sábado, 10 de agosto de 2024

Elric de Melniboné: A Fortaleza da Pérola — Tomo 02— Capítulo 06

Tomo 02 — Capítulo 06: Como um Ladrão Pode Instruir um Imperador


Existe uma filha nascida em sonhos
Cuja carne é neve, cujos olhos são rubis
Que fitam reinos cuja substância parece
Forte como agonia, ao mesmo tempo em que suave como mentiras?
Existe uma menina nascida de sonhos
Quem carrega sangue tão antigo quanto o Tempo,
Destinado um dia a se misturar com o meu
E dar a novas terras uma nova rainha?

— A Crônica da Espada Negra



Oone removeu o caroço de tâmara da boca e o jogou na areia do Oásis da Flor Prateada. Sua mão se estendeu para uma das flores brilhantes do cacto que deu nome ao lugar, acariciando as pétalas com dedos longos e delicados. Cantou para si mesma e Elric teve a impressão de que suas palavras eram um lamento.

Respeitosamente, ele permaneceu em silêncio, sentado de costas para uma palmeira, olhando para o acampamento distante e sua atividade contínua. Ela pediu para acompanhá-la, mas pouco falou. Ouviu um chamado vindo do kashbeh lá no alto, porém quando olhou naquela direção não viu nada. A brisa soprava sobre o deserto e a poeira vermelha corria como água em direção as Colunas Acidentadas no horizonte.

Era quase meio-dia. Haviam retornado ao Oásis da Flor Prateada naquela manhã, e os poucos restos de Alnac Kreb seriam queimados com honra, de acordo com os costumes dos Bauradim naquela noite.

O báculo de Oone não estava mais pendurado em suas costas. Agora o segurava com as duas mãos, virando-o várias vezes, observando a luz brilhando e polindo-o como se o tivesse visto pela primeira vez. O outro báculo, de Alnac, havia colocado em seu cinto.

— Teria tornado minha tarefa um pouco mais fácil... — disse Oone de repente. — Se Alnac não tivesse agido tão precipitadamente. Ele não percebeu que eu estava vindo e estava fazendo o possível para salvar a criança, eu sei. Porém apenas mais algumas horas e poderia ter usado sua ajuda, talvez com sucesso. Com certeza poderia tê-lo salvado.

— Não compreendo o que aconteceu com ele. — disse Elric.

— Nem eu sei a causa exata de sua queda. — disse ela. — Contudo explicarei o que puder. Foi por essa razão que pedi que viesse comigo. Não gostaria de ser ouvida. E devo exigir sua palavra de que será discreto.

— Sempre o sou, senhora.

— Para sempre... — exigiu.

— Para sempre?

— Você deve prometer nunca contar a outra alma o que lhe digo hoje, nem relatar qualquer evento que resulte do relato. Deve concordar em ficar vinculado ao código de um ladrão de sonhos, mesmo que não pertença ao nosso ofício.

Elric ficou perplexo.

— Por que razão?

— É seu desejo salvar a Jovem Santa deles? Vingar Alnac? Libertar-se da escravidão da droga? Ajustar certas iniquidades em Quarzhasaat?

— É óbvio que sim.

— Então poderemos chegar a um acordo, pois é certo que, a menos que nos ajudemos, você e a garota, e talvez eu também, estaremos todos mortos antes que a Lua de Sangue desapareça.

— Está segura? — questionou Elric com regozijo sombrio. — É também uma oracula, senhora?

— Todos os ladrões de sonhos são, até certo ponto. — ela estava quase impaciente, como se falasse com uma criança devagar em sua compreensão. Contendo-se. — Perdoe-me. Esqueci que nossa arte é desconhecida nos Reinos Jovens. Na verdade, é raro que viajemos para este plano.

— Conheci muitos seres sobrenaturais em minha vida, minha senhora, no entanto poucos que parecem tão humanos quanto você.

