Capítulo 12: Seis Pardais Prateados
Simon cambaleou pelo pátio dos comuns, seus pensamentos gritando em sua cabeça como uma grande multidão. Queria se esconder. Queria fugir. Queria berrar a terrível verdade e rir, para fazer o povo do castelo tropeçar e saltar para fora. Como eles tinham certeza, certeza de tudo, especulando e fofocando... Mas não sabiam de nada! Nada! Simon queria uivar e derrubar coisas, porém não conseguia libertar seu coração do feitiço de medo lançado pelos olhos de carniceiro de Pryrates. O que poderia ser feito? Quem ajudaria a virar de volta o mundo de cabeça para cima?
Morgenes.
Enquanto Simon corria cambaleante pelo pátio comum escuro, o rosto calmo e intrigado do velho doutor surgiu em seus pensamentos, afastando o semblante mortal do sacerdote e a sombra acorrentada na masmorra abaixo. Sem pensar duas vezes, passou correndo pelo portão preto e acorrentado da Torre de Hjeldin e subiu as escadas para a Chancelaria. Em poucos instantes, atravessou os longos corredores e abriu a porta da proibida Torre do Anjo Verde. Tão imperiosa era sua necessidade de chegar aos aposentos do doutor que, se Barnabas, o sacristão, estivesse esperando para pegá-lo, Simon poderia ter se transformado em mercúrio nas mãos do homem. Um vento forte o atravessou, enchendo-o de uma pressa selvagem, empurrando-o para frente. Antes que a porta lateral da torre se fechasse atrás dele, já estava na ponte levadiça; segundos depois, batia na porta de Morgenes. Dois guardas erkynos ergueram os olhos, indiferentes, e voltaram aos seus dados.
— Doutor! Doutor! Doutor! — Simon gritou, batendo como um tanoeiro demente.
O ancião surgiu pouco depois, descalço e com os olhos alarmados.
— Pelos Chifres de Cryunnos bufantes, garoto! Será que está louco? Você comeu mamangabas?
Simon passou por Morgenes sem dar uma palavra de explicação e seguiu pelo corredor. Ficou ofegante diante da porta interna enquanto o homenzinho se aproximava por trás. Após um momento de inspeção astuta, Morgenes entrou com Simon.
Assim que a porta se fechou, Simon começou a história de sua expedição e seus resultados. O ancião acendeu uma pequena fogueira e despejou um pote de hipocras picantes em uma panela para aquecer. Enquanto trabalhava, Morgenes ouvia, cuidadosamente inserindo uma pergunta ocasional no relato do garoto, como um homem enfiaria um pedaço de pau em uma gaiola de urso. Balançou a cabeça, reflexivo, entregando ao jovem uma taça de vinho quente e sentou-se com a sua própria taça em uma cadeira de espaldar alto e desgastada. Calçara sandálias nos pés finos e brancos; sentado de pernas cruzadas na almofada da cadeira, o manto cinza arregaçado acima das canelas ossudas.
— E sei que não deveria ter tocado numa porta mágica, doutor, eu sei, contudo toquei... E era Josua! Desculpe, estou me desviando do assunto, no entanto tenho certeza de que o vi! Ele tinha barba, creio, e estava com uma aparência horrível... Só que era ele!
Morgenes tomou um gole de vinho e limpou os pelos da barba com a manga comprida.
— Acredito em você, rapaz. — disse. — Gostaria de não ter acreditado, entretanto faz um sentido perverso. Confirma uma informação estranha que recebi.
— Mas o que faremos? — Simon quase gritou. — Josua está morrendo! Elias foi quem fez aquilo? O Rei sabe?
— A verdade é que não posso dizer... O certo, porém, é que Pryrates sabe. — o doutor pousou a taça de vinho e se levantou. Atrás de sua cabeça, o último raio de sol da tarde avermelhava as janelas estreitas. — Quanto ao que fazer, a primeira coisa é você ir jantar.
— Jantar? — Simon engasgou, respingando hipocras na túnica. — Com o Príncipe Josua...?
— Sim, garoto, foi o que eu disse. Jantar. Não há nada que possamos fazer agora, e preciso pensar. Se você perder o jantar, só vai levantar suspeitas, ainda que pequenas, e vai acabar fazendo justo o que não queremos: chamar atenção. Não, vá jantar agora... E enquanto come, tenha certeza de ficar de boca fechada, por favor.
***
A hora da refeição pareceu passar tão lenta quanto o degelo da primavera. Apertado entre ajudantes de cozinha que gritavam enquanto mastigavam, com o coração batendo acelerado, Simon resistiu ao impulso selvagem de golpear e derrubar xícaras e louças no chão coberto de junco. A conversa o enfurecia por sua irrelevância, e a torta de carne moída que Judith preparara especialmente para o Festival de Belthainn era tão insípida e intragável em sua boca quanto madeira.
Raquel o observava se remexer com desgosto de seu lugar à cabeceira da mesa. Depois que Simon ficou sentado o máximo que pôde e se levantou para se desculpar, ela o seguiu até a porta.
— Desculpe, Raquel, estou com pressa! — disse, na esperança de evitar o sermão que parecia prestes a começar. — O doutor Morgenes tem algo muito importante para fazer e quer que eu o ajude. Posso?
Por um instante, o Dragão pareceu que ia dar aquele aperto de dar medo em sua orelha e trazê-lo à força de volta à mesa, mas algo em seu rosto ou tom a pegou; por um instante, Raquel quase sorriu.
