sexta-feira, 22 de agosto de 2025

The Magnus Archives — Primeira Temporada — Capítulo 04

Primeira Temporada  Capítulo 04: Vire a Página

Rusty Quill Apresenta “Os Arquivos Magnus”
Episódio quatro: Vire a Página



JONATHAN SIMS

Depoimento de Dominic Swain a respeito de um livro que esteve brevemente em sua posse no inverno de 2012. Depoimento original prestado em 28 de junho de 2013. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista-Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.



JONATHAN SIMS (Depoimento)

Trabalho como técnico de teatro em vários locais no West End; lido em sua maior parte com iluminação, mas muitos dos locais menores não podem pagar equipes grandes para suas produções, então você acaba fazendo um pouco de tudo. Acho que isso não é diretamente relevante para a minha experiência, mas só quero que saiba que não sou um louco que aparece por aí. Eu trabalho, faço coisas práticas com as mãos e não sou propenso a fantasias malucas.

Naquele dia, eu ia assistir a uma matinê de As Troianas no The Gate Theatre, em Notting Hill. Uma amiga minha, Katherine Mendes, estava lá e vinha tentando me convencer a assistir há algum tempo. Tínhamos trabalhado juntos em uma produção de A Gaivota alguns anos antes e tivemos um caso na época. A essa altura, eu tinha acabado de ficar solteiro, então estava ansioso para encontrá-la e ver se ainda restava alguma chama antiga. Acabei indo na tarde de sábado, 10 de novembro... Lembro com exatidão do dia, pois houve muita discussão sobre isso, já que ambos estávamos envolvidos em espetáculos separados na época, o que dificultava as noites.

Então, na tarde de sábado, me vi em Notting Hill Gate, matando uma ou duas horas antes do espetáculo começar. Bem, Notting Hill não é um lugar que eu vá com frequência, pois tende a ser caro, mesmo para os padrões londrinos, e não sei o quanto você sabe sobre técnicos de teatro, porém não costumamos ser uma profissão muito bem remunerada. Ainda assim, tinha algumas vagas lembranças de que havia uma loja de caridade da Oxfam em algum lugar próximo, pois já havia comprado lá uma túnica militar antiga e muito bonita, que continua sendo um dos meus casacos favoritos. Encontrei-a sem problemas e passei uns dez minutos olhando as roupas e bugigangas, contudo fiquei um pouco desapontado. Era menor do que me lembrava e parecia conter as mesmas curiosidades tediosas de qualquer outro brechó. Ainda tinha um tempo livre, então decidi dar uma olhada nos livros deles, algo que não costumo fazer.

Encontrei o livro na seção de Ficção Científica e Fantasia. De início, presumi que fosse algum tipo de edição especial em couro sintético e tinha certeza de que quem o colocou à venda devia ter pensado o mesmo, porque o preço era de apenas quatro libras. Havia algo nele que me fez dar uma olhada, e, pegando-o, senti a encadernação e percebi que podia ser feito em couro legítimo, talvez de bezerro, dada a maciez. De forma alguma sou especialista em livros, no entanto parecia antigo, e pensei que pudesse ter sido encadernado à mão, pois as páginas estavam um pouco irregulares. Não havia sobrecapa e a capa não tinha título, todavia gravadas na lombada, em letras douradas desbotadas, estavam as palavras Ex Altiora. Estudei latim na escola quando era criança, mas não tive muitos motivos para usá-lo desde então, assim sendo me perdoem se minhas traduções não fizerem muito sentido, porém acredito que significava “Do Alto” ou “Além Das Alturas”.

Fiquei atônito, era evidente que o livro valia muito mais do que o preço de venda. Se o vendedor que o colocou à venda tivesse prestado atenção, teria sido na vitrine onde guardavam as coisas valiosas que as pessoas doavam. Dei uma olhada no conteúdo, contudo parecia estar todo escrito em latim, assim não tive muita sorte em descobrir do que se tratava. A única coisa em inglês era um ex-libris
¹ na capa que dizia “Da biblioteca de Jurgen Leitner”, embora nenhum autor estivesse listado. Havia também várias ilustrações em preto e branco... Xilogravuras, suponho, cada uma mostrando uma montanha ou um penhasco ou, em uma imagem, o que parecia ser um céu noturno vazio.

