem mesmo passar mensagens em meu nome...”
“Não, é só que o General Grancis... Faleceu... Devido a uma doença.”
Agora foi a vez de Jade ficar em silêncio. Ele apenas ficou ali, atordoado.
———
A taverna naquela noite estava barulhenta. O cheiro de álcool enchia o salão, assim como a fanfarronice dos bêbados, ocasionalmente pontuada por risadas estridentes. Nossa mesa era a única silenciosa.
Estávamos no bar no primeiro andar de uma pousada em uma pequena cidade perto de Gyria. Seu tamanho era surpreendente, dada a proximidade com a capital, contudo talvez os viajantes raramente parassem ali, preferindo fazer a última parada até a cidade grande.
“Então, preciso perguntar...” Luke interrompeu quando terminamos de jantar, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. “Quem é esse General Allus? Quando o nome surgiu esta tarde, sua reação foi como se tivessem um passado...”
Jade tomou um gole de seu vinho radda e respondeu.
“Ele é o líder dos Cavaleiros Vermelhos. Sei que fofocar é falta de caráter, no entanto nunca ouvi falar muito bem da sua pessoa. Dizem que não chegou à posição atual de forma honesta e que brigava bastante com meu pai, que era muito correto. Também foi quem primeiro promoveu Sherra e a apresentou ao nosso suserano. Meu pai acreditava que era uma tentativa sua de ganhar o favor do rei.”
“Hmm... Então, um cara mau, é o que está dizendo!” resumiu Luke, dando uma mordida na carne de porco frita. “Qual é o plano agora, Mestre Jade?”
“Como assim?” Jade perguntou, franzindo a testa.
“Sabe? Papai se foi, título se foi, e agora você está trancado do lado de fora. Parece que não deve mais nada a este reino.”
Nossa, cara! Tenha um pouco de consideração!
“Tudo igual, ainda sente que precisa deter Sherra e consertar as coisas aqui? Mesmo que te coloque em perigo? Tenho que ser honesto. Parece que seria mais fácil se mudar para outro lugar e encontrar alguém novo para servir. Que tal Zephilia? Ouvi falar bem da rainha de lá.”
Jade permaneceu em silêncio por um tempo, depois virou o resto da xícara.
“Não... Continuo amando meu reino.”
“Entendi!” disse Luke, servindo a próxima rodada para Jade.
“Além do mais... Tenho minhas dúvidas.” confessou Jade após tomar outro gole. “Meu pai morrer de doença em um momento como este... É um pouco conveniente demais, não acha?”
“Suspeita de assassinato?” murmurou Mileena. Jade assentiu.
Ele tinha razão. O General Allus era rival do pai de Jade e também patrocinara Sherra. O General Grancis, desconfiado, enviara seus filhos em busca de ajuda dos lordes locais... E depois bateu as botas enquanto eles estavam fora. Era natural suspeitar que Allus ou Sherra recorreriam a medidas drásticas para tirá-lo do caminho. E como o sujeito que eu imaginava ser o irmão de Jade havia sido morto pelo Xamã, que também deve trabalhar para Sherra, não ficaria surpresa se o seu pai tivesse tido um destino semelhante.
“Se for verdade... Então, no mínimo, quero descobrir quem o matou.”
“Certo... Nesse caso, nosso próximo passo é óbvio. Temos que bolar um plano.” anunciou Luke.
“É. Afinal, estamos enfrentando um oponente bem difícil.” concordei.
É claro que ter um plano não garantiria nossa vitória. Nome bobo ou não, Sherra era a General pessoal de Dinastia. Agora, quando se trata de mazokus, às vezes há uma grande disparidade de força entre indivíduos que compartilham títulos semelhantes... Como o Sacerdote da Grande Besta tendo poder equivalente ao do General e do Sacerdote do Dragão combinados, mas ainda estamos lidando com uma categoria totalmente diferente da média dos mazokus de nível bruto. Estou falando de ‘montanhas aos seixos’. Atacar sem nenhum plano seria suicídio.
