Tomo 01 — Capítulo 03: Na Estrada Vermelha
Foi assim que na manhã seguinte Elric de Melniboné deixou a antiga Quarzhasaat sem saber o que procurava ou onde encontrar; sabendo apenas que deveria pegar a Estrada Vermelha até o Oásis da Flor Prateada e lá encontrar a Tenda de Bronze, onde aprenderia como poderia continuar no Caminho para a Pérola no Coração do Mundo. E se falhasse nessa busca ominosa, pelo menos sua própria vida estaria perdida.
Lorde Gho Fhaazi não ofereceu mais esclarecimentos e era evidente que o ambicioso político não sabia mais do que havia repetido.
“A Lua de Sangue deve acender a Tenda de Bronze, para o Caminho até a Pérola ser revelado.”
Não sabendo nada das lendas ou da história de Quarzhasaat e muito pouco da sua geografia, Elric decidiu seguir o mapa que lhe tinha sido dado do oásis. Era bastante simples. Mostrava uma trilha que se estendia por pelo menos 160 quilômetros entre Quarzhasaat e o oásis de nome estranho. Além destes ficavam as Colunas Acidentadas, uma cadeia de montanhas baixas. A Tenda de Bronze não recebeu nome e nem houve referência à Pérola.
Lorde Gho acreditava que os nômades estavam mais bem informados, mas não conseguiu garantir que estariam dispostos a falar com Elric. Esperava que, uma vez que compreendessem quem era, e com um pouco do ouro de Lorde Gho para tranquilizá-los, eles seriam amigáveis, porém ele não sabia nada sobre o interior do Deserto Sussurrante, nem sobre seu povo. O que sabia era apenas que Lorde Gho desprezava os nômades como primitivos e se ressentia de ocasionalmente admiti-los na cidade para fazer comércio. Elric esperava que os nômades fossem mais educados do que aqueles que ainda acreditavam que todo o continente estava sob o seu domínio.
A Estrada Vermelha fazia jus ao nome, escura como sangue meio seco, cortando o deserto entre margens altas, o que sugeria que outrora fora o rio em cujas margens originalmente fora construída Quarzhasaat. A cada poucos quilômetros, as margens desciam para revelar o grande deserto em todas as direções, um mar de dunas ondulantes que se agitavam com uma brisa cuja voz era fraca aqui, contudo ainda lembrava o sussurro de algum amante aprisionado.
O sol subia lento em um céu índigo brilhante, tão imóvel quanto cenário de teatro e Elric ficou grato pelo traje local fornecido a ele por Raafi as-Keeme antes de partir, um capuz branco, gibão e calça brancas soltas, sapatos de linho branco até o joelho e uma viseira que protegia seus olhos. Seu cavalo, um animal corpulento e gracioso, capaz de grande velocidade e resistência, também vestia linho para protegê-lo tanto do sol quanto da areia que soprava em constantes e suaves movimentos pela paisagem. É evidente que algum esforço foi feito para manter a Estrada Vermelha livre dos montes de areia que se acumulavam nas suas margens e aos poucos os transformavam em muros.
Elric não perdera nada do ódio que sentia pela sua situação ou por Lorde Gho Fhaazi; nem perdeu a determinação de permanecer vivo e resgatar Anigh, retornar a Melniboné e se reunir com Cymoril. O elixir de Lorde Gho revelou-se tão viciante como afirmava e Elric levava dois frascos do mesmo nos seus alforjes. Agora de fato acreditava que isso acabaria por matá-lo e que apenas Lorde Gho possuía um antídoto. Esta crença reforçou a sua determinação de se vingar daquele nobre na primeira oportunidade possível.
A Estrada Vermelha parecia interminável. O céu estremeceu com o calor enquanto o sol subia mais alto. E Elric, que desaprovava o arrependimento inútil, encontrou-se desejando nunca ter sido tolo o suficiente para comprar o mapa do marinheiro ilmioriano ou se aventurar tão mal preparado no deserto.
— Convocar o sobrenatural para me ajudar agora agravaria a loucura. — disse em voz alta para o deserto. — Além do mais, posso precisar dessa ajuda quando chegar à Fortaleza da Pérola. Estava ciente de que sua auto aversão apenas o levou a cometer mais tolices, entretanto ainda assim ditou suas ações. Sem isso, seus pensamentos poderiam ter sido mais claros e poderia ter antecipado melhor as trapaças de Lorde Gho.
Mesmo agora seguia duvidando de seus próprios instintos. Durante a última hora, imaginou que estava sendo seguido, todavia não viu ninguém atrás na Estrada Vermelha. Houve momentos em que olhara para trás de repente, a parar sem avisar, a cavalgar alguns metros para trás. No entanto parecia estar tão sozinho agora quanto quando começou a viagem.
— Talvez esse maldito elixir também perturbe meus sentidos. — falou para consigo mesmo, dando tapinhas no tecido empoeirado do pescoço de seu cavalo.
Os grandes baluartes da estrada estavam desaparecendo ali, tornando-se pouco mais do que montes túmulos de ambos os lados. Ao imaginar poder ver um movimento que era mais do que areia flutuante, freou o cavalo. Pequenas figuras corriam aqui e ali com longas pernas, eretas como muitos manequins minúsculos. Seu olhar atento se voltou para elas, porém então estas desapareceram. Outras criaturas maiores, movendo-se muito mais lentamente, pareciam rastejar logo abaixo da superfície da areia enquanto uma nuvem de algo preto pairava ao seu redor, seguindo-as enquanto avançavam pesadamente pelo deserto.
Elric estava aprendendo que, pelo menos nesta parte do Deserto Sussurrante, o que parecia ser uma região selvagem sem vida na verdade não o era. Esperou que as grandes criaturas que detectou não considerassem o homem uma presa valiosa.
Mais uma vez teve a sensação de que havia algo atrás dele e, virando-se de repente, pensou ter vislumbrado um lampejo amarelo, talvez uma capa, contudo que havia desaparecido em uma ligeira curva logo atrás. Sua tentação era parar, descansar por uma ou duas horas antes de continuar, entretanto estava ansioso para chegar ao Oásis da Flor Prateada o mais rápido possível. Seu tempo para atingir seu objetivo e retornar com a Pérola para Quarzhasaat era escasso.
