sábado, 18 de outubro de 2025

The Dragonbone Chair — Volume 02 — Capítulo 19

Capítulo 19: O Sangue de São Hoderund


Parecia que toda vez que Simon abria a boca para falar, ou mesmo para respirar fundo, ela se enchia de folhas. Não importava quantas vezes se mexesse e se abaixasse, não conseguia evitar os galhos que pareciam agarrar seu rosto como mãos gananciosas de crianças.

— Binabik! — queixou-se. — Por que não podemos voltar para a estrada? Estou sendo feito em pedaços!

— Não reclame tanto. Em breve retornaremos para a estrada.

Era irritante observar o pequeno gnomo abrindo caminho entre os galhos e ramos emaranhados. Fácil para ele dizer ‘não reclame!’. Quanto mais densa a floresta ficava, mais escorregadio Binabik parecia se tornar, deslizando com graciosidade pela vegetação rasteira espessa e agarradora, enquanto Simon seguia atrás. Até Qantaqa saltava com leveza, deixando apenas uma ondulação na folhagem atrás de si. Simon sentiu como se metade da Velha Floresta estivesse agarrada a ele na forma de galhos quebrados e espinhos.

— Mas por que estamos pegando este caminho? Certamente não levaria mais tempo para seguir a estrada ao redor da orla da floresta do que estou levando para escavá-la centímetro por centímetro.

Binabik assobiou para a loba, que estava momentaneamente fora de vista. Ela logo voltou a aparecer, e enquanto o gnomo esperava Simon alcançá-lo, acariciou a grossa gola de pelo em volta do seu pescoço.

— Você está certíssimo, Simon. — concordou Binabik enquanto o jovem se aproximava. — Nos tomaria mais ou menos o mesmo tempo. Porém... — seu dedo grosso e repreensivo se ergueu. — Há outras considerações.

O garoto sabia que deveria perguntar. Não perguntou, contudo ficou ofegante ao lado do homenzinho e inspecionou a mais recente de suas lacerações. Quando o gnomo percebeu que Simon não morderia a isca, sorriu.

— ‘Por quê?’, você pergunta? Que ‘considerações’? A resposta é estar em todos os lugares, em cima de cada árvore e embaixo de todas as pedras. Sentir! Cheirar!

Simon dirigiu um olhar miserável ao redor. Tudo o que conseguia ver eram árvores. E silvas. E ainda mais árvores. O que no fim o fez gemer.

— Não, não, não lhe resta nenhum sentido? — gritou Binabik. — Que tipo de ensinamentos teve naquele formigueiro de pedra, naquele... Castelo?

Simon olhou para cima.

— Eu nunca disse que morava em um castelo.

— É pela grande obviedade em todas as suas ações.

Binabik virou-se rapidamente para encarar a trilha de veados quase invisível que estavam seguindo.

— Veja bem... — disse ele com uma voz dramática. — A terra é um livro que precisa estar lendo. Cada pequena coisa... — um sorriso arrogante surgiu em seus lábios. — Tem uma história para contar. Árvores, folhas, musgos e pedras, todos têm escrito coisas de maravilhoso interesse...

— Oh, Elysia, não! — Simon se queixou e afundou no chão, inclinando a cabeça para a frente até se apoiar nos joelhos. — Por favor, não leia o livro da floresta para mim agora, Binabik. Meus pés e minha cabeça doem.

Binabik inclinou-se para a frente até que seu rosto redondo estivesse a centímetros do de Simon. Depois de um momento de escrutínio nos cabelos emaranhados de espinheiros do jovem, o gnomo voltou a se endireitar.

— Suponho que podemos descansar em paz. — disse, tentando esconder sua decepção. — Eu lhe contarei essas coisas mais tarde.

— Obrigado. — murmurou Simon, ajoelhado.



***



Simon evitou a tarefa de caçar para o jantar naquela noite com a desculpa de adormecer assim que montaram acampamento. Binabik apenas deu de ombros, tomou um longo gole de sua bolsa de água e outro trago em seu odre de vinho, e então fez uma curta caminhada pela área, com Qantaqa farejando e vigiando ao seu lado. Depois de uma refeição medíocre, embora farta de carne seca, lançou as tábuas ossos dos dedos ao som da respiração profunda de Simon. Na primeira tentativa, tirou Pássaro Sem Asas, Lança-Peixe e O Caminho das Sombras. Inquieto, fechou os olhos e cantarolou uma melodia desafinada por um tempo enquanto o som dos insetos noturnos subia lentamente ao seu redor. Quando voltou a lançar, as duas primeiras haviam mudado para Tocha na Boca da Caverna e Carneiro Ressequido, mas O Caminho das Sombras apareceu de novo, os ossos encostados uns nos outros como os restos de algum carnívoro meticuloso. Não era o tipo de pessoa que seguia indícios dos ossos para tomar decisões precipitadas... Seu mestre o ensinara bem demais, porém Binabik caiu no sono, com seu bastão e sua bolsa bem agarrados.



***



Quando Simon acordou, o gnomo lhe ofereceu uma refeição satisfatória de ovos assados... De codorna, disse o homenzinho, algumas frutas vermelhas e até mesmo os brotos laranja-claros de uma árvore florida, que se mostraram bastante comestíveis e bastante doces, de um jeito estranho e mastigável. A caminhada da manhã também foi consideravelmente mais fácil do que a do dia anterior. Aos poucos, a região estava se tornando mais aberta, as árvores mais espaçadas.

O gnomo estivera bastante quieto a manhã toda. Simon tinha certeza de que seu desinteresse pela história da floresta de Binabik era o motivo. Enquanto desciam uma longa e suave encosta, com o sol alto em sua subida matinal, sentiu-se impelido a dizer algo.

— Binabik, você quer me contar sobre o livro da floresta hoje?

Seu companheiro sorriu, porém era um sorriso menor e mais tenso do que Simon estava acostumado a ver.

— Claro, amigo Simon, contudo receio ter-lhe dado uma ideia errada. Veja bem, quando falo da terra como um livro, não estou sugerindo que deva lê-la para melhorar seu bem-estar espiritual, como um livro religioso... Embora prestar atenção ao seu entorno por esse motivo seja de fato possível. Não, estou falando dela mais como um livro de medicina, algo que se aprende em prol da saúde.