“Primeiro, vamos avaliar o que temos. Três de nós podemos usar magia negra ou xamanística. Quanto aos outros dois...” Luke olhou primeiro para Gourry. “Vocês disseram que estavam procurando espadas mágicas, certo? Parece que encontraram uma bem decente em Solaria... Encontraram uma melhor desde então?”
“Não, Gourry segue com aquela.” respondi no seu lugar. “É afiada, durável e pode desviar da maioria dos feitiços. Também parece que pode causar algum dano a mazokus... Porém apenas alguns, então não esperem mortes garantidas contra um inimigo poderoso.”
“Entendi.” Luke pensou por um minuto. “A minha só está no limite do aceitável, em termos de lâmina, contudo consegue absorver um único feitiço.”
“Consegue absorver um feitiço?”
“É. Quando estou lutando normalmente, ela usa um efeito parecido com o feitiço que absorveu. Então, se acertá-la com uma Lança Elemekia antecipadamente, vai lhe dar o poder de cortar um mazoku.”
“Caramba é incrível!”
“Também posso disparar o feitiço armazenado. Não precisa de um cântico... Basta que seja a minha intenção que a espada faça isso e ela fará. Muito boa para pegar alguém desprevenido, entretanto depois volta a ser uma espada normal até que um novo feitiço seja lançado. Dito isso, em ambos os casos, o feitiço é menos poderoso do que seria direto da boca do conjurador. O principal problema é que não tenho uma boa ideia de quanto a espada pode suportar com feitiços mais poderosos. Então, se ficar desesperado e lançar algo muito poderoso nela, pode acabar apenas quebrando.”
“Hmm...”
“Tudo bem, que tal dividirmos as espadas mágicas entre os dois não conjuradores?”
“Boa ideia.”
Em outras palavras, distribuir nossos recursos com sabedoria. Sem uma lâmina capaz de lutar contra mazokus, Jade havia sido deixado de lado durante nossa luta contra Rebifor. Se tivéssemos que enfrentar números maiores no futuro, um Jade indefeso nos sobrecarregaria.
“Tudo bem, que tal se Jade pegasse a espada de Gourry e Gourry pegasse a de Luke?” propus.
Mileena assentiu em resposta silenciosa.
“Er... Vocês estão fazendo parecer que só vamos lutar contra mazokus.” interrompeu Jade.
Luke interrompeu nossa discussão sobre a troca de espadas ao perceber.
“Ah... Certo, não contamos a ele.” após pensar por um minuto e coçar a bochecha, Luke prosseguiu. “Vamos ver como devo contar... É uma longa história, no entanto, uh... Vou ser direto. Sherra é um mazoku.”
Houve um momento de silêncio.
“Como é?” perguntou Jade, perplexo com a revelação tão descarada.
“Como disse, ela é um mazoku. Conclui-se que estaria cercada por mazokus, certo?”
“Mas... Parece ser apenas uma mulher comum...”
“Quanto mais fortes ficam, mais humanos suas aparências se tornam. Eles também se tornam melhores em esconder suas presenças demoníacas.”
“Ah... É assim que funciona?” Jade perguntou de um jeito vago, como se não acreditasse totalmente em nós.
“De toda forma, nossa primeira tarefa é entrar na cidade... O que acho que significa que vamos nos esconder na sua casa, Mestre Jade.” propôs Luke.
Jade pareceu infeliz com a ideia.
“Porém... Minha mãe faleceu quando eu era jovem. Se meu pai morreu e estou exilado, é possível que tenham confiscado todos os meus bens...”
“Ah, qual é, não é como se fossem demolir o lugar da noite para o dia. Enfim, o primeiro passo é entrar na cidade. Passaremos a noite descansando para recuperar nossa resistência e, amanhã, começaremos o plano de verdade. Vocês estão comigo?” perguntou Luke.
Todos concordamos com a cabeça.
———
A confusão no bar já havia diminuído há algum tempo. As horas se arrastavam na escuridão estagnada.
“Ah! Não consigo dormir!” gritei enquanto pulava da cama, talvez ali por volta da meia-noite.