— Tudo bem, garoto, só desta vez. Porém agradeça a Judith por aquele belo pedaço de torta antes de ir. A pobrezinha trabalhou nela a tarde toda.
Simon correu até Judith, que estava em sua própria mesa. Suas bochechas rechonchudas coraram lindamente enquanto ele elogiava seus esforços. Enquanto Simon corria de volta para a porta, Raquel se inclinou e agarrou sua manga. Ele parou e se virou, já com a boca aberta para reclamar, contudo Raquel apenas disse.
— Agora se acalme e tome cuidado, seu pirralho. Nada é tão importante que precise se matar para chegar lá.
Raquel deu um tapinha no braço dele e o soltou; o garoto passou pela porta e foi embora enquanto ela observava.
***
Simon já havia vestido o colete e o casaco quando chegou ao poço. Morgenes ainda não havia chegado, então começou a andar de um lado para o outro, impaciente, nas densas sombras do refeitório até que uma voz suave ao seu lado o fez se assustar.
— Desculpe por fazê-lo esperar, rapaz. Inch passou por aqui e perdi um maldito tempo para convencê-lo de que não precisava de sua ajuda.
O doutor puxou o capuz para a frente, escondendo o rosto.
— Como chegou de forma tão silenciosa? — perguntou o garoto, seu sussurro uma imitação do doutor.
— Ainda consigo me movimentar um pouco, Simon. — disse o doutor em um tom ofendido. — Estou velho, mas ainda não moribundo.
Simon não sabia o que ‘moribundo’ significava, no entanto captou a ideia geral.
— Desculpe. — sussurrou.
Os dois desceram as escadas da sala de jantar em silêncio e entraram no primeiro depósito, onde Morgenes fez aparecer uma esfera de cristal do tamanho de uma maçã verde. Ao esfregá-la, uma pequena faísca brilhou no centro, crescendo pouco a pouco até iluminar os barris e fardos ao redor com uma suave luz cor de mel. Morgenes envolveu a metade inferior na manga e a segurou diante deles enquanto caminhavam com cuidado pelos produtos secos empilhados.
A escotilha estava fechada; Simon não se lembrava se a havia fechado ou não em sua corrida alucinada para fora. Desceram a escada cuidadosamente, Simon na frente, Morgenes pouco atrás, olhando para todos os lados com o globo brilhante. Simon apontou para o local onde Pryrates quase o capturara. Eles seguiram em frente, descendo para o piso de baixo.
O cômodo mais abaixo estava tão desocupado quanto antes, todavia a porta que dava para a passagem de pedra estava fechada. Simon tinha quase certeza de que não tinha feito aquilo e contou a Morgenes, entretanto o homenzinho apenas acenou com a mão e caminhou até a parede, encontrando o local onde a rachadura estivera, de acordo com as instruções de Simon. O doutor esfregou a mão em movimentos circulares pela parede, murmurando algo baixinho, embora nenhuma fenda apareceu. Depois de Morgenes se agachar junto à parede, falando sozinho por algum tempo, Simon se cansou de pular de um pé para o outro e se agachou ao seu lado.
— Você não pode só dizer alguma mágica e fazê-la abrir?
— Não! — sibilou Morgenes. — Um homem sábio nunca, repito, nunca usa a Arte quando não precisa, ainda mais ao lidar com outro adepto, como nosso sacerdote Pryrates. Podemos muito bem assinar meu nome na parede.
Enquanto Simon se sentava sobre os calcanhares e franzia a testa, o doutor colocou a mão esquerda espalmada no meio da área onde a porta estivera; após um momento de leve apalpação da superfície, bateu nela com força com a base da mão direita. A porta surgiu e se abriu, derramando a luz da tocha na habitação. O ancião espiou, então deixou cair seu cristal na bainha de sua manga volumosa e tirou uma bolsa de couro costurada.
— Ah, Simon, meu rapaz... — ele riu baixinho. — Que ladrão eu teria sido. Não era uma ‘porta mágica’, estava apenas escondida pelo uso da Arte. Vamos lá!
Os dois atravessaram o corredor de pedra úmida.
Seus passos produziram ecos melosos enquanto deslizavam e desciam a passarela até o final do corredor e a porta trancada. Após examinar a fechadura por um momento, Morgenes foi até o olho mágico e espiou lá dentro.
— Acho que você tem razão, garoto. — sibilou. — Pela Tíbia de Nuanni! Mas como gostaria que não tivesse. — ele voltou a examinar a fechadura. — Corra até o final do corredor e fique de ouvidos abertos, está bem?
Enquanto Simon montava guarda, Morgenes vasculhou sua bolsa de couro, enfim extraindo uma lâmina longa e fina como uma agulha engastada em um cabo de madeira. Mostrou-a ao garoto com alegria no rosto.
— Gazua² Naraxi. Sabia que seria útil um dia!
Morgenes a inseriu no buraco da fechadura; ela deslizou para dentro da abertura com espaço de sobra. O ancião a retirou e sacudiu um pequeno pote da bolsa, que abriu com os dentes. Enquanto Simon observava, fascinado, Morgenes virou o pote e derramou uma substância escura e pegajosa na lâmina da agulha, depois tornou a colocar a ponta de volta no buraco da fechadura; deixando marcas brilhantes ao passar pela fechadura.