Senti uma sensação estranha ao olhar para aquela imagem, como se, por mais simples que fosse, estivesse prestes a cair nela, e meu estômago deu uma revirada estranha, quase me fazendo deixar o livro cair no meio da Oxfam.


Resolvi comprá-lo. Mesmo que nunca viesse a descobrir como ler o livro, era óbvio que valia muito mais do que o preço pelo qual estavam vendendo. Me senti um pouco babaca por não ter contado a eles o quanto era valioso, quase como se estivesse roubando dinheiro da caridade, contudo no final percebi que não era meu trabalho definir os preços naquela loja e, além do mais, este livro me fascinou completamente. A mulher que estava no caixa nem levantou uma sobrancelha quando o levei e paguei minhas quatro libras. Saí, na esperança de encontrar um café onde pudesse sentar e dar outra olhada melhor, no entanto foi só então que vi as horas. De alguma forma, tinha conseguido passar uma hora naquela loja e agora estava quase atrasado para a peça de Katherine. Por sorte cheguei a tempo, embora tive que correr um pouco.

O espetáculo foi bom. Nunca fui um grande fã de peças gregas, e esta interpretação não foi a que me conquistou. Katherine foi excelente, é claro, no entanto o resto do espetáculo foi, sendo bastante franco, um pouco trivial. Mesmo assim, não sou crítico de teatro e não estava prestando a máxima atenção, pois estava convencido de que havia um problema com as luzes do palco. Durante todo o espetáculo, senti um leve cheiro de ozônio e fiquei preocupado. A única outra vez que senti isso no teatro foi quando um dos meus ajudantes de palco encomendou por engano o tipo errado de luz e acabamos instalando um projetor com uma lâmpada de xenônio-mercúrio, o tipo usado para esterilizar equipamentos médicos com UV. Percebi o problema antes que qualquer coisa acontecesse, entretanto ainda me lembro daquele cheiro intenso de ozônio. Apesar disso, ninguém mais pareceu notar e não consegui ver nada na iluminação deles que pudesse ter causado o odor, então tentei ao máximo ignorá-lo.

Depois que a apresentação terminou, Katherine e eu tivemos um rápido jantar antes de irmos para nossos respectivos espetáculos noturnos. Fiquei decepcionado ao descobrir que qualquer atração que houvesse entre nós parecia ter desaparecido por completo e, embora tenhamos passado algumas horas agradáveis juntos, era óbvio que nenhum de nós queria levar aquilo adiante. Mostrei o livro a ela. Ela sabia ainda menos latim do que eu, todavia ficou impressionada. Disse que parecia valioso e que deveria levá-lo a algum lugar para ser avaliado, embora não o tenha examinado em detalhes, pois as imagens, por algum motivo, lhe causaram vertigem.

Nada de notável aconteceu depois que saí. Fiz meu espetáculo, uma produção de Muito Barulho por Nada no teatro Courtyard, sem problemas. Voltei para casa tarde, depois de ter ido tomar um drinque com o diretor de palco e alguns atores, e me senti acordado demais para só ir para a cama, então me servi de um pouco de gim-tônica e decidi dar uma olhada mais examinadora neste livro. Como esperado, não aprendi mais latim desde que o comprei doze horas atrás, então lê-lo seguia estando fora de questão, mas dei uma olhada mais de perto naquelas xilogravuras. Havia cerca de uma dúzia que encontrei, a maioria montanhas e penhascos, porém uma parecia ser uma torre, pairando sobre a paisagem circundante em um ângulo estranho, com pequenos pássaros apenas visíveis circulando o cume. E havia aquela imagem de um céu vazio. Nunca tive medo de altura, contudo olhando para aquela imagem eu senti... Na verdade não sei. Apenas conseguia olhá-la por muito tempo. Parecia se abrir para sempre, sem nada a fazer a não ser cair dentro. Era ainda mais estranho, pois não havia muito na imagem em si, exceto tinta preta e algumas estrelas estilizadas, no entanto algo nas proporções simplesmente me causou esse efeito.

