domingo, 14 de dezembro de 2025

When Hikaru was on the Earth... — Volume 01 — Capítulo 01

Volume 01: Aoi  Capítulo 01: Você já não está morto?

Uwaah... Por que são todas meninas?



Koremitsu Akagi observou o funeral, estupefato.



A combinação de um blazer de alta classe e uma camisa preta compunha o uniforme da escola de Koremitsu, a Academia Heian. Havia também outros uniformes na escola, como de uma única peça, uniformes de marinheiro, coletes, boleros com fitas... Tantos que era chocante, as meninas presentes usavam todos os tipos de trajes distintos.



Mas isso não era tudo que Koremitsu tinha para ver.



Havia uma estudante universitária ali, vestida com seu próprio traje preto e estiloso, gritando.



— Hikaru! Hikaru!



Uma mulher triste estava ao lado da universitária, com um ar erudito em sua aparência de secretária, cobrindo o rosto com um lenço enquanto seus ombros tremiam sem parar. Atrás dela, estava uma senhora opulenta, banhada em lágrimas, com os olhos fixos no chão. Junto com a multidão, estava uma jovem que parecia ser uma aluna do ensino fundamental, e ela não era exceção, com os olhos inchados e vermelhos, cheios de lágrimas.



Koremitsu usou o mural da escola para verificar a data do funeral com antecedência. Porém, logo se arrependeu de ter ido.



Entre as garotas chorando, estava uma estudante do ensino médio com cabelo ruivo bagunçado, costas curvadas, olhos penetrantes e carrancudos, e uma expressão ameaçadora, o que a outorgava um aspecto agressivo.



Por vezes, os presentes no funeral olhavam com desconfiança em sua direção.



Até suas colegas da Academia Heian ficaram alarmadas, imaginando por que o calouro tão infame estava presente.



Apesar do desconforto, ninguém ousou perguntar por que tinha vindo. Morderam os lábios e fingiram olhar para algo de soslaio, desviando o olhar desconfortavelmente para ir embora.



Mesmo que alguém perguntasse o óbvio a Koremitsu, ele mesmo não conseguiria dar uma resposta.



Sério, por que tenho que ir ao funeral desse desgraçado que viveu uma vida tão abundante, se nunca falei muito com ele?



O retrato de Hikaru Mikado foi colocado sobre um incenso de sândalo branco na frente do salão, enquanto o espaço estava cheio de enlutados.



O cadáver de Hikaru jazia no meio da multidão como um anjo, com um sorriso no rosto e adornado com tulipas, lírios e cravos.



Seu rosto era esguio, nariz delicado e lábios carnudos; sua pele era de um branco imaculado e cada uma de suas íris possuía uma transparência cristalina. Essas qualidades conferiam uma pureza e doçura efeminadas ao corpo em repouso de Hikaru Mikado.



Quando se conheceram, Koremitsu se perguntou por que uma garota usaria um uniforme de menino na escola.



Contudo aquilo ocorreu antes de descobrir que esse garoto muito afável e com uma voz única era conhecido pelos outros como o “Príncipe Imperial” da escola.



Não era apenas o “Príncipe” da escola, mas sim o “Príncipe Imperial”, um título que condizia muito melhor com a elegância do “Lorde Hikaru”. Estudantes formandas do ensino fundamental e recém-matriculadas no ensino médio conversavam animadamente sobre Hikaru Mikado nestes termos, e foi assim que Koremitsu soube do lugar de Hikaru ocupava em Heian.



Ainda assim, Hikaru era bastante popular, e muitas garotas começaram a gostar dele quando era só um aluno do jardim de infância.



Mesmo naquela escola repleta de colegas ricos, sua origem familiar e riqueza eram consideradas excepcionais. Apesar disso, demonstrava o mesmo afeto e ternura abundantes por todas as meninas.



Como esperado, esse cara é um sujeito bonito com quem não tenho nenhuma afinidade.



Foi o que Koremitsu pensou antes de conhecer Hikaru.



No entanto, por algum motivo, Hikaru Mikado chamou Koremitsu com um sorriso quando se encontraram pela primeira vez.



— Tem uma coisa que eu quero te perguntar.



Koremitsu sentiu que havia algo errado com a declaração de Hikaru naquela época.



Começou a questionar se tinha ouvido errado depois que soube da morte de Hikaru, antes que essas palavras fizessem sentido para ele.



Dizem que Hikaru se afogou em uma enchente causada por fortes chuvas enquanto estava hospedado em um resort em Shinshu, durante a Semana Dourada¹.



Apesar de terem trocado apenas algumas palavras, a morte de Hikaru aos 15 anos foi um grande choque para Koremitsu, fazendo-o perceber mais uma vez como a vida não é permanente... Como é passageira. Lembrou-se da morte do pai e sentiu uma amargura no coração.



Koremitsu nutria sentimentos tão complicados e incompreensíveis quando foi ao funeral de Hikaru sob chuva fina.



Koremitsu sentou-se nas cadeiras dentro do recinto com uma expressão desolada, com olhares vago para o líder funerário cercado pelos soluços angustiados das mulheres.



Hikaru era uma criança linda.

Uma criança tão gentil.

Ele realmente tinha um sorriso revigorante.

Sua voz era tão bonita.

E tinha dedos tão delicados, como os de um artista talentoso.

Era um pouco teimoso, porém não consigo odiá-lo por isso.

Ele tinha medo da solidão, contudo isso o tornava adorável.

Era uma criança que parecia poder carregar toda a felicidade do mundo.

Uma criança que parecia estar envolta em luz.



Todos os presentes estavam de luto e chorando pela morte prematura deste jovem.



As canções funerárias de lembrança chegaram aos ouvidos de Koremitsu.



Na verdade, entendia muito pouco sobre essa pessoa falecida, e lhe era difícil entender os sentimentos dos enlutados.



Estava inundado por ondas de tristeza, sentindo-se incomodado, culpado e inquieto.



Nesse momento, notou uma mulher sentada em um assento reservado para parentes.



Ela parecia jovem.



Talvez tivesse um pouco mais de vinte anos.



Seu corpo parecia tão frágil que era como uma flor prestes a se romper a qualquer momento, e não usava vestido de uma peça nem um quimono preto. Seu cabelo estava preso para trás.



No momento em que a mulher entrou na visão de Koremitsu, ele prendeu a respiração pelo impacto do que sentiu.



Mikado...?



Naquele momento, teve a impressão errada de que o próprio Hikaru Mikado estava sentado à sua frente.



Ela tinha uma semelhança chocante com o falecido.