Morgenes retorceu a gazua por um instante, depois deu um passo para trás e contou nos dedos. Depois de somar as duas mãos três vezes cada, agarrou a alça fina e girou. Fez uma careta e soltou.
— Venha aqui, Simon. Precisamos dos seus braços jovens e fortes.
Sob a orientação do doutor, Simon agarrou a estranha ferramenta pela ponta e começou a girá-la. Por um instante, suas palmas suadas escorregaram na madeira polida; cerrou com mais força o aperto e, após um breve intervalo, sentiu algo se desprender dentro da fechadura. Um instante depois, ouviu o ferrolho deslizar para trás. Morgenes assentiu e Simon empurrou a porta com o ombro.
Os juncos fumegantes em um buraco na parede lançavam apenas uma luz fraca. Ao se aproximarem, os dois viram a figura algemada no fundo da cela erguer os olhos, e seus olhos se arregalaram lentamente, como se estivesse reconhecendo alguém. Sua boca se mexeu, porém apenas um suspiro áspero saiu.
O cheiro de palha molhada e fétida era insuportável.
— Oh... Oh... Meu pobre Príncipe Josua... — disse Morgenes.
Enquanto o velho fazia uma rápida inspeção nas algemas de Josua, Simon só conseguia observar, sentindo-se tão impotente para afetar a correnteza dos acontecimentos quanto se estivesse sonhando. O Príncipe se encontrava dolorosamente magro e barbudo como um pregoeiro de beira de estrada; as partes de sua pele que apareciam estavam cobertas de feridas vermelhas.
Morgenes sussurrava no ouvido de Josua. O doutor havia pegado sua bolsa outra vez e segurava na mão um pote pequeno, do tipo que as damas guardam para pintar os lábios. Esfregando vigorosamente algo do pote primeiro em uma palma, depois na outra, o pequeno doutor examinou mais uma vez as ligaduras de Josua. Ambos os braços estavam algemados a uma enorme argola de ferro na parede, um algemado ao pulso, o outro, sem mão, por uma algema ao redor do braço magro do príncipe.
Morgenes terminou de untar as mãos e passou o pote e a bolsa para Simon.
— Agora seja um bom garoto... — disse ele. — E cubra os olhos. Troquei um volume encadernado em seda de Plesinnen Myrmenis... O único ao norte de Perdruin, por esta sujeira. Só espero... Simon, cubra os olhos!
Quando o jovem ergueu as mãos, viu Morgenes estendendo a mão para o anel que prendia as correntes do Príncipe à pedra. Um instante depois, um clarão de luz brilhou rosado através dos dedos entrelaçados de Simon, acompanhado por um estalo como o de um martelo batendo em ardósia. Quando o jovem voltou a olhar, o Príncipe Josua jazia com suas correntes amontoadas no chão, e Morgenes ajoelhava-se ao seu lado, com as palmas das mãos fumegando. O anel da parede estava enegrecido e retorcido como um pãozinho queimado.
— Caramba! — ofegou o velho. — Espero... Espero... Nunca mais ter que fazer isso. Você consegue levantar o Príncipe, Simon? Estou muito fraco.
Josua rolou rigidamente e olhou ao redor.
— Eu... Acho... Que consigo... Andar. Pryrates... Me deu alguma coisa.
— Bobagem. — Morgenes respirou fundo e se levantou, trêmulo. — Simon é um rapaz forte... Vamos, garoto, não fique boquiaberto! Pegue-o!
Depois de algumas tentativas, Simon conseguiu enrolar os fios pendentes das correntes de Josua, ainda presos no pulso e no braço, em um laço em volta da cintura do Príncipe. Então, com a ajuda de Morgenes, conseguiu içá-lo como uma criança. Ele se levantou e inspirou fundo. Por um momento, temeu não conseguir se sustentar, mas com um salto desajeitado, colocou Josua mais para cima em suas costas e descobriu que, mesmo com o peso adicional das correntes, não era impossível.
— Tire esse sorriso bobo da cara, Simon! — disse o doutor. — Ainda temos que levá-lo pela escada.
***
De alguma forma, eles conseguiram... Simon grunhindo, quase chorando com o esforço, Josua puxando fracamente os degraus, Morgenes empurrando atrás e sussurrando palavras de encorajamento. Foi uma subida longa e angustiante, porém enfim chegaram ao depósito principal. Morgenes passou correndo enquanto Simon se encostava em um fardo para descansar, o Príncipe seguia agarrado às suas costas.
— Em algum lugar, em algum lugar... — murmurou Morgenes, abrindo caminho entre as mercadorias empilhadas. Quando chegou à parede sul do cômodo, iluminando à sua frente com seu cristal, começou a procurar com afinco.
— O quê... — Simon começou a perguntar, contudo o doutor o silenciou com um gesto.
Enquanto observava Morgenes aparecer e desaparecer atrás de pilhas de barris, Simon sentiu um toque delicado em seu cabelo. O Príncipe acariciava sua cabeça.
— Real. Real! — Josua respirou fundo.
Simon sentiu algo úmido escorrer pelo pescoço.
— Encontrei! — gritou Morgenes, abafado, embora triunfante. — Venha!
Simon se levantou, cambaleando um pouco, e carregou o Príncipe em suas costas. O doutor estava parado ao lado da parede de pedra lisa, gesticulando em direção a uma pirâmide de grandes barris. A lâmpada de cristal lhe dava a sombra de um gigante iminente.