— Humano? Claro que sou humana! — exclamou confusa. Então sua testa clareou. — Ah. Esqueci que você é ao mesmo tempo mais sofisticado e menos instruído do que aqueles de meu ofício. — falou, dirigindo-lhe um sorriso. — Ainda não estou recuperada da dissolução desnecessária de Alnac.

— Ele não precisava ter morrido. — o tom de Elric era neutro e inquestionável. Conhecia Alnac há tempo suficiente para considerá-lo um amigo. Ele entendeu algo da perda de Oone. — E não há como reanimá-lo?

— Toda sua essência foi perdida. — disse Oone. — Em vez de roubar um sonho, ele foi roubado do seu próprio sonho. — ela fez uma pausa e depois falou rapidamente, como se temesse se arrepender de suas palavras. — Terei sua ajuda, Príncipe Elric?

— Sim. — respondeu sem hesitação. — Se for para vingar Alnac e salvar a menina.

— Ainda se tiver de se arriscar a sofrer destino similar ao de Alnac? O destino que testemunhou?

— Ainda assim. Pode ser pior do que morrer nas mãos de Lorde Gho?

— Sim. — limitou-se a responder Oone.

Elric riu alto de sua franqueza.

— Ah, bem. Será o mesmo, senhora! O mesmo! Qual é a sua proposta?

Ela moveu a mão outra vez em direção às pétalas prateadas, equilibrando o báculo curvado entre os dedos. Estava carrancuda, não totalmente certa do acerto de sua decisão.

— Creio que seja um dos poucos mortais nesta terra que pode compreender a natureza da minha profissão, que saberá o que quero dizer quando falo da natureza dos sonhos e da realidade e como se cruzam. Também acho que possui hábitos mentais que fariam de você, se não um aliado perfeito, então um aliado de quem posso, até certo ponto, depender. Nós, ladrões de sonhos, transformamos uma espécie de ciência em um comércio que logicamente não pode tolerar leis consistentes. Nos últimos tempos nos foi permitido prosseguir com nossa arte com algum sucesso, em grande parte, suspeito, porque somos capazes, até certo ponto, de impor nossas vontades ao caos que encontramos. Isso faz sentido para você, Príncipe Elric?

— Creio que sim. Existem filósofos do meu próprio povo que afirmam que grande parte da nossa magia é na verdade a imposição de uma vontade poderosa sobre a matéria fundamental da realidade, uma habilidade, se quiser, de tornar sonhos realidade. Alguns afirmam que todo o nosso mundo foi criado assim.

Oone parecia satisfeita ante suas palavras.

— Bom. Sabia que havia certas ideias que não precisaria explicar.

— Mas o que quer que eu faça, senhora?

— Quero que me ajude. Juntos podemos encontrar um caminho para o que os Aventureiros Feiticeiros chamam de Fortaleza da Pérola e, ao fazê-lo, um ou ambos de nós poderemos roubar o sonho que prende a criança ao sono perpétuo e libertá-la para a vigília, devolvê-la ao seu povo para ser sua vidente e seu orgulho.

— Os dois estão ligados então? — Elric começou a ficar de pé, ignorando o chamado de seu desejo sempre presente pela droga. — A menina e a Pérola?

— Penso que sim.

— Qual é a ligação?

— Não me cabe dúvida de que ao descobrir isso, descobriremos como libertá-la.

— Perdoe-me, senhora Oone... — disse Elric com amabilidade. — Porém você parece quase tão ignorante quanto eu!

— De certa forma, é verdade que sim. Antes de prosseguir, devo pedi-lo que jure respeitar o Código do Ladrão de Sonhos.

— Eu juro. — disse Elric, e ergueu a mão na qual seu Actorios brilhava para mostrar que jurava por um dos artefatos mais reverenciados de seu povo. — Juro pelo Anel dos Reis.

— Então lhe direi o que sei e o que desejo de ti. — disse Oone. Sua mão livre se entrelaçou no braço de Elric e o conduziu ainda mais para dentro dos bosques de palmeiras e ciprestes. Sentindo nele a fome arrepiante que ansiava pela terrível droga de Lorde Gho, ela pareceu demonstrar alguma simpatia.

