Tomo 03 — Capítulo 11: Na Corte da Pérola
Capaz de empunhar armas antigas, ganhar novas propriedades
E derrubar muros que o Tempo santifica,
Arrasar templos antigos como mentiras sagradas,
E quebrar seu orgulho, perder seu amor,
Destruindo sua raça, sua história, sua musa,
E, renunciando à paz por uma vida de conflito,
Deixar apenas um cadáver que as moscas recusam?
— A Crônica da Espada Negra
Mais uma vez Elric experimentou aquele estranho tremor de reconhecimento da paisagem, embora não se lembrasse de ter visto algo parecido. Uma névoa azul pálida subia em torno de ciprestes, tamareiras, laranjeiras e choupos cujos tons de verde eram igualmente pálidos; por vezes, prados fluidos revelavam o branco arredondado das pedras e, ao longe, havia montanhas com picos nevados. Era como se um artista tivesse pintado o cenário com as mais delicadas pinceladas. Foi uma visão do Paraíso e totalmente inesperada após a insanidade de Falador.
A Rainha Sough permaneceu em silêncio desde que respondeu à pergunta de Elric e uma atmosfera peculiar se desenvolveu entre os três. Todavia, toda a inquietação não conseguiu afetar o deleite de Elric pelo mundo em que haviam entrado. Os céus (se é que existiam) estavam cheios de nuvens peroladas, tingidas de rosa e de um amarelo pálido, e uma pequena fumaça branca subia de uma casa de telhado plano a alguma distância. A barcaça parou em uma poça de água parada e cintilante, e a Rainha Sough fez um gesto para que desembarcassem.
— Você virá conosco para a Fortaleza? — perguntou Oone.
— Ela não sabe. Não sei se está permitido. — disse a Rainha, com os olhos semicerrados acima do véu.
— Então direi adeus agora. — e Elric curvou-se e beijou a mão macia da mulher. — Agradeço sua ajuda, e espero que me perdoe pela grosseria de meus modos.
— Perdoado, sim.
Elric, erguendo o olhar, pensou que a Rainha Sough sorria.
— Também lhe agradeço. — Oone falou com intimidade, como se compartilhará um segredo. — Sabe como encontraremos a Fortaleza da Pérola?
— Ali saberão. — a Rainha apontou para a cabana distante. — Adeus, como você disse. Somente você pode salvá-la.
— Fico grato pela sua confiança. — disse Elric. Ele pisou na grama e seguiu Oone enquanto ambos atravessavam os campos até a casinha. — Isso é um grande alívio, minha senhora. Um contraste, de fato, com a Terra da Loucura!
— Sim. — respondeu com um pouco de cautela e sua mão foi até o punho da espada. — Mas lembre-se, Príncipe Elric, que a loucura assume muitas formas em todos os mundos.
Ele não permitiu que a cautela dela o fizesse perder o prazer. Estava determinado a restaurar-se ao máximo de suas energias, em preparação para o que quer que estivesse por vir.
Oone foi a primeira a chegar à porta da casa branca. Lá fora havia duas galinhas ciscando no cascalho, um cachorro velho, amarrado a um barril, que os observou por cima do focinho cinza e sorriu, um par de gatos de pelo curto limpando o pelo prateado no telhado por cima da verga. Oone bateu e a porta foi aberta quase imediatamente. Um jovem alto e bonito estava ali, com a cabeça coberta por uma velha capa, o corpo vestido com uma túnica marrom claro de mangas compridas. Parecia satisfeito em receber visitantes.
— Saudações. — cumprimentou. — Eu sou Chamog Borm, atualmente em exílio. Vieram com boas notícias da Corte?
— Temo não ter nenhuma notícia. — disse Oone. — Somos viajantes e procuramos a Fortaleza da Pérola. É aqui perto?
— No coração e no centro dessas montanhas. — o jovem acenou com a mão em direção aos picos. — Gostaria de se juntar a mim para um refresco?