— Encontrou o quê? — Simon ajustou o Príncipe e o encarou. — Barris?
— De fato! — gargalhou o sábio. Com um floreio, girou a borda redonda do barril mais alto meia volta. Toda a lateral do barril se abriu como se fosse uma porta, revelando uma escuridão cavernosa além.
Simon olhou desconfiado.
— O que é isso?
— Uma passagem, seu garoto tolo.
Morgenes o segurou pelo cotovelo e o guiou em direção ao barril aberto, que mal chegava à altura do peito.
— Este castelo é cheio de atalhos secretos.
Com a testa franzida, Simon se abaixou, perscrutando as profundezas negras além.
— Temos que entrar aqui?
Morgenes assentiu. Simon, percebendo que não conseguiria atravessar, ajoelhou-se para entrar devagar, com o Príncipe montado em suas costas como se fosse um pônei de festival.
— Eu não sabia que existiam tais passagens nos depósitos. — comentou, sua voz ecoando no barril. Morgenes se inclinou para guiar a cabeça de Josua sob a entrada baixa.
— Simon, há mais coisas que você não sabe do que coisas que eu sei. Me desespero com o desequilíbrio. Agora cale a boca e vamos nos apressar.
Eles conseguiram se posicionar de novo do outro lado: o cristal de Morgenes revelou um corredor longo e inclinado, comum, exceto por um fabuloso acúmulo de poeira.
— Ah, Simon! — exclamou Morgenes enquanto se apressavam. — Só queria ter tempo para lhe mostrar alguns dos cômodos por onde este corredor se arrasta... Alguns eram os aposentos de uma dama muito importante e muito bonita. Ela usava esta passagem para manter seus encontros secretos. — o doutor olhou para Josua, cujo rosto estava encostado no pescoço de Simon. — Está dormindo agora. — murmurou. — Completamente apagado.
O corredor subia e descia, virando para um lado e para o outro. Passaram por muitas portas, algumas com fechaduras enferrujadas, outras com maçanetas tão brilhantes quanto uma peça de mobília nova. Assim que passaram por uma série de janelinhas, Simon se assustou ao ver as sentinelas na parede oeste, silhuetas contra o céu. As nuvens estavam tingidas de um rosa suave onde o sol havia se posto.
“Devemos estar acima do refeitório.” Simon se maravilhou. “Quando fizemos toda essa escalada?”
***
Eles tropeçavam de exaustão quando Morgenes por fim parou. Não havia janelas naquela parte do corredor sinuoso, apenas tapeçarias. Morgenes levantou uma, revelando pedra cinza embaixo.
— Tapeçaria errada. — ofegou o doutor, levantando a próxima para revelar uma porta de madeira rústica. Encostou o ouvido nela e escutou por um momento, depois a abriu.
— Salão dos Arquivos. — ele gesticulou para o corredor iluminado por tochas além. — A apenas algumas... Centenas de passos dos meus aposentos...
Quando Simon e seu passageiro passaram, Morgenes deixou a porta se fechar atrás deles; ela se fechou com um baque autoritário. Olhando para trás, Simon não conseguia distingui-la dos outros painéis de madeira que ladeavam a parede do corredor.
Havia apenas uma última corrida a ser feita em campo aberto, uma corrida relativamente rápida da porta mais a leste do Salão dos Arquivos, através do pátio comum. Enquanto cambaleavam pela grama sombreada, mantendo-se o mais perto possível das paredes sem tropeçar na hera, Simon pensou ter visto um movimento nas sombras da parede do outro lado do pátio: algo grande que se moveu um pouco, como se estivesse observando sua passagem, uma forma familiar de ombros curvados. Contudo a luz estava morrendo rapidamente e não teve certeza... Era apenas mais um ponto preto se movendo diante de seus olhos.
***
Simon sentia uma pontada no flanco que parecia como se alguém tivesse lhe agarrado a costela com a tenaz de fundição de Ruben. Morgenes, que mancava à frente, segurou a porta aberta. Simon cambaleou para dentro, pousou com todo cuidado seu fardo e se jogou de bruços nas lajes frias, suado e sem fôlego. O mundo girava ao seu redor em uma dança vertiginosa.
— Aqui, Alteza, beba isto... Vá em frente! — ouviu Morgenes dizer. Depois de algum tempo, abriu os olhos e se apoiou em um cotovelo. Josua sentou-se encostado na parede; Morgenes agachou-se sobre ele segurando uma jarra de cerâmica marrom.
— Melhor? — perguntou o ancião.
O Príncipe fez um fraco aceno em resposta.
— Já me sinto mais forte. Esta bebida parece a que Pryrates me deu... Embora não tão amarga. Disseram que estava enfraquecendo rápido demais... Que precisavam de mim esta noite.
— Precisavam de você? Não gosto disso, nem um pouco.
Morgenes entregou a jarra a Simon. A bebida era forte e azeda ao gosto, no entanto reconfortante. O velho espiou pela porta e então desfez o ferrolho.
— Amanhã é o Dia de Belthainn, o primeiro de maya. — disse ele. — Esta noite é... Esta noite é uma noite muito ruim, meu Príncipe. Noite Empedrada, é como se chama.
Simon sentiu a bebida do doutor queimar agradavelmente enquanto descia para o seu estômago. A dor nas articulações diminuiu, como se um pedaço de pano retorcido tivesse sido afrouxado uma ou duas voltas. Ele se sentou, sentindo-se tonto.
