Volume 03: Demon Deathchase — Capítulo 18: O Jogo de Matar
Parte 1
O crepúsculo começava a envolver a floresta numa bifurcação da estrada que serpenteava suavemente.
Com cuidado, a garota apagou uma lâmpada elétrica que lembrava um candelabro antigo. A escuridão azul inundou o interior. O dia que era só dela estava terminando, e o mundo que era de ambos estava começando.
A garota gostou do som da tampa do caixão preto que estava num canto do veículo se abrindo. Logo, a mão dele apareceu e empurrou a tampa. Ao se levantar, se espreguiçou uma vez, como era seu costume. E então, puxando uma cadeira, sentou-se à frente da garota.
— Obrigado.
Foi o que ele disse. Em agradecimento por ela ter apagado as luzes. Jamais pensaria em dizer que deveria tê-las deixado acesas. Obrigado. Apenas isso.
O romance do casal começara na floresta, na primavera. A carruagem do viajante atingiu a moça quando esta saiu correndo de repente atrás de um pássaro, e o único ocupante cuidou de seus ferimentos... Uma história nada incomum, mas como os personagens principais eram um humano e um nobre, só poderia terminar em tragédia.
Às vezes, porém, havia exceções. A moça sabia que estava lidando com um nobre. E o nobre sabia que estava lidando com uma humana. Mesmo assim, não havia medo nem desprezo entre eles. Apenas o fascínio mútuo.
O passeio dos dois pela floresta foi agradável. Pela primeira vez na vida, a moça não temeu a escuridão. O nobre fora bondoso o suficiente para ensiná-la. Mostrara que a noite também fervilhava de vida.
A moça ouviu o fluir de um rio. Viu os peixes-lua saltando contra o disco lunar. Sentiu o perfume do jasmim-da-noite. Ouviu a poesia que o vento recitava e um coro de pequenas rãs invisíveis. A noite também estava repleta de luz... E ele estava invariavelmente ao seu lado.
Ele sentia o mesmo que ela. Um herege entre a Nobreza, alguém que não considerava a humanidade inferior. Um barão que também amava o dia, contudo aguardava a destruição de sua espécie sem jamais ter visto a luz do sol. Por fim havia encontrado um objetivo, um fim para sua peregrinação sem rumo. A garota lhe dera isso.
Suas viagens deixaram um gosto amargo em sua boca. Fugindo de aldeões e Caçadores determinados a matar Nobres, cruzara uma geleira brutalmente fria. Correra por trilhas nas montanhas, açoitadas por ventos uivantes e furiosos. Tudo teria sido aceitável se sua jornada tivesse algum propósito. Embora estivesse a caminho da extinção, sua própria destruição ainda estava muito distante.
E então conhecera a garota. Uma jovem que se movia por uma floresta repleta de seres vivos, absorvendo a luz do meio-dia. Que importância tinha a posição social? E daí se fossem de espécies diferentes? Ambos sabiam quem era importante um para o outro. Era só isso.
Este encontro fortuito entre o dia e a noite começou com um olhar gentil e o tímido e terno entrelaçar de mãos. A garota tinha acabado de completar dezessete anos. Ele compreendia as esperanças e os medos em seu coração. Sendo assim, um nobre e uma humana não poderiam ficar juntos? Não, não neste mundo.
Foi então que abordou o assunto.
— Você iria embora comigo?
A garota assentiu.
— Vou para qualquer lugar. Contanto que eu esteja com você.
E então os dois trocaram seu primeiro beijo. Desprovido de sede de sangue ou do medo de ser devorada, foi um beijo febril, mas também recatado.
A tragédia aconteceu na noite seguinte. Ao invadir a casa da garota, incapaz de assistir à surra que o pai lhe dera quando soube que sua filha iria fugir. Pela primeira vez, este nobre, impulsionado pelo ódio, sugou o sangue de um humano. No entanto, não percebeu que o pai tinha um tipo raro de constituição que reagia de forma estranha aos ataques de vampiros.
Se um humano mordido se tornava uma criatura sedenta de sangue como a Nobreza ou se era deixado como uma mera múmia, dependia da intenção do Nobre que drenava seu sangue. Embora extremamente raro, também havia alguns casos em que o que acontecia com a vítima contrariava os desejos do vampiro. Um indivíduo drenado podia ficar como um humano com muito pouco sangue, recusando-se a se transformar. E um homem emaciado, deixado para morrer de perda de sangue, podia voltar como um vampiro.
Todos aqueles que o pai da garota devorava se transformavam no mesmo tipo de demônio com uma única mordida. Aqueles que atacava buscavam novas vítimas e, no decorrer de uma única noite, toda a vila foi transformada em uma pseudo-nobreza. Mas a garota havia sido deixada inconsciente pela intensa surra que recebera. Ela não vira nada disso.
Quando acordou, o olhar de seu amado a saudou. E foi assim que sua jornada começou. A jornada para os Estados de Claybourne.
— Consegui o que queria na aldeia, porém parece que não conseguiram se livrar de nosso perseguidor. — murmurou o Nobre enquanto revisava os eventos do dia a partir das gravações feitas pelos olhos eletrônicos. — Muito provavelmente, esse outro homem com os estranhos poderes também descobriu nosso destino. Dada a velocidade desta carruagem, é bem possível que estejam nos esperando à espreita. Teremos que tomar a iniciativa.
Enquanto a garota o encarava com um olhar interrogativo, ele a informou que chegariam ao destino em breve e saiu do veículo.
Os dois acompanhantes que cavalgavam ao lado da carruagem se curvaram. Um estava a cavalo e o outro, uma mulher, estava em uma pequena charrete para um único passageiro.
— Saudações! — disse o primeiro guarda. — Sou Mashira.
— E eu sou Caroline. Aguardávamos ansiosamente sua presença, senhor.
— Parece que estamos com um a menos. — observou Mayerling, com um tom e porte condizentes com seu título de nobre.
Mashira assentiu.
— Sim. Está à espreita do inimigo na floresta à frente.
— Do inimigo? — perguntou o nobre. — Sozinho?
— Sim, senhor.
— Não há motivo para temer... — disse Caroline em tom misterioso. Embora Mayerling não soubesse de nada, o ombro descoberto por seu vestido índigo não mostrava mais nenhum vestígio de ferimento. Com o olhar fixo no vampiro enquanto subia para o assento do cocheiro, ela olhou para seu patrão e disse.
— Ele não fará nada. Apenas foi dar uma olhada nos outros Caçadores que você mencionou ao Ancião.
— Os outros Caçadores? — o belo semblante de Mayerling se contorceu em uma careta, e afirmou em seguida. — Estou bem ciente das habilidades de qualquer outro Caçador de Vampiros além dele. Não, esqueça isso... O jovem que causou estragos em sua aldeia também é um deles?
— É bem provável. — respondeu Mashira.
Caroline acrescentou.
— Aquela mulher no carro que mencionou também é uma, senhor. E pode haver outros. Portanto, a Bengé cabe a honra do primeiro encontro...