“É realmente incrível...” pensou Simon. “Como é fácil para esse pequeno sujeito me confundir. E sem esforço!”

Em voz alta, perguntou.

— Saúde? Livro de medicina?

O rosto de Binabik assumiu uma expressão repentina de seriedade.

— Para sua vida ou morte, Simon. Não está em sua casa agora. Não está na minha casa, apesar de que eu esteja, sem dúvida, sendo um hóspede mais tranquilo do que você aqui. Mesmo os sitha, por todas as eras que observam o sol girando e atravessando os céus, nem eles reivindicam Aldheorte como sua. — Binabik parou, colocou a mão no pulso do garoto e apertou. — Este lugar onde estamos, esta grande floresta, é o lugar mais antigo. É por isso que é chamada, como diz o seu povo, de Aldheorte: é sempre o antigo coração de Osten Ard. Mesmo estas árvores mais jovens... — cutucou com o bastão por todos os lados. — Estavam se preparando para enfrentar inundações, ventos e fogo antes que o seu grande Rei John respirasse pela primeira vez na Ilha Warinsten.

Simon olhou ao redor, piscando.

— Outros... — continuou Binabik. — Existem outros, alguns que eu vi, cujas raízes estão crescendo na própria rocha do Tempo; mais antigos do que todos os reinos dos Homens e Sitha que foram erguidos em glória e então se desintegravam na obscuridade.

Binabik apertou o pulso outra vez, e este, olhando para a vasta copa de árvores na encosta, sentiu-se repentinamente pequeno: infinitesimal, como um inseto subindo pela encosta íngreme de uma montanha que alcança as nuvens.

— Por que... Por que está me contando essas coisas? — perguntou enfim, respirando fundo e lutando contra algo que parecia lágrimas.

— Porque... — disse Binabik, estendendo a mão e dando um tapinha em seu braço. — Porque não deve pensar que a floresta, o vasto mundo, seja parecido com os becos e coisas do tipo de Erchester. Precisa observar, e deve estar pensando e pensando.

Um momento depois, o gnomo retomou sua marcha. Simon cambaleou atrás. O que havia causado tudo aquilo? Agora, as árvores aglomeradas pareciam uma multidão hostil e sussurrante. Sentiu como se tivesse levado um tapa.

— Espere! — gritou. — Pensar em quê?

No entanto Binabik não diminuiu a velocidade nem se virou.

— Venha. — chamou por cima do ombro. Sua voz era calma, mas curta. — Devemos ir mais rápido. Com sorte, chegaremos à Batida antes que a escuridão caia. — ele assobiou para Qantaqa. — Por favor, Simon. — complementou.

E essas foram suas últimas palavras naquela manhã.



***



— Ali! — Binabik quebrou o silêncio. A dupla estava no topo de uma serra, as copas das árvores, um manto verdejante abaixo. — A Batida.

Mais dois grupos de árvores se estendiam abaixo deles, e além um oceano inclinado de grama se estendia até as colinas, que se destacavam sob o sol da tarde.

— Aqui é Wealdhelm, ou pelo menos seus contrafortes.

O gnomo apontou com seu bastão. As colinas sombreadas e recortadas, arredondadas como as costas de animais adormecidos, pareciam estar a apenas um tiro de pedra de distância na extensão verde.

— A que distância estão... As colinas? — perguntou Simon. — E como chegamos tão alto? Não me lembro de ter escalado.

— Não escalamos, Simon. A Batida é um lugar com declive, afundado como se alguém o tivesse empurrado. Se pudesse olhar para trás... — Binabik acenou para o alto da serra. — Veria que onde estamos agora, estamos um pouco mais abaixo do que a Planície de Erchester. E, para responder à sua segunda pergunta, as colinas estão bem distantes, porém sua visão está te enganando para que pareçam estar perto. Na verdade, é melhor voltarmos a aumentar o passo se quisermos chegar ao meu ponto de parada com o sol ainda nos iluminando.

O gnomo trotou alguns passos ao longo da serra.

— Simon... — chamou, e ao se virar, o garoto pôde ver que um pouco da tensão havia desaparecido de seu maxilar e boca. — Devo lhe dizer que, embora aquelas Colinas Wealdhelm sejam bebês em comparação com minha Mintahoq, poder estar perto de lugares altos outra vez é... Como vinho.

“De repente, volta a agir como uma criança.” pensou Simon, observando as pernas curtas de Binabik carregá-lo rapidamente pela encosta entre as árvores... “Não...” pensou então. “Não uma criança, é só o tamanho, contudo jovem, muito jovem.”

“Qual será a sua idade, afinal?”

O gnomo, de fato, estava ficando cada vez menor, mesmo enquanto o observava. Simon praguejou baixinho e correu para alcançá-lo.



***



Eles desceram com bastante rapidez as cristas largas e bem arborizadas, embora escalar de verdade fosse necessário em alguns lugares. Simon não ficou nem um pouco surpreso com a destreza que Binabik conseguia exercer, saltando suavemente como uma pena, levantando menos poeira do que um esquilo, demonstrando uma segurança nos pés que Simon tinha certeza de que os próprios carneiros de Yiqanuc não desprezariam. A agilidade de Binabik não o surpreendeu, no entanto a sua, sim.

Estava se recuperando um pouco das privações anteriores, ao que parecia, e algumas boas refeições haviam contribuído muito para restaurar o Simon que outrora fora conhecido em Hayholt como ‘o garoto fantasma’... O destemido escalador de torres e saltador de muros. Apesar de não ser páreo para seu companheiro nascido nas montanhas, sentia que se saía bem. Era Qantaqa quem tinha alguns problemas, não por não ter um pé firme, e sim por causa das poucas descidas íngremes... Infantilmente fáceis com apoios... Que eram longas demais para pular. Diante dessas situações, ela rosnou um pouco, parecendo mais irritada do que chateada, e trotou para encontrar um caminho mais longo para descer, geralmente se juntando a eles em pouco tempo.

Quando por fim encontraram uma trilha sinuosa de veado descendo o último monte, o sol da tarde já havia se posto abaixo do meio do céu, quente em seus pescoços e brilhante em seus rostos. Uma brisa morna agitava as folhas, no entanto não conseguia secar o suor em suas testas. A capa de Simon, amarrada na cintura, o deixava tão pesado como se tivesse comido uma refeição farta.