Seu nariz inspirou o ar. A brisa trouxe um novo cheiro. Se não por sua experiência, teria pensado que alguém estava queimando restos de cozinha; era o mesmo fedor acre. Então olhou para a meia distância e detectou uma leve nuvem de fumaça. Havia nômades tão perto de Quarzhasaat? Pensava que os nômades não gostavam de chegar a menos de cem milhas da cidade, a menos que tivessem motivos específicos para fazê-lo. E se haviam pessoas aqui, por que não montaram as tendas mais próximas da estrada? Nada havia sido dito sobre bandidos, então não temeu ataques, mas permaneceu curioso, continuando sua jornada com certa cautela.
Os bancos de areia se ergueram outra vez e bloquearam sua visão do deserto, porém o fedor de queimado ficou cada vez mais forte até se tornar quase insuportável. Sentia como se a coisa obstruísse seus pulmões. Seus olhos começaram a lacrimejar. Era um cheiro muito nocivo, quase como se alguém estivesse queimando cadáveres putrefatos.
Novamente os muros de areia voltaram a descender um pouco até que pôde ver por cima deles. A menos de um quilômetro e meio de distância, pelo melhor que pôde avaliar, viu cerca de vinte colunas de fumaça, agora mais escuras, enquanto outras nuvens dançavam e ziguezagueavam ao redor delas. Suspeitou ter encontrado uma tribo que mantinha o fogo para cozinhar aceso enquanto viajavam em algum tipo de carroça. Contudo, era difícil saber que tipos de carroças atravessariam com facilidade as profundas dunas. E, assim, tornou a se perguntar por que não estavam na Estrada Vermelha.
Tentado a investigar, sabia que seria um tolo se abandonasse a estrada. Poderia tornar a se perder e ficar em condições ainda piores do que quando Anigh o encontrou, dias atrás, no outro lado de Quarzhasaat.
Estava prestes a desmontar e descansar a mente e os olhos, se não o corpo, por uma hora, quando a duna mais próxima começou a se agitar e tremer, e grandes rachaduras apareceram nela. O terrível cheiro de queimado estava cada vez mais próximo agora e pigarreou, tossindo para se livrar do odor enquanto seu cavalo começava a relinchar e recusar a rédea enquanto tentava levá-lo para frente.
De repente, um bando de criaturas cruzou seu caminho, irrompendo dos buracos recém-feitos nos bancos de areia. Estes eram o que antes confundira com homens minúsculos. Agora que os viu mais de perto, percebeu que era uma espécie de rato, mas um rato que corria sobre longas patas traseiras, as patas dianteiras curtas e erguidas contra o peito, a cara comprida e cinzenta cheia de pequenos dentes afiados, em suas cabeças orelhas enormes fazendo parecer quase como uma criatura voadora tentando sair do chão.
Houve um grande estrondo e estalo. A fumaça negra cegou Elric e seu cavalo empinou. Viu uma forma saindo das dunas quebradas, um corpo enorme, cor de carne, com uma dúzia de pernas, as mandíbulas batendo enquanto perseguia os ratos que eram claramente suas presas naturais. Elric deixou o cavalo virar a cabeça e olhou para trás para ter uma visão mais clara de uma criatura que pensava existir apenas em tempos antigos. Tinha lido sobre tais criaturas, no entanto acreditava que estavam extintas. Eles eram chamados de besouros de fogo. Por algum truque da biologia, os gigantescos besouros secretavam poças oleosas em suas pesadas carapaças. Essas poças, expostas à luz do sol e às chamas que já ardiam em outras costas, pegavam fogo de modo que às vezes até vinte manchas nas costas impenetráveis dos besouros queimavam a qualquer momento e só se extinguiam quando o animal cavava para o mais profundo do subsolo durante sua época de acasalamento. Isso foi o que viu à distância.
Os besouros estavam caçando.
Eles se moviam com uma velocidade terrível agora. Pelo menos uma dúzia de insetos gigantescos estava se aproximando da estrada e Elric percebeu, para seu horror, que ele e seu cavalo estavam prestes a ficar presos em uma varredura destinada a capturar os homens-ratos. Sabia que os besouros de fogo não discriminariam no que diz respeito à carne e poderia muito bem ser devorado por puro acidente por uma fera que não era conhecida por fazer de homens suas presas. O cavalo continuou a empinar e a bufar e só colocou todos os cascos no chão quando Elric o forçou sob seu controle, puxando Stormbringer e considerando quão inútil até mesmo aquela espada feiticeira seria contra as carapaças rosa-acinzentadas das quais as chamas agora saltavam e gotejavam. Stormbringer extraiu pouca energia de criaturas naturais como estas. Neste momento só podia confiar em um golpe de sorte, talvez partindo as costas, e rompendo o círculo cada vez mais apertado antes de ficar completamente preso.
Ele baixou a grande lâmina negra de batalha e cortou um apêndice ondulante que vinha em sua direção. O besouro mal percebeu e não parou por um segundo em seu avanço. Elric gritou e balançou outra vez a lâmina, espalhando o fogo. Óleo quente foi lançado ao ar quando atingiu as costas do besouro e mais uma vez não conseguiu causar nenhum dano significativo. O guincho do cavalo e o gemido da lâmina agora se misturavam e Elric se viu gritando enquanto virava o cavalo para um lado e para outro em busca de uma fuga, enquanto ao redor das patas do cavalo os homens-ratos corriam aterrorizados, incapazes de se enterrar sem dificuldade no chão duro daquela estrada tão percorrida. O sangue respingou nas pernas e nos braços de Elric, no linho que cobria seu cavalo até abaixo dos joelhos. Pequenas manchas de óleo em chamas brilhavam no tecido e faziam buracos. Os besouros estavam festejando, movendo-se mais devagar enquanto comiam. Não havia em nenhum lugar do círculo uma abertura grande o suficiente para o cavalo e o cavaleiro escaparem.