Mayerling permaneceu em silêncio. Através de suas gravações, havia descoberto sobre a garota que os atacara enquanto descansavam no Abrigo e sua batalha contra as defesas automatizadas. Tinha quase certeza de que a garota havia sofrido ferimentos graves no Abrigo, porém se seguia com vida, seria uma adversária problemática. Ainda mais se estivesse em conluio com aquele jovem da praça da aldeia...
— Bem... — disse o Nobre aos dois. — Embora possa ser um de seus companheiros Barbarois, só conheço sua reputação, não seus poderes. Não importa quão grandes sejam suas habilidades, não será uma tarefa fácil se livrar de todos os inimigos em meu encalço. Ainda mais sozinho...
Seus dois guarda-costas se entreolharam. Mayerling talvez não tenha percebido que estavam sorrindo.
— Bom, chegaremos à vila de Barnabas em breve. — disse Caroline. — Assim que ele retornar, talvez queira perguntá-lo pessoalmente a respeito. No entanto posso afirmar apenas isto: se alguém já o encontrou... Ou pior, está perseguindo-o, sem dúvida morrerá antes do fim desta noite. — suas palavras transbordavam tanta confiança que até mesmo Mayerling, nobre como era, ficou perplexo por um instante. — Entretanto, deixando esse assunto de lado, não nos faria a honra de apresentar a hóspede que está lá dentro? Aconteça o que acontecer, pode ser um tanto problemático se não soubermos como ela é.
— Tem razão! — disse Mashira, assentindo com a cabeça.
Após pensar um pouco, Mayerling se inclinou e bateu de leve na porta.
— Por favor, mostre-se. — pediu.
Embora não estivesse claro como ela o ouvira lá dentro em meio ao rugido da carruagem em alta velocidade, o vidro azul da janela se abriu e um rosto deslumbrante surgiu. Seu rosto estava tingido de apreensão pela escuridão.
— Oh! — Mashira exclamou, e suas palavras não eram apenas bajulação vazia.
— Que beleza! — acrescentou Caroline, mas seu olhar ardente estava concentrado na pessoa no banco do condutor.
— Obrigado, meu amor. — disse Mayerling, e a janela se fechou.
Naquele momento, em uma voz minúscula que nem mesmo seus sentidos nobres conseguiam detectar, alguém riu baixinho, murmurando.
— Linda e charmosa, do jeito que eu gosto. Acho que vou fazê-la minha...
Era claramente a voz de uma quarta pessoa, alguém cuja identidade não podia ser explicada.
O tempo bom daquela tarde havia se dissipado, e nuvens carregadas inundavam o céu noturno.
Uma figura vestida de preto galopava pela rua que a carruagem e seus acompanhantes haviam percorrido apenas uma hora antes. Não havia lua, contudo a figura de preto era tão bela que praticamente emanava luz própria. Com a velocidade com que galopava, poderia recuperar aquela vantagem de uma hora em menos de vinte minutos, se tudo corresse bem. No entanto, assim que chegou ao coração da floresta, fez uma brusca parada.
Embora houvesse nuvens, a escuridão não era completa. Aos olhos de D, era como se fosse meio-dia. Cerca de nove metros à frente de onde parou o cavalo, um galho gigantesco de árvore se estendia sobre a estrada, e uma parte dele, em particular, projetava-se. Abaixo dessa projeção, pairava uma sombra longa e fina. Somente D a viu como de fato era. Um dos três acompanhantes de Mayerling... Bengé.
De acordo com o que Mashira havia contado ao nobre pouco antes, seu compatriota viera até ali para encontrar D. E, dado o trabalho que cada um havia realizado, um encontro com o Caçador significaria uma batalha até a morte. Bengé já vira D em ação, desde a escaramuça na aldeia dos Barbarois até a forma como D protegeu Leila na clareira, e devia estar ciente do quão poderoso oponente era. O fato de Bengé ter aparecido para confrontá-lo apesar de tudo o que sabia indicava que tinha maior confiança em suas habilidades de luta.
— Olá! — exclamou Bengé, erguendo sua mão esguia em uma saudação alegre, mas seus olhos não expressavam tal emoção. — Lamento informar que não poderá passar por aqui. Ah, porém este é o único caminho. Então parece que um de nós terá que esperar à beira da estrada... Como um cadáver!
Bengé deve ter imaginado que seu tom presunçoso provocaria algum tipo de reação. Entretanto ele soltou um grito de susto ao ver D voando do cavalo e sobre sua cabeça com a velocidade de um raio.
De fato, falar era inútil. A espada de D, que nunca retornava à bainha sem antes provar o sangue de seus inimigos, partiu o crânio de Bengé ao meio antes que este pudesse fugir. O motivo pelo qual D girou em seguida ao pousar de volta no chão foi a falta de resistência que sua lâmina ofereceu. Não havia sinal de Bengé, claramente dividido ao meio, apenas um pedaço de pano preto que caiu aos pés do Caçador. O pano que Bengé estava vestindo.
Uma risada estranha e abafada escapou da nuca de D.
— Você me surpreende, um homem temível. Se eu fosse qualquer outra pessoa teria sido cortado ao meio.
D não se moveu. Mesmo com seus sentidos extremamente aguçados, não conseguia dizer onde Bengé estava. Como diz o ditado, a voz de Bengé surgiu do nada.
— Bem, então... — disse Bengé. — Acho que agora é minha vez.
A mão direita de D moveu-se. Dois lampejos de luz brilharam e faíscas voaram da base do pescoço de D com um som belíssimo. Bengé havia golpeado D com uma adaga depois de se materializar de repente atrás do Caçador, e as faíscas resultaram da adaga sendo aparada pela espada que voou de volta com um simples movimento da mão do Caçador.
A ponta da espada de D varreu horizontalmente enquanto girava, todavia não havia sinal de Bengé. D impulsionou-se do chão. Saltando cinco jardas, assim que tocou o solo, saltou outra vez. Incapaz de detectar alguém, pousou de volta do seu segundo salto. E então ouviu.
— Hehehe... Não adianta, não adianta mesmo. — a voz de Bengé riu. — Enquanto o outro você estiver aqui, eu também estarei.
Na floresta à sua frente, uma sombra surgiu silenciosamente. A mão esquerda de D entrou em ação, transformando-se em um relâmpago branco que cortou o ar. Mas a agulha de madeira que lançara apenas pregou um pedaço de tecido preto fino no tronco de uma árvore próxima. Além da árvore, outra sombra surgiu.
Será um convite? Pensou o Caçador. Ótimo. D correu para a floresta. Um convite para segui-lo da estrada até a floresta... O que Bengé tinha em mente?
A atmosfera quente e úmida o pressionava impiedosamente por todos os lados. Um som agudo rasgou o vento. Os raios prateados que voavam em rápida sucessão de ambos os lados de D foram desviados, um a um, por sua lâmina.
— Oh, nada mal, devo dizer. — a voz de Bengé tinha um tom de admiração que não era nem um pouco exagerado.
