Capítulo 23: De Volta ao Coração
O vento lançou a chuva em seus rostos enquanto corriam para o leste através da escuridão em direção as ocultas colinas. O clamor do acampamento de Isgrimnur foi sumindo, abafado por um manto de trovões.
Atravessando a planície úmida, a euforia apavorada de Simon também começou a diminuir; a sensação extática de energia, a sensação de que podia correr e correr pela noite como um cervo, foi gradualmente esfriada pela chuva e pelo ritmo implacável. Em meia légua, seu galope havia diminuído para uma caminhada rápida; logo, até isso era um esforço. Onde uma mão ossuda havia agarrado seu joelho, sentiu a articulação endurecer como uma dobradiça enferrujada; faixas de dor em volta de sua garganta latejavam a cada respiração profunda.
— Morgenes... Enviou você? — gritou.
— Mais tarde, Simon. — Binabik ofegou. — Tudo dito depois.
Os dois correram e correram, tropeçando e espirrando água na grama encharcada.
— Então... — Simon ofegou. — O que... Eram aquelas coisas...
— As... Coisas que os atacaram? — enquanto corria, o gnomo fez um gesto estranho de levar a mão à boca. — Bukken... Também são chamados... ‘Escavadores’.
— O que são? — Simon perguntou, e quase escorregou em um pedaço de lama, derrapando por um momento com os pés instáveis.
— Ruins. — Binabik fez uma careta. — Não há mais necessidade de dizer agora.
Quando não conseguiram mais correr, caminharam, arrastando-se até o sol surgir por trás das nuvens, uma vela atrás de um lençol cinza. Wealdhelm estava diante deles, erguido em relevo contra o amanhecer pálido como as costas curvadas de monges em oração.
***
No abrigo escasso de um aglomerado de pedras arredondadas de granito, aninhadas rigidamente no mar de grama como se imitassem as colinas além, Binabik montou uma espécie de acampamento. Depois de caminhar ao redor das rochas para encontrar o local mais protegido das chuvas instáveis, ajudou Simon a descer até um espaço onde duas pedras se encostavam, formando um ângulo no qual o garoto podia se reclinar com o mínimo de conforto. Simon em pouco tempo caiu em um sono mole e exausto.
Gotas de chuva voavam do topo das pedras enquanto Binabik se agachava, ajeitando a capa do garoto, que o gnomo havia trazido com suas outras coisas desde a casa de São Hoderund... E então vasculhou sua bolsa em busca de peixe seco para mastigar e suas tábuas de ossos. Qantaqa retornou de uma excursão investigativa em seu novo território para se aconchegar nas canelas de Simon. O gnomo tirou os ossos e os jogou, usando sua bolsa como mesa.
O Caminho das Sombras. Binabik deu um sorriso amargo. Depois, Carneiro Sem Mestre, e novamente, O Caminho das Sombras. Ele praguejou, baixinho... Só um tolo ignoraria uma mensagem tão clara. Binabik sabia que era muitas coisas, e tolo por vezes era uma delas, porém ali, agora, não havia espaço para correr tais riscos.
Puxou o capuz de pele de volta para o rosto e se aninhou ao lado de Qantaqa. Para qualquer um que passasse... Se conseguisse ver alguma coisa na luz fraca e com a chuva no rosto, os três companheiros pareceriam nada mais do que um líquen incomum, de cor parda, na encosta das rochas.
***
— Então, que tipo de jogo você anda fazendo comigo, Binabik? — perguntou Simon, carrancudo. — Como sabe sobre o Doutor Morgenes?
Nas poucas horas em que dormira, o amanhecer pálido se transformara em uma manhã fria e sombria, não redimida por fogueira ou café da manhã. O céu, inchado de nuvens, pairava sobre suas cabeças como um teto baixo.
— Não estou brincando, Simon. — respondeu o gnomo. Binabik havia limpado e enfaixado os ferimentos no pescoço e nas pernas do garoto e cuidava pacientemente dos de Qantaqa. Apenas um dos ferimentos da loba era grave: um corte profundo na parte interna da pata dianteira. Enquanto retirava areia da pele, Qantaqa cheirou os dedos, confiando como uma criança.