Seus cabelos lisos e sedosos pareciam dourados sob a luz; tinha pele branca leitosa, um nariz sutil, embora elegante, lábios como pétalas e um pescoço fino.



Seria a irmã mais velha do Hikaru...?



Um lento sorriso se desenhou na expressão da mulher.



As lágrimas continuaram rolando pelo seu rosto delicado, contudo as pontas dos seus lábios se curvaram um pouco.



Era um sorriso tranquilo e agradável.



Seu sorriso não combinava com uma cena de funeral. Koremitsu estava em pé diante do incenso de sândalo, com as narinas pesadas com o aroma, e a olhava meio hipnotizado.



Por que... Está sorrindo?



Está sorrindo tão lindamente, tão feliz.



Por que, no funeral dele...?



Essa mulher, que parecia a irmã de Hikaru, mostrou um sorriso que durou tão pouco tempo que pareceu uma ilusão.



Koremitsu ficou tão extasiado com a exibição que começou a perder o foco. Antes que pudesse fazê-lo, uma voz aguda na multidão interrompeu seus pensamentos.



— ELE É SIMPLESMENTE UM IDIOTA!



Assustado, olhou para a origem da voz.



Uma garota vestindo o uniforme da Academia Heian estava parada em frente ao altar de luto de Hikaru.



Seus longos cabelos negros estavam presos atrás da cabeça, presos com uma fita preta. Ela exalava uma aura infantil, parecendo uma princesa refinada. Ao cerrar os punhos, não pôde deixar de estremecer; seus grandes olhos quase pareciam emitir uma aura de desprezo furioso enquanto encarava com raiva o retrato sorridente de Hikaru.



Palavras mordazes saíram de lábios trêmulos e contrastantes.



— VOCÊ É MESMO UM IDIOTA POR SE AFOGAR NUM RIO ASSIM! QUE VERGONHA! PENSEI QUE SERIA ESFAQUEADO ATÉ A MORTE POR UMA MULHER! FOI POR SER TÃO MULHERENGO QUE O CARMA FEZ SEU TRABALHO!



— Não faça isso, Aoi.



Em seguida, uma garota mais alta, vestindo o mesmo uniforme, aproximou-se. Ela a agarrou pelo ombro, numa clara tentativa de conduzi-la para fora.



Inspirada pela mão sugestiva, “Aoi” levantou a cabeça para ver o retrato de Hikaru outra vez.



O lado pálido e rígido do seu rosto fez o coração de Koremitsu saltar.



Era um rosto misturado com raiva, angústia e amargura. Uma expressão perigosa...



A jovem gritou com desdém.



— SEU MENTIROSO!


Koremitsu sentiu como se seu coração tivesse sido esfaqueado por uma lança afiada.



Na verdade, até sentiu uma pontada aguda por dentro.



Whoa... Que tipo de carnificina é essa?



O lugar ficou em silêncio por um momento, para recuperar seu relativo clamor momentos depois.



As pessoas começaram a murmurar sobre o que tinha acontecido umas com as outras.



Mentiroso...



A mente de Koremitsu seguia pensando em seu tom de voz relutante e em sua expressão raivosa, porém dolorida.



Mentiroso.



Mentiroso.



O rosto inocente de Mikado estava bem diante dela, contudo o poderia ter feito para que ele fosse repreendido daquele jeito?



“Mentiroso.” A palavra reverberou dolorosamente nos ouvidos de Koremitsu.



Mesmo com Hikaru morto, ela continuou a desabafar sua frustração nele. Que tipo de relacionamento os dois tinham?



Que tipo de mentira Hikaru contou?



Bem... De qualquer forma, não tem nada a ver comigo...



O recital de orações começou e o local ficou tomado por uma atmosfera solene.



A mulher que se parecia tanto com Hikaru, ainda sentada na cadeira designada para os familiares, mantinha a cabeça baixa.



A garota com a fita preta que estava criticando Hikaru começou a desaparecer da mente de Koremitsu.



Quando chegou a sua vez de oferecer incenso, segurou o sândalo, fechou os olhos e abaixou a cabeça.



O que exatamente ele quis dizer quando falou “Tem uma coisa que eu quero te perguntar”?



No entanto, havia uma questão que não conseguia tirar da cabeça.



Claro que era impossível para o cadáver de Hikaru no caixão dar qualquer resposta.



Assim que o funeral terminou, Koremitsu foi embora. Ainda chovia lá fora... O tempo estava escuro e úmido.



É tão problemático carregar um guarda-chuva por aí...



Ele caminhou pelo chão molhado enquanto saía.



— Senhor. Akagi.



Por um momento, pensou ter ouvido alguém chamar seu nome.



Parou no meio do caminho e olhou para trás.



Talvez eu esteja apenas ouvindo coisas.



Havia duas garotas de uniforme escolar atrás dele... As mesmas que atraíram a atenção do funeral momentos antes, com os ombros encolhidos e os corpos tremendo enquanto afundavam no chão encharcado.



Koremitsu sentiu uma amargura aguda diante do espetáculo e, arqueando as costas, continuou andando.



Por que uma pessoa tão vulgar teve que comparecer ao funeral do Sr. Hikaru?



Koremitsu estalou a língua ao ouvir o murmúrio de desaprovação das garotas atrás no funeral.



***



Havia pessoas neste mundo que eram incompreendidas com facilidade.



Os quinze anos de infortúnio que Koremitsu Akagi sofreu foram em grande parte devido à sua aparência.



Ele parecia estar sempre pensativo, seus olhos estavam sempre baixos e exibiam um ar de arrogância e escárnio, e sua boca estava curvada para baixo em sinal de infelicidade.



Seu rosto é rígido o que sugeria uma pessoa nada amigável. Sua aparência era sinistra... A tez angulosa, a coluna arqueada, o corpo magro e o cabelo castanho-avermelhado desgrenhado o faziam parecer um completo delinquente.



Ele relembrou a série de mal-entendidos que vivenciou enquanto crescia.



Quando estava no jardim de infância, os alunos tinham medo da expressão selvagem de Koremitsu e se afastavam de qualquer interação social. Durante sua cerimônia de entrada na escola primária, a menina sentada ao lado de Koremitsu de repente começou a chorar, e as outras crianças próximas também começaram a chorar ao notá-la, causando um grande alvoroço entre as crianças chorosas.



Como resultado, foi acusado de intimidar a menina, e as mães ensinaram os filhos a não brincar com ele. Como consequência, viveu uma vida solitária.