— Você disse que enquanto eu estivesse aqui, você estaria aqui, não disse? — comentou D sem preocupação. Não havia qualquer sinal de vanglória por ter acabado de frustrar os ataques violentos. — Agora entendo. Sei qual é o seu poder...
— O quê? — Bengé gritou. Suas adagas voaram, como se para disfarçar seu choque e indignação. Uma veio direto à sua frente, a outra de um matagal bem atrás de D... E foram quase simultâneas. O Caçador enfrentaria múltiplos oponentes?
Desviando os ataques com facilidade, D se abaixou. No instante em que um clarão branco passou zunindo sobre sua cabeça, balançou a mão esquerda para trás. Podia sentir a agulha de madeira áspera que segurava penetrar na carne.
Houve um grito de dor.
Dando um passo à frente com cautela, D fez algo estranho. Ao se virar para o que quer que tivesse acabado de esfaquear, cravou outra agulha no chão aos seus pés ao mesmo tempo.
— O que houve? — perguntou — Até que essa agulha seja retirada, não poderá entrar na minha sombra, não é?
Parecia que alguém estava rangendo os dentes, e então algo caiu no chão. Uma agulha de madeira manchada de sangue. Tinha sido arremessada de um pedaço de chão onde não havia absolutamente nada. Jogada para fora da sombra de uma árvore mal iluminada pelo crepúsculo.
Enquanto você estiver aqui, eu estarei aqui, disse ele a D. Se concentrar, poderá me ver. Não me ve porque pensa que não consegue... Esse era o segredo que Bengé havia revelado a Leila.
Bengé espreitava nas sombras. Porém não era tudo. Sua habilidade era tamanha que nem mesmo D conseguia detectar sua presença quando este se esgueirava para a sombra do Caçador. Além do mais, a maneira como seus ataques vinham de ângulos impossíveis sugeria que não precisava de tempo algum para migrar de um pedaço de sombra para o outro. O pequeno atraso entre os ataques era, na verdade, apenas o tempo necessário para mirar e arremessar uma adaga. Assim que se esgueirou para a sombra do seu inimigo, tornou-se um assassino invencível. Contanto que esse inimigo não fosse D.
— Estancou o sangramento, não é? Uma pena que a neblina esteja chegando. — disse D. Antes que terminasse de falar, um denso fluxo branco surgiu das profundezas da floresta e borbulhou a seus pés.
A região crepuscular perdeu sua luz.
Sem luz, nenhuma sombra pode se formar.
Só D viu. Viu a figura no chão a uns três metros à frente, agarrada à terra como um verdadeiro lençol de pano preto. O duelo deles estava praticamente decidido.
Contudo, naquele instante, a sombra lançou uma pequena bola de luz. Um brilho ofuscante preencheu o mundo branco leitoso, e as árvores projetaram sombras pelo chão.
— Desta vez você me venceu. No entanto nos encontraremos de novo! — gritou Bengé, suas dolorosas palavras de despedida ecoando do fundo da floresta.
D saiu da floresta e montou em seu cavalo. Em poucas horas, estaria ao alcance de seu alvo.
Parte 2
— Hmph. Bengé não é tão bom quanto se faz parecer. Pelo que parece levou uma bela surra. — Mashira cuspiu as palavras depois de colocar a orelha do chão e levantar a cabeça.
— Como imaginei, estava além da sua capacidade, não é? — foi Mayerling quem falou. Ele, Mashira e Caroline acamparam no meio da floresta naquela noite, decidindo que seria melhor esperar o retorno de Bengé.
O aroma apetitoso de aves assando na fogueira, espetadas em palitos, pairava ao redor deles. Mashira pegou um pedaço e ofereceu a Mayerling.
— Gostaria de um pouco?
— Não.
— Como quiser. A nobreza não precisa de carne, certo?
O guarda-costas Barbarois comentou como se já soubesse de tudo, mas era mentira. Havia malícia em seu tom de voz. Mashira atacou a carne dourada, enchendo as bochechas. Seus dentes amarelados continuaram a triturar a carne com um som vulgar.
Sem sequer olhar para o compatriota, Caroline fitou o perfil de Mayerling. Talvez já tivesse comido algo, pois ignorou o frango assando de Mashira. Não eram exatamente os olhos de alguém apaixonado; os dela estavam febris e nublados de desejo.
— Se falhou, o inimigo virá atrás de nós. Eles nos pegarão se ficarmos aqui esperando. É melhor partirmos imediatamente.
Talvez irritado com o comportamento rude de Mashira, o tom de Mayerling foi suficiente para gelar o sangue. Ele se virou abruptamente da fogueira.
— Por favor, fique tranquilo. — disse Caroline. — Nosso inimigo não chegará tão cedo. Não se estiver perseguindo outra carruagem.
— Outra carruagem? — perguntou Mayerling, virando-se para encará-los de volta.
— Correto! — respondeu ela. — Uma carruagem fantasma, por assim dizer. É uma das habilidades de Bengé. Uma vez que alguém comece a persegui-la, jamais a alcançará, nem em um milhão de anos.
— Lamento dizer que não tenho fé nas habilidades de alguém já derrotado em batalha. — disse o Nobre. — Ocorre-me agora que talvez manter vocês três conosco tenha sido um erro.
— O que está tentando dizer? — perguntou Caroline, agitada. — Agradeceria se não julgasse nossas habilidades como insatisfatórias apenas porque alguém como Bengé se mostrou um fracasso. Ah, aquele Bengé é um idiota. Teríamos nos saído melhor se tivéssemos deixado aquele maldito Caçador continuar nos perseguindo.
Sob seus lábios vermelhos, seus dentes brancos rangiam.
— Vocês irão ver nosso verdadeiro poder, e não me refiro apenas a algum dia. Talvez já amanhã. Acredito que há outra matilha de cães de caça em seu encalço.
— Sim, Mashira tem razão. — disse Caroline. — Amanhã, unirei forças com Bengé e matarei cada um daqueles cães, lembre-se das minhas palavras.
— Então, deixarei a tarefa em suas mãos. — disse Mayerling. — Todavia esta noite, partiremos. Nosso destino está próximo. Devemos chegar lá depois de amanhã. Um bom momento para nossa partida. Vou na frente. Vocês dois me seguem. Durante o dia, dormirei na floresta.
Em pouco tempo, o som estridente da carruagem se dissipou, e o casal que se curvara ao ver a carruagem partir ergueu a cabeça.
Com um leve sorriso, Mashira disse.
— Que direito tem um nobre fadado à extinção de dar ordens ao famoso Mashira, quando minha habilidade é conhecida em toda a aldeia dos Barbarois?
— Não há nada que possamos fazer. Ele é nosso patrão. Apenas temos que fazer nosso trabalho. — enquanto Caroline falava, observava a carruagem partir com um olhar febril.
Com um sorriso mais lascivo, Mashira perguntou.
— Você está apaixonada por ele?
— O que quer dizer com...
— Não precisa esconder. Ele é autêntico. Você é uma farsa. Não é como se eu não entendesse por que isso a atrairia.
— Cale a boca! Caroline mostrou os dentes. Seriam aqueles caninos afiados que emergiam entre os seus lábios? Não... Ela não podia ser uma dessas.