O nome que o jovem havia dado, junto com sua aparência extraordinária, fizeram Elric tornar a quebrar a cabeça, tentando lembrar por que tudo isso lhe era tão familiar. Sabia que só recentemente tinha ouvido o nome.
Dentro da casa fresca, Chamog Borm preparou para seus convidados uma bebida à base de ervas. Parecia orgulhoso das suas habilidades domésticas e era evidente que não era um simples agricultor. Em um canto da sala estava amontoada uma rica armadura, de aço entalhado com prata e ouro, um elmo decorado com uma ponta alta, essa ponta decorada com cobras ornamentais e falcões travados em conflito. Havia lanças, uma espada longa e curva, adagas... Armas e apetrechos de todos os tipos.
— Sua profissão é a de um guerreiro de profissão? — perguntou Elric enquanto bebia o líquido quente. — Sua armadura é muito elegante.
— Já fui um herói. — disse Chamog Borm com tristeza. — Até ser despedido da Corte da Pérola.
— Despedido? — Oone o encarou, reflexiva. — Sob que acusação?
Chamog Borm baixou os olhos.
— Fui acusado de covardia. Porém acredito que não fui culpado, fui alvo de um encantamento.
E agora Elric recordou onde tinha ouvido o nome. Quando chegou a Quarzhasaat, em sua febre, vagou pelos mercados e ouviu os contadores de histórias. Pelo menos três das histórias que ouvira diziam respeito à Chamog Borm, herói lendário, o último bravo cavaleiro do Império. Seu nome era venerado em todos os lugares, até mesmo nos acampamentos nômades. No entanto, Elric tinha certeza de que Chamog Borm existira, se é que alguma vez existiu, pelo menos mil anos antes!
— Qual foi a ação da qual foi acusado? — perguntou.
— Não consegui salvar a Pérola, que agora está enfeitiçada, aprisionando-nos a todos num sofrimento perpétuo.
— Qual foi esse encantamento? — Oone perguntou.
— Tornou-se impossível para nosso monarca e muitos dos retentores deixarem a Fortaleza. Coube a mim a tarefa de libertá-los. Em vez disso, trouxe um encantamento pior sobre nós. E minha punição é contrária à deles. Enquanto estão impossibilitados de partir, eu não posso retornar.
À medida que falava, ficava cada vez mais melancólico. Elric, ainda surpreso com esta conversa com um herói que deveria estar morto há séculos, pouco pôde dizer, mas Oone pareceu compreender tudo. Ela fez um gesto de simpatia.
— A Pérola pode ser encontrada lá? — perguntou Elric, consciente do acordo que fizera com Lorde Gho, da iminente tortura e morte de Anigh, das previsões de Oone.
— Claro. — afirmou Chamog Borm. — Alguns acreditam que governa toda a Corte, talvez o mundo.
— Foi sempre assim? — Oone perguntou suavemente.
— Eu já lhe disse que não era. — ele olhou para os dois como se fossem simplórios. Depois baixou os olhos, perdido na própria desonra e humilhação.
— Esperamos libertá-la. — disse Oone. — Você viria conosco para nos ajudar?
— Não posso ajudar. Ela não confia mais em mim. Estou banido. Porém posso deixar que fiquem com minha armadura e minhas armas para que pelo menos uma parte de mim possa lutar por ela.
— Obrigado. — disse Oone. — É muito generoso de sua parte.
Chamog Borm ficou mais animado ao ajudá-los a escolher entre seus pertences. Elric descobriu que o peitoral e as grevas lhe serviam perfeitamente, assim como o capacete. Equipamento semelhante foi encontrado para Oone e as tiras foram apertadas para se ajustarem ao seu corpo ligeiramente menor. Pareciam quase idênticos com a nova armadura e algo em Elric foi atingido outra vez, uma profunda sensação de satisfação que mal conseguia compreender, contudo que acolheu com agrado. A armadura deu-lhe não apenas uma maior sensação de segurança, como também uma sensação de profundo reconhecimento de sua própria força interior, uma força que sabia que deveria utilizar ao máximo no encontro que estava por vir. Oone o alertara sobre perigos mais sutis na Fortaleza da Pérola.