Para sua surpresa, quando enfim alcançaram as encostas mais altas da campina... O início da Batida, Binabik optou por seguir para nordeste, acompanhando a linha da floresta, em vez de avançar direto através do oceano de grama sussurrante e ondulante.

— A Estrada Wealdhelm não fica do outro lado das colinas? — disse Simon. — Seria muito mais rápido...

Binabik ergueu uma mão, e Simon mergulhou em um silêncio taciturno.

— Existe o mais rápido, amigo Simon, e existe o que se chama ser mais rápido. — disse ele, e a alegre sabedoria de seu tom quase, mas não exatamente, incitou Simon a dizer algo zombeteiro e infantil, porém temporariamente satisfatório. Depois de fechar a boca já aberta, Binabik continuou. — Veja, pensei que seria legal... Uma gentileza? Um agrado? Descansar um pouco esta noite em um lugar onde podemos dormir em uma cama e comer à mesa. O que acha dessa ideia, hmmm?

Todo o seu ressentimento se dissipou, como vapor sob a tampa de uma panela levantada.

— Uma cama? Vamos para uma estalagem?

Recordando a história de Shem sobre o Pookah e os Três Desejos, Simon sabia como uma pessoa se sentia ao ver seu primeiro desejo realizado... Até que se lembrou abruptamente da Guarda Erkyna e do ladrão enforcado.

— Não é uma estalagem. — Binabik riu da ansiedade de Simon. — Apesar de ser tão bom quanto... Não, é algo melhor. É um lugar onde será alimentado e poderá descansar sem ninguém perguntar quem é ou de onde vem.

Ele apontou para o outro lado da Batida, na direção de onde o lado mais distante da floresta se curvava até que seu perímetro enfim terminasse na base dos contrafortes do Wealdhelm.

— Ali está, embora não de para ver de onde estamos. Vamos indo.

“Mas por que não podemos atravessar a Batida em linha reta?” perguntou-se Simon. “É como se Binabik não quisesse ficar tão descoberto, tão... Exposto.”

O gnomo de fato havia tomado o caminho nordeste, contornando a ampla campina para viajar à sombra de Aldheorte.

“E o que quis dizer com um lugar onde ninguém pergunta... O que é tudo aquilo...? Também está se escondendo?”

— Devagar, Binabik! — chamou o companheiro. De vez em quando o traseiro branco de Qantaqa subia da grama, como uma gaivota flutuando no agitado Kynslagh.

— Devagar! — tornou a chamar, agora apressado. O vento se apoderou de suas palavras e as carregou pela encosta ondulante atrás dele.

Quando Simon por fim se aproximou, com o sol nas costas de ambos, Binabik estendeu a mão e lhe deu um tapinha no cotovelo.

— Mais cedo, acabei sendo muito ríspido, muito abrupto com você. Não era minha intenção falar assim. Peço desculpas. — ele olhou para o jovem, depois voltou os olhos para onde a cauda de Qantaqa balançava acima da grama ondulante, ora aqui, ora ali, a bandeira de um pequeno, porém veloz exército.

— Não foi nada... — Simon começou, mas Binabik interrompeu.

— Por favor, por favor, amigo Simon. — disse o homenzinho, com um tom de constrangimento claro na voz. — Não queria me expressar de tal forma. Não diga mais nada. — ele ergueu as duas mãos até as orelhas e as balançou em um gesto estranho. — Em vez disso, deixe-me lhe contar algo sobre para onde vamos... São Hoderund da Batida.

— O que é isso?

— É o lugar onde ficaremos. Eu mesmo já estive lá muitas vezes. É um lugar de retiro, um ‘monastério’, como vocês, aedonitas, dizem. Eles são gentis com os viajantes.

Aquelas palavras bastaram para Simon. Em seguida, visões de salões longos e altos, carne assando e paletes limpos invadiram sua mente, um delírio de conforto. Começou a andar mais rápido, acelerando quase até o trote.

— Não precisa correr. — Binabik o advertiu. — Ainda estará esperando lá no mesmo lugar. — e lançou um olhar para o sol, ainda várias horas acima do horizonte ocidental. — Quer que eu lhe fale sobre São Hoderund? Ou já sabe?

— Conte-me! — respondeu Simon. — Conheço esses lugares. Alguém que conheço se hospedou na abadia em Stanshire uma vez.

— Bom, esta é uma abadia especial. Ela tem uma história.

Simon ergueu as sobrancelhas, disposto a ouvir.

— Há uma canção... — disse Binabik. — A ‘Balada de São Hoderund’. É muito mais popular no sul do que no norte... Com norte me refiro a Rimmersgardia, não Yiqanuc, meu lar, e é óbvio o porquê. Sabe alguma coisa sobre a batalha de Ach Samrath?

— Foi lá que os nortistas, os homens de Rimmersgardia, derrotaram os homens de Hernystir e os sitha.

— Oho? Então recebeu alguma educação afinal? Sim, amigo Simon, foi Ach Samrath que viu os exércitos sitha e Hernystir serem expulsos do campo por Fingil Mão Vermelha. Mas houve outras batalhas anteriores, e uma delas foi aqui. — Binabik estendeu a mão para abranger o campo ondulante ao lado deles. — Esta terra tinha um nome diferente, então. Os sitha, que eram, suponho, aqueles que a conheciam melhor a chamavam de Ereb Irigú... Portão Ocidental, é o que significa.

— Quem lhe deu o nome de Batida? É um nome engraçado.

— Não sei ao certo. Eu, pessoalmente, acho que o nome que os rimmerios da batalha deram é a raiz. Chamaram este lugar de Du Knokkegard... O Cemitério dos Ossos.

Simon olhou para trás, através da grama farfalhante, observando fileira após fileira se curvar sob os passos do vento.

— Cemitério dos Ossos? — perguntou, e um arrepio de premonição o percorreu.

“O vento está sempre soprando por aqui.” pensou. “Inquieto... Como se estivesse procurando por algo perdido...”

— Cemitério dos Ossos, sim. Houve muitas subestimações de ambos os lados para aquela batalha. Estas gramas estão crescendo sobre os túmulos de milhares de homens.