Elric considerou tentar montar o cavalo nas costas dos grandes besouros, embora parecesse que suas carapaças seriam muito escorregadias para permitir tal coisa. Não havia outra esperança. Estava prestes a forçar o cavalo a avançar quando ouviu um zumbido peculiar no ar ao seu redor, viu o ar de repente se encher de moscas e soube que estes eram os necrófagos que sempre seguiam os besouros de fogo, alimentando-se de quaisquer restos que deixassem e do esterco que espalhavam enquanto viajavam. Agora eles estavam começando a se concentrar à sua volta e de seu cavalo, aumentando seu horror. Deu uma série tapa nas coisas, porém elas formaram uma pelagem espessa, rastejando por todas as partes do seu corpo, seu barulho ao mesmo tempo repugnante e ensurdecedor, seus corpos quase o cegando.
O cavalo tornou a relinchar e tropeçou. Desesperado, Elric tentou ver a frente. A fumaça e as moscas eram demais para ele e seu cavalo. Moscas encheram sua boca e narinas. Engasgou, tentando tirá-las de si, cuspindo-as para onde os pequenos homens ratos guincharam e morreram.
Outro vago som chegou até seus ouvidos e milagrosamente as moscas começaram a subir. Com os olhos lacrimejantes, viu os besouros começarem a se mover em uma única direção, deixando um espaço por onde poderia cavalgar. Sem pensar duas vezes, esporeou o cavalo em direção à abertura, aspirando grandes bocados de ar para os pulmões, ainda sem saber se havia escapado ou se apenas havia se movido para um círculo mais amplo de besouros de fogo, pois a fumaça e o barulho seguiam o confundindo.
Cuspindo mais moscas pela boca, ajustou o visor e olhou para frente. Os besouros não estavam mais à vista, embora pudesse ouvi-los atrás. Então, entre a poeira e a fumaça, distinguiu novas formas.
Havia cavaleiros, movendo-se em ambos os lados da Estrada Vermelha, repelindo os besouros com longas lanças que enganchavam sob as carapaças e usavam como aguilhões, não causando nenhum dano real às criaturas, todavia causando-lhes dor suficiente para fazê-las se mover, coisa que a lâmina de Elric falhou em fazer. Os cavaleiros usavam túnicas amarelas esvoaçantes que eram apanhadas pela brisa de seus próprios movimentos e erguidas sobre eles como asas enquanto, sistematicamente, conduziam os besouros de fogo para longe da estrada e para o deserto, enquanto o restante dos homens-ratos, talvez agradecidos para esta salvação inesperada, espalharam-se e encontraram tocas na areia.
Elric não embainhou Stormbringer. Seguia consciente o suficiente para compreender que aqueles guerreiros poderiam muito bem estar salvando-o apenas por acidente e poderiam até culpá-lo por estar em seu caminho. A outra possibilidade, mais forte, era que esses homens já o seguiam há algum tempo e não queriam que os besouros de fogo levassem sua presa.
Agora um dos cavaleiros vestidos de amarelo separou-se da multidão e galopou até Elric, o saudando com a lança erguida.
— Agradeço imensamente. — disse o albino. — Você salvou minha vida, senhor. Espero não ter atrapalhado muito sua caçada.
O cavaleiro era mais alto que Elric, muito magro, com um rosto fino e escuro e olhos negros. Sua cabeça estava raspada e ambos os lábios estavam decorados com o que pareciam pequenas tatuagens, como se usasse uma máscara de renda fina e multicolorida na boca. A lança não estava embainhada e Elric preparou-se para se defender, sabendo que suas chances contra tantos seres humanos eram maiores do que contra os besouros de fogo.
O homem franziu a testa com a declaração de Elric, intrigado por um momento. Então sua testa clareou.
— Nós não caçamos os besouros de fogo. Vimos o que estava acontecendo e percebemos que você não sabia o suficiente para sair do caminho das criaturas. Viemos o mais rápido que pudemos. Eu sou Manag Iss da Seita Amarela, parente da Conselheira Iss. Eu sou um dos Aventureiros Feiticeiros.
Elric tinha ouvido falar destas seitas, que tinham sido a principal casta guerreira de Quarzhasaat e tinham sido em grande parte os responsáveis pelos feitiços que inundaram o Império com areia. Teria Lorde Gho, não confiando totalmente nele, ordenado que o seguissem? Ou foram os assassinos instruídos a matá-lo?
— Agradeço de toda forma por sua intervenção, Manag Iss. Devo minha vida a você. Estou honrado em conhecer alguém de sua seita. Sou Elric de Nadsokor, dos Reinos Jovens.
— Sim, já sabemos. Estávamos o seguindo, esperando até estarmos longe o suficiente da cidade para que pudéssemos falar em segurança.
— Em segurança? Não está em perigo comigo, Mestre Aventureiro Feiticeiro.
Era evidente que Manag Iss não era um homem que sorria com frequência e quando sorria agora era uma estranha contorção em seu rosto. Atrás deles, outros membros da seita começavam a voltar, guardando suas longas lanças nas bainhas presas às selas.
— Não pensei que estivéssemos, Mestre Elric. Viemos até você em paz e somos seus amigos, se nos aceitar. Minha parenta envia suas saudações. Ela é a esposa do Conselheiro Iss, ainda que Iss segue sendo o nome de nossa família. Todos nós tendemos a nos casar com membros do mesmo sangue, de nosso clã.
— Fico feliz em conhecê-lo. — Elric esperou que o homem falasse mais.
Manag Iss acenou com a mão longa e morena cujas unhas foram removidas e substituídas pelas mesmas tatuagens que havia em sua boca.
— Poderia desmontar e conversar, pois viemos com mensagens e ofertas de presentes.
Elric colocou Stormbringer de volta na bainha e passou a perna por cima da sela, deslizando para a poeira da Estrada Vermelha. Observou enquanto os besouros se afastavam devagar, talvez em busca de mais homens-ratos, as costas fumegantes lembrando-lhe as fogueiras dos campos de leprosos nos arredores de Jadmar.
— Minha parenta deseja que saiba que ela, assim como a Seita Amarela, está ao seu serviço, Mestre Elric. Estamos preparados para lhe oferecer qualquer ajuda que precisar na busca da Pérola no Coração do Mundo.
Agora Elric sentiu certo regozijo.
— Temo que você me tenha em desvantagem, senhor Manag Iss. Está viajando em busca de tesouros?
Manag Iss deixou uma expressão de leve impaciência cruzar seu estranho rosto.