Os presentes de Chamog Borm continuaram na forma de dois cavalos cinzentos, que conduziu do estábulo nos fundos da casa.
— Estes são Taron e Tadia. Irmão e irmã, são potros gêmeos. Nunca foram separados. Uma vez eu os montei na batalha. Uma vez que peguei em armas contra o Império Brilhante. Agora o último Imperador de Melniboné cavalgará em meu lugar para cumprir meu destino e acabar com o cerco à Fortaleza da Pérola.
— Você me conhece? — Elric lançou um olhar atento para o belo jovem, procurando engano ou mesmo ironia, no entanto não havia nada naqueles olhos firmes.
— Um herói conhece outro, Príncipe Elric. — e Chamog Borm estendeu a mão para agarrar o antebraço de Elric no gesto de amizade dos povos do deserto. — Que você ganhe tudo o que deseja e o faça com honra. O mesmo para ti, senhora Oone. Sua coragem é a maior de todas. Adeus.
O exilado os observou do telhado de sua casinha até que sumiram de vista. Agora as grandes montanhas estavam próximas, quase os abraçando, e podiam ver uma estrada larga e branca que se estendia através delas. A luz era como a de uma tarde de fim de verão, embora Elric ainda não tivesse certeza se era o céu acima ou o teto distante de uma vasta caverna, pois o sol seguia não estando à vista. O Reino dos Sonhos era uma série ilimitada de cavernas ou os ladrões de sonhos mapearam o mundo inteiro? Poderiam cruzar as montanhas, ou além da Terra Sem Nome, e começar uma vez mais a viajar através dos sete portões, chegando por fim de volta à Terra dos Sonhos em Comum? E encontrariam Jaspar Colinadous à sua espera onde o tinham deixado?
A estrada, quando lá chegaram, era de puro mármore, todavia os cascos dos cavalos estavam tão bem calçados que não escorregaram nem uma vez. O barulho de seu galope começou a ecoar pela larga passagem e rebanhos de gazelas e ovelhas selvagens ergueram os olhos do pasto para vê-los passar, dois cavaleiros prateados em cavalos igualmente prateados a caminho da batalha contra as forças que haviam tomado o poder no Fortaleza da Pérola.
— Você entendeu essas pessoas melhor do que eu. — disse ele a Oone, quando a estrada começou a serpentear para cima em direção ao centro da cordilheira e a luz ficou mais fria, o céu ficando tingido de uma cor cinza brilhante e forte. — Sabe o que podemos esperar encontrar na Fortaleza da Pérola?
Oone balançou a cabeça com uma expressão de arrependimento.
— É como entender um código sem saber a que as palavras se referem. — respondeu. — A força é poderosa o suficiente para banir um herói tão incrível quanto Chamog Borm.
— Conheço apenas a lenda, e a ouvi há pouco tempo no Mercado de Escravos em Quarzhasaat.
— Foi convocado pela Jovem Santa assim que esta percebeu que estava sob novo ataque. Pelo menos é no que acredito. Ela não esperava que ele falhasse. De alguma forma, na verdade, piorou as coisas. Ela se sentiu traída e o baniu para os limites da Terra Sem Nome, lá talvez para cumprimentar e ajudar outros que pudessem vir ajudá-la. É sem dúvida por essa razão que recebemos todos os pertences do herói, para que possamos ser iguais, heróis como ele.
— No entanto, conhecemos ainda menos este mundo. Como poderemos ter sucesso onde ele falhou?