— Um ladrão de sonhos... — começou a dizer. — Faz tal qual o título indica. Nós roubamos sonhos. Em sua origem, nossa guilda era composta de verdadeiros ladrões. Aprendemos o truque de entrar nos mundos dos sonhos de outras pessoas e roubar aqueles que eram mais magníficos ou exóticos. Aos poucos, contudo, as pessoas começaram a nos pedir para roubar sonhos indesejados, ou melhor, os sonhos que aprisionavam ou atormentavam amigos ou parentes. Frequentemente, não eram de forma alguma prejudiciais a outrem, exceto a pessoa que o tinha sob seu poder...

Elric interrompeu.

— Está dizendo que um sonho tem alguma realidade material? Que pode ser apreendido, como um volume de versos, digamos, ou uma bolsa de dinheiro, e libertado de seu dono?

— Essencialmente, sim. Ou, devo dizer, nossa guilda aprendeu o truque de tornar um sonho real o bastante para que possa ser tratado dessa forma! — Oone agora riu abertamente da confusão de Elric e parte da preocupação desapareceu de seu semblante por um momento. — É necessário certo talento e muito treinamento.

— E o que fazem com esses sonhos roubados?

— Ora, Príncipe Elric, nós os vendemos no Mercado dos Sonhos, duas vezes por ano. Há um bom comércio em quase qualquer tipo de sonho, não importa quão bizarro ou aterrorizante seja. Há comerciantes que os compram para revendê-los aos clientes que os desejam. Nós os destilamos, é claro, em uma forma que possa ser transportada e posteriormente traduzida. E como fazemos com que os sonhos ganhem substância, somos ameaçados por eles. Essa substância pode nos destruir, como ocorreu com Alnac. Se necessita ter certo caráter, uma estrutura mental, uma certa atitude de espírito, tudo combinado, para proteger-se nos Reinos dos Sonhos. Mas porque codificamos esses reinos, também os tornamos nossos para serem manipulados.

— Terá de me explicar mais... — disse Elric. — Para que eu a acompanhe, senhora!

— Muito bem.

Ela parou na beira do bosque, onde a terra ficava mais empoeirada e formava um território entre o oásis e o deserto que era um pouco dos dois e não era nenhum dos dois. Estudou a terra rachada como se as rachaduras fossem os contornos de um singular e complicado mapa, uma geometria que só ela conseguia entender.

— Estabelecemos regras. — disse Oone. Sua voz estava distante, quase como se falasse consigo mesma. — E codificamos o que descobrimos ao longo dos séculos. E ainda assim estamos sujeitos aos perigos mais inimagináveis...

— Espere um momento. Está sugerindo que Alnac Kreb, por alguma magia conhecida apenas por sua guilda, entrou no mundo dos sonhos da Jovem Santa e lá sofreu aventuras como você ou eu poderíamos sofrer neste mundo material?

— Bem colocado. — assentiu a mulher, se virando com um sorriso estranho nos lábios. — Sim. E a substância de Alnac entrou naquele mundo e foi absorvida por ele, fortalecendo a substância dos sonhos da menina...

— Os sonhos que esperava roubar.

— Sua intenção era roubar apenas um. Aquele que a aprisiona naquele sono perpétuo.

— E então iria vendê-lo no seu Mercado dos Sonhos?

— Talvez.

Era perceptível em seu tom que não estava disposta a discutir esse aspecto do assunto.

— Onde esse mercado é mantido?

— Em um reino além deste, em um lugar onde apenas aqueles de nosso ofício, ou aqueles que nos atendem, podem viajar.

— Você me levaria lá? — Elric perguntou por curiosidade.

Seu olhar era uma mistura de regozijo e cautela.