— Não me arrependo de não ter lhe contado; se não tivesse me sentido forçado, você ainda não saberia. — ele esfregou um dedo cheio de pomada no corte e soltou sua montaria. Ela logo se abaixou e começou a lamber e morder a perna. — Sabia que ela faria isso. — falou em leve reprovação, e então esboçou um sorriso cauteloso. — Como no seu caso, ela não está achando que sei o meu trabalho.
Simon, percebendo que estivera inconscientemente puxando as próprias bandagens, sentou-se para a frente.
— Vamos, Binabik, diga-me só. Como sabe sobre Morgenes? De onde realmente veio?
— Sou exatamente de onde digo. — respondeu o gnomo, indignado. — Sou um qanuc. E não estou apenas sabendo sobre Morgenes, desde que o conheci. O Doutor é um bom amigo do meu mestre. Eles são... Colegas, acho que os homens cultos dizem.
— O que quer dizer?
Binabik recostou-se na rocha. Embora no momento não houvesse chuva para se proteger, o vento cortante por si só já era motivo suficiente para permanecer perto do afloramento. O homenzinho parecia estar considerando suas palavras com cuidado. Parecia cansado para Simon, sua pele escura flácida e um tom mais pálido do que o normal.
— Primeiro... — disse o gnomo por fim. — Deve saber algo sobre o meu mestre. Seu nome é Ookequk. Ele era o... Homem Cantor, como chamariam vocês, da nossa montanha. Quando dizemos Homem Cantor, não nos referimos a alguém que está apenas cantando, e sim a alguém que se lembra das velhas canções e da sabedoria antiga. Como um médico e um padre juntos, suponho.
— Ookequk era meu mestre por causa de certas coisas que os anciãos pensavam estar vendo em mim. Foi uma grande honra ser aquele a compartilhar a sabedoria de Ookequk... Fiquei três dias sem comer quando me mandaram, só para me tornar puro. — Binabik sorriu. — Quando anunciei isso com orgulho ao meu novo mestre, ele me deu um tapa na orelha. “Você é muito jovem e estúpido para passar fome de propósito”, foi o que me disse. “Isso é presunçoso. Só se deve passar fome por acidente.”
O sorriso de Binabik se abriu em uma gargalhada; quando Simon pensou nisso por um momento, riu um pouco também.
— De qualquer forma... — continuou. — Um dia te contarei sobre meus anos de aprendizado com Ookequk. Ele era um gnomo grande e gordo, Simon; pesava mais que você e tinha apenas a minha altura, mas agora o ponto precisamos retomar o fio da conversa.
— Não sei ao certo onde meu mestre conheceu Morgenes, porém foi muito antes de eu chegar à sua caverna. Os dois eram amigos, e meu mestre ensinou a Morgenes a arte de fazer pássaros carregarem mensagens. Eles conversavam muito por cartas, meu mestre e seu doutor. Compartilhavam muitas... Ideias sobre os costumes do mundo.
— Há apenas dois verões, meus pais faleceram. Sua morte ocorreu na neve da montanha que chamamos de Nariz Pequeno, e quando partiram, dediquei todos os meus pensamentos... Bem, quase todos, a aprender com o mestre Ookequk. Quando me disse naquele degelo que eu o acompanharia em uma grande jornada para o sul, fiquei muito animado. Parecia claro para mim que aquele seria meu teste de valor.
— O que não sabia... — disse o gnomo, cutucando a grama lamacenta à sua frente com seu bastão... Quase com raiva, pensou Simon, embora não havia raiva em sua voz. — O que não me disseram era que Ookequk tinha motivos mais importantes para viajar do que o fim do meu aprendizado. Fazia algum tempo que vinha recebendo notícias do Doutor Morgenes... E de alguns outros... Sobre coisas que o perturbavam, e sentiu que era hora de retribuir a visita que Morgenes lhe fizera muitos anos antes, quando estive com ele pela primeira vez.
— Que ‘coisas’? — perguntou Simon. — O que Morgenes lhe disse?
— Se você ainda não sabe... — disse Binabik, sério. — Então talvez ainda existam verdades das quais possa prescindir. Preciso pensar um pouco, contudo, por enquanto, deixe-me dizer o que posso, o que devo.
Simon assentiu rigidamente, repreendido.