Em momentos como esse, uma refeição quente me levaria direto para a terra dos sonhos. Duvidava que o bar/restaurante lá embaixo ainda estivesse aberto, contudo mesmo assim me vesti, saí do quarto e fui para o restaurante do primeiro andar. Apesar da minha expectativa de decepção, encontrei as luzes acesas, assim como uma certa compatriota...
“Mileena?”
Sim. A mercenária de cabelos prateados estava sentada a uma mesa de canto, bebendo uma garrafa de vinho.
“O que você está fazendo aqui sozinha?” perguntei. “Oh, ei, estalajadeiro. Tem alguma coisa quente para comer?”
“Posso esquentar o que sobrou do ensopado.”
“Claro, parece ótimo.” fiz meu pedido e me sentei em frente a única outra cliente do bar. “Também não conseguiu dormir?”
“Acho que não...” ela respondeu, apática, tomando outro gole de sua bebida.
Não podia culpá-la. Iríamos para a Cidade de Gyria na noite seguinte e, como o tempo era essencial, poderíamos acabar indo direto para o palácio para um confronto com Sherra. Saber que estávamos prestes a brigar com a General de Dinastia, um mazoku de altíssimo nível, não ajudava muito em ter um bom descanso e relaxamento.
“Pensando agora... Não me encontro em situações como essa com muita frequência.” admiti.
“Situações como o quê?” ela perguntou.
“Sabe. Só nós, garotas, conversando. Afinal, Luke está sempre te acompanhando.”
“E o Mestre Gourry está sempre com você.”
Cocei a ponta do nariz.
“Bom... Ele se diz meu guardião. Dito isso, sou eu quem ganha a maior parte do dinheiro, então é mais um gigolô do que qualquer outra coisa. Se importa se eu perguntar, Mileena, por que viaja com o Luke?”
Mileena ficou em silêncio por um tempo, com um sorriso nos cantos da boca.
“Porque sou muito desajeitada.” respondeu enigmaticamente.
Hmm...
“Quer dizer...” comecei, mas me vi me virando.
O interior escuro do restaurante, a luminária balançando no teto, as paredes sujas... Tudo parecia exatamente como antes. Por um momento, pensei ter sentido uma presença estranha... Seria apenas minha imaginação?
“Não é sua imaginação.” interrompeu Mileena, como se tivesse lido minha mente. Ela então se levantou e colocou a mão na espada. “O estalajadeiro desapareceu.”
Me virei e vi que Mileena estava certa. O homem que antes estava visível além do balcão da cozinha agora não estava mais à vista.
“Então você acha que...”
Ela assentiu em resposta.
“Estamos de volta dentro de uma barreira.”
“Hehehe. Vocês certamente ficaram descuidadas. Ou só estão confiantes?” uma voz grave ecoou pelo quarto escuro.
Onde ele está? Olhei ao redor e não consegui ver nenhum sinal do intruso. Porém podia sentir sua presença com certeza.
“Hehehe... Não consegue me ver, consegue? Humanos são tão patéticos. Eu me pergunto por que a senhora Sherra tem tanto medo de você...”
Fwshhh... Acompanhando a voz desencarnada, ouvi um som como areia caindo de algum lugar.
De onde está vindo? Do centro do cômodo...?
“A lâmpada!” gritei.
Mileena olhou para cima. A luz fraca lançada pela lâmpada começara a cair no chão em um fio fino, como um raio de sol brilhando entre as nuvens. Enquanto eu observava, começou a se expandir e assumir uma silhueta quase humanoide. Dois olhos escuros e vazios estavam dentro de uma cabeça que parecia feita de musgo luminescente calcificado.
“Vocês me veem agora, humanos? Lembrem-se do meu nome. Eu sou Gubagg, servo da General Sherra.”
Então é um mazoku trabalhando para Sherra! Ainda assim, saber quem era o empregador desse cara não mudava nossa prioridade... E com isso, quero dizer, acabar com o desgraçado!
Como não tinha intenção de esperar até que o homem-musgo terminasse de se recompor, liberei meu feitiço.