Concluí que talvez Katherine estivesse certa e que a obra poderia ser valiosa como antiguidade, assim pesquisei para tentar descobrir mais a seu respeito. O latim caiu em desuso como língua para textos acadêmicos no século XVIII e duvidava muito que o livro fosse tão antigo. Desde então, passou a ser usada apenas para textos religiosos, entretanto o livro não aparentava estar cheio de orações.

Pesquisar por Ex Altiora online não adiantou muito, a frase era usada em algumas orações antigas, havia uma empresa chamada Altiora e algo em italiano sobre futebol, todavia nada que se parecesse remotamente com o meu livro. Pesquisar por Jurgen Leitner e não foi muito melhor.

Encontrei uma entrada para um músico austríaco e algumas páginas do Facebook, apesar de todas parecerem ter tremas nos nomes, ao contrário da que estava no livro, e nenhuma delas parecia do tipo que tivesse uma biblioteca cheia de textos estranhos em latim. A única coisa que encontrei que senti ser um pouco relevante foi um anúncio no eBay de 2007. O leilão era intitulado “Chave de Salomão 1863, de propriedade de MacGregor Mathers e Jurgen Leitner” e havia sido ganho por pouco mais de 1.200 libras por um usuário desativado, grbookworm1818. Não havia foto ou descrição, apenas o título e o lance vencedor. Decidi encerrar a noite e ir para a cama. Acho que tive um pesadelo, mas não me lembro dos detalhes.

Dormi até bem tarde no dia seguinte e, quando acordei, já não havia muita luz do dia sobrando, porém passei as horas até o meu show entrando em contato com livreiros que havia pesquisado online. Todos estimaram a idade do livro entre 100 e 150 anos e disseram que parecia ter sido encadernado sob encomenda.

A maioria se ofereceu para comprá-lo de mim por algumas centenas de libras, contudo naquele momento estava mais interessado em informações sobre o livro. Infelizmente, nenhum deles tinha ouvido falar a seu respeito antes, ou parecia familiarizado com seu conteúdo. No entanto a última vendedora com quem falei reconheceu o nome Jurgen Leitner.

Ela me contou que Leitner tinha sido um grande nome na cena literária dos anos 90; um rico recluso escandinavo que pagava quantias absurdas por qualquer livro que lhe agradasse. Dizia-se que mandava encadernar com frequência livros sob medida após entregar um manuscrito, ou até mesmo encomendava obras de autores para ele, embora ela não conhecesse nenhum escritor que tivesse trabalhado com Leitner. Ele desapareceu da vista do público por volta de 1995, entretanto a vendedora se lembrava de que ele costumava ter negócios extensos com a Livraria Pinhole em Morden e me deu os detalhes de Mary Keay, que era a dona da editora.

Fui e fiz meu show depois disso, na última noite da temporada, na verdade, embora não tenha perdido um único sinal de luz, durante todo o tempo apenas não conseguia tirar o livro da cabeça. Sentia como se houvesse algo que me faltasse, um pouco além do meu alcance. E durante todo o tempo conseguia detectar aquele mesmo leve cheiro de ozônio. Era ozônio? Havia algo mais ali, algo que sabia, mas não conseguia me lembrar. Toda vez que sentia que estava perto, era tomado por uma tontura e náusea que ameaçavam me derrubar.