“Milhares, como um cemitério. Outra cidade dos mortos sob os pés dos vivos. Será que eles sabem?” perguntou-se de repente. “Será que nos ouvem e nos odeiam por... Por estarmos no sol? Ou será que estão mais felizes depois de tudo isso?”

“Lembro-me de quando Shem e Ruben tiveram que sacrificar o velho Rim, o cavalo de arado.” pouco antes de a marreta do Urso Ruben cair, Rim olhou para Simon... Olhos suaves, mas sábios, pensou Simon. Sabedores, porém sem se importar.

“Será que o Rei John se sentia assim, velho como estava? Pronto para dormir, como o velho Rim?”

— E é uma canção que qualquer harpista ao sul da Marca Gelada cantaria. — disse Binabik. Simon balançou a cabeça e tentou se concentrar, contudo o farfalhar da grama, o sussurro arrastado do vento, soavam altos em seus ouvidos. — Eu, e você pode estar me agradecendo por isso, não cantarei nenhuma canção. — continuou Binabik. — No entanto sobre São Hoderund deveria explicar, já que é para a casa dele, por assim dizer, que estamos indo.

Menino, gnomo e loba chegaram à extremidade leste da Batida e se viraram de novo, com o lado esquerdo voltado para o sol. Enquanto caminhavam pela grama alta, Binabik tirou o casaco de couro e amarrou as mangas na cintura. A camisa que usava por baixo era de lã branca, desabrochada e larga.

— Hoderund... — começou a dizer. — Era um rimmerio que, após muitas experiências, converteu-se à religião aedonita. Por fim, foi feito sacerdote pela igreja.

— Como se diz, nenhum ponto é interessante até que o manto se desfaça. Não nos importaríamos com o que Hoderund fizesse, tenho certeza, se o Rei Fingil Mão Vermelha e seus homens não tivessem cruzado o Rio Greenwade e se mudado pela primeira vez para as terras dos sitha.

— Esta, como a maioria das histórias importantes, é longa demais para ser descrita em uma hora de caminhada. Vou evitar essas explicações e contar o seguinte: os nortenhos haviam expulsado todos à sua frente, vencendo várias batalhas em seu avanço para o sul. Os hernystiros, sob o comando de seu Príncipe Sinnach, decidiram encontrar os homens da Orla aqui. — Binabik acenou com a mão que abarcava toda a extensão da pradaria banhada pelo sol. — Para pôr fim ao seu ataque de uma vez por todas.

— Todo o povo e os sitha fugiam da Batida, temendo serem esmagados entre dois exércitos... Todos fugiam, exceto Hoderund. A batalha, ao que parece, atrai sacerdotes como moscas, e Hoderund atraiu. Ele foi até Fingil Mão Vermelha em sua tenda e implorou ao Rei que se retirasse, poupando assim as milhares de vidas que seriam perdidas. Pregou, em sua... Se assim posso dizer... Tolice e bravura, para Fingil, contando-lhe as palavras de Jesuris Aedon para abraçar seu inimigo ao peito e torná-lo irmão.

— Fingil, não é de se surpreender, o considerou um louco e ficou muito enojado ao ouvir tais palavras de outro rimmerio... Oh, aquilo é fumaça?

Pegando Simon de surpresa com a mudança de assunto, a narrativa de Binabik o embalara em uma espécie de sonho ambulante e insone, o gnomo apontou para o outro lado da Batida. De fato, por trás de uma série de colinas suaves, a mais distante das quais parecia ostentar marcas de cultivo, um fino fio de fumaça subia.

— Jantar, imagino. — Binabik sorriu.

A boca de Simon se abriu em antecipação. Desta vez, o gnomo também acelerou os passos. Eles se viraram em direção ao sol enquanto a borda escura da floresta se curvava.

— Como dizia... — resumiu o gnomo. — Fingil estava achando as novas ideias aedonitas de Hoderund extremamente ofensivas e ordenou que o sacerdote fosse executado, mas um soldado misericordioso o deixou escapar.

— Porém Hoderund não foi embora. Quando os dois exércitos se encontraram, ele correu para o campo de batalha, entre os hernystiros e os rimmerios, brandindo sua Árvore e invocando sobre todos a paz do Deus Jesuris. Preso entre dois exércitos pagãos furiosos, ele foi morto em pouco tempo.

— Então... — Binabik acenou com seu bastão, batendo em um tufo alto de grama. — Uma história cuja filosofia é difícil, hmmm? Pelo menos para nós, Qanuc, que preferimos ser o que vocês chamam de pagãos e ser o que eu chamo de vivo. O Leitor em Nabban, por sua vez, chamou Hoderund de mártir, e nos primeiros dias da Erkynlandia nomeou este lugar como igreja e abadia da Ordem Hoderundiana.

— Foi uma batalha terrível? — perguntou Simon.

— Os homens de Rimmersgardia chamavam este lugar de Cemitério dos Ossos. A batalha posterior em Ach Samrath foi talvez mais sangrenta, contudo houve traição lá. Aqui, na Batida, foi peito a peito, espada contra espada, e o sangue correu como os riachos do primeiro degelo.



***



O sol, descendo pelo céu, batia em cheio em seus rostos. A brisa da tarde, que havia se intensificado com força, curvava a grama alta e agitava os insetos que pairavam no ar, fazendo-os dançar no ar, pequenos clarões de luz dourada. Qantaqa voltou correndo pelo campo, obliterando com sua aproximação o serrar, sua música cantante de caule contra caule. Quando começaram a subir uma longa ladeira, ela os circulou, balançando a cabeça larga no ar e grunhindo animada. Simon protegeu os olhos, no entanto não conseguia ver nada além da elevação, exceto as copas das árvores na orla da floresta. Ele se virou para perguntar a Binabik se estavam quase lá, todavia o gnomo olhava para baixo enquanto caminhava, com as sobrancelhas franzidas em concentração, sem prestar atenção em Simon ou na loba saltitante.

Depois de algum tempo em silêncio, manchado apenas pelo farfalhar da passagem pela grama densa e por um latido agitado ocasional de Qantaqa, o estômago vazio de Simon o forçou a perguntar novamente. Mal havia aberto a boca quando Binabik o surpreendeu ao começar a cantarolar uma canção aguda e lamentosa.



Ai-Ereb Irigú.
Ka’ai shikisi aruya’a
Shishei, shishei burusa’eya
Pikuuru n'dai-tu.