“Dynast Blas!”
Com um estalo furioso, meu raio mágico explodiu a figura luminosa! Ótimo!
“Ainda não acabou!” gritou Mileena.
Por um minuto, não entendi o que quis dizer. Olhei de volta para a figura pálida e...
Fiquei atordoada e em silêncio. Observei meu relâmpago mágico furioso ser sugado pelos olhos negros e arregalados do homem-musgo. Em pouco tempo, o raio desapareceu por completo e Gubagg voltou seu olhar para nós.
“Isso não vai funcionar.” havia um tom de desprezo em sua voz. “Os olhos de Gubagg levam todas as coisas ao vazio. Enquanto funcionarem, não poderão me derrotar... Entenderam agora?”
Le-Levar coisas ao vazio? Parece um certo Lorde das Trevas de cabelos dourados que conheço... Entretanto se Gubagg estivesse nesse nível, não estaria sendo feito de cachorrinho por Sherra. Devia estar usando algum tipo de truque de distorção dimensional para enviar o poder que o atingiu para outro lugar. De qualquer forma, esta seria uma luta difícil.
“Enviamos assassinos atrás de seus amigos também, concedendo a vocês a misericórdia de matar todos juntos. Agora, deixe-me mostrar... Meu outro poder.”
Enquanto Gubagg falava... Rustle! Algo se moveu no chão a seus pés.
Olhei na direção do som e fiquei sem palavras. O corpo musgoso de Gubagg se espalhava por suas pernas, corroendo tudo o que tocava. Corrosão?
“Em breve, vou me expandir até devorar toda esta barreira... Incluindo os humanos imundos que estão dentro!” Gubagg pronunciou regozijando-se em triunfo.
Enquanto isso, a corrosão continuava a se espalhar, bloqueando a escada para o segundo andar e o caminho para a porta da frente. Não que subir as escadas ou sair pela porta adiantasse muito dentro de uma barreira espacial...
Corrosão mais anulação de magia, hein? Era verdade que a maioria dos humanos não teria chance contra esse cara. Pena que não sou a maioria dos humanos! Comecei a entoar um feitiço. Contudo... Whoosh! Antes que pudesse terminá-lo, Mileena disparou! Ela sacou sua espada e investiu contra Gubagg.
O que diabos está fazendo?
Não tive tempo de impedi-la. Ela enfiou sua espada no musgo branco que corroía o chão!
“Tola! Isto não vai funcionar!”
Gubagg estava certo. O musgo branco não se inibiu nem um pouco. Pelo contrário, começou a subir pela lâmina de Mileena. Ela rapidamente sacou a espada e a ergueu no ar, no entanto rastros pegajosos de musgo grudaram tenazes a sua lâmina.
Má jogada, Mileena... No entanto, assim que tive esse pensamento, Mileena fez sua próxima jogada! Desta vez pulou e enfiou a espada no olho de Gubagg.
Não vai funcionar...
Gubagg deve ter pensado a mesma coisa. Todavia antes que pudesse se gabar...
“Chama Elemekia!” um golpe à queima-roupa envolveu todo o seu corpo!
Aha!
“Geh!” Gubagg soltou um grito curto.
Crick. Houve um leve estalo aos pés de Mileena quando pousou. Crick. Crackapop. Crickle. Continuou intermitentemente, até que por fim... Ziiing! Com um som de cristal se estilhaçando, o corpo luminescente de Gubagg desmoronou em pedaços.
Huh... Boa, Mileena.
Ela intencionalmente fez com que parte de Gubagg se agarrasse à sua espada e a enfiou no olho do mazoku. Atingi-lo com um feitiço de ataque significava que, se o absorvesse para dentro do olho, estaria sugando o próprio corpo para o vazio ao mesmo tempo, permitindo que o feitiço o atingisse dessa forma. Em outras palavras, Mileena havia manipulado Gubagg para receber o feitiço, não importando como respondesse.
Acho que a decisão de Gubagg de nos intimidar monologando sobre suas habilidades foi sua ruína. Admito que eu mesma não fiz muita coisa...