— Acho agourento que ‘precisem’ de você numa noite dessas. — repetiu Morgenes. — Temo que ocorram coisas piores do que a prisão do irmão do Rei.
— A prisão em si já foi ruim o suficiente para mim. — uma careta irônica se distendeu nas feições magras de Josua, depois desapareceu. Linhas profundas de tristeza a substituíram. — Morgenes... — chamou um momento depois, com a voz embargada. — Aqueles... Aqueles desgraçados filhos da puta mataram meus homens. Fomos emboscados.
O doutor ergueu a mão como se fosse agarrar o ombro do Príncipe, mas depois a abaixou sem jeito.
— Tenho certeza, meu senhor, tenho certeza. O senhor tem certeza se seu irmão foi o responsável? Poderia ter sido Pryrates agindo sozinho?
Josua balançou a cabeça, cansado.
— Não sei. Os homens que nos atacaram não usavam insígnias, e nunca vi ninguém além do sacerdote depois que fui trazido para cá... Porém é espantoso imaginar Pryrates fazendo tal coisa sem Elias.
— Isso é certo.
— Mas por quê? Por que, malditos sejam? Eu não cobiço poder... Pelo contrário, muito pelo contrário! Você sabe disso, Morgenes. Por que eles fariam tal coisa?
— Meu Príncipe, receio não ter as respostas neste momento, contudo devo dizer que isso confirma em muito minhas suspeitas sobre... Outras coisas. Sobre... Assuntos do norte. Consegue se lembrar de já ter ouvido falar das raposas brancas? — o tom do sábio era significativo, no entanto o Príncipe apenas arqueou uma sobrancelha e não disse nada. — Bem, não há tempo para falar dos meus temores neste momento. Nosso tempo é curto e precisamos cuidar de assuntos mais imediatos.
Morgenes ajudou Simon a se levantar do chão e saiu em busca de algo. O jovem ficou parado, olhando com timidez para o Príncipe Josua, que permanecia caído contra a parede, de olhos fechados. O doutor retornou com um martelo, com a cabeça arredondada pelo uso, e um cinzel.
— Tire as correntes de Josua, por favor, rapaz. Ainda tenho algumas coisas para resolver. — ele saiu correndo.
— Alteza? — chamou Simon baixinho, aproximando-se do Príncipe.
Josua abriu os olhos turvos e encarou primeiro o jovem, depois as ferramentas que segurava, e fez um aceno em concordância.
Ajoelhando-se ao lado do Príncipe, o garoto rompeu a trava da faixa que prendia o braço direito de Josua com dois golpes fortes. Ao se mover para o lado esquerdo do Príncipe, Josua abriu os olhos outra vez e colocou a mão no braço de Simon, impedindo-o.
— Deste lado remova apenas a corrente, jovem. — um sorriso fantasmagórico surgiu em seu rosto. — Deixe-me a algema para que me lembre do meu irmão. — ele mostrou o coto enrugado do pulso direito. — Temos uma espécie de conta pendente, entende?
Simon, subitamente arrepiado, tremeu enquanto apoiava o antebraço esquerdo de Josua contra as lajes de pedra. Com um único golpe, cortou a corrente, deixando a algema de ferro enegrecido acima da mão.
Morgenes apareceu, carregando uma trouxa de roupas escuras.
— Venha, Josua, precisamos nos apressar. Já passou quase uma hora do anoitecer, e quem sabe quando eles virão te procurar? Quebrei minha gazua na porta, entretanto isso não os impedirá por muito tempo de descobrirem sua ausência.
— O que faremos? — perguntou o Príncipe, cambaleando enquanto Simon o ajudava a vestir o traje de camponês mofado. — Em quem no castelo podemos confiar?
— Ninguém no momento... Não em tão pouco tempo. É por esse motivo que precisa voltar para Naglimund. Só lá você estará seguro.
— Naglimund... — Josua parecia perplexo. — Sonhei tantas vezes com meu lar lá nestes meses horríveis... Mas não! Preciso mostrar ao povo a face oculta do meu irmão. Encontrarei fortes braços para me ajudar!
— Não aqui... E não agora. — a voz de Morgenes era firme, seus olhos brilhantes imponentes. — Você se verá de volta a uma masmorra, e desta vez irá para uma rápida decapitação particular. Será que ainda não se deu conta? Precisa chegar a um lugar forte, onde esteja a salvo de traições, antes de poder reivindicar qualquer coisa. Muitos reis aprisionaram e mataram seus parentes... A maioria escapou impune. É preciso mais do que brigas familiares para excitar a população.
— Certo. — disse Josua, relutante. — Todavia, mesmo que esteja certo, como devo escapar? — um acesso de tosse o sacudiu. — Os portões do castelo... Estão... Estão sem dúvida fechados durante a noite. Devo ir até o portão interno vestido como um menestrel viajante e tentar cantar para sair?
Morgenes sorriu. Simon ficou impressionado com o espírito indômito do Príncipe sombrio, que uma hora antes estivera acorrentado em uma cela úmida, sem esperança de resgate.
— Acontece que você não me pegou desprevenido com essa pergunta... — disse o doutor. — Por favor, observe.
O ancião caminhou até o fundo da longa câmara, até o canto onde Simon certa vez chorara contra a parede de pedra áspera. Gesticulou para o mapa estelar cujas constelações conectadas formavam um pássaro de quatro asas. Com uma pequena reverência, afastou o mapa. Atrás dele havia um grande buraco quadrado escavado na rocha, com uma porta de madeira.