Enquanto Simon subia aquela colina encharcada de luz e ondulada pelo vento, as palavras e a estranha melodia pareciam um lamento de pássaros, um chamado desolado dos espaços altos, solitários e implacáveis ​​do ar.

— Uma canção sitha. — Binabik lançou a Simon um olhar estranho e tímido. — Não estou cantando bem. É sobre este lugar, onde o primeiro sitha morreu nas mãos do homem, onde o sangue foi derramado pela primeira vez pela guerra dos homens nas terras dos sitha. — ao terminar de falar, acenou para Qantaqa, que batia em sua perna com o focinho largo.

— Hinik aia! — disse a ela. — Ela está farejando pessoas agora e comida cozinhando. — murmurou, desculpando-se.

— O que dizia a canção? — perguntou Simon. — A letra, quero dizer.

A estranheza ainda o arrepiava, porém ao mesmo tempo o lembrava de quão grande o mundo de fato era e de quão pouco vira, mesmo na movimentada Hayholt. Pequeno, pequeno, pequeno ele se sentia, menor do que o pequeno gnomo que subia ao seu lado.

— Duvido, Simon, que as palavras sitha possam realmente ser cantadas em línguas mortais, se é possível transmitir adequadamente, entende? Pior ainda, não é a língua da minha terra natal que estamos falando, você e eu... Contudo posso tentar.

Os dois seguiram por mais alguns instantes. Qantaqa por fim se entediara, ou pensara em algo melhor do que compartilhar seu entusiasmo lupino com aqueles humanos desajeitados, e desaparecera no topo da colina.

— Isto, creio, tem um significado próximo... — disse Binabik por fim, e então entoou, em vez de cantar.



No Portão do Oeste
Entre o olho do sol e os corações
Dos ancestrais
Cai uma lágrima
Rastro de luz, rastro de luz que cai em direção à terra
Toca o ferro e se transforma em fumaça...




Binabik riu, constrangido.

— Veja, nas mãos habilidosas de um gnomo, a canção do ar está se tornando palavras de pedra áspera.

— Não! — disse Simon. — Eu não entendo bem... Mas me faz... Sentir algo...

— Então está bem... — sorriu Binabik. — Porém nenhuma palavra minha se compara às canções dos sitha, especialmente esta. É uma das mais longas, me disseram, e a mais triste. Dizem também que o Rei-Erl Iyu’unigato a compôs ele próprio, nas últimas horas antes de ser morto por... Por... Ah! Veja, agora estamos no topo!

Simon ergueu os olhos; na verdade, eles quase haviam alcançado o topo da longa elevação, o mar infinito das copas das árvores amontoadas de Aldheorte se estendendo à sua frente.

“Porém não acho que ele tenha parado de falar por causa disso.” pensou Simon. “Acho que estava prestes a dizer algo que não queria dizer...”

— Como você aprendeu a cantar canções dos sitha, Binabik? — perguntou enquanto dava os últimos passos para chegar à ampla base da colina.

— Falaremos sobre isso, Simon. — respondeu o gnomo, olhando ao redor. — Agora, veja! Lá está o caminho para São Hoderund!

Começando a pouco mais de um longo tiro de pedra abaixo deles, agarrando-se à encosta da colina como musgo crescendo em uma árvore antiga, fileiras e mais fileiras entrelaçadas de videiras uniformemente espaçadas e cuidadosamente cuidadas. Elas eram separadas umas das outras por terraços horizontais escavados na encosta, com bordas arredondadas como se o solo tivesse sido moldado há muito tempo. Trilhas corriam entre as videiras, serpenteando pela encosta tão sinuosamente quanto as próprias plantas. No vale abaixo, abrigado de um lado por este primo menor das Colinas Wealdhelm, e do outro pela borda escura da floresta, avistava-se todo um padrão de tramas de terrenos agrícolas, dispostos com a simetria meticulosa de um manuscrito iluminado. Mais adiante, apenas visíveis na saliência da colina, ficavam as pequenas dependências da abadia, um conjunto rústico, embora bem cuidado, de galpões de madeira e um campo cercado, agora vazio de ovelhas ou vacas. Um portão, o único pequeno objeto móvel no impressionante panorama, balançava devagar para a frente e para trás.

— Siga as trilhas, Simon, e em breve estaremos comendo, e talvez também bebendo um pouco da safra monástica. — Binabik começou a caminhar, voltando a acelerar os passos. Em instantes, os dois abriam caminho entre as videiras enquanto Qantaqa, desdenhando a travessia lenta de seus companheiros, descia a encosta, saltando sobre as videiras ondulantes sem tocar em uma estaca ou esmagar uma única uva sob suas grandes patas.

Observando seus pés enquanto descia a trilha íngreme, sentindo seus calcanhares escorregarem um pouco a cada passo longo, Simon de repente sentiu, em vez de ver, uma presença à sua frente. Pensando que o gnomo havia parado para esperá-lo, ergueu os olhos com uma expressão azeda, prestes a dizer algo sobre mostrar misericórdia para com as pessoas que não cresceram em uma montanha. Em vez disso, quando seus olhos encontraram a forma de pesadelo à sua frente, gritou de medo e perdeu o equilíbrio, caindo de costas sobre o traseiro e deslizando dois braços pelo caminho.

Binabik o ouviu e se virou, correndo de volta morro acima para encontrar Simon sentado na terra sob um grande espantalho esfarrapado. O homenzinho olhou para o espantalho, pendurado descentrado em uma estaca larga, com o rosto tosco e pintado quase apagado pelo vento e pela chuva, e então olhou para Simon, que olhava as palmas das mãos arranhadas no caminho. Binabik conteve o riso até ajudar o menino a se levantar, agarrando o cotovelo de Simon com suas mãos pequenas e fortes e o colocando de pé, contudo não conseguiu mais se conter. Ele se virou e começou a descer, deixando Simon com a testa franzida e irritada enquanto os sons abafados da alegria do homenzinho chegavam aos seus ouvidos.

Simon tirou com amargura a maior parte da sujeira das calças e verificou os dois pacotes enfiados em seu cinto, a flecha e o manuscrito, para se certificar de que nenhum deles estava danificado. Era óbvio que Binabik não podia saber sobre o ladrão enforcado na encruzilhada, no entanto estivera lá para ver o sitha pendurado na armadilha do lenhador. Então, por que seria tão ridículo para Simon se assustar?

Sentiu-se muito tolo, mas ao olhar de volta para o espantalho, ainda sentiu um tremor de mau presságio. Estendeu a mão para ele, agarrou o saco oco usado de cabeça... Áspero e frio ao toque... E dobrou-o, enfiando a parte superior na capa esfarrapada que balançava sobre os ombros para esconder os olhos turvos e cegos. Que o gnomo risse o quanto quisesse.

Binabik, agora composto, esperava mais abaixo. Não se desculpou, porém deu um tapinha no pulso do garoto e sorriu. Simon retribuiu o sorriso, apesar de o seu ser menor que o de Binabik.

— Quando estive aqui, três meses atrás... — disse Binabik. — Na minha viagem para o sul, comi a melhor carne de veado! Os irmãos têm permissão para capturar alguns veados da floresta do Rei para socorrer os viajantes, e a si mesmos, nem é preciso dizer. Oh, lá está... E a fumaça está subindo!



***



Eles haviam contornado a última curva da colina; O som lamentoso do portão rangendo vinha diretamente abaixo deles. Logo à frente, descendo a encosta, estavam os telhados de palha aglomerados da abadia. A fumaça subia de fato, uma fina pluma flutuando para rodopiar e se dissipar com o vento do topo da colina. Contudo não vinha da chaminé.

— Binabik... — disse Simon, a surpresa ainda não se transformando em alarme.

— Queimada! — sussurrou Binabik. — Ou queimando. Filha das Montanhas...

O portão fechou com estrondo e logo voltou a se abrir.

— Um hóspede terrível visitou à casa de São Hoderund.

Para Simon, que nunca tinha visto a abadia antes, os restos fumegantes abaixo pareciam a própria história de Binabik sobre o Cemitério dos Ossos ganhando vida. Como nas terríveis e loucas horas que passou sob o castelo, sentiu as garras invejosas do passado avançando para arrastar o tempo presente para um lugar escuro de arrependimento e medo.

A capela, a abadia principal e a maioria das dependências haviam sido reduzidas a cascas fumegantes. As vigas carbonizadas do telhado, com seus fardos de pau-a-pique e palha queimados, jaziam expostas ao irônico céu primaveril como as costelas enegrecidas do banquete de um deus faminto. Espalhados pelos arredores, como dados lançados pelo mesmo deus, estavam os corpos de pelo menos vinte homens, tão esfarrapados e sem vida quanto o espantalho no topo da colina.


— Pelas Pedras de Chukku... — suspirou Binabik, que também observava tudo, e bateu levemente no próprio peito com a base da mão. O gnomo avançou, tirando a bolsa do ombro, e desceu a colina correndo. Qantaqa, uivou e saltou com alegria.

— Espera! — disse Simon, quase num sussurro. — Espera! — chamou, e cambaleou atrás, — Volte! O que está fazendo? Você vai ser morto!

— Já faz horas que isto aconteceu! — gritou Binabik sem se virar.

Simon o viu parar por um instante para se inclinar sobre o primeiro corpo que alcançou. Um momento depois, continuou trotando.

Ofegando, com o coração disparado de medo, apesar da óbvia verdade das palavras do homenzinho, Simon olhou para o mesmo corpo ao passar. Era um homem de túnica preta, um monge pela aparência... Seu rosto estava escondido, pressionado contra a grama. Uma ponta de flecha havia atravessado violentamente sua nuca. Moscas voavam sobre o sangue seco.

Alguns passos depois, Simon tropeçou e caiu, apoiando-se com as palmas doloridas das mãos no caminho de cascalho. Quando viu no que havia tropeçado e viu as moscas pousando nos olhos revirados, sentiu um enjoo violento e excruciante.



***



Quando Binabik o encontrou, Simon havia se arrastado para a sombra de um castanheiro. A cabeça do jovem assentiu num movimento travado enquanto Binabik, como uma mãe carinhosa, embora eficiente, limpava a bile do seu queixo com um punhado de capim. O fedor de carniça estava por toda parte.

— É ruim. Muito ruim. — Binabik tocou o ombro de Simon gentilmente, como se quisesse se certificar de que o jovem era real, depois se agachou, estreitando os olhos contra os últimos raios vermelhos de sol. — Não consigo encontrar ninguém vivo aqui. Monges em sua maioria, todos vestidos com trajes de abadia, mas há outros também.

— Outros...? — a voz de Simon foi um gorgolejo.

— Homens em trajes de viajante... Homens da Marca Gelada, parando aqui por uma noite, talvez, embora haja uma boa quantidade deles. Vários estão usando barbas e, para mim, parecem rimmerios. É um mistério.

— Onde está Qantaqa? — o garoto perguntou. Ele se viu estranhamente preocupado com a loba, embora esta, de todos eles, é a que menos corria perigo.

— Correndo. Farejando. Está muito agitada.

Simon notou que Binabik tinha seu bastão desfeito e guardado a parte da faca no cinto.

— Eu me pergunto... — disse o gnomo, olhando para a fumaça que subia enquanto Simon enfim se sentava. — O que será que provocou isto? Bandidos? Uma espécie de batalha por questões religiosas... Ouvi dizer que não é incomum entre vocês, Aedonitas... Ou o quê? É muito estranho...

— Binabik... — Simon pigarreou e cuspiu. Sua boca tinha gosto de botas de criador de porcos. — Estou com medo.

Em algum lugar distante, Qantaqa uivou, um som surpreendentemente agudo.

— Assustado. — o sorriso de Binabik era fino como barbante. — Assustado é o que você deveria estar.

Embora seu rosto parecesse límpido e despreocupado, uma espécie de desamparo espreitava por trás dos olhos do gnomo. Aquilo assustou Simon mais do que qualquer outra coisa. Havia algo mais... Uma pitada de resignação, como se a coisa horrível não tivesse sido de toda inesperada.

— Estou pensando... — Binabik começou, quando os uivos de Qantaqa de repente aumentaram para um crescendo de rosnados. O gnomo se levantou de um salto. — Ela encontrou algo! — disse, e puxou o jovem assustado para se levantar com um forte puxão no pulso. — Ou algo a encontrou...

Com Simon cambaleando atrás dele, impulsos de fuga e medo chilreando em seu crânio como morcegos, Binabik avançou na direção dos sons. Enquanto corria, enfiou o dedo na zarabatana para enfiar algo no lugar. Simon sabia, uma percepção pesada e ameaçadora, que aquele dardo tinha a ponta preta.

Os dois correram pelos terrenos da abadia, para longe dos destroços e através da horta, seguindo os sons da angústia de Qantaqa. Uma nevasca de flores de macieira caía por toda parte; o vento cutucava e empurrava a orla da floresta.

A menos de dez passos correndo para dentro da floresta, avistaram Qantaqa, com os pelos eriçados, seu rosnado tão profundo que Simon podia senti-lo em seu estômago. Ela havia agarrado um monge e o encostado em um tronco de álamo. O homem segurava sua Árvore peitoral no alto, como se quisesse invocar um raio celestial sobre a fera ofensiva. Apesar de sua postura heroica, a palidez doentia de seu rosto e seu braço trêmulo mostravam que não esperava que nenhum raio viesse. Seus olhos esbugalhados, exagerados pelo medo, estavam fixos em Qantaqa, e ainda não tinha visto os dois recém-chegados.

— Aedonis Fiyellis extulanin mei...

Seus lábios largos se moveram convulsivamente; as sombras das folhas salpicavam seu crânio rosado.

— Qantaqa! — Binabik gritou. — Sosa!

Qantaqa rosnou, contudo suas orelhas se contraíram.

— Sosa aia! — o gnomo bateu com o bastão oco na sua coxa. O estalo ecoou. Com um último rosnado áspero, Qantaqa abaixou a cabeça e trotou de volta para Binabik. O monge, encarando Simon e o gnomo como se fossem tão aterrorizantes quanto a loba, cambaleou levemente e então caiu para trás, sentando-se no chão com a expressão atordoada de uma criança que se machucou, no entanto ainda não percebeu que quer chorar.

— Jesuris, o misericordioso... — balbuciou por fim enquanto a dupla corria em sua direção. — Jesuris, o misericordioso, o misericordioso... — uma expressão selvagem surgiu em seus olhos esbugalhados. — Deixem-me em paz, seus monstros pagãos! — gritou, e tentou se levantar com dificuldade. — Assassinos bastardos, pagãos bastardos! — seu calcanhar deslizou sob ele e voltou a cair de bunda, resmungando. — Um gnomo, um gnomo assassino... — começou a ficar vermelho, sua cor voltando. Respirou fundo, convulsivamente, e então pareceu que finalmente ia chorar de verdade.

Binabik parou. Agarrando Qantaqa pelo pescoço, gesticulou para que Simon se aproximasse, dizendo.

— Ajude-o.

Simon caminhou devagar, tentando com alguma dificuldade compor o rosto de uma forma condizente com a de um amigo que vinha ajudar, seu próprio coração, afinal, batia em suas costelas como um pica-pau.

— Está tudo bem agora! — disse. — Tudo bem.

O monge cobriu o rosto com a manga.

— Ele matou todos, agora você nos quer também. — gritou, com a voz, embora abafada, soando mais como autopiedade do que medo.

— É um rimmerio. — disse Binabik. — Posso dizer só de ouvi-lo difamar os qanuc só por me ver. Pfah. — o gnomo fez um som de desgosto. — Ajude-o a se levantar, amigo Simon, e vamos levá-lo para a luz.

Simon segurou o cotovelo ossudo do homem, vestido de preto, e o colocou de pé com dificuldade, mas quando tentou guiá-lo em direção a Binabik, o homem se afastou.

— O que acha que está fazendo? — gritou outra vez, tateando o peito em busca da Árvore. — Me fazendo abandonar os outros? Não, apenas se afaste de mim!

— Outros? — Simon se virou com uma expressão inquisitiva para Binabik. Este deu de ombros e coçou as orelhas da loba. Qantaqa pareceu sorrir como se o espetáculo a divertisse.

— Há outros vivos? — perguntou o rapaz gentilmente. — Nós o ajudaremos, e a eles também, se pudermos. Eu sou Simon, e aquele é meu amigo Binabik.

O monge o encarou com desconfiança.

— Acredito que já conheça Qantaqa. — acrescentou Simon, e em seguida se arrependeu da piada de mau gosto. — Vamos, quem é você? Onde estão esses outros?

O sobrevivente, cuja compostura começava a retornar, lançou lhe um olhar longo e desconfiado, depois se virou para encarar por um momento o gnomo e a loba. Quando se virou de volta para Simon, um pouco da tensão havia desaparecido de seu rosto.

— Se você é mesmo... Um bom aedonita agindo em caridade, então peço seu perdão. — o tom do monge era rígido, como o de alguém desacostumado a se desculpar. — Sou o Irmão Hengfisk. Aquele lobo... — ele desviou o olhar. — Está os acompanhando?

— Está. — disse Binabik severamente antes que Simon pudesse responder. — É uma pena que ela tenha te assustado, rimmerio, porém você deve saber que não lhe fez mal.

Hengfisk não respondeu.

— Deixei meus dois protegidos por muito tempo. — disse ele a Simon. — Preciso ir até eles agora.

— Nós iremos junto. — respondeu Simon. — Talvez Binabik possa ajudar. Ele é muito talentoso com ervas e outras coisas.

O rimmerio ergueu por um breve instante as sobrancelhas, o que fez seus olhos parecerem ainda mais arregalados. Seu sorriso era amargo.

— É uma boa ideia, rapaz, porém temo que o Irmão Langrian e o Irmão Dochais não serão ajudados por nenhum... Cataplasma da floresta. — Hengfisk girou nos calcanhares e partiu, um tanto cambaleante, em direção à floresta mais profunda.

— Espere! — gritou Simon. — O que aconteceu com a abadia?

— Não sei. — disse Hengfisk sem se virar. — Eu não estava aqui.

Simon olhou para Binabik em busca de ajuda, contudo este não fez menção de segui-lo. Em vez disso, chamou o monge mancando.

— Oh, Irmão Hangfish?

O monge se virou, furioso.

— Meu nome é Hengfisk, gnomo!

Simon notou a rapidez com que a cor lhe subiu ao rosto.

— Estou apenas fazendo uma tradução para o meu amigo. — Binabik sorriu seu sorriso amarelo. — Que não fala a língua de Rimmersgardia. Você diz que não sabe o que aconteceu. Onde estava quando seus irmãos estavam sendo massacrados?