— Então, já estabelecemos isso. Tenho uma proposta. — Mashira sorriu sem qualquer traço de medo, exibindo sua melhor expressão para a bela mulher que o observava com olhos flamejantes.
— Qual seria?
— Desobedecemos ao Ancião... — disse Mashira. — Não seria melhor se agora descartássemos os padrões pelos quais os moradores da aldeia vivem?
Por um instante, pareceu que Caroline poderia se voltar contra seu companheiro por essa investida inesperada, mas então uma expressão de entusiasmo surgiu em seu rosto.
— Ah, então vejo que a mesma coisa lhe ocorreu. — continuou ele. — Se seguirmos as regras da aldeia, ele é nosso empregador, como bem disse a pouco. Não devemos desobedecê-lo nem nos voltar contra. Desejar-lhe seria absolutamente impensável. Porém, se ignorássemos as regras...
O olhar de Mashira percorria o rosto dela enquanto falava, e com suas palavras os olhos de Caroline reluziram com um brilho intenso. Eram os olhos de uma apóstata que havia depositado seu coração na discórdia.
— Pensei que entenderia meu ponto de vista. — continuou o homem Barbarois. — A única razão pela qual ele nem sequer olha para uma mulher deslumbrante como você é porque tem uma garota que ama, e que também o ama. Para falar a verdade, gosto da garota. Quero que seja minha. Nessas circunstâncias, não diria que nossos interesses coincidem?
Caroline não disse nada.
— Durante o dia, estará dormindo. Talvez a garota também. Se eu a pegasse e fugisse enquanto dorme, não teria mais ninguém em quem confiar durante o dia além de você. Ora, a garota não passa de uma simples humana insignificante. Será que algum nobre se apaixonaria de verdade? Já deve estar começando a mudar de ideia. Acha mesmo que iria procurá-la? Ainda que o fizesse, assim que eu lhe mostrasse provas de que eu mesmo a possui, garanto que esqueceria esse tal amor eterno deles. — Mashira riu baixinho.
— Tem razão.
As chamas projetavam sombras grotescas no rosto pálido de Caroline.
— Mas se quiser capturá-lo, corpo e alma, cada um dos Caçadores insignificantes que o perseguem terá que ser morto. Mesmo que o barão fosse meu jamais conseguiria dormir em paz se ao menos um único sobrevivesse. Se concordar em cooperar com a ideia que propõe, teremos que deixar nossos dois protegidos em paz e cumprir nosso dever até que possamos cuidar de todos os outros. O que acha?
— Por mim, tudo bem! — disse Mashira, assentindo com a cabeça.
— E quanto a Bengé? Segue vivo? — perguntou Caroline.
— Bem, não posso dizer com certeza. É quase certo que siga vivo até o momento em que usou suas habilidades de sombra... Está pretendendo envolvê-lo nisso?
— É óbvio! Assim que amanhecer, partirei em um ataque preventivo contra a escória que nos persegue e tentarei localizar Bengé ao mesmo tempo.
E onde estava D enquanto esses dois malfeitores tramavam seu plano? Ele galopava pela estrada, através da neblina, em linha reta desde o local onde encontrara Bengé. Na névoa de ambos os lados, conseguia ver imagens sombrias da floresta.
Lá na frente, o vento trazia algo. O rangido de uma carruagem. A distância era de cerca de um quilômetro e meio. Numa noite que só podia ser descrita como silenciosa, seria possível que os ouvidos de D captassem sons de tão longe?
Os cascos do seu cavalo batiam no chão com ímpeto crescente. A neblina tornou-se uma parede que o bloqueava, depois dissipou-se. Em pouco tempo, uma carruagem preta tornou-se visível à frente. Não havia sinal dos acompanhantes.
D avançou. Ainda que os acompanhantes estivessem lá, teria cavalgado para a frente sem medo. Do outro lado do teto da carruagem, só conseguia ver a cabeça do cocheiro. Este chicoteava com um chicote. A mão direita de D foi para a espada nas costas.
A distância continuou a diminuir. Talvez a aproximação do Caçador tivesse sido notada, pois o chicote agora chicoteava descontroladamente. A distância entre os dois aumentou ligeiramente e, em seguida, cresceu em poucos instantes. Teria sido impensável na velocidade normal do veículo. Parecia impossível que o corcel mais renomado, mesmo com um cavaleiro lendário, conseguisse acompanhá-los agora.
A carruagem mudou de direção. Deixando para trás um guincho torturado, como se seus parafusos estivessem prestes a se soltar, ela entrou na floresta à direita. Já tinha uma vantagem de cerca de 800 metros. E a distância continuava a aumentar.
Os calcanhares de D batiam nos flancos de seu cavalo. Pouco a pouco, os olhos do dampiro começaram a emitir um brilho fosforescente. Ele dissipou a névoa e a distância diminuiu.
D se aproximou da carruagem. Levantando-se com facilidade sobre a sela, saltou para o teto da carruagem. Foi como se todo movimento tivesse sido reduzido à câmera lenta quando D aterrissou com os pés primeiro no teto do veículo. Agachando-se, avançou para o banco do condutor. Ondas de suspeita cruzaram seu rosto. O cocheiro não fez qualquer tentativa de olhar para em sua direção, apenas continuou a brandir o chicote num movimento mecânico no ar. A mão de D agarrou o chicote flexível. Mesmo depois de ter sido retirado, o condutor tentou estalar o chicote.
D colocou a mão direita nos cabelos do cocheiro. No instante em que puxou, o Caçador foi arremessado para o ar por um violento choque. Por mais incrível que fosse, os cabelos em sua mão, a carruagem e os cavalos se transformaram em um pedaço de tecido preto que caiu no chão, e D sozinho, enredado pela inércia do impulso para a frente, foi lançado pelo ar.
Quando estava prestes a se chocar contra o chão, a barra de seu casaco se abriu como um par de asas gigantescas, e deu uma cambalhota antes de aterrissar com os pés primeiro no chão.
Olhou para o tecido preto que segurava na mão direita. Estendia-se pelo chão, cobrindo mais um metro e oitenta. Se aberto, seria suficiente para cobrir o chão de um pequeno cômodo. Devia ser necessário um pedaço pelo menos desse tamanho para fazer uma carruagem e um cocheiro, além de meia dúzia de cavalos.
Jogando o tecido fora, D voltou o rosto para o céu. Ouvira uma voz vinda de lugar nenhum, praguejando. A voz de Bengé. D contemplou o céu em silêncio. A leste, além de uma cadeia de montanhas, uma luz tênue e aquosa começava a brilhar. Era certo que a carruagem fantasma o estivesse guiando na direção errada para dar a Mayerling tempo para escapar. Em termos de distância, talvez tivessem ganhado mais um quilômetro e meio. Correndo a toda velocidade, D levaria menos de dois minutos para recuperar esse tempo.
Sem se preocupar em procurar a origem da voz incorpórea, D montou em seu cavalo sem dizer uma palavra e galopou para longe. Estava indo para o oeste, para onde o sol se põe.