— Sabe-se que seu patrono, Lorde Gho Fhaazi, prometeu a Pérola no Coração do Mundo a Sétima Inominável e ela, por sua vez, lhe prometeu em troca o novo lugar no Conselho. Descobrimos o suficiente para saber que apenas um ladrão excepcional poderia ter sido contratado para esta tarefa. E Nadsokor é famosa por seus ladrões excepcionais. É uma tarefa que, tenho certeza que sabe, todos os Aventureiros Feiticeiros falharam em completar. Durante séculos, os membros de cada seita têm tentando encontrar a Pérola no Coração do Mundo, sempre que a Lua de Sangue surge. Os poucos que sobreviveram para retornar a Quarzhasaat ficaram loucos e morreram pouco depois. Só recentemente conseguimos alguns conhecimentos e evidências de que a Pérola de fato existe. Sabemos, portanto, que é um ladrão de sonhos, embora disfarce sua profissão ao não carregar seu báculo curvado, pois agora sabemos que apenas um ladrão de sonhos com a maior habilidade poderia alcançar a Pérola e trazê-la de volta.
— Você me conta mais do que eu mesmo sabia, Manag Iss. — disse Elric com seriedade. — E é verdade que fui comissionado por Lorde Gho Fhaazi. Mas saiba disso também: vou nesta jornada com relutância.
E Elric confiou nos seus instintos o suficiente para revelar a Manag Iss o domínio que Lorde Gho exercia sobre ele.
Manag Iss acreditou em suas palavras. As pontas dos dedos tatuados roçaram de leve as tatuagens de seus lábios enquanto considerava essa informação.
— Esse elixir é bem conhecido dos Aventureiros Feiticeiros. Nós o destilamos há milênios. É certo que se alimenta da mesma substância de quem o utiliza. O antídoto é algo muito mais difícil de preparar. Me surpreende que Lorde Gho afirme possui-lo. Apenas certas seitas dos Aventureiros Feiticeiros possuem pequenas quantidades. Se retornar conosco para Quarzhasaat, sei que poderemos administrar o antídoto a você dentro de um dia, no máximo.
Elric considerou isto cuidadosamente. Manag Iss foi contratado por um dos rivais de Lorde Gho. Isso o fazia desconfiar de qualquer oferta, por mais generosa que parecesse. O Conselheiro Iss, ou a Dama Iss, ou quem quer que tenha desejado colocar seu próprio candidato no Conselho, estariam sem dúvida preparados para não parar diante de nada para alcançar esse objetivo. Pelo que Elric sabia, a oferta de Manag Iss poderia ser apenas um meio de acalmá-lo da sua cautela, para que pudesse ser assassinado sem dificuldades.
— Perdoe-me se eu for rude... — disse o albino. — Porém não tenho como confiar em você, Manag Iss. Já sei que Quarzhasaat é uma cidade cujo principal esporte é a intriga e não desejo me envolver naquele jogo de conspirações e contra conspirações que os seus concidadãos parecem gostar tanto. Se o antídoto para o elixir existir, como afirma, eu estaria mais disposto a considerar suas reivindicações se, por exemplo, me encontrasse no Oásis da Flor Prateada daqui a, digamos, seis dias. Tenho elixir suficiente para durar três semanas, que é o tempo da Lua de Sangue mais o tempo da minha viagem de ida e volta para sua cidade.
— Também serei franco. — disse Manag Iss, com a voz fria. — Estou incumbido de uma missão e vinculado por meu juramento de sangue, meu contrato de seita e minha honra como membro de nossa guilda sagrada. Essa comissão é para convencê-lo, por qualquer meio, a abandonar sua missão ou a vender a Pérola. Se não desistir da missão, então concordarei em comprar a Pérola de você a qualquer preço, exceto, é claro, uma posição em nosso Conselho. Portanto, igualarei a oferta de Lorde Gho e acrescentarei a ela tudo o que desejar.
Elric falou com algum pesar.
— Não pode igualar a oferta dele, Manag Iss. Há a questão do menino que ele matará.
— O menino tem pouca importância, certamente.
— Não, sem dúvida, no grande esquema das coisas como elas acontecem em Quarzhasaat. — Elric ficou cansado.
Percebendo que havia cometido um erro tático, Manag Iss se apressou em dizer.
— Vamos resgatar o menino. Diga-nos como encontrá-lo.
— Creio que vou cumprir o acordo original. — disse Elric. — Parece haver pouca escolha entre as ofertas.
— E se Lorde Gho fosse assassinado?
Elric encolheu os ombros e se preparou para montar de novo.
— Estou grato pela sua intervenção, Manag Iss. Considerarei sua oferta enquanto cavalgarei. Como já é de seu conhecimento, tenho pouco tempo para encontrar a Fortaleza da Pérola.
— Mestre Ladrão, eu gostaria de avisá-lo...
Com isso, Manag Iss interrompeu-se. Seu olhar se voltou para trás, ao longo da Estrada Vermelha. Havia uma leve nuvem de poeira à vista. De lá emergiram formas indistintas, suas vestes verde-claras e Semeadura atrás deles enquanto cavalgavam. Manag Iss amaldiçoou. Contudo estava sorrindo com seu sorriso peculiar enquanto os líderes galopavam.
Ficou claro para Elric, pelos seus trajes, que estes homens também eram membros dos Aventureiros Feiticeiros. Também tinham tatuagens, no entanto nas pálpebras e nos pulsos, e seus sobretudos esvoaçantes, que chegavam até os tornozelos, traziam uma flor bordada, enquanto o acabamento das mangas tinha o mesmo desenho em miniatura. O líder desses recém-chegados saltou do cavalo e se aproximou de Manag Iss. Era um homem baixo, bonito e bem barbeado, exceto por um cavanhaque minúsculo, oleado à moda de Quarzhasaat e puxado para um ponto exagerado. Ao contrário dos membros da Seita Amarela, carregava uma espada desembainhada em um simples arnês de couro. Ele fez um sinal que Manag Iss imitou.
— Saudações, Oled Alesham, e que a paz esteja convosco. A Seita Amarela deseja grande sucesso à Seita Dedaleira e está curiosa para saber por que viajou tão longe ao longo da Estrada Vermelha.