Durante o ensino fundamental, Koremitsu se envolveu com alguns veteranos que rondavam terrenos baldios no complexo escolar. Ao se livrar deles, acabou ganhando os apelidos de “Rei da Briga”, “Rei dos Delinquentes” e designações semelhantes. Com esses apelidos, passou a ser visto como uma pessoa perigosa. Dessa forma, Koremitsu não conseguiu fazer um único amigo no ensino fundamental.



E então, houve aquela inesquecível cerimônia de formatura.



Enquanto seus colegas choravam uns com os outros ao se separarem, Koremitsu era isolado por todos, um pária abandonado sozinho entre as cerejeiras murchas. Lá, pensou consigo mesmo: “Não posso deixar isso continuar.”



Quando entrou no ensino médio, sua prioridade era fazer novas amizades para evitar a dor e o desprezo de ser chamado de “Diabo Vermelho”, “Homem do Desastre”, “Cão Selvagem de Aparência Raivosa” e outras coisas.



Foi o que decidiu.



Todavia, um dia antes da cerimônia de entrada no ensino médio, Koremitsu foi atropelado por um caminhão em um cruzamento com muito tráfego e, de repente, se viu hospitalizado por um mês para se recuperar.



Após o acidente, a tia de Koremitsu, que também era sua responsável, ficou furiosa.



“Por que você se mete em encrenca atrás de encrenca! Foi um milagre ter conseguido passar no exame de uma escola particular de prestígio aqui perto, e ainda assim estragar tudo se desculpando por faltar à cerimônia para ir ao hospital? Nem crianças do ensino fundamental são atropeladas na faixa de pedestres!”



E fez uma demonstração de sua fúria.



Koremitsu enfim seria libertado da vida sombria em uma cama de hospital, e havia chegado a hora daquele dia memorável em que poderia visitar sua nova escola pela primeira vez.



Ele tinha uma muleta presa sob a axila direita, a mão esquerda engessada e a cabeça envolta em bandagens enquanto caminhava pelo longo corredor do pátio.



“Droga... Onde diabos fica a sala dos professores?”



Ele queria pedir informações, porém todos se afastaram ao vê-lo e, antes que percebesse, chegou a um lugar desprovido daquela grande massa humana nos corredores.



Era um grande pátio, onde belas árvores estavam dispostas ordenadamente, pedras de todos os formatos e tamanhos decoravam a paisagem verdejante, e até mesmo corpos d’água brilhantes eram encontrados por toda parte.



A Academia Heian era uma escola de fama notável que oferecia um programa integrado de matrículas, desde o jardim de infância afiliado até a universidade, e seus dignitários gastaram grandes somas de dinheiro especificamente criando o pátio.



No inverno anterior, havia vindo à Escola Heian para um exame de admissão e ficou impressionado com a limpeza e o pátio da escola. Pensou que, por poder ingressar em uma escola tão prestigiosa, não teria que enfrentar aqueles veteranos que enlouqueciam sem aviso e sacavam as facas de seus uniformes modificados, e que poderia se dar bem com seus novos colegas.



Contudo, as pessoas continuaram mantendo distância dele quando Koremitsu entrou na nova escola pela primeira vez, o que o levou a acabar se perdendo.



Droga... Todo mundo está julgando os outros pela aparência.



Eles estão dizendo que meus pais me colocaram nesta escola por meio de conexões com a Máfia, que lutei contra algum tipo de exército delinquente de outra escola e quase matei todos eles, e que fui hospitalizado por causa disso.



Ei, eu consigo ouvir seus insultos! Se quer falar mal de mim desse jeito, faça isso em algum lugar onde não possa ouvir, ok? Mereço ser tratado com o mínimo de educação, está me ouvindo?



Emburrado, seguiu pelo corredor, com sua muleta soando a cada passo para frente, para acentuar seu andar.



Parecia haver alguém parado na sombra de um pilar à sua frente.



A pessoa estava apenas parada ali, como se estivesse encostada no pilar. Vestia um blazer e calças compridas... Será que é um homem?



A luz do sol da manhã que brilhava no átrio iluminava aquele cabelo macio, irradiando um brilho dourado de seu perfil.



Por que uma pessoa dessas estava naquele lugar tão cedo pela manhã?



De qualquer forma, Koremitsu se sentiu salvo ao ver essa figura solitária.



Queria abordá-lo para perguntar onde ficava o escritório, entretanto ele se virou para Koremitsu antes que pudesse começar.



Hein? Uma garota?



A pessoa tinha um rosto delicado, e com isso a confusão tomou conta de Koremitsu. Tentou imaginar por que uma garota deveria usar um uniforme de menino.



Não, espere, é um cara, certo?



Seus olhos claros se estreitaram, e um sorriso gentil se espalhou por seu semblante amável. Os lábios finos da pessoa começaram a se mover.



— Sr. Akagi.



Eles soltaram uma voz doce.



Sua voz quase continha um encanto, pois chegava aos ouvidos suave e gentilmente, quase como se tivesse penetrado o âmago de sua essência. Koremitsu congelou ao ouvi-la.



— Você é do primeiro ano, Sr. Koremitsu Akagi. É a primeira vez que entra na escola, certo?



— Como você sabe meu nome?



Koremitsu encarou o garoto com ar cansado. Hikaru continuou sem um pingo de desonestidade.



— Qualquer calouro como você viraria o assunto por aqui. Fiquei sabendo que lutou contra um exército de delinquentes, surrou dez oponentes até quase matá-los, tornou-se o 27º líder de gangue e o lendário “Rei dos Delinquentes”. Dizem também que os ferimentos que sofreu foram marcas de honra em batalha, certo?



Não havia ninguém que ousasse se aproximar de Koremitsu e conversar, muito menos alguém que não tivesse medo dele, encarando-o de frente e exibindo um sorriso feliz.



Foi por essa razão que Koremitsu se sentiu um tanto confuso em vez de chateado por ser chamado de líder de gangue ali.



Por alguma razão, o garoto sentiu que poderia conversar com alguém chamado líder de gangue de forma tão indiferente...



Para alguém que parece uma garota, tem muita coragem, né? Ou será que era só lerdo? Ou será que está planejando alguma coisa?



Koremitsu contou a verdade a Hikaru, que seu rosto de rebelde era algo com o qual havia nascido, que os ferimentos eram resultado de ter sido atropelado por um caminhão, que não havia nenhum líder de gangue por perto e que não era um delinquente.



— Então por que bloqueou o caminhão com seu corpo?



Ele encarou a pergunta séria de soslaio.



— Uma coincidência.



— É uma grande coincidência!



— Não tem jeito. Foi só isso... Coincidência.