— Talvez por causa da nossa ignorância. — respondeu. — Talvez não. Não posso responder essa dúvida, Elric. — Oone cavalgou próxima ao albino, inclinando-se na sela para beijar a parte de sua bochecha exposta pelo capacete. — Só tenha ciência disto. Não trairei nem ela nem, se puder evitar, você. Entretanto, se tiver que trair um de vocês, suponho que será você.
Elric a encarou perplexo.
— Será esse o resultado?
Oone encolheu os ombros e então suspirou.
— Não sei, Elric. Olha. Veja, acho que chegamos à Fortaleza da Pérola!
Era como um palácio esculpido no mais delicado marfim. Branca contra o céu prateado, se erguia acima das neves da montanha, uma grande multidão de pináculos delgados e torres, de cúpulas, de estruturas misteriosas que pareciam quase como se tivessem sido presas à vista. Havia pontes e escadas, paredes curvas e galerias, varandas e telhados-jardins cujas cores eram um espectro de tons pastéis, uma miríade de diferentes plantas, flores, arbustos e árvores. Em todas as suas viagens, Elric só tinha visto um lugar que era igual à Fortaleza da Pérola que era a sua própria cidade, Imrryr. Todavia, a Cidade Onírica era exótica, rica e até vulgar, uma fantasia romântica comparada com a complicada austeridade deste palácio.
Ao se aproximarem pela estrada de mármore, Elric percebeu que a Fortaleza não era de um branco puro, mas continha tons de azul, prata, cinza e rosa, às vezes um pouco de amarelo ou verde, e teve a noção de que a coisa toda havia sido esculpida em uma única pérola gigantesca. Logo chegaram ao único portão da Fortaleza, uma grande abertura circular protegida por grades pontiagudas que vinham de cima e de baixo e de ambos os lados se encontrando no centro. A Fortaleza era vasta, porém até o seu portão os tornava pequenos.
Elric não conseguia pensar em nada para fazer senão gritar.
— Abra em nome da Jovem Santa! Viemos lutar contra aqueles que aprisionam seu espírito aqui!
Suas palavras ecoavam pelas torres da Fortaleza e pelos picos recortados das montanhas, e pareciam perder-se nas alturas do teto de uma caverna. Nas sombras além do portão viu algo escarlate se mover e depois desaparecer. Veio o cheiro de um perfume delicioso, misturado com o mesmo cheiro estranho do oceano que haviam notado quando chegaram à Terra Sem Nome.
Então os portões se abriram, tão rapidamente que pareceram derreter no ar, e um cavaleiro os confrontou, sua risada sem humor já bastante familiar.
— Suponho que isso é o que deveria ser. — disse o Guerreiro da Pérola.
— Alie-se conosco uma vez mais, Guerreiro da Pérola. — disse Oone, com toda a sua considerável autoridade. — É o que ela deseja!
— Não. É para que ela não seja traída. Você deve se dissolver. Agora! Agora! Agora! — sua cabeça foi jogada para trás enquanto gritava essas últimas palavras, como um cachorro enlouquecido.
Elric sacou uma espada da bainha. Brilhava com a mesma luz prateada que emanava da lâmina do Guerreiro da Pérola. Oone seguiu seu exemplo, embora com mais relutância.
— Vamos passar agora, Guerreiro da Pérola.
— Ninguém passará por aqui! Eu quero sua liberdade.
— Ela a terá! — disse Oone. — Não é sua, a menos que ela mesma o conceda.
— Ela diz que é minha. Eu serei isso. Eu serei isso!
Elric não conseguiu acompanhar esta estranha conversa e optou por não perder mais tempo. Incitou seu cavalo prateado a avançar, a lâmina reluzindo em sua mão. Essa espada era tão equilibrada, tão familiar ao seu punho, que sentiu por um momento que era de alguma forma o contraste natural com sua espada rúnica. Seria esta uma espada forjada pela Lei para servir aos seus propósitos, assim como Stormbringer foi, segundo todos os relatos, forjada pelo Caos?