Tudo isso foi falado com rapidez e formalidade. Manag Iss sem dúvida estava tão ciente quanto Elric do motivo pelo qual Oled Alesham e seus homens o seguiram.
— Nós cavalgamos para oferecer proteção a esse ladrão. — disse o líder da Seita Dedaleira com um aceno de reconhecimento a Elric. — Ele é um estranho em nossa terra e nós lhe oferecemos ajuda, como é nosso antigo costume.
O próprio Elric deu um sorriso aberto ao ouvir suas palavras.
— E você, Mestre Oled Alesham, está por acaso relacionado há algum membro dos Seis e Um Outro?
O senso de humor de Oled Alesham era mais bem desenvolvido do que o de Manag Iss.
— Oh, todos nós somos parentes de todos em Quarzhasaat, senhor Ladrão. Estamos a caminho do Oásis da Flor Prateada e pensamos que poderia precisar de ajuda em sua missão.
— Ele não tem nenhuma missão. — disse Manag Iss, e depois lamentou instantaneamente a estupidez de sua mentira. — Nenhuma missão, isto é, exceto aquela que compartilha com seus amigos da Seita Amarela.
— Como somos obrigados pela lealdade de nossa guilda a não lutar, não iremos, espero, discutir sobre quem irá escoltar nosso convidado até o Oásis da Flor Prateada. — disse Oled Alesham com uma risada. Pelo visto estava se divertindo muito com a situação. — Vamos todos viajar juntos, talvez? E cada um receberá um pequeno fragmento da Pérola?
— Não há nenhuma Pérola. — disse Elric. — E não haverá se eu for ainda mais prejudicado em minha jornada. Agradeço-lhes, cavalheiros, pela sua preocupação e desejo boa tarde a todos.
Isso causou alguma consternação entre as duas seitas rivais e ambos estavam tentando decidir o que fazer quando sobre os restos deixados pelos besouros de fogo cavalgaram cerca de uma dúzia de guerreiros vestidos de preto, com véus pesados e capuzes, com suas espadas já desembainhadas.
Elric, adivinhando que não significava nada de bom para ele, retirou-se de modo que Manag Iss, Oled Alesham e seus homens o cercaram.
— Mais da sua classe, senhores? — perguntou, com a mão no punho de sua própria espada.
— Eles pertencem a Irmandade das Mariposas... — disse Oled Alesham. — E são assassinos. Não fazem nada além de matar, senhor Ladrão. É melhor se juntar a nós. É evidente que alguém determinou que você deveria ser assassinado antes mesmo de ver o surgir da Lua de Sangue.
— Vai me ajudar a me defender? — questionou o albino, preparando-se para lutar.
— Não podemos. — disse Manag Iss, e parecia genuinamente arrependido. — Não podemos lutar contra nossa própria classe. Mas eles não o matarão se o cercarmos. Seria melhor que aceitasse nossa oferta, senhor Ladrão.
Então a raiva impaciente que era uma marca de seu sangue antigo tomou conta de Elric e este sacou Stormbringer sem mais delongas.
— Estou cansado dessas pequenas pechinchas. — falou. — Peço que se afaste de mim, Manag Iss, pois pretendo lutar.
— São muitos! — Oled Alesham ficou chocado. — Acabará sendo massacrado. Estes são assassinos habilidosos!
— Oh, eu também, Mestre Aventureiro Feiticeiro. Eu também!
E com isso Elric avançou com seu cavalo, através das fileiras assustadas das Seitas Amarela e Dedaleira, direto para o líder da Irmandade das Mariposas.
A espada rúnica começou a uivar em uníssono com seu mestre e seu rosto branco brilhava com a energia dos condenados enquanto os olhos vermelhos reluziam e os Aventureiros Feiticeiros perceberam pela primeira vez que uma criatura extraordinária havia surgido entre eles e que o haviam subestimado.
Stormbringer ergueu-se na mão enluvada de Elric, seu metal preto captando os raios do sol ofuscante e parecendo absorvê-los. A lâmina negra descendeu, quase por causalidade, e partiu o crânio do líder da Irmandade das Mariposas, fendeu-o até o esterno e uivou enquanto sugava a alma do homem na fração de segundo de sua morte. Elric virou-se na sela, a espada balançando para enterrar o fio na lateral do assassino que cavalgava à sua esquerda. O homem gritou.
— Ele me atingiu! Ah, não! — e este também morreu.
Agora os outros cavaleiros velados estavam mais cautelosos, circulando o albino a alguma distância enquanto determinavam a sua estratégia. Pensaram que não precisariam de nada, que tudo o que deveriam fazer era derrubar um ladrão dos Reinos Jovens e destruí-lo. Restavam cinco dos cavaleiros negros, estes que se viraram e gritaram pedindo ajuda a seus colegas membros da seita, porém nem Manag Iss nem Oled Alesham estavam prontos para dar ordens a sua própria gente que poderiam resultar na morte profana que haviam testemunhado.
Elric não demonstrou tal prudência. Cavalgou até o próximo assassino, que defendeu com grande habilidade e até atacou sob a guarda de Elric por um segundo antes de seu braço ser decepado e ele cair para trás na sela, com sangue jorrando do cotoco. Outro movimento gracioso, metade de Elric, metade de sua espada, e aquele homem também teve sua alma arrancada. Agora os outros recuaram entre as vestes amarelas e verdes dos seus irmãos. Havia pânico em seus olhos. Reconheciam a feitiçaria mesmo que fosse algo mais poderoso do que jamais haviam previsto.
— Espere! Espere! — gritou Manag Iss. — Não há necessidade de mais nenhum de nós morrer! Estamos aqui para fazer uma oferta ao ladrão. O velho Duque Ral os enviou aqui?
— Ele não quer mais intrigas em torno da Pérola. — rosnou um dos homens velados. — Disse que a morte limpa era a melhor solução. Contudo essas mortes não são limpas para nós.
— Aqueles que nos contrataram estabeleceram o modelo de conduta. — disse Oled Alesham. — Ladrão! Guarde sua espada. Não queremos o enfrentar!
— Acredito que sim. — Elric estava sombrio. A sede de sangue ainda estava sobre ele e teve de lutar para contê-la. — Acredito que você apenas deseja me matar sem lutar. Vocês são todos tolos. Já avisei Lorde Gho sobre isso. Tenho o poder de destruí-los. É sua sorte que jurei a mim mesmo não usar meu poder apenas para fazer com que outros cumpram minha vontade para meus próprios fins egoístas. No entanto não jurei me deixar morrer nas mãos de carniceiros contratados. Voltem para Quarzhasaat!
Este último foi quase gritado e a espada ecoou-o enquanto ele erguia a grande lâmina negra para o céu, para avisá-los do que lhes aconteceria se não obedecessem.
Manag Iss disse com voz suave a Elric.
— Não podemos, senhor Ladrão. Só podemos cumprir nossas missões. É o caminho de nossa seita, de todos os Aventureiros Feiticeiros. Uma vez que concordamos em realizar uma tarefa, então a tarefa deve ser executada... A morte é a única desculpa para o fracasso.
— Então devo matar todos vocês. — disse Elric. — Ou terão de me matar.
— Ainda podemos fazer o acordo de que falei. — disse Manag Iss. — Eu não o estava enganando, senhor Ladrão.
— Minha oferta também é válida. — disse Oled Alesham.
— Mas a Irmandade das Mariposas jurou me matar. — Elric apontou, quase em regozijo. — E não podem me defender contra eles. Nem, suponho, poderão fazer qualquer coisa além de ajudá-los contra mim.
Manag Iss estava tentando se afastar dos assassinos vestidos de preto, porém era evidente que eles estavam determinados a manter a segurança de suas fileiras com seu grupo.
Então Oled Alesham murmurou algo para o líder da Seita Amarela que deixou Manag Iss pensativo. Ele assentiu e sinalizou para os membros restantes da Irmandade das Mariposas. Por alguns momentos eles estiveram em conferência, então Manag Iss ergueu os olhos e se dirigiu a Elric.
— Senhor Ladrão, encontramos uma fórmula que o deixará em paz e nos permitirá retornar com honra a Quarzhasaat. Se recuarmos agora, você promete não nos seguir?
— Se eu tiver sua palavra que não deixará aquelas Mariposas me atacarem novamente. — Elric estava mais calmo agora. Ele colocou a lâmina rúnica cantante em seu braço.
— Guardem suas espadas, irmãos! — gritou Oled Alesham, e os Mariposas obedeceram em seguida.
Depois, Elric embainhou Stormbringer. Estava experimentando agora energia profana que extraiu daqueles que tentaram matá-lo e sentiu toda a antiga sensibilidade elevada de sua raça, toda a arrogância e todo o poder de seu antigo sangue. Ele riu de seus inimigos.
— Vocês não sabem quem matariam, senhores?
Oled Alesham franziu um pouco a testa.
— Estou começando a adivinhar um pouco sobre suas origens, senhor Ladrão. Dizem que os senhores do Império Brilhante carregaram lâminas como a sua uma vez, em uma época anterior a esta. Em uma época anterior à história. Dizem que essas lâminas são seres vivos, uma raça aliada à sua. Sua aparência se assemelha a de nossos inimigos há muito perdidos. Isso significa que Melniboné não foi tragada pelas águas?
— Vou deixar à sua própria reflexão, Mestre Oled Alesham. — Elric suspeitou que tramassem algum truque, contudo foi quase descuidado. — Se o seu povo gastasse menos tempo mantendo seus próprios mitos desvalorizados sobre si mesmo e mais estudando o mundo como este é, creio que sua cidade teria uma chance maior de sobreviver. Do jeito que está, o lugar está desmoronando sob o peso de suas próprias ficções degradadas. As lendas que oferecem a uma raça seu senso de orgulho e história eventualmente se tornarão pútridas. Se Melniboné se afogar, Mestre Aventureiro Feiticeiro, será como Quarzhasaat se afoga agora...
— Não nos preocupamos com questões filosóficas. — disse Manag Iss com evidente mau humor. — Não questionamos os motivos ou as ideias daqueles que nos empregam. Isso está escrito nos nossos estatutos.
— E deve, portanto, ser obedecido! — Elric sorriu. — Assim você celebra sua decadência e resiste à realidade.
— Vá agora! — disse Oled Alesham. — Não é da sua conta nos instruir em questões morais e não é da nossa responsabilidade ouvir. Deixamos nossos dias de estudantes para trás.
Elric aceitou esta leve repreensão e virou seu cansativo cavalo de volta em direção ao Oásis da Flor Prateada. Não tornou a olhar para trás nem uma vez para os Aventureiros Feiticeiros, no entanto adivinhou que estavam discutindo mais profundamente do que nunca. Começou a assobiar enquanto a Estrada Vermelha se estendia à diante e a energia roubada de seus inimigos o enchia de euforia. Seus pensamentos estavam em Cymoril e em seu retorno a Melniboné, onde esperava garantir a sobrevivência de sua nação, trazendo para ela as mesmas mudanças que havia falado aos Aventureiros Feiticeiros. Neste momento, seu objetivo parecia um pouco mais próximo, sua mente mais clara do que há vários meses.
A noite parecia chegar rapidamente e com ela uma rápida descida de temperatura que deixou o albino tremendo e roubou-lhe um pouco do seu bom humor. Tirando vestes mais pesadas de seus alforjes, vestiu-as enquanto amarrava seu cavalo e se preparava para acender uma fogueira. O elixir do qual dependia não havia sido tocado desde seu encontro com os Aventureiros Feiticeiros e estava começando a entender um pouco melhor sua natureza. O desejo havia desaparecido, embora ainda estivesse consciente dele, e agora podia esperar se libertar da sua dependência sem necessidade de mais negociações com Lorde Gho.
— Tudo o que tenho que fazer... — disse Elric para si mesmo enquanto comia moderadamente a comida que lhe foi fornecida. — É garantir que eu seja atacado pelo menos uma vez por dia por membros da Irmandade das Mariposas...
E com isso guardou os figos e o pão, envolveu-se na capa de dormir e se preparou para dormir.
Seus sonhos eram formais e familiares. Ele estava em Imrryr, a Cidade Onírica, e Cymoril se sentou ao seu lado enquanto se deitava no Trono Rubi, contemplando sua corte. No entanto, esta não era a corte que os imperadores de Melniboné mantiveram durante os milhares de anos do seu governo. Esta era uma corte para a qual tinham vindo homens e mulheres de todas as nações, de cada um dos Reinos Jovens, de Elwher e do Leste Não Mapeado, de Phum, até de Quarzhasaat. Aqui se trocavam informações e filosofias, junto com todo tipo de bens. Esta era uma corte cujas energias não foram dedicadas a manterem-se inalterados por toda a eternidade, mas a todo tipo de ideia nova e discussão viva e humana, que acolheu novos pensamentos não como uma ameaça à sua existência, mas como uma necessidade para o seu bem-estar contínuo. Cuja riqueza foi dedicada à experimentação nas artes e nas ciências, ao apoio aos necessitados, à ajuda a pensadores e eruditos. O brilho do Império Brilhante não viria mais do brilho da putrefação, e sim da luz da razão e da boa vontade.
Este era o sonho de Elric, mais coerente agora do que nunca. Este era o seu sonho e foi por isso que viajou pelo mundo, porque recusou o poder que era seu, porque arriscou a sua vida, a sua mente, o seu amor e tudo o mais que valorizava, pois acreditava que não havia vida que valesse a pena ser vivida se não fosse arriscada em busca de conhecimento e justiça. E era por essa razão que os seus compatriotas o temiam. A justiça era obtida, acreditava ele, não pela administração, e sim pela experiência. É preciso saber o que significa sofrer humilhação e impotência, pelo menos até certo ponto, antes de poder apreciar por inteiro o seu efeito. É preciso abrir mão do poder se quisermos alcançar a verdadeira justiça. Esta não era a lógica do Império, porém era a lógica de alguém que verdadeiramente amava o mundo e desejava ver o alvorecer de uma era em que todas as pessoas seriam livres para perseguir as suas ambições com dignidade e respeito próprio.
— Ah, Elric. — disse Yyrkoon, rastejando como uma serpente por trás do Trono de Rubi. — Você é um inimigo de sua própria raça, um inimigo de seus deuses e um inimigo de tudo que venero e desejo. Por isso deve ser destruído e por esse motivo devo possuir tudo o que você possui...
Ante esse momento, Elric acordou. Sua pele estava úmida. Sua mão se estendeu até sua espada. Sonhara com Yyrkoon como uma serpente e agora podia jurar que tinha algo rastejando na areia não muito longe dali. O cavalo sentiu o cheiro e grunhiu, demonstrando uma agitação crescente. Elric se levantou deixando cair a capa de dormir. A respiração do cavalo fumegava no ar. Havia uma lua no alto, lançando uma leve luz azulada sobre o deserto.
O deslizamento se aproximou. Elric olhou para as margens altas da estrada, contudo não conseguiu distinguir nada. Tinha certeza de que os besouros de fogo não haviam retornado. E o que ouviu a seguir confirmou esta certeza. Foi uma grande explosão de hálito fétido, um som impetuoso, quase um grito, e sabia que alguma fera gigantesca estava por perto.
Elric sabia também que a besta não era deste deserto, nem mesmo deste mundo. Podia sentir o cheiro de algo sobrenatural, algo que havia surgido das profundezas do Inferno, convocado para servir a seus inimigos, e de repente soube porque os Aventureiros Feiticeiros cancelaram seu ataque tão prontamente, o que haviam planejado quando o deixaram seguir caminho.
Amaldiçoando sua própria euforia, Elric sacou Stormbringer e rastejou de volta para a escuridão, longe do cavalo.
O rugido veio de trás. Ele girou e lá estava!
Era uma coisa enorme, parecida com um gato, exceto que seu corpo lembrava o de um babuíno com a cauda arqueada e havia espinhos nas costas. Suas garras foram estendidas e a besta se ergueu, alcançando-o enquanto gritava e saltava para o lado, atacando-o. A coisa tremeluzia com cores e luzes peculiares, como se não pertencesse na verdade ao mundo material. Elric não tinha dúvidas sobre sua origem. Tais coisas foram convocadas mais de uma vez pelos feiticeiros de Melniboné para ajudá-los contra aqueles que procuravam destruir. Revirou em sua mente atrás de algum feitiço, algo que o levasse de volta às regiões de onde havia sido invocado, no entanto já fazia muito tempo que não praticava qualquer tipo de feitiçaria.
A coisa agora havia captado seu cheiro e estava se movendo em sua perseguição, enquanto corria rápida e erraticamente para longe dela através do deserto, tentando colocar o máximo de espaço possível entre ambos.
A fera gritou. Estava faminta por mais do que a carne de Elric. Aqueles que a invocaram prometeram pelo menos sua alma. Era a recompensa habitual para uma fera sobrenatural desse tipo. Sentiu suas garras assobiando no ar atrás enquanto tentava agarrá-lo, e se virou, golpeando as patas dianteiras da criatura com sua espada. Stormbringer atingiu uma das patas e tirou algo parecido com sangue. Elric sentiu uma onda nauseante de energia fluir dentro em seu interior. Desta vez estocou e a fera gritou, abrindo uma boca vermelha na qual brilhavam dentes da cor do arco-íris.
— Por Arioch. — balbuciava Elric. — Você é uma criatura horrenda. É quase um dever mandá-lo de volta para o Inferno...
E Stormbringer tornou a golpear, atingindo a mesma pata ferida. Todavia desta vez a coisa-gato salvou-se e começou a se preparar para um salto, ao qual Elric sabia que tinha poucas hipóteses de sobreviver. Uma fera sobrenatural não é morta tão facilmente quanto os guerreiros da Irmandade das Mariposas.
Foi então que ouviu um grito e, ao se virar, viu uma aparição se movendo em sua direção ao luar. Era semelhante a um homem, montado num animal de corcunda estranha que galopava mais rápido do que qualquer cavalo.
A criatura-gato parou insegura e se virou, cuspindo e rosnando, para lidar com essa distração antes de acabar com o albino.
Percebendo que não se tratava de mais uma ameaça, mas de algum viajante que passava tentando ajudá-lo, Elric gritou.
— É melhor salvar-se, senhor. Essa fera é sobrenatural e não pode ser facilmente morta por meios ordinários!
A voz que respondeu era profunda e vibrante, cheia de bom humor.
— Estou bem ciente, senhor, e ficaria grato se pudesse lidar com a coisa enquanto chamo sua atenção.