— Como já demonstrei, Pryrates não é o único que conhece portas ocultas e passagens secretas. — o doutor riu baixinho. — O Sacerdote de Capa Vermelha é um recém-chegado e ainda tem muito a aprender sobre o castelo que tem sido meu lar por mais tempo do que vocês dois poderiam imaginar.
Simon estava tão animado que mal conseguia ficar parado, entretanto a expressão de Josua era de dúvida.
— Para onde vai, Morgenes? — perguntou. — De pouco me adiantaria escapar da masmorra e do tormento de Elias apenas para me encontrarem no fosso de Hayholt.
— Não tema. Este castelo foi construído sobre um labirinto de cavernas e túneis... Sem mencionar as ruínas do castelo mais antigo abaixo de nós. O labirinto inteiro é tão vasto que nem eu conheço metade dele, todavia o conheço bem o suficiente para lhe dar uma passagem segura para fora. Venha comigo.
Morgenes conduziu o Príncipe, que se apoiou no braço de Simon, até a mesa que cobria os aposentos; ali, abriu um pergaminho enrolado cujas bordas estavam cinzentas e enrugadas pelo tempo.
— Veja bem... — disse Morgenes. — Não fiquei ocioso enquanto meu jovem amigo Simon aqui jantava. Este é um mapa das catacumbas. É apenas parcial, porém com sua rota marcada. Se segui-lo à risca, se encontrará na superfície, no cemitério além dos muros de Erchester. De lá, tenho certeza de que poderá encontrar o caminho para um refúgio seguro durante a noite.
Depois de estudarem o mapa, Morgenes puxou Josua de lado e os dois se envolveram em uma conversa sussurrada. Simon, sentindo-se mais do que um pouco excluído, levantou-se e examinou o mapa. Morgenes havia marcado o caminho com tinta vermelha brilhante; sua cabeça girava acompanhando as curvas e giros.
Quando os dois homens terminaram a conversação, Josua pegou o mapa.
— Bem, velho amigo... — disse ele. — Se tenho que ir, que vá rápido. Não seria sensato passar mais uma hora aqui em Hayholt. Pensarei com cuidado sobre essas outras coisas que me contou. — seu olhar percorreu o quarto abarrotado. — Só temo o que seus atos de bravura podem lhe trazer.
— Não há nada que você possa fazer sobre isso, Josua. — respondeu Morgenes. — E não estou sem defesas próprias, ainda possuo algumas fintas e truques que posso empregar. Assim que Simon me contou que o encontrou, comecei a fazer alguns preparativos. Há muito tempo temia que minha mão fosse forçada; ela só foi ligeiramente adiantada. Aqui, pegue esta tocha.
Dito isto, o pequeno doutor removeu um tição da parede e o entregou ao Príncipe, dando-lhe em seguida um saco que estava pendurado ao lado em um gancho.
— Coloquei um pouco de comida aqui e um pouco mais da bebida curativa. Não é muito, contudo você precisa viajar com pouca bagagem. Por favor, se apresse. — o ancião ergueu o mapa estelar, afastando-o da porta. — Mande-me uma mensagem assim que estiver a salvo em Naglimund e terei mais coisas para contar.
O Príncipe assentiu, mancando devagar para a entrada do corredor. A chama da tocha projetou sua sombra para longe, no poço escuro, enquanto se virava.
— Jamais esquecerei isso, Morgenes. — disse ele. — E você, meu jovem... Fez uma coisa corajosa hoje. Espero que seja a construção do seu futuro, algum dia.
Simon ajoelhou-se, envergonhado pelas emoções que sentia. Josua parecia tão abatido e sombrio... Ele sentiu orgulho, tristeza e medo o puxando, seus pensamentos agitados e turvos.
— Adeus, Josua! — disse Morgenes, pousando a mão no ombro de Simon. Juntos, eles observaram a tocha do Príncipe recuar pela passagem baixa até ser engolida pela escuridão. O doutor fechou a porta e colocou a cortina de volta no lugar.
— Venha, Simon... — chamou então. — Ainda temos muito a fazer. Pryrates dará falta do seu convidado nesta Noite Empedrada, e não creio que vá gostar.
***
Um intervalo se passou em silêncio. Simon balançou os pés do seu poleiro sobre a mesa, assustado, contudo ainda assim saboreando a excitação que preenchia o cômodo que agora pairava sobre todo o velho e sóbrio castelo. Morgenes esvoaçava de um lado para o outro, passando apressadamente de uma tarefa incompreensível para outra.
— Fiz a maior parte disso enquanto você comia, no entanto seguem faltando algumas coisas, algumas pontas soltas.
A explicação do homenzinho não esclareceu Simon nem um pouco, todavia as coisas estavam acontecendo rápido o suficiente para satisfazer até mesmo sua natureza impaciente. Sua cabeça assentiu e seus pés balançaram um pouco mais.
— Bom, suponho que seja tudo o que posso fazer esta noite. — disse Morgenes por fim. — É melhor você voltar e ir para a cama. Venha aqui cedo de manhã, talvez logo depois de fazer suas tarefas.
— Tarefas? — ofegou Simon. — Tarefas? Amanhã?
— É claro! — retrucou o doutor. — Não acha que algo fora do comum vai acontecer, acha? Acha que o Rei vai anunciar: ‘Ah, a propósito, meu irmão escapou da masmorra ontem à noite, então todos nós tiraremos um feriado e iremos procurá-lo’... Você não acha isso, certo?