O monge pareceu prestes a cuspir uma resposta, no entanto em vez disso estendeu a mão para sua Árvore e a agarrou. Um momento depois, em voz mais baixa, disse.

— Venha então e veja. Não tenho segredos para você, gnomo, nem para o meu Deus.

Ele se afastou.

— Por que o está irritando, Binabik? — sussurrou Simon. — Já não aconteceram coisas ruins o suficiente aqui?

Os olhos de Binabik estavam semicerrados, entretanto não perdera o sorriso.

— Talvez eu tenha sido indelicado, Simon, todavia você o ouviu falando. Reparou nos seus olhos. Não se deixe enganar pelo uso de um manto sagrado. Nós, qanuc, acordamos muitas vezes durante a noite, encontrando olhos como os deste Hengfisk nos observando, e tochas e machados por perto. Seu Jesuris Aedon não conseguiu extinguir com sucesso aquele ódio de seu coração setentrional.

Com um estalo para que Qantaqa o seguisse, o gnomo seguiu atrás do sacerdote de costas rígidas.

— Mas, ouça! — disse Simon, encarando Binabik. — Você também está cheio de ódio.

— Ah. — o gnomo ergueu um dedo diante do rosto agora inexpressivo. — Porém não estou afirmando acreditar no seu... Perdoe-me o ditado, confuso Deus da Misericórdia.

O garoto respirou fundo para dizer algo, porém reconsiderou a ideia.



***



O Irmão Hengfisk se virou uma vez, notando silenciosamente a presença deles. Por algum tempo não disse nada. A luz que se filtrava pelas folhas diminuía rápido; em pouco tempo, sua forma angulosa, vestida de preto, era pouco mais que uma sombra em movimento diante deles. Simon se assustou quando ele se virou e disse.

— Aqui!

O rimmerio os conduziu ao redor da base de uma grande árvore caída, cujas raízes expostas lembravam mais do que qualquer outra coisa uma enorme vassoura... Uma vassoura que teria incitado a imaginação de Raquel, o Dragão, a realizar feitos heroicos e lendários de varredura.

O pensamento irônico de Simon sobre Raquel, somado aos acontecimentos do dia, provocou uma pontada de saudade tão intensa que tropeçou, apoiando-se com a mão na casca escamosa da árvore caída. Hengfisk estava ajoelhado, jogando galhos em uma pequena fogueira que ardia em um buraco raso. Deitados ao lado da fogueira, um de cada lado, protegidos pela árvore tombada, estavam dois homens.

— Este é Langrian. — disse o Irmão Hengfisk, indicando o da direita, cujo rosto estava em grande parte coberto por uma bandagem ensanguentada feita de estopa. — Eu o encontrei, o único vivo na abadia quando voltei. Acho que Aedon o aceitará de volta em breve.

Mesmo com a luz fraca, Simon pôde ver que a pele do Irmão Langrian, a que estava à mostra, estava pálida e cerosa. Hengfisk jogou outro graveto no fogo enquanto Binabik, sem encontrar os olhos do rimmerio uma única vez, ajoelhou-se ao lado do homem ferido e começou a examiná-lo com cuidado.

— O outro é Dochais. — disse Hengfisk, gesticulando para o outro homem, que jazia tão mole quanto Langrian, embora sem ferimentos visíveis. — Foi ele quem fui procurar quando não voltou da vigília. Quando trouxe Dochais de volta, o carreguei... — havia um orgulho amargo no tom de Hengfisk. — Voltei para encontrar... Para encontrar todos os outros mortos.

Ele fez o sinal da Árvore no peito.

— Todos, menos Langrian.

Simon se aproximou do Irmão Dochais, um jovem magro, de nariz comprido e a barba por fazer azulada dos hernystiros.

— O que aconteceu com ele? O que houve?

— Não sei, garoto. — disse Hengfisk. — Está louco. Pegou uma febre cerebral.

Hengfisk voltou à sua busca por lenha.

Simon observou Dochais por um momento, notando a respiração ofegante do homem e o leve tremor de suas pálpebras finas. Ao se virar para olhar para Binabik, que desenrolava delicadamente a bandagem em volta da cabeça de Langrian, uma mão branca surgiu como uma cobra do manto negro à sua frente e agarrou sua camisa com uma força horripilante.

Dochais, com os olhos ainda fechados, enrijecera-se, com as costas tão arqueadas que a cintura se elevava do chão. Sua cabeça foi jogada para trás e balançava de um lado para o outro.

— Binabik! — Simon gritou aterrorizado. — Ele está... Está...

— Aaaahhhh! — a voz que emergiu da garganta tensa de Dochais era áspera de dor. — A carruagem negra! Veja, está vindo atrás de mim!

Seu corpo se debateu, como um peixe fora d’água, e suas palavras trouxeram a Simon um arrepio de horror.

“O topo da colina... Eu me lembro de algo... E o ranger de rodas pretas... Oh, Morgenes, o que estou fazendo aqui?”

Um momento depois, enquanto Binabik e Hengfisk olhavam espantados do outro lado da fogueira, Dochais puxou Simon para a frente até que o rosto do jovem quase tocasse as feições tensas de medo do próprio hernystiro.

— Eles estão me levando de volta! — sibilou o monge. — De volta para... De volta para... Aquele lugar terrível!

Surpreendentemente, seus olhos se abriram e fitaram cegamente os de Simon, a um palmo de distância. Simon não conseguiu se soltar das garras do monge, mesmo que Binabik estivesse agora ao seu lado tentando ajudá-lo a se libertar.

— Você sabe! — gritou Dochais. — Sabe quem é! Você foi marcado! Marcado como eu! Eu as vi quando passaram... As raposas brancas! Elas vagavam no meu sonho! As raposas brancas! O mestre delas as enviou para congelar nossos corações e levar nossas almas em sua carruagem negra, negra!

E então Simon se soltou, ofegando e soluçando. Binabik e Hengfisk seguraram o monge que se contorcia até que este enfim parasse de se debater. O silêncio da floresta negra retornou, cercando a pequena fogueira enquanto os abismos da noite abraçavam uma estrela moribunda.

***

Link para o índice de capítulos: The Dragonbone Chair

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