Ao que o cavaleiro virou sua montaria estranha e começou a cavalgar em passo reduzido na direção oposta. A criatura sobrenatural não foi, entretanto, enganada. É evidente que aqueles que a criaram a instruíram quanto a sua presa. Ele cheirou o ar, procurando Elric outra vez.
O albino estava ocultado atrás de uma duna, reunindo forças. Havia se lembrado de um feitiço menor que, dada à energia extra que já havia extraído do demônio, poderia ser capaz de empregar. Começou a cantar na antiga e bela linguagem musical que eles chamavam de Alto Melniboneano e, ao fazê-lo, pegou um punhado de areia e passou-o pelo ar com movimentos estranhos e graciosos. Pouco a pouco, a partir dos grãos das dunas, uma espiral de areia começou a subir, assobiando enquanto girava cada vez mais rápido sob o luar de cores estranhas.
A fera felina rosnou e correu para frente. Porém Elric ficou entre ela e a espiral giratória. Então, no último momento, se afastou. A voz da espiral ficou ainda mais alta. Não era mais do que um simples truque ensinado a jovens feiticeiros como forma de encorajamento, contudo teve o efeito de cegar a coisa-gato por tempo suficiente para que Elric atacasse com sua espada e se abaixasse sob as garras para cravar a lâmina fundo nas partes vitais da besta.
Em seguida a energia começou a ser drenada para a lâmina e da lâmina para Elric. O albino gritou e delirou enquanto a substância o enchia. A energia demoníaca não lhe era estranha, entretanto também ameaçava transformá-lo em um demônio, pois era quase impossível de ser controlada.
— Aaah! É demais. Demais! — Elric se retorceu em agonia enquanto a essência vital demoníaca se derramava sobre ele e a coisa-gato rugia e morria.
Depois desapareceu, e Elric continuou ofegante sobre a areia enquanto o cadáver da fera desaparecia aos poucos no nada, retornando ao reino de onde havia sido convocada. Por alguns segundos, Elric quis seguir a coisa até suas regiões de origem, pois a energia roubada ameaçava se espalhar para fora de seu corpo, irrompendo de seu sangue e de seus ossos, no entanto velhos hábitos lutaram para controlar essa luxúria até que por fim ele, uma vez novamente, teve controle sobre si mesmo. Aos poucos, começou a se levantar do chão apenas para ouvir a aproximação de cascos.
Virou-se, com a espada pronta, mas viu que era o viajante que antes tentara ajudá-lo. Stormbringer não sentiu nenhum sentimento sobre a situação e se agitou em sua mão, pronta para reclamar a alma deste amigo tão rápido como havia roubado as almas dos inimigos de Elric.
— Não! — o albino forçou a lâmina de volta à bainha. Sentia quase enjoado com a energia sugada do demônio, porém se obrigou a fazer uma reverência profunda quando o cavaleiro o alcançou. — Agradeço sua ajuda, estranho. Não esperava encontrar um amigo tão perto de Quarzhasaat.
O jovem olhou-o com alguma simpatia e boa vontade. Suas feições eram surpreendentemente bonitas, com olhos escuros e bem-humorados em sua pele negra e brilhante. Nos cabelos curtos e encaracolados usava um gorro decorado com penas de pavão e sua jaqueta e calças pareciam ser de veludo preto costurado com fio de ouro, sobre o qual estava jogado um manto com capuz de cor clara, do padrão geralmente usado pelos povos do deserto nessas partes. Ele cavalgou devagar na montaria bovina que tinha cascos fendidos e uma cabeça larga, uma protuberância enorme acima dos ombros, como a de certo gado que Elric tinha visto em pergaminhos representando o Continente Meridional.
No cinto do jovem havia uma espécie de bastão ricamente esculpido com cabo torto, com cerca de metade de sua altura, e no outro quadril usava uma espada simples de punho achatado.
— Eu também não esperava encontrar um imperador de Melniboné por aqui! — disse o homem com regozijo. — Saudações, Príncipe Elric. Estou honrado em conhecê-lo.
— Nós não nos conhecemos? Como sabe meu nome?
— Oh, esses truques não são nada para um dos meus ofícios, Príncipe Elric. Meu nome é Alnac Kreb e estou indo para o oásis que eles chamam de Flor Prateada. Devemos retornar ao seu acampamento e ao seu cavalo? Fico feliz em dizer que este está ileso. Que inimigos poderosos você tem para que enviem um demônio tão imundo contra sua pessoa? Teria ofendido os Aventureiros Feiticeiros de Quarzhasaat?
— Assim parece. — Elric caminhou ao lado do recém-chegado enquanto os dois voltavam para a Estrada Vermelha. — Estou grato a você, Mestre Alnac Kreb. Sem a sua ajuda teria agora sido absorvido de corpo e alma por aquela criatura e levado de volta para qualquer inferno que lhe deu origem. Entretanto devo avisá-lo, há perigo de que eu seja atacado outra vez por aqueles que o enviaram.
— Acho que não, Príncipe Elric. Eles estavam sem dúvidas confiantes em seu sucesso e, além do mais, não queriam mais negócios com você, uma vez que perceberam que não era um mortal comum. Vi um bando deles, de três seitas distintas daquela desagradável guilda, retornando a Quarzhasaat, há menos de uma hora. Curioso para saber de onde fugiram, vim por aqui e fiquei feliz por prestar algum serviço menor.
— Também estou viajando para o Oásis da Flor Prateada, embora não saiba o que esperar lá. — Elric gostou muito deste jovem. — Ficaria feliz com sua companhia na viagem.
— Fico honrado, senhor. Honrado! — sorrindo, Alnac Kreb desmontou de seu estranho animal e amarrou-o perto do cavalo de Elric, que ainda não se recuperara do terror, embora agora estivesse mais quieto.
— Não vou pedir que se canse ainda mais esta noite, senhor. — acrescentou Elric. — Mas estou muito curioso para saber como adivinhou meu nome e minha raça. Comentastes de um truque do seu ofício. Qual seria esse ofício, se posso perguntar?
— Ora, senhor... — disse Alnac Kreb, tirando a areia das calças de veludo. — Achei que tivesse adivinhado. Sou um ladrão de sonhos.
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