— Não, eu...
— E com certeza não dirá: ‘Raquel, não posso fazer minhas tarefas porque Morgenes e eu estamos tramando uma traição’, não é?
— Claro que não...
— Ótimo. Então fará suas tarefas e voltará o mais rápido possível, e depois avaliaremos a situação. Isso é muito mais perigoso do que imagina, Simon, mas receio que agora faça parte disto, para o bem ou para o mal. Esperava mantê-lo fora de tudo...
— De tudo o quê? Parte do quê, doutor?
— Deixa pra lá, garoto. Seu prato já não está cheio o suficiente? Tentarei explicar o que puder com segurança amanhã, porém a Noite Empedrada não é a melhor ocasião para falar de coisas como...
As palavras de Morgenes foram interrompidas por uma forte batida na porta externa. Por um momento, Simon e o ancião ficaram se encarando; após uma pausa, as batidas se repetiram.
— Quem está aí? — chamou Morgenes, com uma voz tão calma que Simon teve que olhar de novo para o medo estampado no rosto do homenzinho.
— Inch. — foi a resposta.
Morgenes relaxou visivelmente.
— Vá embora! — respondeu. — Já disse que não preciso de sua ajuda esta noite.
Houve um breve silêncio.
— Doutor... — sussurrou Simon. — Acho que vi Inch mais cedo...
A voz monótona tornou a soar.
— Acho que deixei algo... Deixei no seu quarto, doutor.
— Volte e pegue outra hora! — contestou Morgenes, e desta vez a irritação era genuína. — Estou ocupado demais para ser incomodado agora.
Simon tentou de novo.
— Acho que o vi quando eu estava carregando Jos...
— Abra esta porta imediatamente... Em nome do Rei!!
Simon sentiu um desespero frio apertar seu estômago: aquela nova voz não pertencia a Inch.
— Pelo Crocodilo Menor! — Morgenes praguejou, em suave espanto. — Esse estúpido de olhos de vaca nos entregou. Não achei que tivesse juízo... Não serei mais incomodado! — gritou então, pulando para a mesa comprida e se esforçando para empurrá-la para a frente da porta interna trancada. — Sou um velho e preciso descansar!
Simon saltou para ajudar, seu terror misturado a uma inexplicável onda de euforia.
Uma terceira voz chamou do corredor, uma voz cruel e rouca.
— Seu descanso será realmente longo, velho.
Simon tropeçou e quase caiu quando seus joelhos cederam. Pryrates estava ali.
Um barulho horrível de algo sendo triturado começou a ecoar pelo corredor interno quando Simon e o doutor por fim deslizaram a pesada mesa para o lugar.
— Machados! — disse Morgenes, e correu pela mesa em busca de algo.
— Doutor! —sibilou o garoto, saltando de susto. O som de madeira lascada reverberou lá fora. — O que podemos fazer?
Ele se virou e se viu diante de uma cena de loucura.
Morgenes estava ajoelhando sobre a mesa, agachado ao lado de um objeto que Simon reconheceu como uma gaiola. O doutor tinha o rosto colado às barras finas; ele arrulhava e murmurava para as criaturas lá dentro, enquanto Simon ouvia a porta externa cair com estrondo.
— O que você está fazendo? — Simon gritou. Morgenes saltou para baixo carregando a gaiola e correu pelo cômodo até a janela. Ao ouvir o grito de Simon, se virou para olhar calmamente para o jovem apavorado, depois esboçou um sorriso triste e balançou a cabeça.
— Claro, garoto... — disse ele. — Preciso providenciar para você também, assim como prometi ao seu pai. Como tivemos pouco tempo!
O doutor colocou a gaiola no chão e correu de volta para a mesa, onde tateou a desordem enquanto a porta do quarto começava a balançar com o impacto de golpes pesados. Vozes ásperas podiam ser ouvidas, assim como o estrondo de homens em armaduras. Morgenes encontrou o que procurava, uma caixa de madeira, e a virou, despejando algo dourado e brilhante em sua palma. Virou-se de volta para a janela, então parou e recuperou também um maço de pergaminhos finos do caos do tampo da mesa.
— Pegue isto, por favor? — pediu, entregando o embrulho a Simon enquanto corria de volta para a janela. — É a minha biografia do Preste John, e não quero dar a Pryrates o prazer da crítica.
Estupefato, Simon pegou os papéis e os enfiou na cintura, por baixo da camisa. O doutor enfiou a mão na gaiola e retirou um de seus pequenos habitantes, segurando-o na mão. Era um pequeno pardal cinza-prateado; enquanto Simon observava, atordoado e entorpecido, o ancião amarrou calmamente um objeto brilhante à perna do pardal com um pedaço de barbante... Seria um anel? Um pequeno pedaço de pergaminho já estava preso à outra perna.
— Seja forte com este fardo pesado. — disse ele baixinho, falando, ao que parecia, com o passarinho.
A lâmina de um machado atravessou a pesada porta logo acima do ferrolho. Morgenes se abaixou, pegou um longo graveto do chão e quebrou a janela alta, depois ergueu o pardal até o parapeito e o soltou. O pássaro saltou ao longo do batente por um instante, depois alçou voo e desapareceu no céu noturno. Um por um, o doutor soltou mais cinco pardais dessa forma, até que a gaiola ficou vazia.