— É possível. Entretanto primeiro devemos ter sucesso. Devemos roubar um sonho para que possamos negociá-lo lá. Saiba, Elric, tenho todo o desejo de informá-lo de tudo o que deseja aprender, todavia há muitas coisas difíceis de explicar para alguém que não estudou com nossa guilda. Se trata de coisas que apenas podem ser demonstradas ou experimentadas. Não sou uma nativa de seu mundo, nem a maioria dos ladrões de sonhos são desta esfera. Somos nômades errantes, poderia dizer, entre muitos tempos e lugares. Aprendemos que um sonho em um reino pode ser uma realidade inegável em outro, enquanto o que é totalmente prosaico nesse reino pode ser a matéria do pesadelo mais fantástico.

— Toda a criação é tão maleável? — Elric perguntou com um estremecimento.

— Assim deve ser com aquilo que criamos, para que não morra. — disse ela, em um tom de finalidade irônica.

— A luta entre a Lei e o Caos ecoa aquela luta dentro de nós entre a emoção desenfreada e o excesso de cautela, suponho. — ponderou Elric, ciente de que não desejava prosseguir com esta conversa em particular.

Com o pé, Oone traçou linhas na terra vermelha.

— Para saber mais terá de se tornar um aprendiz de ladrão de sonhos...

— Com muito gosto. — disse Elric. — Estou bastante curioso agora, senhora. Você falou de suas leis. Quais são elas?

— Algumas são instrutivas, outras são descritivas. Primeiro direi que determinamos que todo Reino dos Sonhos terá sete aspectos, que nomeamos. Ao nomear e descrever, esperamos moldar aquilo que não tem forma e controlar aquilo que poucos podem começar a controlar. Através de tais imposições, aprendemos a sobreviver em mundos onde outros seriam destruídos em poucos minutos. Porém ainda quando realizamos tais imposições, mesmo aquilo que as nossas próprias vontades definem pode ser transmutado para além do nosso controle. Se me acompanhar e me ajudar nesta aventura, precisa saber que determinei que teremos de passar por sete territórios. O primeiro chamamos de Sadanor, ou a Terra dos Sonhos-em-Comum. O segundo é Marador, que chamamos de Terra dos Antigos Desejos, enquanto o terceiro é Paranor, a Terra das Crenças Perdidas. O quarto é conhecido pelos ladrões de sonhos como Celador, que é a Terra do Amor Esquecido. O quinto é Imador, a Terra da Nova Ambição, e o sexto é Falador, a Terra da Loucura...

— Nomes fantásticos de fato, senhora. A Guilda dos Ladrões de Sonhos tem uma queda pela poesia, imagino. E o sétimo? Qual é o seu nome?

Oone fez uma pausa antes de responder. Seus maravilhosos olhos espiaram os dele, como se explorassem os recessos de seu próprio crânio.

— Este não tem nome. — disse calmamente. — Salvo qualquer nome que os habitantes lhe derem. Mas lá é o lugar onde encontrará, se é que pode ser encontrada em alguma parte, a Fortaleza da Pérola.

Elric sentiu-se preso por aquele olhar gentil, todavia determinado.

— E como podemos entrar nestes territórios?

O albino forçou-se a perguntar, embora a essa altura todo o seu corpo estivesse clamando por um gole do elixir de Lorde Gho.

Ela sentiu a tensão em Elric, e a mão em seu braço pretendia acalmá-lo e tranquilizá-lo.

— Através da criança. — disse Oone.

Elric lembrou-se do que tinha testemunhado na Tenda de Bronze e estremeceu.

— Como algo assim pode ser feito?

Oone franziu a testa e a pressão de sua mão aumentou.

— A menina é nosso portal e os báculos dos sonhos são nossas chaves. Não há nenhuma maneira de eu machucá-la, Elric. Assim que chegarmos ao sétimo aspecto, a Terra Sem Nome, lá poderemos, por sua vez, encontrar a chave para sua prisão particular.

— Ela é uma médium então? Foi isso que aconteceu? Os Aventureiros Feiticeiros sabiam algo sobre seu poder e ao tentar usá-la a colocaram neste transe?

Mais uma vez a mulher hesitou, depois assentiu.

— Perto o suficiente, Príncipe Elric. Está escrito em nossas histórias, das quais temos muitas, embora a maioria nos seja inacessível nas bibliotecas de Tanelorn: ‘O que está dentro sempre tem uma forma externa e o que está fora toma uma forma dentro’. Dito de outra maneira, às vezes dizemos que o que é visível deve sempre ter um aspecto invisível, assim como tudo o que é invisível deve ser representado pelo visível.

Para Elric soou muito enigmático, embora estivesse familiarizado o suficiente com tais declarações misteriosas de seus próprios grimorios. Não as descartou, contudo sabia que frequentemente exigiam muita ponderação e certa experiência antes de fazerem todo o sentido.

— Você fala de reinos sobrenaturais, senhora. Os mundos habitados pelos Senhores do Caos e da Lei, pelos elementais, pelos imortais e assim por diante. Conheço algo sobre tais reinos e até viajei neles de alguma forma. No entanto nunca ouvi falar de deixar para trás parte da substância física e viajar para esses reinos por meio de uma criança adormecida!

Oone o observou por um longo momento, como se achasse que Elric estava sendo deliberadamente falso, então encolheu os ombros.

— Descobrirá que os reinos do ladrão de sonhos são muito semelhantes. E faria bem em memorizar e obedecer nosso código.

— Vejo que formam parte de uma ordem bastante estrita, senhora.

— Se quisermos sobreviver. Alnac tinha os instintos de um bom ladrão de sonhos, entretanto não havia adquirido a disciplina completa. Essa foi uma das principais razões para sua dissolução. Você, por outro lado, está familiarizado com as disciplinas necessárias, pois as adquiriu mediante seu conhecimento de feitiçaria. Sem essas disciplinas também teria perecido.

— Eu rejeitei muito disso, senhora Oone.

— Sim, isso acredito. Mas você não perdeu o hábito, imagino. Ou assim espero. A primeira lei que o ladrão de sonhos obedece diz: Ofertas de orientação devem sempre ser aceitas, porém nunca confiáveis. A segunda diz: Cuidado com o familiar. E a terceira nos diz: O que é estranho deve ser recebido com cautela. Existem muitas outras, entretanto são essas três que abrangem os fundamentos pelos quais um ladrão de sonhos sobrevive.

Ela sorriu. O sorriso era estranhamente doce e vulnerável e Elric percebeu que Oone estava cansada. Talvez sua dor a tivesse esgotado.

O Melniboniano falou em tom gentil, olhando para trás, para as grandes rochas vermelhas da proteção e o santuário da Flor Prateada. As vozes foram silenciadas agora. Finas linhas de fumaça subiam pelo rico azul do céu.

— Quanto tempo leva para instruir e treinar alguém em suas vocações?

— Cinco anos ou mais. — respondeu, reconhecendo a ironia na sua voz. — Alnac era membro pleno da guilda há talvez seis anos.

— E não conseguiu sobreviver no reino onde o espírito da Jovem Santa é mantido prisioneiro?

— Apesar de todas as suas habilidades, era apenas um mortal comum, Príncipe Elric.

— E acha que eu sou mais do que isso?

Sua resposta veio acompanhada de uma risada.

— Você é o último Imperador de Melniboné. É o mais poderoso de sua raça, que é uma raça cuja familiaridade com a feitiçaria é lendária. É verdade que deixou sua noiva esperando por seu retorno e que colocou seu primo Yyrkoon no Trono de Rubi para reinar como regente até que você retorne, uma decisão que só um idealista tomaria, contudo mesmo assim, meu senhor, não pode fingir para mim que é de alguma forma comum!

Apesar de seu desejo pelo elixir venenoso, Elric se viu rindo.

— Se sou um homem de tamanhas qualidades, senhora, como é que me encontro nesta situação, contemplando a morte pelas artimanhas de um político provinciano de segunda categoria?

— Eu não disse que você se admirava, meu senhor. No entanto seria tolice negar o que foi e o que poderia se tornar.

— Prefiro considerar apenas a última opção, minha senhora.

— Considere, se quiser, o destino da filha de Raik Na Seem. Considere o destino de seu povo privado de sua história e seu oráculo. Considere sua própria condenação, perecer sem um bom motivo em uma terra distante, seu cumprir seu destino.

Elric aceitou com um gesto de assentimento.

Oone prosseguiu.

— É provável, também, que você não tenha nenhum rival como feiticeiro em seu mundo. Embora suas habilidades específicas possam ser de pouca utilidade para a aventura que proponho, sua experiência, conhecimento e compreensão podem fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso.

Elric ficou impaciente à medida que a demanda de seu corpo pela droga se tornava insuportável.

— Muito bem, senhora Oone. O que quer que você decida, eu concordarei.

Ela deu um passo para trás e olhou para ele com frieza.

— É melhor voltar para sua tenda e encontrar seu elixir. — ela disse suavemente.

O desespero familiar encheu a mente do albino.

— Assim o farei, senhora. — virando-se ele caminhou a passos rápidos de volta para as tendas reunidas dos Bauradim. Quase não falou com nenhum dos que o cumprimentaram quando passou. Raik Na Seem não tirara nada da tenda que Elric partilhara pela última vez com Alnac Kreb, e o albino retirou com pressa o frasco do seu alforje. Tomando um gole profundo e sentindo, pelo menos por um breve momento, o alívio, o ressurgimento da energia, a ilusão de saúde que a droga de Quarzhasaat lhe deu. Suspirou e se virou para a entrada da tenda quando Raik Na Seem apareceu, com a testa franzida, os olhos cheios de dor que tentava disfarçar.

— Você concordou em ajudar a ladra de sonhos, Elric? Tentará alcançar o que a profecia previu? Trazer nossa Jovem Santa de volta para nós? Agora há menos tempo do que nunca. Em breve a Lua de Sangue irá desaparecer.

Elric deixou cair o frasco no tapete que cobria o chão, abaixou-se e pegou a Espada Negra, que desafivelou enquanto caminhava com Oone. A arma estremeceu em seus dedos e ele sentiu uma vaga náusea.

— Farei tudo o que for exigido de mim. — disse o albino.

— Bom. — o homem mais velho agarrou Elric pelos ombros. — Oone me disse que você é um grande homem com um grande destino e que este momento é um momento importante em sua vida. Estamos honrados por fazer parte desse destino e gratos por sua preocupação...

Elric aceitou as palavras de Raik Na Seem com toda a sua graça habitual. Ele se curvou.

— Acredito que a saúde da sua Jovem Santa é mais importante do que qualquer destino meu. Farei o que for possível para trazê-la de volta para vocês.

Oone entrou atrás do Primeiro Ancião dos Bauradim e sorriu para o albino.

— Está pronto agora?

Elric assentiu e começou a afivelar a Espada Negra, mas Oone o deteve com um gesto.

— Você encontrará as armas que precisa onde viajarmos.

— Porém a espada é mais que uma arma, senhora Oone! — o albino exclamou com uma espécie de pânico.

Ela estendeu-lhe o báculo dos sonhos de Alnac.

— Isso é tudo que precisa para nossa aventura, meu senhor Imperador.

Stormbringer emitia violentos murmúrios enquanto Elric deixava a espada cair de volta nas almofadas da tenda. Parecia quase ameaçá-lo.

— Sou dependente... — ele começou.

Oone balançou a cabeça suavemente.

— Não, não é. Acredita que aquela espada seja parte de sua identidade, contudo não é. É sua inimiga. É a parte que representa sua fraqueza, não sua força.

Elric suspirou.

— Eu não entendo, minha senhora, no entanto se você não deseja que eu traga a espada, então a deixarei.

Outro som, um grunhido peculiar, veio da lâmina, todavia Elric o ignorou. Deixando o frasco e a espada na tenda, caminhou até onde os cavalos os esperavam para levá-los do Oásis da Flor Prateada de volta à Tenda de Bronze.

Enquanto cavalgavam um pouco atrás de Raik Na Seem, Oone contou a Elric algo mais sobre o que a Jovem Santa significava para os Bauradim.

— Como talvez já tenha percebido, foi confiada à criança a história e as aspirações dos Bauradim, sua sabedoria acumulada. Tudo o que eles consideram verdadeiro e de valor está contido nela. A menina é a representação viva do aprendizado de seu povo, qual é a essência de sua história, de uma época antes mesmo de se tornarem habitantes do deserto. Se a perderem, há todas as chances, eles acreditam, de que tenham de recomeçar sua história novamente... Reaprender lições duramente conquistadas, reviver experiências e cometer os erros e asneiras que tão dolorosamente influenciaram a compreensão do seu povo ao longo dos séculos. Ela é o Tempo, se assim quiser... Sua biblioteca, museu, religião e cultura personificadas em um único ser humano. Pode imaginar, Príncipe Elric, o que significa sua perda para eles? É a própria alma dos Bauradim e essa alma está aprisionada onde apenas aqueles com certa habilidade podem encontrá-la, quanto mais libertá-la.

Elric tocou o báculo dos sonhos que agora substituía sua espada rúnica em seu quadril.

— Se fosse apenas uma criança comum, trazendo tristeza para sua família através de sua condição, eu estaria inclinado a ajudar se pudesse. — disse ele. — Pois gosto deste povo e de seu líder.

— O destino da menina e o seu estão interligados... — afirmou Oone. — Quaisquer que sejam seus sentimentos, meu senhor, talvez você não tenha muita escolha no assunto.

Ele não queria ouvir isso.

— Parece-me, senhora, que vocês, ladrões de sonhos, estão muito familiarizados comigo, com minha família, com meu povo e com meu destino. Isso me deixa um tanto desconfortável. No entanto, não posso negar que você sabe mais do que ninguém, exceto minha noiva, sobre meus conflitos interiores. Como conseguiu esse poder de adivinhação e profecia?

Sua resposta soou em tom casual.

— Existe um território que todos os ladrões de sonhos visitaram. É um lugar onde todos os sonhos se cruzam, onde tudo o que temos em comum se encontra. E o chamamos de Local de Nascimento do Osso, onde a humanidade assumiu pela primeira vez a realidade.

— Isso é uma lenda! E uma lenda primitiva!

— Lenda para você. Verdade para nós. Como um dia descobrirá.

— Se Alnac podia prever o futuro, por que não esperou que viesse ajudá-lo?

— É raro que tomemos consciência de nossos próprios destinos. Apenas sabemos os movimentos gerais das marés e das figuras que se destacam nas histórias do seu mundo. Todos os ladrões de sonhos, é verdade, conhecem o futuro, pois metade das suas vidas são passadas fora do Tempo. Para nós não há passado ou futuro, apenas um presente em mudança. Estamos livres dessas correntes específicas enquanto estamos fortemente ligados por outras.

— Li sobre essas ideias, porém elas pouco significam para mim.

— Porque não tem experiência para entendê-las.

— Você já falou da Terra dos Sonhos-em-Comum. É o mesmo que o Local de Nascimento do Osso?

— Talvez. Nosso povo está indeciso sobre o assunto.

Revigorado momentaneamente pela droga, Elric começou a gostar da conversa, que considerava grande parte como mera abstração agradável. Livre de sua espada rúnica, sentiu uma espécie de leveza de espírito que não experimentava desde os primeiros meses de seu relacionamento com Cymoril, naqueles anos relativamente tranquilos, antes que a ambição crescente de Yyrkoon começasse a contaminar a vida na Corte de Melniboné. Então se lembrou de algo da história de um de seus próprios povos.

— Já ouvi dizer que o mundo não é mais do que aquilo que seus habitantes concordam que é. Lembro-me de ter lido algo nesse sentido em A Esfera Falante que dizia: ‘Pois quem pode dizer qual é o mundo interior e qual é o exterior? O que tornamos realidade pode ser o que sozinho decidimos assim, e o que definimos como sonhos pode ser a verdade maior’. Essa é uma filosofia próxima da sua, senhora Oone?

— Sim, está bem próximo. — respondeu Oone. — Embora pareça um tanto etéreo.

Cavalgaram assim, quase como duas crianças num piquenique, até chegarem à Tenda de Bronze quando o sol se punha e foram conduzidos, mais uma vez, ao local onde homens e mulheres se sentavam ou deitavam em torno da grande cama elevada onde repousava a menina que simbolizava toda a sua existência.

Pareceu a Elric que os braseiros e as lâmpadas estavam queimando mais baixo do que quando esteve aqui pela última vez, e que a criança parecia ainda mais pálida do que antes, mas forçou uma expressão de confiança quando se virou para Raik Na Seem.

— Desta vez não falharemos. — disse ele.

Oone pareceu aprovar as palavras de Elric e observou atenta enquanto, seguindo as suas instruções, o corpo de Varadia era levantado da cama e colocado desta vez sobre uma enorme almofada que, por sua vez, estava colocada entre duas outras almofadas, também de grandes dimensões. Sua mão sinalizou ao albino para deitar o corpo do outro lado da criança enquanto ela própria se posicionava a esquerda da menina.

— Segure a mão dela, meu senhor Imperador. — disse Oone ironicamente. — E coloque a haste do báculo dos sonhos sobre a sua e a dela, como viu Alnac fazer.

Elric sentiu algum receio ao obedecê-la, porém não sentia medo por si mesmo, apenas pela criança e seu povo, por Cymoril que esperava seu retorno em Melniboné, pelo menino que rezava em Quarzhasaat para que retornasse com a joia que seu carcereiro exigira. Com a mão presa à da garota pelo báculo dos sonhos, experimentou uma sensação de fusão que não era desagradável, contudo parecia queimar tão quente quanto qualquer chama. Seus olhos observavam enquanto Oone fazia a mesma coisa.

Em seguida, Elric sentiu um poder possuí-lo e por um momento foi como se seu corpo fosse ficando cada vez mais leve, até ameaçar a se afastar com a mais leve brisa. Sua visão desapareceu, todavia vagamente seguia conseguindo ver Oone. Ela parecia estar concentrada.

Olhou para o rosto da Jovem Santa e, por um segundo, viu sua pele ficar ainda mais branca, os olhos brilharem tão vermelhos quanto os seus, e um pensamento estranho veio e passou pela sua mente: Se eu tivesse uma filha, ela pareceria...

Então, sentiu como se seus ossos estivessem derretendo, sua carne se dissolvendo, toda a sua mente e espírito se dissipando. Ele se entregou a essa sensação como havia determinado que deveria, já que neste momento servia ao propósito de Oone, e agora a carne se tornou água corrente, as veias e o sangue eram fios coloridos de ar, seu esqueleto fluía como prata derretida, misturando-se com a Jovem Santa. Da menina, convertendo-se nela, depois fluindo para além, em cavernas e túneis e lugares escuros, em lugares onde mundos inteiros existiam em rochas ocas, onde vozes o chamavam, sabiam e procuravam confortá-lo ou assustá-lo ou dizer-lhe verdades que não queria saber. Então o ar ficou claro novamente e sentiu Oone ao seu lado, guiando-o, sua mão na dele, o corpo dela quase o corpo dele, a voz confiante e até alegre, como alguém que se move em direção a um perigo familiar; perigo que havia superado muitas vezes. No entanto, havia um tom em sua voz que o fez acreditar que ela nunca havia enfrentado um perigo tão grande como aquele e que havia todas as chances de nenhum deles retornar à Tenda de Bronze ou ao Oásis da Flor Prateada.

E havia música que entendia ser a própria alma dessa criança transformada em som. Música doce, triste e solitária. Música tão bela que teria algo mais do que a mais leve substância.

Então viu o céu azul à sua frente, um deserto vermelho que se estendia em direção às montanhas vermelhas no horizonte, e teve a mais estranha das sensações, como se estivesse voltando para casa, para uma terra que de alguma forma havia perdido na infância e depois esquecido.

***

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