— Hmm, mas não acho que um caminhão como esse seja algo com o qual possa só bater por acidente.



— ...



Ele realmente não queria falar sobre o incidente.



Para Koremitsu, que não estava acostumado a ter outras pessoas falando com ele, a maneira como esse garoto falava tão naturalmente o fazia sentir um frio na barriga.



A maneira como o garoto o encarou era como se estivesse olhando para um animal raro em exposição, e isso lhe pareceu repulsivo.



— Onde fica a sala dos professores?



Koremitsu perguntou em um tom seco sobre a intenção original de começar a conversa com o garoto para acabar com o frio na barriga que o atormentava, porém a outra pessoa não pareceu se importar.



— Siga em frente e, no final, vire à esquerda, suba as escadas e chegue ao segundo andar.



E ele até guiou Koremitsu.



— Oh, entendo.



O som da muleta de pinho ecoou de novo, e quando eles estavam prestes a passar um pelo outro lá dentro, Koremitsu teve seu nome chamado outra vez.



— Sr. Akagi, esqueci meu livro de Clássicos hoje. Pode me emprestar o seu?



Hã?



Koremitsu parou de pensar por um momento.



Por que me pediu um livro emprestado de repente?



Koremitsu se virou e viu a outra pessoa olhando diretamente para ele com seus olhos claros.



— Nossa turma não tem Clássicos hoje.



Respondeu enquanto tentava adivinhar a intenção da outra pessoa.



— É, que pena.



Ele refletiu, dando um sorriso significativo...



— Então, vou até a sua sala para pegar seu livro emprestado, Sr. Akagi. Tem uma coisa que eu quero te perguntar.



— Quer me perguntar alguma coisa? O que é?



Passou de um simples pedido de empréstimo de um livro didático para um pedido de favor pessoal, e essa mudança suspeita fez Koremitsu franzir a testa.



— Sou Hikaru Mikado da turma 1. Até a próxima.



O garoto acenou com o braço e foi em direção ao pátio.



A imagem daquele sorriso deslumbrante, um sorriso que achava brilhante como o sol, ficou gravada no fundo da sua mente.



— Kyah! Lorde Hikaru!



— Bom dia, Mestre Hikaru!



Os gritos de júbilo das meninas podiam ser ouvidos do outro lado da floresta.



Koremitsu só conseguia parecer atordoado enquanto ouvia os gritos desaparecerem à distância.



Isso foi há uma semana.



Uma semana depois, Koremitsu, que teve seu gesso e muleta removidos, viu as meninas chorando e lamentando quando entrou na escola e ouviu a notícia de que “Lorde Hikaru havia morrido”.



***



No final, Mikado nunca pegou o livro emprestado comigo, e só conseguimos conversar uma vez.



A estrada estava escura, e a chuva fez com que a visão de Koremitsu ficasse turva durante sua caminhada para casa.



Estava pensando na situação de Hikaru desde o momento em que saiu da funerária.



Não há nada que eu possa fazer...



Seu único encontro deixou um grande impacto em Koremitsu, e os eventos do funeral contribuíram para essa experiência.



Mesmo assim, não entendia quase nada sobre a pessoa chamada Hikaru Mikado. Ainda se sentia completamente cativado por sua atitude casual, seu comportamento e sorriso sinceros; tudo permanecia um enigma.



Que tipo de pessoa Hikaru era na realidade?



Se aquele cara não tivesse morrido, se ainda estivesse vivo... Será que de fato viria aqui pegar meu livro emprestado?



Abriria a porta da sala de aula com força, daria um sorriso radiante...



— Sr. Akagi! Esqueci meu livro!



E será num tom alegre, suponho?



Essa cena passou pela sua mente num instante, e uma sensação de irritação percorreu seu íntimo. Talvez essa fosse a pequena tristeza que sentia pela vida de um jovem de 15 anos que teve sua vida encerrada.



O aguaceiro ficou mais forte.



A casa de madeira que seu avô construiu ficava longe do centro da cidade, um local que funcionava como uma oficina de caligrafia. Quando voltou, seu cabelo ruivo bagunçado estava grudado nas pálpebras e orelhas.



Abriu a entrada principal e, na porta, estava sua tia Koharu, segurando um pouco de sal grosso.



— Koremitsu, vire as costas!



Ela ordenou-lhe, num tom severo.



Koharu costumava se vestir com uma camisa de mangas e bainha arregaçadas, com o cabelo preso atrás da cabeça com elegância. Divorciada, havia voltado para casa para trabalhar em um mercado online no computador. Naquela época, ela, Koremitsu e seu avô eram as únicas pessoas morando juntas.



Ele seguiu o que lhe foi dito e se virou, e logo depois, o som de sal sendo espalhado sobre ele soou.



Não é sal demais para purificação? Está tentando me marinar com sal?



Porém, mesmo pensando assim, escolheu permanecer em silêncio, tendo em vista que o mais alto cargo de autoridade na casa estava aos poucos sendo transferido de seu avô para sua tia. Optou por permanecer quieto.



— Tudo bem, vire-se de volta.



Ao se virar, uma grande porção de sal foi espalhada em suas pernas. Suas roupas encharcadas ficaram cobertas de grãos de sal.



— A água do banho está fervida. Vá se lavar. Quando terminar, jante e não perca tempo.



Ela falou com tom masculino.



De repente, ouvi uma risadinha vinda de trás.



— A irmã do Sr. Akagi parece ser bem violenta e interessante. E se parece muito com você.



— Hum?



Naquele momento, Koremitsu parou no meio do caminho.



O quê?



Ele achou que ouviu uma voz desconhecida aqui...



Não, devo ter imaginado.



Koremitsu pensou que estivesse cansado, pois não estava acostumado a ir a funerais. Pegando a toalha que Koharu lhe entregou, colocou-a sobre a cabeça e foi em direção ao banheiro.



Depois de um mergulho no banho, seu corpo se sentiria aliviado e sua mente revigorada.



Tirou seu blazer, desabotoou a camisa úmida e desconfortável e tirou a calça de couro.



No momento em que abriu a porta de vidro do banheiro, ouviu aquela doce voz soar de novo.



— Heh... Você parece bem magro, contudo esses músculos te fazem parecer bem diferente de mim. Como esperado do rei dos delinquentes.



Não sou um delinquente.



Não, antes de argumentar, quem era a pessoa falando com ele agora?



A voz do seu avô não era tão jovem, e sua voz era suave demais para ser a de Koharu.



— Se eu me despir agora, a maioria vai dizer que sou bonito, pareço uma menina e tenho pele branca e sedosa ou algo assim. Isso fere muito meu orgulho como homem.



A voz parecia provocá-lo enquanto seu charme se estendia aos ouvidos de Koremitsu. Aquela voz doce parecia estranhamente semelhante à voz do garoto que ouvira quando se encontraram no corredor.



Contudo, o menino deveria ter morrido há vários dias; Koremitsu compareceu ao funeral mais cedo naquele dia e até queimou incenso.



— Seus braços também são bem finos, no entanto parecem firmes. Esse é o meu tamanho ideal.



Uma alucinação pode durar tanto tempo assim?



A voz também parecia tão clara, como se estivesse vindo de cima de sua cabeça.



A propósito, Koremitsu virou a cabeça naquela direção e, no momento seguinte, gritou.



— UWWAAAHHH!



Como? Aquele garoto com rosto angelical, vestido com uniforme escolar! Hikaru Mikado!



No teto do banheiro! Cercado de vapor!



Ele estava flutuando no ar!



— Uh, hã? Consegue me ver aqui, Sr. Akagi?



Com a possibilidade concretizada, o corpo levitante de Hikaru soltou um grito de alegria.



Seus cabelos, que assumiram um tom dourado com a luz parcialmente filtrada por suas mechas, eram levantados por uma brisa passageira enquanto balançavam no topo da pequena cabeça de Hikaru.



Koremitsu agarrou a borda da banheira, boquiaberto... Seu queixo parecia prestes a cair no chão. Hikaru arregalou os olhos, observando-o. A figura vaporosa de Hikaru parecia a de um anjo, descendo à Terra diante de Koremitsu. Se trocasse o uniforme por um roupão, o brilho cintilante poderia ter um efeito ofuscante.



Koremitsu encontrou os olhos de Hikaru, ofegante em conflito com a incredulidade de tudo aquilo.



— V-Você já não está morto...?



Sem demora, sua tia Koharu abriu o painel de vidro e gritou para dentro do banheiro.



— O que foi, Koremitsu? Você caiu e bateu a cabeça? Não me diga que precisa ser hospitalizado de novo!



Em sua mão direita estava a faca de cozinha, claramente porque estava no meio do preparo do jantar.



— Ko-Koharu... Ali...



Koremitsu estremeceu enquanto apontava para o teto.



Um espectro efeminado de uniforme flutuava diante deles. Não se sabia se Hikaru era gentil ou se se esforçava para tratar as garotas com tanta gentileza, já que sorria para Koharu.



Se ela fosse uma adolescente, teria derretido como um sorvete. Sua voz ainda carregava um tom que sugeria intenção assassina enquanto Koharu ridicularizava Koremitsu por toda aquela comoção.



— Hah? Uma barata por acaso? Por que está agindo igual uma menininha. Não fique gritando assim por causa de uma coisa tão pequena.



— Não está vendo?



— Bem, não consigo ver nenhuma barata ou centopeia daqui.



Não tem um cara vestindo uniforme escolar aqui?



Ele queria gritar, mas desistiu do pensamento depois de ver a expressão de sua tia, sinalizando que poderia balançar a ameaçadora faca de cozinha nele sem hesitar.



Koharu fechou a porta de vidro e saiu.



— Essa é uma irmã mais velha muito corajosa.



Hikaru ignorou o fato de que seu sorriso característico era ineficaz quando disse isso.



Por sua vez, na mente de Koremitsu...



Calma... Calma...



Koremitsu repetiu a mesma coisa para si mesmo enquanto tentava ao máximo recobrar a compostura para entender o que estava acontecendo.



Hikaru Mikado, que deveria estar morto, parecia bem vivo no seu banheiro.



Ele tinha pernas, embora seu corpo esguio flutuava no ar.



E Hikaru não era visível para Koharu.



Koremitsu lançou um olhar tímido para o espelho na parede do banheiro, viu que ali estava apenas seu corpo nu, refletido em uma névoa de vapor, e olhou de novo para Hikaru.



E ainda estava lá.



Koremitsu olhou mais uma vez para o espelho.



O garoto ruivo e magro, com olhos ameaçadores, empalideceu diante da imagem que viu.



— Bem, Sr. Akagi.



A voz se aproximou.



— !



Koremitsu se virou, vendo Hikaru atrás das suas costas como um treinador de animais de estimação pronto para trabalhar com um canino superexcitado.



— É como o você disse, Sr. Akagi. Estou de fato morto agora. É por isso que sinto que esta forma deve ser o meu fantasma.



Hikaru fez uma pausa em contemplação.



— Sim, tem que ser esse o caso. Não tenho muita certeza do que significa ser um fantasma, porém sinto que sou mesmo sem conhecer uma definição estrita. Prefiro a sensação de uma existência fantástica a uma ficção científica complexa, então é melhor assim. O senhor também deveria me ver dessa forma, Sr. Akagi.



De que adianta isso? Como pode estar tão convencido de que está certo? Um morto aparecendo de repente diante dos vivos é simplesmente uma fantasia para você? É uma perturbação da realidade, não da imaginação!



Ele sentiu uma onda de escárnio em seu coração, contudo acabou guardando-a para si.



A única vez em que acreditou em fantasmas foi quando era um aluno do primário, fruto da imaturidade. Ainda assim, a ausência do reflexo no espelho de Hikaru era incontestável.



Koremitsu ficou preso no conflito entre bom senso e observação.



— Aqui, de uma olhada.



Hikaru estendeu sua mão branca e fina para tocar a de Koremitsu. Ela o atravessou, e a pele e o osso passaram para o outro lado.



Koremitsu sentia uma forte vontade de gritar. Não queria ver a mão de outra pessoa atravessando a sua daquele jeito. Era tudo ilógico demais para ele. Sentiu arrepios por todo o corpo, como se uma centopeia estivesse rastejando em suas costas.



Erguendo o braço, levou a mão trêmula de volta ao peito, respirou fundo várias vezes e disse.



— A-Assumindo que seja realidade, e não sou um fantasma, mesmo que você seja um fantasma, por que tem que aparecer no meu banheiro?



Eles não eram amigos.



Não eram colegas de classe.



Tiveram apenas aquela interação em Heian.



Hikaru lançou um olhar cativante e deslumbrante com aqueles olhos claros para Koremitsu.



— Não é nada repentino. Estive acima de você desde que esteve no meu funeral. Eu te chamei de “Sr. Akagi” durante o funeral, e você olhou para trás, lembra?



Koremitsu ficou estupefato com as palavras de Hikaru.



É verdade que senti alguém me chamando quando estava voltando para casa. Então esse cara aqui está flutuando acima da minha cabeça desde aquele momento? Será que estava me seguindo enquanto eu caminhava para casa?



— Naquele momento, fiquei me perguntando se estou preso a você, Sr. Akagi. Claro, isso em termos ocultos.



— Ei! Por que eu? O que fiz para incorrer na sua vingança? Será que queria se tornar o 27º chefe ou algo assim? Quer lutar comigo porque te superei? Será que me chamou no corredor pra falar por causa disso? Nesse caso, te dou essa posição. Pode se chamar do que quiser aqui. Ou posso gravar na sua lápide também, com uma faca de trinchar.



A testa de Koremitsu estava cheia de veias saltando de agitação. Hikaru deu um sorriso relaxado ao responder.



— De jeito nenhum. Não tenho nenhum ressentimento contra sua pessoa.



— Então por quê?



Koremitsu o encarou, e Hikaru retribuiu o olhar descaradamente.



— Não tínhamos uma promessa?



— Hã?



Koremitsu ficou perplexo.



Que promessa?



— Eu queria te perguntar uma coisa quando fui até você para pedir o livro emprestado.



Um sorriso encantador se espalhou pelo rosto de Hikaru enquanto olhava para Koremitsu.



Koremitsu não se importou com sua estranheza enquanto inclinava o corpo para frente para observar Hikaru.



— Ei, o que queria me pedir?



Desde que soube da morte de Hikaru, Koremitsu não pôde deixar de se sentir incomodado, como se houvesse um osso preso em sua garganta.



Qual era o “assunto” que queria lhe contar?



Hikaru pediu a ele, a alguém que não conhecia, a alguém que havia conhecido pela primeira vez.



Pediu par Koremitsu, alguém que era famoso por ser um delinquente selvagem, alguém de quem os outros se esquivariam.



O sorriso de Hikaru desapareceu e sua expressão se transformou em tristeza. Desviando o olhar, ficou em silêncio diante da pergunta de Koremitsu.



— ...



Ei, por que não diz nada agora? Por que parece tão chateado?



Koremitsu ficou impaciente com a expressão agora solene de Hikaru.



Sentiu um suor frio e desconfortável enquanto esperava uma explicação para o silêncio. Nesse momento, Hikaru curvou os lábios e deu um sorriso fraco.



— Sobre isso... Esqueça.



Sua voz foi um murmúrio baixo.



— Hein? O que quer dizer?



Seu tom de voz se tornou áspero. A situação se tornou algo que faria Hikaru se sentir mal, então a veemência da resposta de Koremitsu se tornou lamentável.



— Não tente me enganar. É melhor me contar a verdade.



Koremitsu estufou as bochechas enquanto Hikaru batia palmas com suas mãos brancas e empoadas e pedia desculpas.



— Desculpe. Na verdade, acho que tive uma pequena perda de memória quando morri. Não consigo me lembrar agora.



Tá de sacanagem comigo?



Koremitsu lançou um olhar interrogativo, Hikaru sorriu de volta mais uma vez.



— No entanto, é raro ter tal promessa, e como nos encontramos mesmo depois da minha morte, gostaria de lhe fazer outro pedido.



— Outro pedido, você diz?



Hikaru assentiu.



— Sim. Não tenho dúvidas de que estou preso a você, então espero poder contar com sua ajuda aqui.



Seus olhos encaravam Koremitsu com uma seriedade inexplicável, como se tudo ao redor fosse sucumbir ao poder deles.



O príncipe da escola.



Koremitsu enfim conseguiu entender por que todos na escola deram esse apelido a Hikaru; era uma referência à sua presença majestosa e régia.



— Posso ser perdoado por qualquer pessoa, não importa o que eu faça.



Koremitsu quase concordou em fazer qualquer coisa que a outra parte quisesse depois de ver seu sorriso adorável.



Porcaria!



Não sabia o porquê, mas seus instintos o alertavam lá do fundo.



Sentiu a desagradável sensação de que seria arrastado por Hikaru se as coisas continuassem assim. A percepção o atingiu como um raio.



— Koremitsu! Por quanto tempo vai ficar falando sozinho no banheiro desse jeito? Virou amigo da barata por acaso? Saia quando terminar!



Koharu voltou a bater no painel de vidro para gritar.



— Oh, tudo bem.



Koremitsu rapidamente se abaixou para pegar um balde para cobrir a parte inferior do corpo.



— Ela disse que sou uma barata?



Hikaru refletiu, aparentemente devastado pela comparação.



***



— Wow! Um Chabudai². E pensar que ainda existe no Japão.



Enquanto Koremitsu, Koharu e seu avô jantavam na sala de jantar, Hikaru circulava pela casa, parecendo um magnata principesco que se deparou com a casa de um humilde camponês. Ele exclamava qualquer coisa que encontrasse, observando com olhos arregalados o conteúdo de cada cômodo, exibindo um sorriso impassível enquanto vagava.



— Ah, o inhame está cozido! Parece realmente delicioso, oleoso assim, Tão bom. Tem aquele toque maternal. Quero experimentar também!



Koremitsu, que começou a pegar seus hashis para satisfazer sua língua salivante, sentiu sua fome diminuir um pouco quando os olhos famintos o sondaram na mesa.



Você não é um fantasma? Não pode comer.



Koremitsu queria falar, mas se conteve ao ver Koharu e seu avô continuarem a refeição com suas expressões habituais.



Pelo visto o vovô e Koharu não conseguem mesmo vê-lo.



A prova recorrente de sua situação causou outra dor de cabeça para Koremitsu.



— Ei, esta caligrafia foi escrita com maestria. Quem a escreveu?



Vovô.



— Para que serve essa decoração de guaxinim aqui?



Quem sabe?



— Ah, esta porta de correr está coberta com washi³ colado. Ah, aqui também! Vocês consertaram sozinhos? Que jeitoso da sua parte.



Não fique se empolgando por coisas tão pequenas.



Pegando seus de novo seus hashis, lançou uma careta para Hikaru.



— Koremitsu, o que você está olhando afinal de contas?



Koharu fez a pergunta, não em busca de uma resposta, e sim para dar um aviso a Koremitsu. O venerável avô de Koremitsu, nascido antes da guerra, também o repreendeu.



— Não deixe o arroz cair por aí. Você receberá a retribuição divina.



Koremitsu encolheu o pescoço.



Hikaru estava, enquanto isso, admirando a porta de correr com fascínio.



— Ah, está coberto com chiyogami4 e cortado no formato de um casco de tartaruga...



Koremitsu pensou que isso era tudo o que Hikaru estava fazendo.



— Sr. Akagi, Bonecas Kokeshi5! As bonecas Kokeshi estão enfileiradas. O senhor coleciona? Elas são muito fofas! Esses olhos estreitos são realmente uma forma de beleza japonesa!



Aqui Hikaru voltou a ficar encantado com diversas bugigangas.



Cala a boca aí! Você já está morto!



Koremitsu se conteve para não falar por irritação por mais um momento naquele dia.



Seria problemático se a forma etérea de Hikaru invadisse alguma habitação da casa e acabasse agachado em um canto como um espírito maligno em busca de vingança.



De qualquer forma, sentiu a necessidade de se apressar em tirar Hikaru de vista, para que Koharu e seu avô não entendessem mais nada mal.



Koremitsu costuma comer uma porção extra de arroz no jantar, porém esse luxo teve de ser renunciado.



— Estou indo.



Ele soltou um rosnado baixo enquanto murmurava.



— Por que está agindo com tanta frieza quando só vai voltar para o seu quarto? Quer invadir uma base da Yakuza ou algo assim?



Koharu respondeu algo.



***



— Primeiro, sente-se antes de começar.



Koremitsu voltou para seu quarto, fechou a porta, jogou uma almofada no tatame e ordenou a Hikaru.



— Sr. Akagi, fico feliz que esteja me convidando com uma almofada também, contudo não acho que faça sentido me dar uma. No entanto, entendo suas intenções.



Hikaru dobrou um pouco os joelhos sobre a almofada enquanto flutuava no ar.



Koremitsu começou.



— QUEM ESTÁ TE RECEBENDO AQUI? FICO TODO ARREPIADO QUANDO TE VEJO FLUTUANDO NA MINHA FRENTE ASSIM. PELO MENOS COLOQUE OS PÉS... não, espera, os joelhos no chão. ENTÃO, SE QUER QUE EU TE OUÇA AQUI, É MELHOR ME MOSTRAR QUE ESTÁ SINCERAMENTE TENTANDO ME OUVIR AQUI!



O rosto de Koremitsu mudou de cor enquanto gritava.



— Ok, entendi.



Pra sua surpresa, Hikaru se ajoelhou no chão e juntou os joelhos para sentar-se da forma correta na almofada.



Mesmo assim, estava praticamente sentado em um “Seiza”6, e suas costas pareciam mais retas do que as de Koremitsu, que estava sentado com as costas arqueadas. Era perfeito, exceto pelo fato de que a almofada não afundava nem um pouco.



— Está bom? Você está disposto a me ouvir agora?



Hikaru exibiu seu característico sorriso sedutor.



Como é que digo isso? Esse cara... Consegue mesmo arruinar o meu ritmo.



Koremitsu pensou enquanto se sentava de pernas cruzadas no chão.



— Bem, agora vou te ouvir.



— Se possível, espero que também possa me ajudar. Na verdade, tem uma garota que eu não consigo deixar ir embora no meu coração. O aniversário dela está chegando, e no último dia da Semana Dourada, enviei uma carta anexada com Lilases para a sua casa.



Por que precisa usar caules de plantas para amarrar o envelope? Não pode mandar uma mensagem normal?



Koremitsu ficou perplexo.



Então, os olhos e lábios de Hikaru pareciam emitir doçura enquanto lia em voz alta o conteúdo do envelope.



Na carta, ele escreveu.



— “Este é o primeiro presente. Preparei mais 6 presentes para o seu aniversário. Aguarde ansiosamente.”



As mulheres são gananciosas o suficiente para não se satisfazerem sem receber 7 presentes? Não precisa gastar muito dinheiro se tiver que dar 7 presentes em cada aniversário? Antes mesmo de falarmos sobre essa parte, como conseguiu pensar em quais 7 presentes dar?



Para Koremitsu, dar presentes para uma senhorita era um conceito de outra dimensão.



Hikaru parecia melancólico agora.



— Como pode ver, já estou morto e não posso cumprir minha promessa. Poderia, por favor, entregar os presentes em meu lugar?



— Então, está me pedindo para fazer algo relacionado a uma garota aqui.



— Sim. Para mim, é uma garota muito importante.



As sobrancelhas de Hikaru se ergueram, demonstrando seu charme sempre doce e calmo. Koremitsu, por outro lado, exibia uma expressão infeliz contrastante.



— Não vou fazer isso.



— Hã...? E-Espera aí, o senhor não está me rejeitando rápido demais, Sr. Akagi?



Esta foi a primeira vez que Hikaru, que era tão despreocupado mesmo depois de se tornar um fantasma, mostrou sinais de vacilação.



Koremitsu continuou franzindo a testa.



— Não vou lidar com pedidos envolvendo garotas.



— Por que?



— Vovô me disse para não me aproximar de garotas.



— Como assim?



— Há 20 anos, sua esposa, minha avó, disse que queria começar uma segunda vida e deixou uma carta de divórcio antes de partir.



Desde que isso aconteceu com ele, o slogan do avô era que “as mulheres são todas assim”, e ele frequentemente brigava com a tia de Koremitsu, Koharu, que era divorciada e costumava dizer da mesma maneira irônica que “os homens são todos assim”. De acordo com Koharu, era de se esperar que a avó de Koremitsu não suportasse seu avô.



— Isto... Pode ter sido um choque para seu avô, mas sua avó não pode representar todas as mulheres.



— Durante o primeiro ano do ensino fundamental, uma mulher chamada minha mãe abandonou meu pai e eu, e fugiu com outro homem.



— Uw!



Hikaru ficou sem palavras.



— E também, o cara com quem ela saiu era meu professor.



— Ehh...



— E então, meio ano depois, meu pai morreu de ataque cardíaco.



— É-É mesmo. Você passou por momentos difíceis até agora. Seu... Seu pai também sofreu uma tragédia e tanto... Porém essa minha namorada não me entregou os papéis do divórcio nem fugiu com outro cara. Não é como se eu quisesse que você saísse com ela ou se casassem. Só quero que a mande os presentes no seu aniversário, e aí posso ir para o céu feliz. Viu, vai ser chato se eu ficar ao seu lado o tempo todo, né?



O significado oculto naquelas palavras era que Hikaru estava ameaçando Koremitsu com assombrações contínuas, a menos que seu pedido fosse atendido. Hikaru manteve uma expressão de pena.



— Por favor? É uma promessa muito importante. Não tenho amigos de verdade, sendo esse o caso só posso te pedir aqui, Sr. Akagi.



— Vai vir mesmo com esse papo de que não tem amigos? Continue tentando me enganar. Você não é um socialite extremamente popular?



Ele nasceu com uma aparência deslumbrante e sua personalidade era tão cativante que chegava a ser tão revigorante. Também era o “Príncipe” da escola, alguém cercado por seguidores subservientes. Para Koremitsu, era irritante que tal pessoa pudesse dizer que “não tinha amigos”.



Como esse sujeito irreverente pode entender a dor de ser deixado de lado quando os professores instruem os alunos a “formarem duplas” durante as aulas de Educação Física ou Artes?



Todos se dispersaram como aranhas quando eu estava andando por ali, pedindo informações sobre como chegar à sala dos professores. Não havia ninguém com quem pudesse conversar durante os intervalos das aulas, uma duração de dez minutos que parecia muito mais longa na solidão, e só conseguia usar esse tempo para continuar revisando trabalhos. Como um jovem ingênuo como você consegue entender a dor de ser excluído?



Hikaru deu de ombros apesar da dor de Koremitsu, murmurando com tristeza.



— É verdade... Sempre fui popular com as meninas desde o jardim de infância, e todas as meninas da turma queriam ser minhas namoradas. Durante as reuniões de classe no ensino fundamental, elas tiveram uma longa discussão, que se resumia a: “Hikaru pertence a todas, então ninguém pode fugir com ele.”, e esse tipo de pacto foi firmado.



Está se gabando? Além disso, aquelas alunas do fundamental estavam só incomodando ao usar a maioria dos votos para decidir isso.



Quanto mais Koremitsu ouvia, mais seus lábios começavam a se contorcer em uma carranca.



— Mas, por causa disso, os meninos muitas vezes me excluíam.



As orelhas de Koremitsu de repente se contraíram com a admissão.



Você foi... Excluído?



— Aconteceu a mesma coisa durante a aula de Educação Física. Ninguém queria formar dupla comigo.



As orelhas de Koremitsu se contraíram de novo.



— Foi a mesma coisa quando avancei de ano. Fui chamado por um grupo no fundo do ginásio, que disse que eu tinha roubado as namoradas deles. Estavam querendo arrumar confusão comigo... Espalhando todo tipo de boatos ruins a ponto de nenhum dos garotos da turma querer me defender...



Koremitsu imaginou aquela cena e sentiu uma dor no peito, como se houvesse algo alojado dentro dele.



Podia entender mais do que ninguém a dor de ser excluído devido a rumores difamatórios.



Ainda se lembrava de como tinha que almoçar sozinho durante o intervalo do meio-dia... Como movia seus hashis em silêncio, com as risadas e conversas barulhentas dos colegas ao fundo. Lembrou-se dos colegas indisciplinados, tomados pelo tédio, que rabiscavam compassos sobre sua mesa, chamando-o de nomes indesejáveis ​​como “Sam”, “John” e outras coisas enlouquecedoras.



Toda vez que relembrava essas memórias, seus olhos ficavam úmidos.



É mesmo? Então esse cara entende tanta dor?



Então viveu dias amargos semelhantes?



Ele quer cumprir uma promessa feita a uma garota que não consegue abandonar em seu coração, porém não tem amigos. Está tão solitário que só pode contar comigo.



É assim? De verdade?



Droga, é realmente insuportável.



— Não... Não tem jeito... Vou ajudar a enviar os presentes no seu lugar.



Koremitsu piscou os cílios e, desviando o olhar de Hikaru, falou com um tom rígido.



Hikaru deu um suspiro de alívio.



— Obrigado! Sabia que o senhor me ajudaria, Sr. Akagi. Sério, obrigado.



As palavras tão carregadas de genuína gentileza e confiança fizeram algo quente subir pela garganta de Koremitsu.



— Eu tenho que ir... Ao banheiro.



Ele apressou o passo para sair do quarto e evitar que as gotas ácidas acumuladas nos cantos dos seus olhos fossem vistas.



Koremitsu abriu a porta do banheiro, enxugando as lágrimas ao entrar. Soltando um suspiro de alívio, tirou a calça do pijama e a cueca de uma vez...



— !



Havia um Hikaru arrependido flutuando acima do vaso sanitário.



— QUÊ? POR QUE ESTÁ ME SEGUINDO ATÉ AQUI? E AINDA ESTÁ DE OLHO NAS MINHAS PARTES ÍNTIMAS! VOCÊ É UM PERVERTIDO?



— Eu vi a frente e o verso quando você estava no banheiro.



Diante de um Koremitsu muito nervoso, Hikaru respirou fundo e fez uma expressão severa.



— Há algo lamentável que preciso lhe contar.



— O-O que é?



Koremitsu prendeu o ar nos pulmões enquanto ouvia, Hikaru tentou o seu melhor para aliviar o choque enquanto explicava num tom calmo.



— Parece que não importa aonde você vá, serei arrastado junto. Por favor, não se incomode e continue o que veio fazer.



Notas:
1. A Semana Dourada é a junção de quatro feriados nacionais no final de abril / início de maio, que ocorre no Japão. Combinada com alguns fins de semana, torna-se uma das datas preferidas das pessoas, o que causa uma grande aglomeração nas cidades.
2. Chabudai é uma mesa de refeições comum no Japão. Em geral, elas são de forma retangular ou circular, e muitas são dobráveis.
3. Washi é um tipo de papel especificamente feito no Japão a partir das cascas das árvores das amoreiras. Existem vários objetos feitos a partir deste material como por exemplo as Washi Tapes, fitas adesivas que utilizam este material na sua constituição.
4. Chiyogami é um tipo de papel japonês com desenhos coloridos, inspirados na beleza da natureza. No início, era pintado à mão em papel washi e atualmente é um artesanato clássico com uma grande variedade de estampas.
5. Kokeshi são bonecas japonesas, originárias do norte do país. Elas são manufaturadas em madeira, possuindo um tronco simples e uma grande cabeça, pintadas com finas linhas para delinear o rosto. Seu corpo tem desenhos, pintados sobre fundo vermelho, preto, e algumas vezes amarelo, envernizadas por uma camada de cera. Uma marcante característica das Kokeshi é a ausência de braços e pernas. Na parte inferior é marcada com a assinatura do artista.
6. Seiza é a forma tradicional japonesa de sentar-se ajoelhado, apoiando as nádegas nos calcanhares, com a coluna ereta, usada para demonstrar respeito, disciplina e concentração em cerimônias, meditação e artes marciais, embora possa ser desconfortável para iniciantes devido à pressão sobre joelhos e pernas, sendo ensinada desde cedo como um sinal de etiqueta cultural.

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