Pulei a festa do elenco depois, em vez disso, fui dar uma longa caminhada para “esvaziar a cabeça” no ar frio de novembro. Não sei por quanto tempo caminhei. Devem ter sido horas, porém parecia ser o certo, como se fosse tudo o que conseguisse fazer. Caminhar parecia tão natural quanto cair. Foi só quando um homem gritou comigo por quase esbarrar nele que parei e avaliei o ambiente. Eu não tinha ideia de onde estava. Peguei meu celular para encontrar a estação mais próxima e vi que estava a apenas uma rua de Morden. Senti uma tontura repentina e, quando olhei para o prédio em frente ao qual estava, não fiquei nem um pouco surpreso ao ver uma placa de latão com os dizeres “Livraria Pinhole — Somente com Hora Marcada” ao lado de uma porta sem identificação de madeira escura. Toquei a campainha e esperei. A mulher que abriu a porta não era nada do que eu esperava. Ela era muito velha e extremamente magra, contudo sua cabeça estava raspada e cada centímetro quadrado de pele que conseguia ver estava tatuado com palavras escritas com precisão em uma caligrafia que não reconheci. A mulher parou ao pé de um lance de escadas, e do topo pude ouvir o som de death metal saindo de alto-falantes potentes. Por um momento, me perguntei se recebia reclamações dos vizinhos, tocando tão alto às duas da manhã, e percebi, assustado, que na verdade eram duas da manhã. Pedi desculpas por incomodá-la tão tarde e perguntei se ela era Mary Keay. Para o qual apenas bufou e perguntou, de forma claramente hostil, se eu tinha um compromisso.

Enfiei a mão na minha bolsa e tirei Ex Altiora, abrindo-o para mostrar o nome de Leitner na placa de identificação. Com isso, seus olhos pareceram brilhar, e ela se virou para subir as escadas. A porta atrás de si não foi fechada, então interpretei isso como um convite e a segui.

Entramos em um conjunto apertado de salas, com livros empilhados em todos os cantos imagináveis, quase a ponto de ter que ter cuidado ao segui-la pelo labirinto, para não pegar o caminho errado. A mulher falava algo, percebi, e não parecia se importar se eu a ouvia por cima da música ou não. Disse que fazia muito tempo que não encontrava um Leitner, embora “seu Gerard” ficasse de olho. Não deu detalhes sobre quem poderia ser seu Gerard. Aquela velha estranha não pareceu interessada em ler ou examinar meu livro em profundidade, no entanto perguntou se eu queria ver o seu. Apenas assenti. Estava perdido ali, entretanto não fazia ideia do que se passava. Só sabia que não sentia cheiro de ozônio desde que cheguei.

Segui Mary Keay até um escritório sombrio. Era pequeno para começar, todavia todas as paredes estavam cobertas por estantes abarrotadas de livros, que se amontoavam ainda mais no espaço. Imediatamente, minha anfitriã começou a examiná-las com atenção, murmurando para si mesma sobre onde “ele” teria o colocado. Fiquei ali, sem jeito, sem querer encarar a velha senhora, mas também hesitante em fazer qualquer outra coisa. Além das estantes, havia pouco no cômodo além de uma escrivaninha desgastada com uma cadeira de aparência muito antiga atrás. A escrivaninha estava coberta de papéis, além de linha de pesca e um barbeador. Acho que isso diz algo sobre meu estado de espírito naquele momento, o fato de sequer ter pensado duas vezes nesses itens na época. Em vez disso, minha atenção se fixou em uma imagem presa à única pequena área da parede não coberta por estantes. Era a pintura de um olho. Muito detalhado, e a princípio diria quase foto realista, porém quanto mais eu olhava, mais via os padrões e simetrias que se formavam em uma única imagem, até que fiquei tão focado neles que comecei a ter dificuldade em ver o próprio olho. Escrito abaixo, havia três linhas, em uma refinada caligrafia verde: “Conceda-nos a visão que não podemos conhecer. Conceda-nos o aroma que não podemos sentir. Conceda-nos o som que não podemos chamar.”


Nesse momento, Mary Keay voltou com duas xícaras de chá. Nem me dei conta de que tinha saído, nem tinha pedido a xícara de chá preto que colocou na minha mão. Ela perguntou se gostei da pintura e me disse que seu Gerard a tinha pintado. Disse que era um artista muito talentoso. Murmurei algo em tom de aprovação, não me lembro exatamente o quê, e olhei para a xícara de chá na minha mão. Não me foi oferecido leite e agora a mulher se ocupava procurando nas prateleiras outra vez, sua própria xícara esquecida na mesa. Tentei beber a bebida por educação, contudo o gosto era ruim, como poeira e fumaça. Acho que talvez tenha sido lapsang souchong, no entanto, se for, deve ter sido há anos.