Um grande pedaço de madeira foi arrancado do centro da porta; Simon podia ver os rostos furiosos e o clarão da luz da tocha no metal do outro lado da entrada.
O doutor acenou.
— O túnel, garoto, e rápido!
Atrás deles, outro pedaço irregular de madeira se soltou, caindo no chão. Enquanto atravessavam a habitação com pressa, o ancião entregou a Simon algo pequeno e redondo.
— Esfregue isto e terá luz, Simon. — disse ele. — É melhor do que uma tocha. — o doutor empurrou a cortina para o lado e abriu a porta. — Vá, rápido! Procure a Escadaria Tan’ja e suba!
Quando o garoto entrou na entrada do corredor, a grande porta cedeu nas dobradiças e desabou. Morgenes se virou.
— Doutor! — gritou Simon. — Venha comigo! Podemos escapar!
O homenzinho olhou de volta e sorriu, balançando a cabeça. A mesa diante da porta foi virada com um estilhaço de vidro, e um grupo de homens armados, vestidos de verde e amarelo, começou a passar pelos destroços. No meio da Guarda Erkyna, agachado como um sapo em um jardim de espadas e machados, estava Breyugar, o Lorde Condestável. No corredor cheio de lixo, erguia-se a figura corpulenta de Inch... E atrás deste, o manto de Pryrates brilhava em escarlate.
— Pare! — uma voz trovejou pela habitação.
Simon ainda conseguia se maravilhar, em meio a todo o seu medo e confusão, que tal som pudesse vir do frágil corpo de Morgenes. O doutor estava agora diante do Guarda Erkyna, seus dedos abertos em um gesto estranho. O ar começou a se curvar e tremular entre o doutor e os soldados assustados. A própria substância do nada pareceu se solidificar enquanto as mãos de Morgenes dançavam em padrões estranhos. Por um instante, as tochas delinearam a cena diante dos olhos de Simon como se estivesse congelada em uma tapeçaria antiga.
— Deus te abençoe, garoto! — sibilou Morgenes. — Vá! Agora!
Simon recuou mais um passo pelo corredor.
Pryrates passou pelos guardas atordoados, uma sombra vermelha e borrada atrás da parede de ar. Uma de suas mãos se projetou; uma teia fervente e cintilante de faíscas azuis marcava onde tocava o ar cada vez mais denso. Morgenes cambaleou, e sua barreira começou a derreter como uma camada de gelo. O doutor se abaixou e pegou um par de béqueres de uma prateleira no chão.
— Parem esse jovem! — gritou Pryrates, e de repente Simon pôde ver seus olhos acima do manto escarlate... Olhos negros e frios, olhos serpentinos que pareciam segurá-lo... Transfixá-lo...
A parede de ar se dissolveu.
— Levem-nos! — cuspiu o Conde Breyugar, e os soldados avançaram.
Simon observava com fascínio doentio, querendo correr, porém incapaz, nada entre ele e as espadas dos guardas erkynos além de... Morgenes.
— ENKI ANNUKHAI SHI’IGAO! — a voz do doutor ressoou e soou como um sino feito de pedra.
Um forte vento uivava pela câmara, extinguindo as tochas. No centro do turbilhão, Morgenes estava de pé, com um frasco em cada mão estendida. No breve instante de escuridão, ouviu-se um estrondo, seguido de um clarão de incandescência quando os béqueres de vidro se estilhaçaram em chamas. Num piscar de olhos, jatos de fogo escorreram pelos braços da capa de Morgenes, e então sua cabeça foi envolta em línguas de fogo saltitantes e crepitantes. Simon foi fustigado por um calor terrível quando o ancião se virou para ele mais uma vez; o rosto de Morgenes parecia se desvanecer e se transformar por trás da névoa ardente que o envolvia.
— Vá, meu Simon! — ele sussurrou, e sua voz foi tomada por chamas. — É tarde demais para mim. Vá até Josua.
Enquanto Simon cambaleava para trás, horrorizado, a figura frágil do doutor saltou com um brilho ardente. Morgenes girou. Dando alguns passos hesitantes, lançou-se com os braços estendidos sobre os guardas que gritavam e recuavam, que se atacavam em seu desespero para escapar de volta pela porta quebrada. Chamas infernais subiam, enegrecendo as vigas do telhado que rangiam. As próprias paredes começaram a tremer. Por um breve momento, Simon ouviu a voz áspera e sufocada de Pryrates entrelaçada com os sons das agonias finais de Morgenes... Então houve um grande estalo de luz e um rugido ensurdecedor. Um chicote de ar quente arremessou o garoto pela passagem, fechando a porta atrás com um estrondo semelhante ao do Martelo do Julgamento. Atordoado, ele ouviu o rangido e o estridente estilhaço das vigas do telhado desabando. A porta estremeceu, presa por toneladas de madeira e pedra.
***
Por um longo tempo, ele ficou deitado, atormentado por soluços, as lágrimas dos olhos evaporadas pelo calor. Por fim, se levantou. Encontrou a parede de pedra quente com a mão e desceu cambaleando para a escuridão.
Notas:
1. Belthainn é realizado dia 1 de maya.
2. Uma gazua é um instrumento, geralmente metálico, com formato específico para manipular os mecanismos internos de uma fechadura e abri-la. Devido ao seu uso ser associado a furtos, sua posse, fabricação e vendas podem ser ilegais.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário