Tomo 01 — Capítulo 05: O Juramento do Ladrão de Sonhos
— Aqui está o nosso tesouro. — disse Raik Na Seem. — Aqui está o que a gananciosa Quarzhasaat deseja roubar de nós. — e havia tristeza e também raiva em sua voz.
Bem no centro do fresco interior da Tenda de Bronze, no qual pequenas lâmpadas ardiam sobre centenas de almofadas e tapetes amontoados, ocupados por homens e mulheres em atitudes de profunda contemplação, havia um nível elevado e sobre este uma cama esculpida com desenhos intrincados de requintada delicadeza, cravejado com madrepérola e turquesa pálida, com jade leitoso e filigrana de prata e ouro louro. Sobre a cama, com as mãozinhas cruzadas sobre o peito, que subiam e desciam com profunda regularidade, jazia uma jovem de cerca de treze anos. A jovem tinha a forte beleza de seu povo e seu cabelo era cor de mel em contraste com sua pele morena. Ela poderia estar dormindo tão naturalmente quanto qualquer criança de sua idade, exceto pelo fato surpreendente de que seus olhos, azuis como o maravilhoso Mar de Vilmirian, olhavam para cima, em direção ao teto da Tenda de Bronze, e não piscavam.
— Meu povo acredita que Quarzhasaat se destruiu para sempre. — disse Elric. — Gostaria que tivessem, ou que Melniboné tivesse mostrado menos arrogância e completado o que seus magos começaram!
Raramente demonstrava emoções tão ferozes para com aqueles que a sua raça tinha derrotado, mas agora só sentia aversão por Lorde Gho, cujos homens, não lhe cabia dúvidas, tinham cometido aquela coisa terrível. Reconheceu a natureza da feitiçaria, pois não era diferente daquela que aprendeu sozinho, embora seu primo Yyrkoon tivesse demonstrado mais interesse nessas artes específicas e se importasse em praticá-las mais do que Elric o fazia.
— Porém quem pode salvá-la agora? —Raik Na Seem questionou num tom suave, talvez um pouco envergonhado pela explosão de Elric neste local de meditação.
O albino se recuperou e fez um gesto de desculpas.
— Não há poções que possam despertá-la deste sono? — perguntou.
Raik Na Seem negou com um gesto de sua cabeça.
— Consultamos tudo e todos. O feitiço foi lançado pelo líder da Seita do Pardal e este foi morto quando nos cobramos nossa vingança prematura.
Em deferência àqueles que estavam sentados na Tenda de Bronze, Raik Na Seem os conduziu de volta para o deserto. Ali estavam os guardas, suas lâmpadas e tochas lançando grandes sombras na areia, enquanto os raios da lua cor de rubi encharcavam tudo de vermelho, então era quase como se tivessem se afogado em uma maré de sangue. Elric se lembrou de como, quando jovem, perscrutava as profundezas de seu Actorios, imaginando a gema como um portal para outras terras, cada faceta representando um reino diferente, pois a essa altura já lia muito sobre o Multiverso e como era suposto a ser constituído.
— Roube o sonho que a prende. — dizia Raik Na Seem. — E você saberá que tudo o que temos será seu, Alnac Kreb.
O belo homem negro balançou a cabeça.
— Salvá-la seria toda a recompensa que desejo, pai. Mesmo assim, temo não ter as habilidades... Ninguém tentou?
— Fomos enganados mais de uma vez. Os Aventureiros Feiticeiros de Quarzhasaat, acreditando que possuíam seu conhecimento ou pensando que poderiam realizar o que apenas um ladrão de sonhos pode realizar, vieram até nós fingindo serem membros de sua arte. Nós os vimos todos enlouquecerem diante de nossos olhos. Vários morreram. Alguns deixamos que voltassem para Quarzhasaat na esperança de que fossem um aviso para outros não desperdiçarem suas vidas e nosso tempo.
— Você parece muito paciente, Raik Na Seem. — disse Elric, lembrando-se do que já tinha ouvido e agora mais claro sobre por que Lorde Gho procurava tão desesperadamente um ladrão de sonhos para este trabalho. As notícias trazidas a Quarzhasaat pelos enlouquecidos Aventureiros Feiticeiros foram distorcidas. O pouco que Lorde Gho havia descoberto foi passado para Elric. Mas agora o albino percebeu que era a própria criança quem possuía o segredo do caminho para a Pérola no Coração do Mundo. Sem dúvida, como receptora de toda a sabedoria do seu povo, ela sabia da sua localização. Talvez fosse um segredo que deveria guardar para si mesma. Seja qual for o motivo, era óbvio que a menina, Varadia, deveria despertar de seu sono mágico antes que qualquer progresso adicional pudesse ser feito. E Elric sabia que, mesmo que acordasse, não era da sua natureza questioná-la, implorar por um segredo que não lhe cabia saber. Sua única esperança seria se a jovem lhe oferecesse o conhecimento de livre vontade, porém sabia que não importava o que acontecesse, nunca seria capaz de perguntar.
Raik Na Seem parecia entender um pouco do dilema do albino.
— Meu filho, você é amigo do meu filho... — disse o ancião no estilo formal de seu povo. — Sabemos que não é nosso inimigo e que não veio aqui por vontade própria para roubar o que era nosso. Também somos conscientes que não tem a intenção de tirar de nós qualquer tesouro do qual somos guardiões. Quero que saiba, Elric de Melniboné, que se Alnac Kreb puder salvar a nossa Jovem Santa, faremos tudo o que estiver ao nosso alcance para colocá-lo no caminho da Fortaleza da Pérola. A única razão para impedi-lo seria se Varadia, desperta, nos alertasse contra dar esta ajuda. Então, pelo menos, você será informado disso.
— Não poderia haver promessa mais justa. — disse Elric agradecido. — Enquanto isso lhe prometo, Raik Na Seem, ajudar a proteger sua filha contra todos aqueles que possam prejudicá-la e vigiá-la até que Alnac a traga de volta.
Alnac havia se afastado um pouco dos outros dois e estava parado, pensativo, à beira da luz da tocha, sua capa de noite branca encharcada de um tom rosado escuro pelos raios da Lua de Sangue. Do cinto tirou o báculo curvado e o segurou com as duas mãos, olhando-o e murmurando para ele, da mesma forma que Elric falaria com sua própria espada rúnica.
Por fim, o ladrão de sonhos se voltou para os dois, com o rosto cheio de grande seriedade.
— Farei o meu melhor. — falou. — Recorrerei a todos os recursos que tenho dentro de mim e a tudo o que aprendi, contudo devo avisá-los de que tenho fraquezas de caráter que ainda não superei. São fraquezas que posso controlar se for chamado a exorcizar os pesadelos de um velho comerciante ou o transe amoroso de um rapaz. O que vejo aqui, entretanto, pode derrotar o ladrão de sonhos mais inteligente, o mais experiente em minha vocação. Não pode haver sucesso parcial, ou tenho êxito, ou fracasso. Estou disposto a tentá-lo devido às circunstâncias, em consideração da nossa antiga amizade, porque detesto tudo o que os Aventureiros Feiticeiros representam. Isto me induz a tentar a tarefa.
— É tudo que eu espero. — disse Raik Na Seem sombriamente, impressionado com o tom de Alnac.
— Se tiver sucesso, trará a alma da criança de volta ao mundo ao qual ela pertence. — disse Elric. — O que perderá se falhar, Mestre Ladrão de Sonhos?
Alnac encolheu os ombros.
— Nada de grande valor, suponho.
Elric, olhando atentamente para o rosto do seu novo amigo, viu que este mentia. No entanto percebeu também que ele não queria mais ser questionado sobre o assunto.
— Preciso descansar. — disse Alnac. — E comer.
Alnac se envolveu nas dobras de sua capa de dormir, seus olhos escuros olhando para Elric como se desejasse que o mundo inteiro compartilhasse algum segredo que sentia em seu coração que nunca deveria ser compartilhado. Então se virou de repente, rindo.
— Se Varadia acordar como resultado de meus esforços e se ela souber o paradeiro de sua terrível Pérola, ora, então, Príncipe Elric, terei feito a maior parte do seu trabalho para você. Espero parte de sua recompensa.
— Minha recompensa será o assassinato de Lorde Gho. — disse Elric em tom calmo.
— Sim... — disse Alnac, se movendo em direção à Tenda de Bronze, que se movia e brilhava como algum artefato semi materializado do Caos. — É justo o que espero compartilhar!
A Tenda de Bronze consistia na grande câmara central e depois numa série de câmaras menores, onde os viajantes podiam descansar e reanimar-se, e foi a uma delas que os três homens foram se deitar e, ainda acordados, considerar o trabalho que deveriam começar no dia seguinte. Os três não conversaram, todavia passaram-se várias horas antes que todos enfim adormecessem.
De manhã, enquanto Elric, Raik Na Seem e Alnac Kreb se aproximavam do local onde a Jovem Santa ainda estava deitada, aqueles que permaneciam na Tenda de Bronze se afastaram em respeito. Alnac Kreb segurava delicadamente seu báculo curvado na mão direita, equilibrando-o em vez de agarrá-lo, enquanto olhava para o rosto da criança que amava quase como se fosse sua própria filha. Um longo suspiro lhe escapou os lábios e Elric percebeu que seu sono parecia não o ter revigorado. Seu semblante era abatido e infeliz. Ele se virou, sorrindo, para o albino.
— Antes, quando o vi tomar parte do conteúdo daquele frasco de prata mais cedo, tive vontade de pedir um pouco a você...
— A droga é venenosa e viciante... — disse Elric, chocado. — Achei que tivesse explicado.
— Sim, explicou. — Alnac Kreb revelou outra vez pela sua expressão que possuía pensamentos que se sentia incapaz de partilhar. — Apenas pensei que, dadas às circunstâncias, não haveria muito sentido em temer o seu poder.
— Isso é porque não conhece seus efeitos. — replicou Elric energicamente. — Acredite, Alnac, se houvesse alguma maneira de ajudá-lo nesta tarefa, eu o faria. Mas oferecer-lhe veneno não seria, creio eu, um ato de amizade...
Alnac Kreb sorriu um pouco.
— De fato, de fato. — assentiu, ao tempo em que deslizava seu báculo curvado de mão em mão. — Porém você disse que iria cuidar de mim, correto?
— Prometi sim. E como me pediu, no momento em que me disser para levar o báculo da Tenda de Bronze, eu o farei.
— Isso é tudo que você pode fazer e agradeço por isso. — disse o ladrão de sonhos. — Agora vou começar. Adeus por enquanto, Elric. Acredito que estamos fadados a nos encontrar outra vez, porém talvez não nesta existência.
E com essas palavras misteriosas, Alnac Kreb se aproximou da menina adormecida, colocando o báculo curvado sobre os olhos que não piscavam, encostando o ouvido no coração dela, seu próprio olhar ficando distante e estranho, como se ele próprio tivesse entrado em transe. Seu corpo se endireitou, cambaleando, depois pegou a garota nos braços e baixou-a com delicadeza sobre os tapetes. Em seguida, deitou-se ao seu lado, colocando a mão sem vida da garota entre as suas, e o báculo na outra. Sua respiração ficou mais lenta e profunda, e Elric quase pensou ter ouvido uma canção fraca vindo de dentro da garganta do ladrão de sonhos.
Raik Na Seem se inclinou para frente, olhando para o rosto de Alnac, contudo Alnac não o viu. Com a outra mão levantou o báculo curvado, de modo que o gancho passou pelas mãos entrelaçadas, como se quisesse prendê-las, uni-las.
Para sua surpresa, Elric viu que o báculo dos sonhos estava começando a emitir um fraco brilho e a pulsar um pouco. A respiração de Alnac ficou ainda mais profunda, os lábios se abrindo, os olhos olhando fixos para cima, assim como os de Varadia; olhou.
Elric pensou ter ouvido a criança murmurar, e não foi uma ilusão ao notar que um tremor passou entre Alnac e a Jovem Santa enquanto o báculo dos sonhos pulsava no ritmo de sua respiração mútua e brilhava mais intensamente.
Então, de repente, o báculo dos sonhos estava se curvando e se contorcendo, movendo-se com uma velocidade surpreendente entre os dois, como se tivesse entrado em suas veias e estivesse seguindo o próprio sangue. Elric teve a impressão de um emaranhado de artérias e nervos, todos tocados pela estranha luz do báculo, então Alnac soltou um único grito e sua respiração não era mais o movimento constante de antes. Em vez disso, tornou-se superficial, quase inexistente, enquanto a criança continuava a respirar com o mesmo ritmo lento, profundo e constante.
O báculo dos sonhos havia retornado para Alnac. Parecia arder dentro de seu corpo, quase como se tivesse se fundido com sua coluna e córtex. A ponta em forma de gancho parecia brilhar dentro de seu cérebro, inundando sua carne com uma luminosidade indescritível, exibindo cada osso, cada órgão, cada veia.
A própria criança parecia inalterada até que Elric olhou para ela mais de perto, vendo quase com horror que seus olhos haviam passado de um azul vibrante para um preto azeviche. Relutantemente, olhou do rosto de Varadia para o de Alnac e viu o que não desejava ver: os próprios olhos do ladrão de sonhos agora eram de um azul brilhante. Era como se os dois tivessem trocado almas.
O albino, com toda a sua experiência em feitiçaria, nunca tinha presenciado nada parecido e achou perturbador. Pouco a pouco, estava começando a compreender a natureza estranha da vocação de um ladrão de sonhos, porquê poderia ser tão perigosa, porquê havia tão poucos que poderiam praticar o ofício e porquê menos ainda desejariam fazê-lo.
Agora uma nova mudança começou a ocorrer. O báculo curvado pareceu se contorcer novamente e começar a absorver a própria substância do ladrão de sonhos, absorvendo o sangue e a vitalidade da carne, dos ossos e do cérebro.
Raik Na Seem gemeu aterrorizado, recuando um passo, incapaz de se controlar.
— Ah, meu filho! O que eu te pedi?
Logo tudo o que restava do esplêndido corpo de Alnac Kreb parecia pouco mais que uma casca, como a pele descartada de alguma libélula transmutada. Todavia o báculo dos sonhos estava onde Alnac o colocara pela primeira vez, na sua própria mão e na de Varadia, embora parecesse maior e brilhasse com um brilho impossível, as suas cores movendo-se constantemente através de um espectro parte natural, parte sobrenatural.
— Acho que ele está dando demais na tentativa de salvar minha filha. — disse Raik Na Seem. — Talvez mais do que qualquer um deveria dar.
— Ele entregaria tudo. — disse Elric. — Acho que é da sua natureza. É por isso que você o chama de filho e confia nele.
— Sim... — disse Raik Na Seem. — Mas agora temo perder um filho e também uma filha.
O ancião suspirou e ficou perturbado, talvez imaginando se, afinal de contas, havia sido sábio ao implorar esse serviço a Alnac Kreb.
Por mais de um dia e uma noite Elric se sentou com Raik Na Seem e os homens e mulheres dos Bauradim dentro do abrigo da Tenda de Bronze, com os olhos fixos no corpo estranhamente enrugado de Alnac, o Ladrão de Sonhos, que por vezes se agitava e murmurava, porém seguia parecendo tão sem vida quanto cabras mumificadas que as dunas às vezes revelavam. Uma vez Elric pensou ter ouvido a Jovem Santa fazer um som e uma vez Raik Na Seem se levantou para colocar a mão na testa da filha e depois voltou balançando a cabeça.
— Este não é o momento para se desesperar, pai de meu amigo. — disse Elric.
— Tem razão. — o Primeiro Ancião dos Bauradim se levantou e depois se sentou outra vez ao lado de Elric. — Nós damos muita importância às profecias aqui no deserto. Parece que nosso desejo por ajuda pode ter influenciado nossa razão.
Pela manhã, ambos deixaram a tenda. A fumaça das tochas ainda acesas flutuava pelo céu lilás, levada para cima e para o norte pela leve brisa. Elric achou o cheiro quase enjoativo agora, contudo sua preocupação com seu novo amigo fez com que se esquecesse de sua própria saúde. Por vezes, tomava tragos moderados do elixir de Lorde Gho, incapaz de fazer mais do que controlar seu desejo, e quando Raik Na Seem lhe ofereceu água de seu próprio frasco, Elric balançou a cabeça. Em seu interior ainda havia muitos conflitos. Sentia uma forte camaradagem com essas pessoas, um gosto por Raik Na Seem que ele valorizava. Passou a gostar de Alnac Kreb, que ajudou a salvar sua vida em uma ação claramente tão generosa quanto o caráter geral do homem. Elric ficou grato pela confiança que os Bauradim depositaram em sua pessoa. Tendo ouvido sua história; eles teriam o direito de bani-lo pelo menos do Oásis da Flor Prateada. Em vez disso, levaram-no para a Tenda de Bronze quando a Lua de Sangue ardia, permitindo-lhe seguir as instruções de Lorde Gho, confiando nele para não abusar de suas ações. Agora estava ligado a eles por uma lealdade que nunca poderia transgredir. Talvez estivessem cientes disto. Talvez leiam seu caráter com a mesma facilidade com que leem o de Alnac. Esse sentimento de confiança o animou, embora tornasse sua tarefa ainda mais difícil, e estava determinado a não traí-la, mesmo que inadvertidamente.
Raik Na Seem cheirou o vento e olhou para o oásis distante.
Uma coluna de fumaça negra marchou para o céu, ficando cada vez mais alta, misturando-se com a fumaça mais próxima. Elric não teria ficado surpreso se isso tivesse tomado forma diante de seus olhos, tão familiarizado estava com os estranhos acontecimentos dos últimos dias.
— Houve outro ataque. — disse Raik Na Seem. Embora falasse em tom despreocupado. — Esperemos que seja o último. Estão queimando os corpos.
— Quem os está atacando?
— Mais homens das seitas de Aventureiros Feiticeiros. Suspeito que suas decisões tenham algo a ver com a política interna da cidade. Dezenas deles estão lutando por um favor ou outro... Talvez o assento no Conselho que você mencionou. De intriga em intriga, suas maquinações nos envolvem. Isso é familiar para nós. No entanto suponho que a Pérola no Coração do Mundo se tornou o único preço a pagar pelo assento, não é? Assim, à medida que a história se espalha, mais e mais guerreiros são enviados aqui para encontrá-la! — Raik Na Seem falou com humor feroz. — Confiemos que terminem pronto ao ficarem sem habitantes, até que finalmente só sobrem os senhores manipuladores, disputando por um poder inexistente sobre um povo inexistente!
Elric observou enquanto toda uma tribo de nômades passava, mantendo alguma distância da Tenda de Bronze para mostrar seu respeito. Aquelas pessoas bronzeadas e de pele branca tinham olhos azuis ardentes, tão brilhantes como aqueles que olhavam para o nada dentro da tenda e, quando os capuzes eram jogados para trás, revelavam cabelos surpreendentemente louros, também como os de Varadia. Suas roupas, todavia, os distinguiam dos Bauradim. Era em grande parte de um tom rico de lavanda com detalhes dourados e verdes escuros. Eles estavam indo em direção ao Oásis da Flor Prateada, conduzindo rebanhos de ovelhas e montando os estranhos animais corcundas, parecidos com touros, que, como Alnac havia declarado, estavam tão bem adaptados ao deserto.
— São os Waued Nii. — disse Raik Na Seem. — Estão entre os últimos a chegar em qualquer reunião. Eles vêm da borda do deserto e negociam com Elwher, trazendo aquelas esculturas de lápis-lazúli e jade que todos valorizamos tanto. No inverno, quando as tempestades ficam intensas demais para eles, cavalgam mesmo através das planícies e penetram nas cidades. Uma vez, eles se gabam, saquearam Phum, mas acreditamos que foi algum outro lugar menor que confundiram com Phum. Esta foi claramente uma piada que os povos do deserto desfrutaram à custa dos Waued Nii.
— Tive um amigo que já foi de Phum. — disse Elric. — Seu nome era Rackhir e buscava por Tanelorn.
— Rackhir... Eu o conheço. Um bom arqueiro. Viajou conosco por algumas semanas no ano passado.
Elric ficou estranhamente satisfeito com esta notícia.
— Estava bem?
— Com excelente saúde. — Raik Na Seem ficou feliz com o fato de o assunto afastar sua mente do destino de sua filha e de seu filho adotivo. — Foi um convidado bem-vindo e nos procurou quando chegamos perto das Colunas Acidentadas, pois há caça lá que não temos habilidade para encontrar. Também falou de seu amigo. Um amigo que tinha muitos pensamentos e cujos pensamentos o levaram a muitos dilemas. Era você, sem dúvida, agora me lembro. Devia estar brincando. Ele disse que você estava um pouco pálido. Perguntava-se o que havia ocorrido a sua pessoa, preocupado.
— E eu por ele. Tínhamos algo em comum. Sinto um vínculo com seu povo e com Alnac Kreb.
— Vocês compartilharam perigos juntos, suponho.
— Tivemos muitas experiências estranhas. Ele, por sua vez, estava cansado da busca por tais coisas e esperava se aposentar, para encontrar a paz. Sabe para onde foi ao partir daqui?
— Sim. Como você disse, Rackhir estava procurando pela lendária Tanelorn. Quando aprendeu tudo o que podia conosco, se despediu de nós e partiu para o Ocidente. Nós o aconselhamos a não se perder na busca de um mito, no entanto ele acreditava que sabia o suficiente para continuar. Você não queria viajar com seu amigo?
— Tenho outros deveres que me reclamam, embora eu também tenha procurado Tanelorn.
Ele teria acrescentado mais, mas acabou por reconsiderar. Qualquer explicação adicional o teria levado a lembranças e problemas que não desejava contemplar no momento. A sua principal preocupação era Alnac Kreb e a jovem.
— Ah, sim. Agora me lembro. Você é um rei em seu próprio país, é claro. Porém relutante, hein? Os deveres são difíceis para um jovem. Muito se espera a seu respeito e você carrega sobre os ombros o peso do passado, os ideais e a lealdade de todo um povo. É difícil governar bem, fazer bons julgamentos, distribuir justiça com equanimidade. Não temos reis aqui entre os Bauradim, apenas um grupo de homens e mulheres eleitos para falar em nome de todo o clã, e penso que é melhor partilhar esses fardos. Se todos partilharem o fardo, se todos forem responsáveis por si próprios, então nenhum indivíduo terá de carregar um peso que seja demasiado.
— A razão pela qual viajo é para aprender mais sobre esses meios de administrar a justiça. — disse Elric. — Contudo vou lhe dizer uma coisa, Raik Na Seem, meu povo é tão cruel quanto qualquer outro em Quarzhasaat e tem mais poder real. Temos uma noção escassa de justiça e as obrigações do governo envolvem pouco mais do que inventar novos terrores pelos quais podemos intimidar e controlar os outros. O poder, penso eu, é um hábito tão terrível quanto à poção que devo beber agora para me sustentar. Ele se alimenta de si mesmo. É uma fera faminta, devorando aqueles que a buscam e aqueles que a odeiam, incluso devorando até mesmo aqueles que a possuem.
— A fera faminta não é o poder em si. — disse o velho. — O poder não é bom nem mau. É o uso que se faz dele, que é bom ou mau. Sei que Melniboné já governou o mundo, ou aquela parte sua que conseguiu encontrar e a parte que não destruiu.
— Você parece saber mais sobre minha nação do que minha nação sabe sobre a sua! — o albino sorriu.
— É dito pelo nosso povo que todos nós viemos para o deserto porque fugimos primeiro de Melniboné e depois de Quarzhasaat. Cada uma era tão cruel quanto à outra, cada uma tão corrupta quanto à outra, e não nos importava quem destruía a quem. Confiávamos que ambas iriam se extinguir mutuamente, mas é claro, isso não aconteceu. Então a segunda melhor coisa aconteceu, Quarzhasaat quase se destruiu e Melniboné se esqueceu completamente dela... E de nós! Melniboné ficou entediada com a expansão e retirou-se para governar apenas os Reinos Jovens. Agora ouvi dizer que governa ainda menos.
— Apenas a Ilha do Dragão agora. — Elric descobriu que seus pensamentos voltavam para Cymoril e tentou evitar pensar em sua amada. — Porém muitos saqueadores tentaram navegar contra ela e saquear sua riqueza. Eles descobriram, no entanto, que Melniboné continua poderosa demais para eles. Em vez disso, tiveram de se conformar em negociar com ela.
— O comércio sempre foi superior à guerra. — disse Raik Na Seem. — Quase como uma segunda espinha dorsal.
Estava disposto a dizer algo mais quando de repente olhou por cima do ombro para o corpo murcho de Alnac. O contorno dourado do báculo dos sonhos estava brilhando outra vez e pulsando, como acontecia de vez em quando desde que Alnac havia deitado pela primeira vez ao lado da garota. Então, um gemido terrível e desolado escapou dos lábios exangues de Alnac.
Eles se viraram e foram se ajoelhar ao seu lado. Os olhos de Alnac ainda brilhavam em azul e os de Varadia seguiam pretos.
— Está morrendo... — sussurrou o Primeiro Ancião. — Não é mesmo, Príncipe Elric?
Elric todavia não sabia mais do que os Bauradim.
— O que podemos fazer? — perguntou Raik Na Seem.
Elric tocou a carcaça fria e dura. Levantou um pulso quase sem peso e não sentiu nenhuma pulsação. Foi neste momento, surpreendentemente, que os olhos de Alnac passaram do azul para o preto e olharam para Elric com toda a sua antiga inteligência.
— Ah, você veio me ajudar. Agora sei onde está a Pérola. Contudo está muito bem protegida.
A voz era um sussurro vindo da boca ressecada. Elric embalou o ladrão de sonhos nos braços
— Vou ajudá-lo, Alnac. Diga-me como.
— Você não pode. Existem cavernas... Esses sonhos estão me derrotando. Estão me afogando. Estão me atraindo. Estou condenado a me juntar àqueles já condenados. Má companhia para alguém como eu, Príncipe Elric. Má companhia...
O báculo dos sonhos pulsava e brilhava branco como ossos branqueados. Os olhos do ladrão de sonhos tornaram a ficar azuis e depois voltaram a pretos. O ar rarefeito agitou-se nos restos coriáceos de sua garganta. De repente, havia horror em seu rosto.
— Ah, não! Preciso encontrar o testamento!
O báculo se moveu como uma serpente através de seu corpo, depois deslizou para Varadia e depois retornou.
— Oh, Elric. — disse a vozinha. — Ajude-me se puder. Oh, estou preso. Isto é o pior que já conheci...
Suas palavras pareceram chegar a Elric direto de um túmulo, como se seu amigo já estivesse morto.
— Elric, se houver alguma maneira...
Então o corpo estremeceu, enchendo-se como se tivesse sido soprado por um único suspiro enorme, enquanto o báculo dos sonhos tremeluzia e se contorcia de novo e depois ficava imóvel, como havia feito antes quando estava sobre as duas mãos entrelaçadas.
— Ah, meu amigo, fui um tolo em me considerar capaz de sobreviver a isso... — a tênue voz desapareceu. — Gostaria de ter compreendido a natureza da sua mente. É tão forte! Tão forte!
— De quem fala? — perguntou Raik Na Seem. — Minha filha? Aquilo que se apoderou dela? Minha filha é das mulheres Sarangli. Sua avó poderia encantar tribos inteiras para acreditarem que morreram de doença. Eu disse isso a ele. O que não compreende?
— Oh, Elric, ela me destruiu!
Houve um tremor na mão frágil quando se estendeu em direção ao albino.
Então, de repente, toda a cor e vida voltaram a inundar o corpo de Alnac. Parecia expandir-se ao seu antigo tamanho e vitalidade. O báculo curvado tornou-se nada mais do que o artefato que Elric tinha visto originalmente no cinturão de Alnac.
O belo ladrão de sonhos sorriu. Parecia surpreendido.
— Vivo! Elric, estou vivo!
Ele segurou seu báculo com mais firmeza e fez menção de se levantar. Então tossiu e algo nojento escorreu de seus lábios, como um verme gigante meio digerido. Era como se regurgitasse seus próprios órgãos putrefatos. Limpou-se daquela coisa viscosa. Por um momento ficou perplexo, o terror retornando aos seus olhos.
— Não. — Alnac pareceu reconciliado de repente. — Fui muito orgulhoso. Eu morro, é claro. — ele caiu de costas no lençol enquanto Elric tentava segurá-lo de volta. Com sua velha ironia, o ladrão de sonhos balançou a cabeça. — Um pouco tarde demais, imagino. Afinal, não é meu destino ser seu companheiro neste plano, Sir Campeão.
Elric, para quem as palavras não faziam sentido, acreditou que Alnac estava delirando e procurou acalmá-lo.
Então o cajado caiu das mãos do ladrão de sonhos e este rolou para o lado antes de emitir um grito vacilante e doentio, depois um fedor que ameaçava expulsar Elric e Raik Na Seem da Tenda de Bronze. Era como se seu corpo apodrecesse diante de seus olhos, mesmo quando o ladrão de sonhos tentava falar e falhava.
E então Alnac Kreb morreu.
Elric, lamentando a morte de um homem bom e corajoso, sentiu então que a sua própria condenação e a de Anigh estavam determinadas. A morte do ladrão de sonhos sugeria forças em ação das quais o albino nada entendia, apesar de toda a sua sabedoria feiticeira. Não encontrou nenhum grimorio que sugerisse tal destino. Já tinha visto coisas piores acontecerem com aqueles que se intrometiam com feitiçaria, mas aqui estava uma feitiçaria que não conseguia nem começar a interpretar.
— Ele se foi, então. — disse Raik Na Seem.
— Sim. — a própria respiração de Elric estremeceu em sua garganta. — Sim. Sua coragem foi maior do que qualquer um de nós suspeitava. Incluindo, acredito eu, ele próprio.
O Primeiro Ancião caminhou a passos lentos até onde sua filha ainda dormia em seu terrível transe. Ele olhou dentro dos olhos azuis da jovem como se quase esperasse ver os olhos negros em algum lugar em seu interior.
— Varadia?
A jovem não respondeu.
Solenemente Raik Na Seem pegou a Jovem Santa e colocou-a de volta no estrado elevado, acomodando-a nas almofadas como se apenas dormisse um sono natural e ele, seu pai, a deitasse para seu descanso noturno.
Elric olhou para os restos do ladrão de sonhos. Sem dúvida, compreendera o custo do fracasso e talvez fosse esse o segredo que seu amigo recusara a partilhar.
— Acabou. — disse Raik Na Seem num tom suave. — Agora não consigo pensar em nada para fazer por ela. Ele deu demais. — o velho estava lutando para não se perder na auto mortificação e no desespero. — Devemos tentar pensar no que fazer. Você vai me ajudar nisso, amigo do meu filho?
— Se eu puder.
Quando Elric se levantou, tremendo, ouviu um som vindo de trás. A princípio pensou que fosse alguma mulher Bauradim que veio lamentar. Olhou de volta para a luz que entrava pela tenda e viu apenas o seu contorno.
Era uma jovem, porém não era uma Bauradim. A mulher entrou com passos lentos na tenda e havia lágrimas em seus olhos enquanto olhava para o corpo arruinado de Alnac Kreb.
— Cheguei tarde demais, então?
Sua voz musical estava cheia da mais intensa tristeza. Ela levou a mão ao rosto.
— Ele não deveria ter tentado tal tarefa. Eles me disseram no Oásis da Flor Prateada que você tinha vindo aqui. Por que não esperou um pouco mais? Apenas mais um dia?
Foi com grande esforço que ela controlou a sua dor e Elric sentiu uma súbita e obscura afinidade com sua pessoa.
A mulher deu mais um passo em direção ao corpo. Era uns dois centímetros mais baixa que Elric, com um rosto em formato de coração emoldurado por cabelos castanhos e grossos. Esbelta e musculosa, usava um gibão acolchoado cortado para mostrar o forro de seda vermelha. Suas calças eram de veludo macio, botas de montaria de feltro bordadas e, por cima de tudo isso, uma capa de algodão quase transparente puxada para trás dos ombros. Em seu cinto havia uma espada, e acima de seu ombro esquerdo havia um cajado de ouro e ébano, uma versão mais elaborada daquele que estava no tapete ao lado do cadáver de Alnac.
— Eu o ensinei a tudo o que sabia sobre seu ofício. — disse ela. — Porém não foi suficiente para isso. Como pode ter pensado que seria! Nunca poderia ter alcançado tal objetivo. Ele não tinha caráter para isso.
Ela se virou, esfregando o rosto. Quando olhou para trás, suas lágrimas haviam desaparecido e olhou diretamente nos olhos de Elric.
— Eu sou Oone. — disse. A mulher fez uma breve reverência para Raik Na Seem. — Sou a ladra de sonhos que você mandou chamar.
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