Por fim, Mary pareceu encontrar o livro que procurava e o tirou da prateleira. Ela me entregou um livro que, à primeira vista, parecia quase idêntico ao meu exemplar de Ex Altiora, exceto pelo couro que estava em um estado um pouco melhor. Não havia título neste, embora, ao abri-lo, pude ver que estava escrito em letras que não reconheci. Não havia ilustrações neste livro, e as únicas palavras em inglês que consegui encontrar estavam na placa de livro: “Da biblioteca de Jurgen Leitner”. Tal qual o meu. Mary me disse que a escrita era em sânscrito, entretanto quando a perguntei se conseguia ler, ela simplesmente começou a rir.

Pegando seu livro de volta, caminhou até a escrivaninha, onde a única lâmpada sem cúpula da sala lançava sombras nítidas no chão. Ela deliberadamente segurou o livro naquelas sombras por alguns segundos e então o devolveu para mim. Percebi pela primeira vez que a música heavy metal não estava mais tocando e o quarto estava envolto em silêncio. Abri o livro e, por alguns segundos, fiquei confuso ao ver que nada parecia ter mudado. A escrita ainda era ininteligível para mim e não parecia diferente. Levantei-o para olhar mais de perto e, ao fazê-lo, ouvi algo cair no chão. Olhei para baixo e vi ossos. Pequenos ossos de animais, pelo que pude perceber, todavia cada um estava um pouco curvado e deformado em formas que ossos não deveriam estar. Enquanto os encarava, Mary Keay pegou o livro de volta e o passou pelas sombras mais uma vez. Mais ossos caíram. Ela fez isso várias vezes, até que uma pequena pilha se formou aos meus pés.

Não fazia ideia do que dizer. A essa altura, minha cabeça estava latejando e a sensação daquele lugar apertado e escuro, com seu chá velho e livros antigos, estava começando a me dominar. Tudo o que conseguia pensar em perguntar era se meu livro também fazia o mesmo. Mary Keay riu e me disse para procurar por mim mesmo. Comecei a folhear aquelas páginas. Não tinha passado por nenhuma sombra, mas sabia que alguma coisa havia mudado. As xilogravuras estavam mais nítidas, de alguma forma, e no fundo de cada uma havia novas linhas, grossas e escuras, estendendo-se do céu. E então me deparei com a imagem daquela noite vazia, porém agora tinha um padrão rígido e ramificado esculpindo-a. Um padrão que reconheci. Meu estômago embrulhou, como se o chão tivesse sumido e eu estivesse caindo.

Lutando para me manter de pé, murmurei uma desculpa e fui embora. O cheiro de ozônio havia voltado, mais forte do que nunca, e precisava sair. Caí da escada enquanto fugia, machucando gravemente o quadril e torcendo o tornozelo dolorosamente, contudo não me importei. Saí mancando daquele lugar o mais rápido que pude e chamei um táxi para me levar para casa, com os dedos ainda agarrados com força ao meu livro.

O padrão de ramificação que tinha visto naquela imagem é conhecido como figura de Lichtenberg. Ele mostra os caminhos divergentes da eletricidade em um material isolante, como vidro ou resina. Eu o conhecia pelo padrão de cicatrizes nas costas do meu amigo de infância, que foi atingido por um raio por minha causa. Seu nome era Michael Crew, e tínhamos 8 anos na época, brincando em um campo perto da casa da minha avó. Quando a tempestade chegou, Michael disse que deveríamos entrar, no entanto quis continuar brincando na chuva. Falei para continuarmos, e ele apenas suspirou e me disse que tudo bem. Foi quando disse essas palavras que foi atingido. O som, quando aquilo aconteceu, foi tão alto que abafou por completo seus gritos, entretanto foi o cheiro que de fato me marcou: aquele cheiro forte de ozônio, entremeado pelo aroma de carne assada. Michael sobreviveu, no final, todavia a cicatriz, aquela cicatriz ramificada de Lichtenberg, permaneceu pelo resto da sua vida.

Quando cheguei em casa, precisei de toda a minha concentração para subir as escadas e, quando por fim consegui sentar no sofá, não conseguia me livrar da sensação de estar caindo. O cheiro era tão forte que mal conseguia respirar. Não olhei para o livro, apenas fiquei ali deitado. Senti como se estivesse esperando por algo, mas não fazia ideia do quê.

Quando enfim bateram na porta, já estava quase me sentindo calmo o suficiente para atender. Quase. Ainda levei cerca de cinco minutos para criar coragem e abrir. A batida não voltou, porém eu tinha certeza de que o que quer que estivesse do outro lado não havia desaparecido. Estendi a mão, agarrei a maçaneta e abri a porta. Parado logo na soleira da porta, havia um homem com um longo casaco de couro escuro. Seu cabelo estava tingido de um preto artificial e tinha a aparência de quem não dormia havia alguns dias, com a barba por fazer. Perguntei se era Gerard Keay. O homem respondeu que sim e disse que gostaria de ver meu livro. Assenti silenciosamente e ele me seguiu para dentro, fechando a porta atrás de si.

Peguei o livro e o coloquei sobre a mesa. Gerard o estudou por algum tempo, contudo não o tocou. Ao fim, assentiu e se ofereceu para comprá-lo de mim por cinco mil libras. Quase ri quando o ouvi. Teria o vendido por uma fração do valor. Poderia até tê-lo doado, se não fosse pela sensação de que aquilo... Não contaria de alguma forma. É difícil de explicar. Não me importava com o que planejava fazer com o livro, só queria me livrar dele, então concordei.

Gerard não pareceu feliz com a notícia. Apenas fez um aceno firme e se dirigiu para a porta, dizendo que precisava pegar o dinheiro e voltar. Não tentei impedi-lo. Ele saiu, fechando a porta atrás de si e fiquei sozinho novamente. O encontro todo durou pouco mais de um minuto.

Fiquei sentado ali, esperando em silêncio que voltasse. Era horrível, e precisava encontrar uma maneira de me distrair do cheiro insidioso, então decidi pegar meu computador e ver o que poderia descobrir sobre Gerard e Mary Keay. Digitando seus nomes, não sei que tipo de coisa esperava encontrar, no entanto com certeza não era uma notícia de 2008 sobre o assassinato de Mary Keay. A polícia invadiu o local no final de setembro, depois que vizinhos reclamaram do cheiro, e a encontraram morta no escritório. A causa da morte foi aparentemente determinada como uma overdose de analgésicos, embora foi julgada como assassinato devido à “extensa mutilação post-mortem
² do corpo”. Grandes pedaços de sua pele foram arrancados e pendurados para secar em fios de pesca, por todo o cômodo. O artigo trazia uma foto de Mary Keay, e não havia dúvida de que era a mesma senhora que vi em Morden, embora na fotografia ela parecesse ter cabelos fartos e não tivesse tatuagens visíveis.

Comecei a procurar freneticamente por qualquer outra informação que pudesse encontrar. Outras notícias cobriam o julgamento de Gerard pelo assassinato de sua mãe. Pelo visto, ele havia sido absolvido após uma prova significativa ser considerada inadmissível, embora nenhuma das reportagens parecesse saber ao certo qual era essa prova. Foi nesse momento que bateram de novo na porta. Gerard havia retornado.

Abri a porta. Por um momento pensei em não o deixar entrar, mas sabia que me esperaria lá o tempo que precisasse, e não consegui pensar direito por causa do cheiro de ozônio que penetrava em todos os meus sentidos. Não consegui esconder o terror no meu rosto quando entrou, porém se ele notou a mudança no meu comportamento, não reagiu. Apenas me entregou um envelope cheio de dinheiro. Nem me dei ao trabalho de contar antes de entregá-lo o livro. Ele olhou o título e o folheou rapidamente, antes de rir, apenas uma vez, e assentir, aparentemente para si mesmo, como se tivesse acabado de tomar uma decisão.

Eu esperava que Gerard fosse embora logo em seguida, mas em vez disso, ele foi até minha lixeira de metal e colocou o livro lá dentro. Enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um frasco de fluido de isqueiro e uma caixa de fósforos. Em poucos segundos, o livro estava em chamas e o cheiro desapareceu pouco depois. Mesmo quando minha mente começou a clarear, senti que precisava perguntar por quê, porém ele apenas balançou a cabeça.

— Minha mãe nem sempre sabe o que é melhor para a nossa família.

Foi tudo o que disse antes de pegar a lixeira, agora cheia de cinzas fumegantes. Avisei que estaria quente demais para segurar, contudo ele deu de ombros e disse que já tinha passado por coisa pior. Então Gerard Keay foi embora, e nunca mais o vi, nem o livro.



JONATHAN SIMS

Depoimento encerrado.

Se eu nunca mais ouvir o nome de Jurgen Leitner, será cedo demais. Suponho que era esperar demais que enfim tivéssemos lidado com tudo o que restou de sua biblioteca após o incidente de 1994, no entanto teria sido útil se Gertrude tivesse ao menos pensado em adicionar esta declaração aos registros do projeto atual. Quem sabe quantas outras declarações existem aqui que podem tratar de seus livros ou outros projetos do Instituto atualmente ativos? Se a minha sorte até agora servir de referência, então diria que é improvável que este tenha sido um exemplo isolado. Quanto mais descubro sobre este arquivo, mais parece que Gertrude apenas pegou as declarações escritas e as jogou nestes registros sem nem mesmo lê-las. Considerando que ela foi Arquivista-Chefe por mais de cinquenta anos, então... Este pode ser um trabalho maior do que imaginei a princípio.

Independentemente disso, a maioria dos detalhes verificáveis no relato do Sr. Swain parecem coincidir com nossas próprias pesquisas. Martin não conseguiu encontrar nenhum registro de Ex Altiora como título em catálogos existentes de literatura esotérica ou similar, então designei Sasha para verificar outra vez. Nada ainda. É possível que o Sr. Swain tenha errado o título? Parece improvável, dada a simplicidade do título, e as... Ocorrências que descreve de fato parecem ter sido devidas à proximidade de um verdadeiro tomo de Leitner.

Ainda assim, todos os outros livros de sua biblioteca são edições personalizadas de textos conhecidos sobre demonologia ou o arcano. Se houver Leitners por aí dos quais nunca ouvimos falar, temo que possa ser motivo para um pequeno alarme.

Todavia, detalhes úteis para acompanhamento são raros. Os registros de doações na loja de caridade da Oxfam em Notting Hill Gate só têm doações anônimas listadas para livros em outubro/novembro de 2012, e é claro que nenhum membro da equipe se lembra do livro. Também não conseguimos localizar Gerard Keay. Além deste encontro, ele parece ter desaparecido quase completamente após o fim do julgamento. A descrição feita pelo Sr. Swain parece corresponder às fotos de arquivo de Gerard e Mary Keay, e por sua descrição, parece que encontrou o caminho para o que costumava ser a Livraria Pinhole em Morden, embora esteja fechada desde 2008 por motivos óbvios, e nenhum novo inquilino se mudou até 2014. Havia uma coisa interessante que Tim descobriu, no relatório policial oficial sobre a morte de Mary Keay... Ao que tudo aparenta, as camadas de pele secando haviam sido escritas com marcador permanente. Não havia transcrição ou tradução no relatório, mas o idioma identificado era o sânscrito.

Portanto, não parece que tenhamos nenhuma pista concreta para prosseguir. Mesmo assim, vou discutir o assunto com Elias e recomendar que a busca por quaisquer outros livros desaparecidos da biblioteca Leitner seja a maior prioridade deste Instituto. Jurgen Leitner já causou danos suficientes ao mundo e precisamos buscar todos os meios disponíveis para garantir que não cause mais.

Fim da gravação.


Notas:
1. Ex-libris significa “dos livros de” e é uma marca de propriedade colocada em livros, geralmente na parte interna da capa ou na folha de rosto, para indicar o proprietário. Essa marca, muitas vezes, assume a forma de uma etiqueta, selo ou ilustração, e pode conter o nome do proprietário, um brasão, um desenho ou até mesmo um lema.
2. Posterior à morte.

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