— Também não vou sobrecarregá-lo com toda a longa história da nossa viagem para o sul. Percebi bem cedo que meu mestre também não havia me contado toda a verdade. Era evidente que estava preocupado, muito preocupado, e quando lançava os ossos ou lia certos sinais no céu e no vento, ficava ainda mais preocupado. Além disso, algumas de nossas experiências foram muito ruins. Viajei sozinho, como sabe, boa parte antes de me tornar servo do meu mestre Ookequk, no entanto nunca vi tempos tão ruins para viajantes. Uma experiência muito parecida com a sua da noite passada que tivemos logo abaixo do lago Drorshullvenn, na Marca Gelada.
— Quer dizer aqueles... Bukken? — Simon perguntou. Mesmo com a luz do dia ao redor, a imagem das mãos entrelaçadas era assustadoramente vívida.
— Sim... — Binabik assentiu. — E isso era... É... Um mau sinal, que eles atacassem assim. Não está na memória do meu povo que os Boghanik, que é o nome que lhes demos, ataquem um grupo de homens armados. É ousado, e assustador. Seu costume é caçar animais e viajantes solitários.
— E o que são?
— Mais tarde, Simon, há muito que aprenderá se tiver paciência comigo. Meu mestre também não me contou tudo... O que não significa, por favor, que eu seja seu mestre... Entretanto, ele estava muito chateado. Durante toda a nossa jornada pela Marca Gelada, não o vi dormindo. Quando eu dormia, ele seguia estando acordado, e na manhã o encontrava de pé antes de mim. Também não era jovem, já era velho antes de eu vir a ser seu aprendiz, e durante vários anos o estudei.
— Uma noite, quando cruzamos pela primeira vez para as partes do norte de Erkynlandia, meu mestre me pediu para ficar de guarda para que pudesse percorrer a Estrada dos Sonhos. Estávamos em um lugar muito parecido com este. — Binabik gesticulou para a planície desolada abaixo das colinas. — A primavera chegou, todavia ainda não havia rompido. Isso deve ter sido, ah, talvez por volta da época do seu Dia dos Loucos ou no dia anterior.
“Na véspera de Todos os Loucos...” Simon tentou relembrar, lembrar. “A noite em que aquele barulho terrível acordou o castelo inteiro. Na noite anterior... As chuvas chegaram...”
— Qantaqa estava caçando, e o velho carneiro Caolho... Uma coisa grande, gorda e paciente que levava Ookequk, dormia perto do fogo. Estávamos sozinhos, apenas com o céu. Meu mestre comeu da casca do sonho que lhe veio do pantanoso Wran, ao sul e atravessou para uma espécie de sono. Ele não me disse por que estava fazendo aquilo, embora pude imaginar que estava procurando respostas que não conseguia encontrar de outra forma. Os boghanik o assustaram, porque havia algo errado em suas ações.
— Logo começou a resmungar, como costumava fazer enquanto seu coração percorria a Estrada dos Sonhos. Muita coisa não era compreensível, mas uma ou duas coisas que falou também foram ditas mais recentemente pelo Irmão Dochais, e é por essa razão que você deve ter me visto demonstrar surpresa.
Simon teve que conter um sorriso amargo. E pensara que o medo era tão óbvio, despertado pelas palavras delirantes do hernystiro!
— De repente... — continuou o gnomo, ainda cutucando a turfa esponjosa com seu bastão. — Pareceu-me que algo o havia prendido, semelhante ao Irmão Dochais. Contudo meu mestre era forte, mais forte de coração, suponho, do que quase qualquer pessoa, homem ou gnomo, e lutou. Lutou e lutou, ele lutou durante toda a tarde e noite adentro, enquanto eu estava ao seu lado sem nenhuma ajuda para dar além de molhar sua testa. — Binabik puxou um punhado de grama, jogando-a para o alto e batendo com seu bastão. — Então, um pouco depois da meia-noite, me disse algumas palavras... Com bastante calma, como se estivesse bebendo com os outros anciões na caverna do Clã, e morreu.
— Para mim, acho que foi pior do que quando meus pais morreram, porque eles se perderam... Apenas desapareceram em um deslizamento de neve, sem deixar vestígios. Enterrei Ookequk lá, na encosta de uma colina. Nenhum dos rituais adequados foi feito corretamente, e isto é uma vergonha para mim. Caolho não partiria sem seu mestre; pelo que sei, e ainda pode estar lá. Espero que sim.
O gnomo ficou em silêncio por um tempo, encarando a pele arranhada nos joelhos de suas calças. Sua dor era tão próxima da tristeza de Simon que o garoto não conseguia pensar em palavras para dizer que fizessem sentido para ninguém além dele mesmo.
Depois de um tempo, Binabik silenciosamente abriu sua bolsa e ofereceu um punhado de nozes. Simon as pegou, junto com o odre.
— Depois... — Binabik recomeçou, quase como se não tivesse parado. — Uma coisa estranha aconteceu.
Simon se encolheu em sua capa e observou o rosto do gnomo enquanto falava.
— Passei dois dias ao lado do túmulo do meu mestre. Era um lugar agradável, sob o céu aberto, contudo meu coração doía porque sabia que ele seria mais feliz no alto das montanhas. Fiquei pensando no que deveria fazer: se continuaria até Morgenes, em Erchester, ou retornaria ao meu povo e lhes contaria que o Cantor Ookequk estava morto.
— Decidi na tarde do segundo dia que retornaria a Qanuc. Não entendia a importância da conversa do meu mestre com o Doutor Morgenes... Ainda não entendo muito, infelizmente... E tinha outras... Responsabilidades.
— Enquanto chamava Qantaqa e acariciava uma última vez entre os chifres do fiel Caolho, um pequeno pássaro cinzento voou, pousando no monte de Ookequk. Reconheci-o como um dos pássaros mensageiros do meu mestre; estava muito cansado de carregar um fardo pesado, uma mensagem e... E mais uma coisa. Quando me aproximei para capturá-lo, Qantaqa surgiu voando ruidosamente pela vegetação rasteira. O pássaro, não é de se surpreender, assustou-se e saltou no ar. Eu mal o peguei. Foi por pouco, Simon, no entanto consegui.
— Foi escrito por Morgenes, e o assunto do bilhete era você, meu amigo. Dizia ao leitor, que deveria ser meu mestre, que você estaria em perigo e viajando sozinho de Hayholt em direção a Naglimund. Pedia ao meu mestre que o ajudasse, sem o seu conhecimento, se isso fosse possível. Dizia mais algumas coisas.
Simon ficou fascinado: esta era uma parte que faltava em sua própria história.
— Que outras coisas? — perguntou.
— Coisas apenas para os olhos do meu mestre. — o tom de Binabik era gentil, embora firme. — Agora, não é preciso dizer que havia uma diferença. Meu mestre recebeu um pedido de um velho amigo... Todavia só eu poderia fazer esse favor. Isto também era difícil, mas, a partir do momento em que li o bilhete de Morgenes, soube que precisava atender ao seu pedido. Parti naquele dia, antes do anoitecer, em direção a Erchester.
“A nota dizia que eu viajaria sozinho. Morgenes jamais considerou que escaparia.” Simon sentiu as lágrimas se aproximando e disfarçou o esforço de contê-las com uma pergunta.
— Como você deveria me encontrar?
Binabik sorriu.
— Com o trabalho árduo dos qanuc, amigo Simon. Precisei seguir seus rastros, os sinais da passagem de um jovem, sem destino definido, coisas desse tipo. O trabalho árduo dos qanuc e uma grande sorte me levaram até você.
Uma lembrança surgiu no coração de Simon, cinzenta e assustadora mesmo em retrospecto distante.
— Foi você que me seguiu pelo cemitério? Aquele fora dos muros da cidade?
Não tinha sido tudo um sonho, ele sabia. Algo o chamara.
O rosto redondo do gnomo, no entanto, estava irracionalmente inexpressivo.
— Não, Simon... — negou com cuidado, considerando. — Só descobri seus rastros quando, deixe me ver, estávamos na Estrada da Velha Floresta. Por quê?
— Não é nada importante.
O garoto se levantou e se espreguiçou, olhando ao redor da planície úmida. Voltou a se sentar e estendeu a mão para o odre.
— Bem, acho que entendi agora... Mas tenho muito em que pensar. Parece que devemos continuar até Naglimund, suponho. O que acha?
Binabik pareceu perturbado.
— Não tenho certeza, Simon. Se os bukken estiverem ativos na Marca Gelada, a estrada para a fortaleza de Naglimund será perigosa demais para dois viajantes sozinhos. Devo admitir que estou muito preocupado com o que fazer agora. Gostaria que tivéssemos o seu Doutor Morgenes aqui para nos aconselhar. Você está em tanto perigo, Simon, que não poderíamos arriscar sequer uma mensagem para contatá-lo? Não acho que ele queira que eu o leve por perigos tão terríveis.
Demorou um instante para Simon perceber que ‘aquele’ de quem Binabik estava falando ainda era Morgenes. Um segundo depois, a surpreendente constatação o atingiu: o gnomo não sabia o que havia acontecido.
— Binabik... — começou, e mesmo enquanto falava sentiu que estava infligindo uma espécie de ferimento. — Está morto. O Doutor Morgenes está morto.
Os olhos do homenzinho se arregalaram por um instante, parecendo se esvaziar de vida, e o branco se fez visível ao redor do castanho pela primeira vez. Um instante depois, a expressão de Binabik congelou em uma máscara imparcial.
— Morto? — perguntou por fim, com a voz tão fria que Simon sentiu uma estranha atitude defensiva, como se a culpa fosse sua... Ele, que havia chorado tantas lágrimas pelo Doutor!
— Sim. — Simon considerou por um momento, depois assumiu um risco calculado. — Morreu tirando o Príncipe Josua e eu do castelo. O Rei Elias o matou... Bem, mandou seu homem, Pryrates, fazer isso.
Binabik encarou Simon e então olhou para baixo.
— Eu sabia do cativeiro de Josua. Foi mencionado na carta. O resto são... Notícias muito ruins. — ele se levantou, e o vento balançou seus cabelos negros e lisos. — Vou caminhar um pouco, Simon. Preciso pensar no que essas coisas significam... Preciso pensar...
Com o rosto impassível, o homenzinho se afastou do amontoado de pedras. Qantaqa logo saltou para segui-lo, e Binabik começou a afastá-la, porém deu de ombros. Ela o circulou em arcos largos e preguiçosos enquanto ele se afastava devagar, com a cabeça baixa e as mãos pequenas escondidas nas mangas. Simon achou que parecia pequeno demais para os fardos que carregava.
***
Simon tinha esperanças de que, quando o gnomo voltasse, pudesse estar carregando um pombo-torcaz gordo ou algo parecido. Nisso, ficou decepcionado.
— Sinto muito, Simon! — disse o homenzinho. — Contudo teria sido de pouca utilidade de qualquer maneira. Não podemos ter uma fogueira sem fumaça com nada ao redor além de arbustos molhados, e um farol de fumaça não é uma boa ideia no momento. Coma um pouco de peixe seco.
O peixe, em si escasso, não era nem satisfatório nem saboroso, no entanto Simon mastigava seu pedaço, melancolicamente... Quem sabia quando conseguiria uma refeição de novo nesta aventura miserável?
— Estive pensando, Simon. Suas notícias, sem culpa sua, são dolorosas. Tão logo após a morte do meu mestre, saber do fim do Doutor, aquele bom velho... — Binabik parou de falar, então se abaixou e começou a enfiar as coisas de volta na bolsa, depois de primeiro separar vários artigos.
— Estas são suas coisas... Veja, eu estava guardando para você.
Entregou a Simon os dois pacotes cilíndricos familiares.
— Este outro... — disse Simon, aceitando os pacotes. — Não a flecha, mas isto... — ele o devolveu a Binabik. — É um escrito do Doutor Morgenes.
— Sério? — Binabik puxou uma ponta dos panos que envolviam o pacote.
— Coisas que nos ajudarão?
— Acho que não. — respondeu o garoto. — É o seu trabalho sobre a vida do Preste John. Li um pouco, é principalmente sobre batalhas e coisas do tipo.
— Ah. Sim. — Binabik o devolveu a Simon, que o enfiou no cinto. — Que pena. Poderíamos usar suas palavras mais específicas neste momento. — o gnomo se abaixou e continuou a enfiar objetos em sua bolsa. — Morgenes e Ookequk, meu mestre, pertenciam a um grupo muito especial.
O homenzinho tirou algo de seus pertences e o ergueu para Simon ver. Brilhava fracamente na luz nublada da tarde, um pingente de pergaminho e pena.
— Morgenes tinha um desses! — exclamou o jovem, inclinando-se para olhar.
— De fato. — assentiu Binabik. — Este era do meu mestre. É um símbolo pertencente àqueles que se juntam à Liga do Pergaminho. Pelo que me contou, nunca há mais de sete membros. Seu e meu mestres estão mortos... Não podem restar mais de cinco agora. — sua mãozinha acariciou pingente e depois o jogou na bolsa.
— Liga do Pergaminho? — perguntou Simon. — O que é?
— Ouvi meu mestre dizer que são um grupo de pessoas eruditas que compartilham conhecimento. Talvez algo mais, todavia ele nunca me contaria.
Terminando de arrumar suas coisas, seu corpo se endireitou.
— Sinto ter de dizer, Simon, mas receio que precisemos voltar a caminhar.
— De novo?
Dores que havia esquecido de repente se acenderam nos músculos de Simon.
— Receio que seja necessário. Como estive dizendo, tenho pensado muito. Tenho pensado nessas coisas... — sua mão aperto o bastão na junção e assobiou para Qantaqa. — Primeiro, devo levá-lo a Naglimund. Isso não mudou, infelizmente era apenas minha resolução que estava vacilando. O problema é: não confio na Marca Gelada. Você viu os bukken... É provável que prefira não vê-los de novo. Porém é para o norte que devemos viajar. Estou pensando, então, que devemos voltar para Aldheorte.
— E como estaremos mais seguros lá? O que impede aquelas coisas escavadoras de virem atrás de nós na floresta, onde nem conseguimos correr?
— Uma boa pergunta. Falei com você uma vez sobre o Velho Coração, sobre sua idade e... E... Não consigo pensar em uma palavra na sua língua, Simon, contudo ‘alma’ e ‘espírito’ podem lhe dar uma ideia.
— Os bukken podem passar por baixo da floresta antiga, no entanto não lhes é fácil. Há poder nas raízes de Aldheorte, poder que não deve ser abordado levianamente por... Tais criaturas. Além disso, há alguém lá que preciso ver, alguém que precisa ouvir a história do que aconteceu com meu mestre e o seu.
Simon já estava cansado de ouvir suas próprias perguntas, mas perguntou mesmo assim.
— Quem é?
— O nome dela é Geloë. É uma mulher sábia, conhecida como valada, uma palavra rimmeria. Além do mais, talvez possa nos ajudar a chegar a Naglimund, já que teremos que atravessar pelo lado oriental da floresta, sobre Wealdhelm, uma rota que desconheço.
Simon vestiu a capa, prendendo o fecho gasto sob o queixo.
— Precisamos partir hoje? — perguntou. — Já é tão tarde.
— Simon! — disse Binabik enquanto Qantaqa se aproximava correndo, com a língua de fora. — Por favor, acredite em mim. Mesmo que haja coisas que eu ainda não possa lhe contar, precisamos ser verdadeiros companheiros. Preciso da sua confiança. Não é apenas o reinado de Elias que está em jogo. Perdemos, nós dois, pessoas que tínhamos em alta estima... Um velho e um velho gnomo que sabiam muito mais do que nós. Ambos estavam com medo. O irmão Dochais, creio eu, morreu de medo. Algo maligno está despertando, e seremos tolos se passarmos mais tempo em campo aberto.
— O que despertou, Binabik? Que mal? Dochais disse um nome, eu o ouvi. Pouco antes de morrer, disse...
— Não precisa... — Binabik tentou interromper, embora Simon não lhe deu atenção. Estava ficando cansado de insinuações e sugestões.
— Rei da Tormenta! — concluiu, resoluto.
Binabik olhou rapidamente ao redor, como se esperasse que algo terrível aparecesse.
— Eu sei. — sibilou. — Também ouvi, contudo não sei muito.
Trovões soavam além do horizonte distante; o homenzinho parecia sombrio.
— O Rei da Tormenta é um nome terrível no norte escuro, Simon... Um nome lendário para assustar, para conjurar. Tudo o que tenho são pequenas palavras que meu mestre me dava às vezes, no entanto são o suficiente para me deixar doente de preocupação. — ele colocou a bolsa no ombro e começou a atravessar a planície lamacenta, em direção à linha abrupta e curva das colinas.
— Esse nome... — continuou, com a voz incongruentemente abafada em meio a um vazio tão monótono. — É, por si só, uma coisa que pode murchar plantações, trazer febres e pesadelos...
— Chuva e mau tempo... — perguntou Simon, olhando para o céu feio e sombrio.
— E outras coisas. — respondeu Binabik, e tocou a palma da mão no casaco, logo acima do coração.
***
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