Nos últimos dez ou vinte minutos, o homem estivera sentado em uma cadeira no centro da loja dilapidada, com os olhos bem fechados. Vestido de preto, o homem era magro como um grou faminto. O suor que cobria não apenas sua testa, como todo o seu corpo, não se devia apenas ao fluxo de sangue que escorria de seu flanco... Também parecia estar ligado a um longo período de esforço mental concentrado.
Quando uma tênue luz azul invadiu a loja coberta de poeira e areia, que aparentemente era um bar, o corpo inteiro do homem estremeceu e seus olhos se arregalaram. Um grito de “Droga!” escapou de sua boca. Deixando a tensão se dissipar de seu corpo, o homem se deixou cair na cadeira, desapontado.
— Parece que o subestimei... Aquela maldita aberração. Não acredito que alcançou minha carruagem sombria! — murmurou. — Bem, já que estraguei tudo, é melhor avisar Mashira o mais rápido possível...
Levantando-se com dificuldade, Bengé atravessou o chão empoeirado e saiu da loja.
De cada lado de uma rua que só o vento cruzava, casas em ruínas se alinhavam. O hotel, a farmácia, o sapateiro, o bar de onde acabara de sair... Todas as lojas tinham vidros quebrados como bocas negras escancaradas, e as placas acima das portas balançavam inertes. Era uma cidade fantasma.
Aqui, nesta cidade, a menos de dois quilômetros de onde lutara contra D, Bengé fizera o possível para cuidar de seus ferimentos e manipular sua carruagem sombria. Chegando ao centro da rua, Bengé tirou um tubo longo e fino do peito de seu manto preto, puxou o anel em uma das extremidades e o ergueu sobre a cabeça. Uma bola de luz laranja disparou, elevando-se com uma longa cauda atrás, e logo desapareceu.
Pouco depois, um anel de luz deslumbrante brilhou nos céus, mantendo esse brilho por alguns segundos antes de se dissipar.
— Espero que eles percebam isso e venham atrás de mim! — murmurou, ansioso. Quando começou a caminhar em direção ao cavalo amarrado em frente ao bar, ouviu o som de cascos e o motor de um carro vindo de uma das extremidades da longa rua central.
Sem nem mesmo ter tempo para esconder seu cavalo, Bengé saltou para o outro lado da rua, entrando na sombra do que parecia ser uma oficina de reparos de cavalos ciborgues. Teve de esperar apenas alguns segundos para que a carroceria de um ônibus que já vira antes aparecesse do outro lado da rua. Os motoristas deviam ter instalado algum tipo de vidro antirreflexo, porque não conseguia enxergar através do para-brisa.
As rodas pararam bruscamente bem em frente ao bar, a porta se abriu e dois homens saíram. Eram os mesmos caras com quem havia brincado na estrada pelas montanhas um dia antes.
Caçadores atrás de Mayerling.
Uma luxúria assassina brotou, preenchendo todo o ser de Bengé. As sombras dos prédios se estendiam pela rua. Entre elas e as sombras dos homens, havia um terreno aberto.
— Venham. Mais, mais perto. Venham para mim! — murmurou para si mesmo. Se ao menos parte da sombra de um deles tocasse a do prédio onde se escondia, poderia se fundir com a sombra dos homens num instante e se tornaria a Morte, invisível e inescapável.
O gigante que lembrava uma rocha se aproximou, com arco e flechas na mão. Por um instante, sua sombra tocou a do topo do telhado de um prédio. A forma de Bengé desapareceu. O jovem Caçador fixou os olhos no outro lado da rua e, quando o gigante mudou de direção e a sombra girou para trás dele, a figura sombria de preto que surgiu sem fazer qualquer som atrás do grande homem teve a base do pescoço coberta com o que pareciam ser finas penas prateadas.
Mais rápido que as flechas do gigante em seu voo indiscriminado, um fulgor branco cortou o corpo do homem Barbarois enquanto cambaleava para trás com um grito de angústia, para depois cair de bruços. Espirrando sangue negro em todas as direções, o corpo de Bengé se partiu ao meio logo acima da cintura. As duas partes de seu corpo caíram no chão com um baque surdo.
— É esse o cara, Leila? — Borgoff gritou na direção do ônibus enquanto examinava a nuca do inimigo e suas penas brilhantes... Agulhas da pistola prateada.
A janela do motorista deslizou para o lado, e o rosto de Leila e a pistola prateada apontada apareceram.
— Sim. Consegui minha vingança.
Prevendo que encontrariam o inimigo que a atacara antes, ela deixara a janela entreaberta desde o início e mantivera seus irmãos protegidos. E, embora Bengé não tivesse de forma alguma esquecido de Leila, seu desprezo por uma garota que já havia humilhado uma vez e sua confiança excessiva em suas próprias habilidades cavaram sua própria sepultura.
— Sem dúvida... Este é um dos três que Grove mencionou. Que diabos está fazendo aqui fora? — disse Kyle, cuspindo no cadáver.
— Droga, como vou conseguir dormir agora? — murmurou Borgoff. — Bem, pelo menos matamos um deles. Pelo que vejo, tem um cavalo amarrado ali, então diria que é o único por aqui. Porém só para garantir, verifique a área. Assim que tivermos certeza de que está limpa, faremos uma pequena pausa e depois partiremos.
— Espere, Borgoff. Podemos nos dar ao luxo de ir com calma? Precisamos avançar o máximo possível enquanto o sol brilha. — gritou Leila da janela, mas Borgoff interrompeu suas palavras com um gesto.
— Veja bem, ele agora tem dois condutores, já que a luz do dia não os incomoda. Além disso, ouvimos dizer que está indo para os Estados de Claybourne. Bem, se for esse o caso, conheço algumas rotas que podemos pegar para interceptá-los, então não precisa ficar tão nervosa. Pelo contrário, não me importaria de deixar D ir na frente para ver se ele e aquele Nobre conseguem se matar. Digo que é uma sorte termos chegado a esta cidade procurando um lugar para dormir, para variar.
Naturalmente, o irmão mais velho não percebeu a nuance de emoção que surgiu no rosto de Leila ao ouvir o nome de D.
— Mesmo assim, mano... — começou Kyle, enquanto limpava o sangue de sua lâmina crescente com o dedo. — Você sabe, há muito tempo atrás, os Estados de Claybourne costumavam ser um porto espacial. Não tem nada lá além de fileiras e mais fileiras de foguetes destruídos. Que diabos eles poderiam... Não, não acha que poderiam estar planejando ir para outro planeta, acha? Talvez para a lua de mel?
Mesmo enquanto ouvia Kyle explodir em gargalhadas, Leila fechou a janela.
Pela estrada soava o constante chilrear de passarinhos vindos da mata de ambos os lados.
Sob a luz do sol da primavera, D corria. Comparado à quando perseguira a carruagem sombria, sua velocidade havia diminuído um pouco, contudo era inevitável. O controle das rédeas por D forçava o cavalo ciborgue a galopar a velocidades muito além de suas capacidades. As articulações dos joelhos, os metabolizadores e outras partes já exibiam sinais de estresse severo. Havia dúvidas se o cavalo aguentaria mais doze horas, mesmo que retomasse seu ritmo habitual.
Não tinha outra escolha senão esperar por uma vila próxima ou por uma loja móvel motorizada, no entanto essa era uma esperança remota.
Eram oito da manhã. Será que conseguiria alcançar a carruagem de Mayerling agora que ela também podia circular durante o dia? As perspectivas pareciam sombrias. Ainda assim, tinha de continuar. É o destino do caçador perseguir sua presa.
Como seu oponente reagiria? Sem dúvida o Nobre sabia que D e o clã Marcus estavam em perseguição. Não havia como o Nobre apenas continuar correndo. Era certo que revidaria. Todavia quando e como?
Além da óbvia vantagem psicológica, aqueles que perseguiam nem sempre estavam em vantagem quando ambos os lados estavam em movimento. Se os perseguidores caíssem em uma emboscada, a situação poderia se inverter. E não havia nada mais feroz do que uma presa encurralada mostrando suas presas em sua própria defesa.
As feições do jovem Nobre passaram pelo coração de D. O Nobre não estava mentindo quando disse que não faria nada com a humana. D quase conseguia imaginar o rosto da garota na carruagem e o olhar que teria.
A paisagem do seu redor mudou. O verde constante desapareceu, substituído por uma planície desértica e árida. Em vários lugares, a terra estava fundida em um estado vítreo, e máquinas e veículos chamativos de proporções titânicas se projetavam do solo. Havia pilhas de cadáveres mecânicos lamentáveis espalhados pelo campo, cada um deles vermelho e se desfazendo em ferrugem. Pareciam se estender até os confins da Terra, e o ar perturbador e fantasmagórico que os envolvia não parecia em nada com o de algo mecânico. Quando a noite chegasse, as vozes amargas de máquinas obstinadas ecoariam pateticamente pela planície?
Este era um dos antigos campos de batalha onde, há muito tempo, máquinas que evoluíram para a consciência lutaram entre si por ódio. Mesmo agora, várias delas ainda não haviam parado de funcionar, seus corpos se contorcendo em uma corrente pálida e fraca, vagando noite após noite em busca de seus inimigos.
A emboscada poderia acontecer a qualquer momento. Era essa a sensação que D tinha. Ao amanhecer, viu o clarão do que parecia ser um sinalizador de Caçador no céu da aurora, atrás de si. Sem dúvida, era o sinal de Bengé, relatando que sua missão havia falhado e que D ainda os perseguia. Claro, os dois guardas restantes o veriam e tomariam as contramedidas necessárias. A questão era: será que alguns do grupo continuariam se movendo? Talvez, nenhum dos dois Barbarois o perseguiria, entretanto um deles poderia atacá-lo.
Havia também o outro grupo a considerar. Era certo que o clã Marcus também havia notado o sinalizador. Tinham um conhecimento muito mais detalhado daquela área. Havia todos os motivos para se preocupar com a possibilidade de pegarem algum atalho pouco conhecido para interceptar a carruagem. E, no mundo diurno, repleto da canção da vida, nem mesmo D conseguiria ouvir seus passos. Será que o deixariam seguir em frente? Ou cairia em uma de suas emboscadas?
O rosto de D foi nublando. Talvez estivesse pensando na mais nova, na irmãzinha. Sobre a garota de olhos grandes e redondos que dizia não conseguir viver de outra forma senão como Caçadora. Se soltasse o cabelo em vez de prendê-lo, talvez parecesse uns dois anos mais jovem. Com um toque de blush nas bochechas e um batom, poderia passar por uma garota comum de qualquer cidadezinha. Não precisaria gritar pela mãe, atormentada pela febre.
A expressão de D perdeu qualquer traço de humanidade. Bem à sua frente, avistou uma coluna tombada de proporções gigantescas. Atravessando a estrada de cinco metros e meio de largura, em linha reta, estava um antebraço gigantesco e enferrujado.
Pouco antes de D invadir o antigo campo de batalha, havia uma mulher à beira da estrada, bem no centro daquela vasta extensão de terra. Ela penteava os cabelos na brisa da manhã. O vestido que usava era mais azul que o próprio céu, e a voz que saía de seus lábios em canção era tão bela quanto qualquer joia. Se ao menos não tivesse aqueles lábios vermelhos maldosos. Mas, uma sombra negra projetava-se claramente sobre o gerador cilíndrico contra o qual a mulher estava encostada. Os demônios da noite não deveriam ter sombras.
Não estava claro quanto tempo estivera ali, porém a mulher parecia absorta em brincar com o fio dourado que era seu cabelo. De repente, olhou para cima. Seu olhar seguiu na direção de onde vinham os passos de D.
— Ah, alguém está vindo! — riu a mulher, Caroline, mas sua beleza rosada logo ficou tensa. — Esses cascos não soam como os do cavalo de um humano. É D. Agora, esse é um homem para se temer...
Mesmo agora, a imagem da esgrima de D na aldeia dos Barbarois estava gravada nas retinas de Caroline. Porém, um instante depois, seus olhos azuis brilharam com uma sede de sangue e batalha. Um sorriso distorceu seus lábios rubros.
— Parece que valeu a pena esperar aqui para descansar um pouco e armar uma emboscada. Farei deste o seu túmulo...
E, com essa declaração de guerra murmurada, Caroline examinou as máquinas ao redor, acenou com a cabeça uma vez e então se aproximou de um dos dispositivos. A ferrugem cobria sua superfície e vários canos emaranhados saíam dele. Caroline pousou as mãos em uma das mais próximas e a aninhou carinhosamente contra a bochecha, contudo, em pouco tempo, sua expressão tornou-se lúgubre. Sua boca se abriu. Por dentro, sua boca estava tão vermelha quanto seus lábios. Dois de seus caninos estavam expostos e, quando entraram em contato com o cano enferrujado, as pontas afundaram sem esforço no metal.
Pouco a pouco, dois jatos deslizaram pela garganta voluptuosa de Caroline, deixando um rastro úmido enquanto corriam para seus seios fartos. A garganta da bela pulsava e ela bebia como se estivesse faminta. Gole após gole.
Em pouco tempo, Caroline se afastou e o fluido que vazava dos orifícios parou de forma misteriosa. A mulher Barbarois se afastou da máquina como uma pétala levada pela brisa. Banhada pela luz do sol, sua língua vermelha brincava com os lábios.
— Ah, é isso que eu gosto. — ronronou. — Agora ouça bem o que tenho a dizer.
A máquina se moveu. Dolorosamente devagar. Seus cinco dedos arranhavam a areia. Cada dedo com pelo menos um metro de comprimento. Medindo nove metros de comprimento total, o dispositivo que escolhera era um antebraço robótico quebrado na altura do cotovelo.
O braço estava a dezoito metros de distância. Era como uma escultura requintada; até mesmo as formas dos músculos e as linhas dos vasos sanguíneos permaneciam discerníveis através da ferrugem.
Embora as grandes batalhas de máquinas tivessem sido em sua maioria disputas de habilidade de combate, também existiu uma espécie de conflito entre sensibilidades estéticas bizarras. Em resposta à ordem geométrica de seus rivais... Exemplificada por designs que eram conglomerados de planos e esferas simplificados ao extremo... Algumas máquinas grosseiras levaram a imitação da forma humana a um nível de beleza e perfeição que superava até mesmo a arte clássica da antiguidade. Independente de existirem ou não verdadeiros “artistas” entre as máquinas, elas não apenas reproduziam com precisão os cabelos humanos em seus androides, como também cada poro.
Relatos históricos não oficiais mantidos pela Nobreza reservavam um lugar especial para o confronto estrondoso entre Apolo, com uma espada de nove metros na mão, e Hércules, armado com uma lança de noventa metros. O poder destrutivo incomparável liberado em seu choque mudou a forma das montanhas, varreu vales e interrompeu o curso dos rios. Teria o membro que agora bloqueava o caminho de D pertencido a um desses famosos combatentes, ou seria um remanescente de algum Golias sem nome?
Uma figura de azul brincava sobre o pulso. A brisa da manhã agitava seus cabelos dourados e trazia o aroma de seu doce perfume. Somente D conseguia detectar algo mais. O cheiro fétido de sangue que o acompanhava.
— Sou Carolina dos Barbarois. — apresentou-se. — E não posso deixá-lo ir mais longe.
Nas pupilas de D, que refletiam apenas um vazio, a imagem da mulher ria friamente. Seu corpo balançava. O braço sob seus pés estremeceu ao mudar de direção, apontando para D. Uma força percorreu os dedos, que se cravaram no solo. Uma vez fincados, o braço os usou como fulcro e começou a deslizar para a frente como uma lagarta. Movia-se de maneira brusca, entretanto com uma velocidade surpreendente.
D estava imóvel. Talvez o fenômeno surreal daquele braço enferrujado ganhando vida o tivesse deixado sem coragem.
Quando o braço chegou a menos de cinco metros dele, abriu os dedos e se chocou contra a terra, D investiu em seu cavalo. O braço colossal ficou suspenso no ar. Ele saltou para o ar com a força dos dedos atingindo o chão. D talvez tenha discernido o momento e o local do impacto pela sua posição, porque, enquanto a palma de três metros de largura do braço titânico fazia a terra tremer, escapou por um triz de ser derrubado.
Os dedos se fecharam com força, rasgando a terra. Virando-se para D, o braço levantou apenas o pulso até que ficasse perpendicular ao chão. Os dedos ainda estavam cerrados. Quando se inclinou para a frente, enfim os abriu. Uma massa marrom voou direto para D e seu cavalo, a mais de dezoito metros de distância. Essa distância diminuiu em instantes.
Talvez sentindo a pressão do ar atrás deles, D puxou as rédeas para a direita. Quando seu cavalo deu alguns passos naquela direção, a massa caiu a seus pés. Era o próprio solo, o mesmo solo que havia sido escavado pelos dedos... Um projétil apropriado para um braço colossal.
Apanhando a onda de choque em seu flanco, o cavalo cambaleou para um lado. D dançou pelo ar. Como um verdadeiro pássaro místico, voou, pousando em um ponto a cerca de cinco metros de distância. Seu cavalo recuperou o equilíbrio e disparou de volta para ele.
O braço colossal mirou em D. Veio em sua direção com uma velocidade incrível, fazendo a terra tremer. A ponta de um dedo negro passou bem diante dos olhos de D quando o Caçador saltou para trás. Seu rosto gélido permaneceu impassível enquanto uma nuvem de areia o atingia.
— Qual é o problema, Caçador? — Caroline riu encantadoramente de cima do braço. — Não pode fazer nada, pode? Veja bem, este braço se juntou às fileiras dos mortos-vivos.
Por mais difícil que fosse de acreditar, o braço tinha uma usina de energia no pulso e funcionava com gasolina. E Caroline havia sugado um pouco do combustível restante do cano. Esta “vampira” havia tomado algo semelhante ao “sangue” do braço colossal. Aqueles mordidos pelos demônios amaldiçoados se tornavam demônios também. Todavia parecia quase impossível que a mesma regra abominável se estendesse a um braço mecânico.
O antebraço colossal agora era um dos mortos-vivos, um cadáver que se movia de acordo com a vontade de Caroline. Parecia impossível que mesmo D pudesse repelir esses ataques para sempre, quando um se seguia ao outro com tamanha velocidade.
De acordo com as instruções de Caroline, o braço perseguiu D até os destroços horizontais de um torso gigantesco. Embora o corpo estivesse tombado, a lateral ainda tinha nove metros de altura, uma distância que nem mesmo D conseguiria pular.
— Já terminou, Caçador? — perguntou Caroline, rindo de maneira quase histérica. — A espada nas suas costas... É só enfeite?
Com a retaguarda bloqueada, D parecia incapaz de fazer qualquer coisa, e o pulso se ergueu acima de sua cabeça. Um brilho negro surgiu do chão, deslizou entre os dedos que agora esmagavam como uma avalanche e pousou sobre o braço mecânico.
— O quê? — exclamou Caroline.
O casaco de D reluziu elegantemente bem à sua frente enquanto seus olhos se arregalavam em espanto.
— Agora estamos igualados! — disse o Caçador em um suave tom de voz.
Pensando em responder, Caroline deu alguns passos para trás, em direção ao cotovelo, como se tivesse sido empurrada por alguma emanação perturbadora invisível aos olhos. O braço colossal parou de repente em sua pose habitual de lagarta. Gotas de suor se formaram na testa de Caroline. As gotas logo aumentaram de tamanho, escorrendo por sua pele de parafina. A luz do sol fez as listras úmidas brilharem como mercúrio.
Os dois braços de D pendiam naturalmente ao lado do corpo.
Várias ideias rodopiavam na cabeça de Caroline. Não havia espaço suficiente para fugir. E, no primeiro encontro, Caroline percebeu que aquele jovem não era do tipo que a pouparia por ser mulher.
D deu um passo à frente.
— Es... Espere! — disse Caroline, desesperada, humilhada pela forma como sua voz tremia. — Mesmo que me mate, Mashira ainda estará aqui. Não gostaria de saber sobre os seus poderes?
Encurralada, era o melhor plano que sua mente conseguia conceber. Para um guerreiro, aprender as habilidades do próximo oponente que enfrentaria em combate era mais importante do que qualquer outra coisa. Essa oferta o convenceria sem falha.
D avançou mais um passo.
— Espere, só espere. — Caroline acenou com as mãos e recuou alguns metros. Então, aquele jovem não dava a mínima para o conhecimento que poderia lhe dar vantagem na batalha?
Eu vou morrer, não é? Pensou Caroline. Aqui, na espada deste homem... Caroline olhou para o jovem de vestes negras que se aproximava dela. Uma estranha sensação surgiu em seu peito. Quero ser morta. Quero sentir este homem magnífico apunhalar meu peito.
O êxtase da morte envolveu Caroline em seu arrebatamento.
Os movimentos de D cessaram. Soltando um gemido baixo, a figura de preto caiu de joelhos.
Sem entender bem o que havia acontecido, Caroline instintivamente entrou em ação, buscando a vida em vez da morte. O braço colossal virou, deixando os dois caírem no ar. Ainda assim, D conseguiu um pouso espetacular antes que um de seus joelhos voltasse a ceder. O braço colossal caiu em sua direção. Não havia tempo suficiente para se esquivar.
A mão direita de D ficou borrada. Parecia que estava em brasa. Um clarão prateado cruzou os dedos que o esmagavam como uma avalanche de dígitos. Com um estrondo tremendo, o dedo médio, com quase meio metro de espessura, caiu atrás de D, e todo o resto, do pulso para a frente, se retorceu. Jatos negros de óleo de máquina escorreram da fenda no metal, semelhante a uma ferida.
Ao mesmo tempo, Caroline pousou do outro lado da estrada. Ela pressionou os dedos da mão direita e empalideceu. Havia uma fina linha vermelha ao redor da base deles.
D saltou. Seu cavalo ciborgue estava sob ele.
— Não vou te deixar escapar, Caçador! — gritou Caroline. Com filetes de óleo negro escorrendo, a mão trêmula desferiu um bote mortal.
D estava galopando. Será que conseguiria escapar?
O braço colossal foi atrás do cavalo e do cavaleiro.
Chamas irromperam de repente do pulso mecânico, percorrendo todo o caminho até o cotovelo. Derretendo no calor de um míssil nuclear, que podia atingir cem mil graus, o abominável braço demoníaco desabou no chão, tornando-se pouco mais que um tronco de aço em chamas.
Os rastros de fumaça de cinco mísseis pairavam no ar. De volta à mesma estrada que trouxera D, ecoavam os sons de um motor ágil. O veículo de perfil baixo com enormes pneus à prova de furos era, obviamente, o carro de combate. E Leila estava ao volante.
Depois de matar aquele mestre das sombras, Bengé, Leila conseguiu uma missão de reconhecimento dizendo que não conseguia parar de se perguntar o que seus inimigos estavam tramando. Quando saiu, disse que voltaria logo, mas uma hora se passou, depois três. Ela tinha ido procurar por D.
Seus irmãos disseram que os monstros deviam estar à espreita dele. Eles riram de como seria bom se todos se matassem. E quanto mais Leila pensava em como era provável que estivessem certos, maior o rosto daquele lindo jovem, tão cheio de vazio, se projetava em seu coração. É só porque ele salvou minha vida duas vezes, pensou ela. Porém Leila nunca tinha pensado em retribuir favores. Se desmaiasse de fome e alguém lhe desse comida, não teria escrúpulos em sacar uma faca para roubar o resto de seu salvador. Era apenas assim que Leila, e todo o clã Marcus, faziam as coisas. O próprio conceito de retribuir um favor era estranho para eles. Contudo, enquanto Leila segurava o jugo do carro de batalha e rasgava o ar da manhã, seu coração guardava a coisa mais próxima disso.
No instante em que entrou no antigo campo de batalha e viu o braço colossal perseguindo D, foi um movimento do seu coração, e não da sua vontade consciente, que a fez apertar o botão de disparo e lançar aqueles minúsculos foguetes nucleares. Não sabia que o braço colossal, contorcendo-se de dor pela perda de um dedo, não conseguiria alcançar D na velocidade em que este galopava.
Parando ao lado do braço, que havia cessado de se mover e cuspia chamas vermelho-lótus, examinou a área com seu olhar penetrante. Estava procurando por Caroline. No entanto a aberração não estava em lugar nenhum. Com um estalo de língua decepcionado, Leila pisou no acelerador.
Depois de cavalgar forte por cerca de três quilômetros, D saiu da estrada e entrou na floresta. Um torpor horrível o dominava. Era a síndrome da luz solar, uma condição exclusiva dos dampiros. Por terem herdado metade ou mais das características de um vampiro, os dampiros podiam se mover durante o dia sem preocupação, entretanto não era isento de desvantagens. Enquanto permaneciam alheios, uma forma persistente de fadiga se acumulava em sua carne meio imortal devido aos raios impiedosos do sol. Para os dampiros que trabalhavam como Caçadores, o aspecto mais temido dessa aflição era que os sintomas se manifestavam sem aviso prévio na forma de uma sensação repentina de exaustão e lassidão crescente. Era dolorosamente claro o que aconteceria se alguém sofresse um ataque disso enquanto estivesse em uma batalha mortal.
A fuga por pouco de D não poderia ser chamada de recuo ou derrota. Na verdade, foi apenas graças à força sobre-humana de D que conseguiu montar no cavalo. Mas, quando desmontou do cavalo no meio da floresta, o andar de D estava um tanto perturbado.
O chão ali estava coberto por flora multicolorida e repleto de insetos. D ajoelhou-se e começou a cavar a terra com uma faca que tirou do cinto de combate. Terra e musgo voavam com seus movimentos intensos. Em menos de três minutos, havia escavado uma depressão grande o suficiente para uma pessoa se deitar. Com um leve balançar de cabeça, D entrou no buraco. Depois de usar as mãos para puxar a terra ao seu redor e cobri-lo com o corpo, deitou-se.
A razão pela qual os vampiros nas lendas da antiguidade carregavam caixões cheios de terra de sua terra natal não era apenas porque a sepultura que deveriam ocupar lhes oferecia o sono mais sereno. Na verdade, sua espécie havia descoberto nos tempos antigos que a Mãe Terra extraía a fadiga acumulada em seus corpos e os infundia com uma nova energia imortalizadora. E D estava seguindo o seu exemplo.
— Heh, que belo desastre. — resmungou a mão esquerda de D. — Diabos, nem eu consigo dizer quando a síndrome da luz solar vai te atacar. O fato de ser mais resistente que um dampiro médio só piora as coisas. Já faz uns cinco anos, não é? — a voz que vinha de sua mão devia estar falando sobre quanto tempo havia se passado desde o último ataque.
Normalmente, os dampiros que herdaram a maior parte de sua personalidade dos vampiros tinham um intervalo de cerca de seis meses entre os surtos dos sintomas. Usando a data e a hora do último como base aproximada, se escondiam por um mês antes e depois do próximo ataque esperado, evitando qualquer combate durante esse período. Essas precauções não eram apenas por medo de represálias das presas que caçavam, como também para evitar ataques de seus concorrentes comerciais. Sempre havia muitos covardes ardilosos buscando uma fatia maior do negócio de caça, e mantinham registros detalhados das datas em que seus rivais sofreram ataques, tentando descobrir seu paradeiro antes do próximo ataque para poderem eliminá-los. Desnecessário dizer que, no caso de D, teria que se proteger de um ataque feroz de Caroline e seus comparsas.
— Bem, parece que vamos tirar férias por um tempo. Boa sorte! — disse a voz. Contudo, quando esses comentários despreocupados surgiram de sua mão esquerda, os olhos de D já estavam fechados.
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