Mileena se virou para mim.
“O que houve? Você parece decepcionada.”
Quer dizer... Esperava acertá-lo com minha Lâmina Ragna e dizer: “E aí? O que você acha do sabor do vazio de verdade?” Mas sabe, tanto faz...
“Ah... Não é nada. Nada mesmo!” respondi, me sentindo um pouco desanimada mesmo assim. Afastei a ideia e olhei ao redor. “A barreira segue ativa?” sussurrei, e Mileena seguiu meu olhar. A cozinha além do balcão ainda estava deserta.
“Isso significa que outra pessoa a colocou?” ela perguntou.
Eu assenti.
“Ele disse que assassinos também estavam atrás dos outros, certo? Vamos, Mileena!”
Nós duas assentimos e seguimos direto para a escada, quando...
“Com licença! Senhoras!” gritou o estalajadeiro atrás de nós.
Hã? Nós nos viramos e o vimos saindo da cozinha, segurando uma tigela de ensopado.
“Está pronto!” gritou o homem.
“Oh... Hmm...” nós duas trocamos um olhar. Isso significava... Que a barreira havia sido desfeita?
“Mileena!” de repente, ouvimos Luke gritando do topo da escada.
Ah, acho que ele conseguiu sair... Porém os outros? Antes que pudesse expressar meus pensamentos em palavras, Luke desceu correndo a escada e agarrou Mileena em seus braços. Uh...
“Er... Luke...” ela murmurou.
“Estou tão feliz que você esteja segura, Mileena.” Luke suspirou.
“Hm, escuta...”
“Você se machucou?”
“Não, porém... Hmm...”
“Ahh, é lindo ser jovem. Contudo fiquem em seus quartos, está bem?” o velho estalajadeiro interrompeu.
Aquilo enfim fez Luke voltar a si, e soltar Mileena.
“Ah! Desculpe, não consegui me conter...”
“Sim, deveria. Agora, onde estão os outros dois?”
“Oh, certo... Sim, eles estão bem.”
“Ei, Lina.” como se esperassem por essa deixa, Gourry e Jade nos espiaram do corrimão no topo da escada. “Imaginei que ficaria bem.”
Imaginou, né? Bem, acho que isso é um sinal de que tem fé em mim... No entanto poderia ao menos demonstrar um pouco de preocupação, Sr. Guardião Autoproclamado! Ao menos não havia necessidade de me preocupar com Gourry me pegando em seus braços.
“Eles enviaram um mazoku atrás da gente. Todavia não foi aquele tal de Rebifor. E vocês?” perguntei.
“Dois deles. Mestre Gourry e Mestre Luke derrotaram um, e o outro desapareceu. Rebifor não estava junto.” respondeu Jade.
Fiquei me perguntando se a ausência de Rebifor era porque ainda não havia se recuperado do golpe que eu lhe dera. Ou talvez...
“Hmm... Então é possível que ataquem de novo em breve.” considerei.
“Em breve? Quer dizer, hoje à noite?” perguntou Luke.
Assenti.
“É. Conseguimos escapar até aqui porque continuam nos subestimando, entretanto no minuto em que decidirem nos levar a sério, podem começar a enviar ondas de oponentes para nos derrotar. Quer dizer, é meio estranho que Rebifor não estivesse aqui para essa festinha, né? Me faz pensar se há uma segunda força, mais poderosa, esperando nos bastidores. Se for o caso, nossa melhor aposta agora é ir embora.”
“Ir embora? Você está sugerindo...”
“Isso mesmo!” assenti, sem deixar Mileena terminar. Em outras palavras, estávamos indo direto para Gyria.
Mileena me olhou por um longo momento e assentiu.
“Concordo plenamente!” disse Jade por cima do parapeito.
“Certo! Está decidido! Vamos indo...”
“Espere um minuto!” veio uma interrupção repentina.
Virei-me para a fonte... E me lembrei de que o estalajadeiro ainda estava lá.
“Desculpem-me por me repetir, mas o seu ensopado está pronto.”
———
“Depressa, pessoal!” gritei, encorajando-os.
“Quem pensa que é pra nos cobrar que andemos mais rápido, depois de parar para comer?” Luke resmungou.
Depois de comer o meu ensopado, arrumamos nossas coisas, pagamos a conta e saímos da estalagem pela estrada noturna até a Cidade de Gyria.
“Como pode parar para comer ensopado?”
“Vamos lá! Eu não podia só deixar comida na mesa!”
“Tanto faz, é seguro pegar a estrada principal? Se os inimigos estiverem a caminho para um ataque subsequente, podemos encontrá-los.” disse Jade, interrompendo minha discussão com Luke.
“Não me preocuparia com essa possibilidade. Mazokus puros não estariam andando pela estrada até a nossa pousada. Apenas apareceriam do nada, inesperadamente. O que se separou antes deve ter ido onde quer que Sherra esteja... Acho que não tão inesperadamente. Porém se uma segunda onda estiver chegando, também aparecerão de surpresa na pousada. O que significa que a estrada para a cidade deve estar segura no momento.” expliquei enquanto caminhávamos sob o fraco luar.
Continuei, minha voz carregada pela brisa fria da noite.
“Esses seres tem grande confiança em suas habilidades e não consideram os humanos uma ameaça real a eles. Esse é o seu ponto fraco em geral, e se aplica aqui também. Ainda que consigam se teletransportar, capturar pessoas em movimento levará tanto tempo quanto qualquer outra pessoa.”
“Teletransporte?” Jade respirou fundo, quase incrédulo. Conseguia entender o quão surreal a ideia soava para qualquer um que nunca tivesse visto com os próprios olhos. “Contudo teletransporte sugere um movimento muito rápido. Me pergunto por que houve tanto atraso entre os seus ataques...”
“Hmm...” o cara tinha razão. Desde o momento em que o Xamã nos atacou pela primeira vez na estrada até a emboscada de Rebifor na cidade, e daí até o ataque desta noite... Houve vários dias entre cada escaramuça. Considerando que sabiam que estávamos indo para a Cidade de Gyria, poderiam ter sido muito mais agressivos na perseguição. “Bem, tenho certeza de que têm seus motivos. Por ora, vamos apertar o passo para Gyria!”
“Vou repetir, quem é você pra dizer isso?”
———
Felizmente, conseguimos chegar a Gyria antes do amanhecer. (Eu seguia com bastante sono.) Aproveitei a escuridão para nos levitar por cima do muro e entrar na cidade sem que os guardas percebessem. (Ainda estou com muito sono.) O plano era entrar escondidos na casa de Jade, dormir um pouco e encontrar uma base ao amanhecer, e depois...
“Ela... Se foi?” sussurrou Luke.
“De fato... Se foi!” disse Jade, inexpressivo, apenas parado, olhando fixamente.
Onde deveria estar a casa, havia uma pilha de escombros. No entanto devia ser uma bela mansão antes de sua queda prematura. O terreno era vasto e, embora fosse difícil vê-los dali, os jardins pareciam bem cuidados. Só... Não havia mais uma casa.
Caramba... Jade disse algo sobre confiscarem os bens dele, entretanto não pensei que incluiria destruir a casa em si...
“Então... Qual é o plano?” Gourry perguntou com um bocejo.
Saí dos meus pensamentos.
“Ah, boa pergunta! Não podemos ficar parados aqui, não é? Acho que está na hora de...”
“Hora de quê?” Luke me instigou.
Fiquei ali em silêncio por um tempo. A verdade era que... Não tinha pensado em nada.
Guh! Minha falta de sono está me deixando com a mente confusa!
“De qualquer forma, vamos... Nos mexer! Jade, tem algum outro lugar por aqui que possamos ficar escondidos?”
“B-Bem, não sei muito sobre lugares assim...”
“Nesse caso... Teremos que andar por aí até encontrarmos alguma coisa.” falei, começando a andar em uma direção aleatória. Os outros me seguiram.
Guh! Quando você está ansioso para ir para a cama, sentir falta dela é ainda pior!
“Que tal uma pousada na favela?” sugeriu Luke.
“Parece bom. Onde ficam as favelas?” perguntei a Jade.
“Desculpe... Na verdade não sei.” respondeu ele.
Essas conversas tediosas continuaram enquanto caminhávamos por ali e o céu a leste começava a clarear.
Haaahh... Já amanheceu?
Mais e mais pessoas começaram a aparecer nas ruas à medida que avançávamos.
Comerciantes saindo para vender suas mercadorias, crianças acordando cedo, soldados em patrulha...
Espere, soldados?
“Ei! Vocês aí!” antes que pudesse seguir essa linha de pensamento até a reação apropriada, um pequeno grupo de soldados já estava vindo atrás de nós. Um apontou e disse. “Você é Jade Caudwell!”
“Sou sim!” respondeu Jade, estufando o peito.
Ahhh! Ele não está pensando!
“Sabia! Por entrar na cidade desafiando seu exílio...”
Não tinha intenção de deixá-lo terminar dessa vez!
“Vamos embora, pessoal!” eu disse, disparando. Todos os outros rapidamente me seguiram.
“Ei! Esperem, parem aí!” os soldados nos perseguiram.
Ziguezagueamos pelas ruas e becos até que...
“Vento de Diem!”
Whoosh!
“Gwuh!”
“Ack!”
O feitiço de vento que Luke, nossa retaguarda, lançou parou os soldados fortemente blindados em seu caminho os derrubou. Continuamos a acelerar, deixando nossos perseguidores comendo poeira.
Certo! Estamos livres! Mas justo quando comemorei, um grito agudo ecoou pela área. Um dos soldados estava nos denunciando!
Porcaria! Vai atrair uma multidão!
Se estivéssemos lidando com mazokus, poderíamos explodi-los e ninguém reclamaria, porém eram apenas pessoas comuns cumprindo ordens. Não podíamos exterminá-los daquele jeito. O que significava que nosso único recurso era correr, só que... Para onde? Essa era a questão.
“Por aqui!” ouvi uma voz chamar atrás de um prédio.
Hã? Parecia meio familiar. Nos viramos para olhar e vimos um jovem acenando.
“Senhor Jade, aqui!” ele voltou a nos chamar.
“Você é...”
“Depressa!”
“Entendido! Vamos, pessoal!”
A pedido de Jade, seguimos o jovem. Este nos levou pelos becos, por uma escada de incêndio e...
“Aqui estamos.”
Por fim, chegamos a um quarto no segundo andar de um prédio de aparência relativamente nova. Era um pouco apertado para seis pessoas, contudo quem pede não pode escolher.
Assim que recuperamos o fôlego, indiquei o jovem com os olhos e perguntei a Jade.
“Você conhece esse cara?”
O jovem respondeu por si mesmo com uma careta.
“Bem... Nos conhecemos ontem, na verdade. No portão.”
No portão? Espera... Oh!
“É o Guardião Nº 1!” exclamei.
“Hmm... Eu tenho um nome. É Maias.” disse ele, estremecendo ainda mais.
“Quem?” perguntou Gourry.
“Não se lembra? Aquele cara! O bajuladorzinho comum que não nos deixou passar ontem!” expliquei.
“Sabe... Gostaria que colocasse de outra forma...” resmungou Maias.
“No entanto por que nos salvou? Eu fui exilado, não fui?” perguntou Jade.
Sua pergunta fez Maias abaixar a voz.
“Essas foram minhas ordens e ainda sou um soldado, então não tive escolha diante dos outros. Entretanto, para ser sincero... Não confio nem um pouco no General Allus.” Maias soltou um suspiro. “A promoção daquela mercenária, ela assumindo o controle do lugar e a notícia da morte do General Grancis... Tudo parecia, hum...”
“Você acha que ele foi assassinado?” perguntou Jade.
Maias assentiu.
“Sim. O boato está se espalhando por toda a cidade. E se for verdade... O reino estará acabado! Então, Senhor Jade... Quero que descubra a verdade!”
“Por que não faz isso sozinho... Mmgh!” Luke começou antes que Mileena tapasse sua boca com a mão.
Por mais dependente que nosso pequeno bajulador fosse, o simples fato de ter nos dado um lugar para nos escondermos era um milhão de vezes melhor do que a outra alternativa.
Não tenho certeza se ele tinha ouvido Luke ou não, mas Jade respondeu.
“Escute... Tem certeza de que sua ajuda não causará problemas para sua família?”
“Não se preocupe. Vim de outra cidade para me tornar um cavaleiro aqui. E nenhum sacrifício é grande demais se significa tornar nosso reino um lugar melhor!”
“Muito bem! Honrarei essa dedicação. Exporemos as intrigas do General Allus e de Sherra, a mercenária, para proteger o povo! Mesmo que tenha sido destituído da minha patente, ainda tenho meu orgulho de cavaleiro! Arriscarei minha vida com prazer para salvar o reino!”
“Senhor Jade! O senhor é realmente o epítome da cavalaria!”
“Não, estou longe disso. Um verdadeiro cavaleiro deve...”
Tá, tá, não tenho energia para lidar com esse bromance¹ cavalheiresco.
“De qualquer forma... Vamos dormir um pouco.” falei.
“Boa ideia.”
“Vou me deitar em algum canto.”
Ignorando Jade e Maias enquanto se perdiam em seu próprio mundinho, o resto de nós se acomodou.
———
Partimos muito mais tarde naquele dia, algum tempo depois do anoitecer. Acordamos ainda de manhã e discutimos um pouco nossa estratégia, entretanto não havia muito a dizer sobre os detalhes básicos do que precisávamos fazer: infiltrar-nos no castelo, encontrar Sherra e derrotá-la.
Jade conhecia a planta básica do castelo, todavia, compreensivelmente, não sabia onde Sherra estaria ou como eram as defesas. Nossa ação mais segura, portanto, teria sido reunir informações primeiro, mas não havia garantia de que descobriríamos o que queríamos saber. Além do mais, o reconhecimento consumia muito tempo. Cada minuto que perdíamos na cidade era mais um minuto que Sherra poderia usar para reunir suas forças ou nos rastrear, nos colocando em uma situação mais complicada do que antes. Isso nos deixava com apenas uma opção: atacar primeiro, perguntar depois! Sim, pode ser bastante imprudente, porém era a única esperança que tínhamos de pegar o inimigo desprevenido.
E então deixamos Maias guardando o forte, enquanto Gourry, Luke, Mileena, Jade e eu seguimos para o castelo encoberto pela noite. O brilho da lua no céu iluminava suas paredes de pedra turvas.
“Bem, acho que é melhor começarmos logo!” disse Luke.
O grupo assentiu em resposta. Nossos três, conjuradores, começamos a entoar feitiços. Agarrei Gourry e Luke ergueu Jade por cima do muro com um feitiço de Levitação. Nosso destino era a casa de hóspedes nos terrenos do castelo, que Jade alegava conhecer bem o suficiente. Voamos junto, deixando que nos mostrasse o caminho.
É claro, não era uma aposta certa que Sherra estaria lá, contudo era um palpite tão bom quanto qualquer outro. Se estivesse errado, sempre poderíamos prender alguns guardas lá e fazê-los revelar o paradeiro dela.
Logo depois, pousamos no telhado da pensão.
“Então... Como entramos sorrateiramente?” perguntou Luke.
“Não precisa!” respondeu uma voz que não vinha de nenhum de nós.
Surpresos, todos olhamos para ver quem era. A fonte era uma sombra flutuante, iluminada pela lua em suas costas...
Um mazoku!
Notas:
1. Bromance é uma expressão em inglês que descreve uma relação íntima, não-sexual e afetuosa entre dois ou mais homens. O termo é uma junção das palavras ‘brother’ (irmão) e ‘romance’, indicando uma amizade muito forte e profunda que pode se assemelhar a um romance, mas sem a conotação romântica ou sexual.
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Link para o índice de capítulos: Slayers
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