O Guerreiro da Pérola gargalhou e arregalou os olhos horríveis. A morte estava neles. A morte do mundo. Ele baixou a mesma lança disforme que havia brandido contra eles antes e Elric viu que estava incrustada com sangue seco. O guerreiro se manteve firme e a lança ameaçou subitamente os olhos de Elric, de modo que o albino teve que se atirar para o lado para evitar a ponta, atacando para cima ao fazê-lo e sentindo uma maior resistência do que qualquer coisa que já sentira antes. O Guerreiro da Pérola parecia ter ganhado força desde o último encontro.
— Alma ordinária!
Os lábios se torceram nesse insulto, claramente tão nojento quanto qualquer outro que o Guerreiro da Pérola pudesse conceber. E começou a rir novamente, desta vez porque Oone estava cavalgando em sua direção, com a espada estendida à sua frente, uma lança na outra mão, as rédeas entre os dentes. A espada avançou, a lança balançou para trás enquanto se preparava para golpear. Então a espada e a lança atingiram o Guerreiro da Pérola no mesmo momento, de modo que seu peitoral quebrou como a carapaça de algum grande crustáceo e foi perfurado pela espada.
Elric ficou maravilhado com esta estratégia que nunca tinha testemunhado antes. A força e a coordenação de Oone estavam quase além da credibilidade. Foi uma façanha de armas da qual os guerreiros falariam por mil anos, que muitos tentariam imitar e morreriam tentando.
A lança fez seu trabalho ao abrir a armadura do Guerreiro da Pérola e a espada completou a ação. Todavia o Guerreiro da Pérola não foi morto.
Ele gemeu e gargalhou. Debateu-se. Sua espada foi erguida como se quisesse proteger seu peito do golpe já desferido. Seu grande cavalo empinou e suas narinas dilataram-se de fúria. Oone desviou sua própria montaria. Sua espada havia deixado a ponta no corpo do Guerreiro da Pérola. Agora estava procurando uma segunda lança, sua adaga.
Elric avançou de novo, a sua própria lança apontada para a armadura rachada, na esperança de seguir o exemplo de Oone, mas a lâmina atingiu o marfim e foi desviada. Elric perdeu o equilíbrio por tempo suficiente para o Guerreiro da Pérola aproveitar a vantagem. A espada atingiu o aço da armadura de Elric com um barulho que fez uma cacofonia dentro de seu capacete e trouxe faíscas brilhantes como fogo. O albino caiu no pescoço do cavalo, mal conseguindo bloquear o próximo golpe. Então o Guerreiro da Pérola gritou, os olhos ficando ainda mais arregalados, a boca escancarada e vermelha e o hálito fétido emanando dela, enquanto o sangue escorria por baixo do gorjal entre seu elmo e sua couraça. Ele caiu em direção a Elric e o albino percebeu que o cabo de uma lança estava espetado em seu peito justo no mesmo lugar onde Oone havia quebrado a armadura da criatura.
— Isso não vai continuar assim! — gritou o Guerreiro da Pérola em uma ameaça. — Eu não posso fazer isso!
Então tombou do cavalo e caiu como ossos velhos nas lajes do pátio. De trás uma fonte ornamental, representando uma figueira em pleno fruto, começou a jorrar água, enchendo o cocho ao redor e transbordando até tocar o corpo do Guerreiro da Pérola. O cavalo sem cavaleiro começou a relinchar, dando voltas e mais voltas, empinando, espumando, depois galopou pelo portão e voltou pela estrada de mármore.
Elric virou o cadáver pesado para se certificar de que não havia mais vida no Guerreiro da Pérola e para inspecionar a armadura quebrada. Continuou admirando a manobra de Oone.
— Nunca vi isso ser feito antes. — disse ele. — E lutei ao lado e contra guerreiros famosos.
— Um ladrão de sonhos deve saber muitas coisas. — disse ela, em agradecimento ao elogio. — Aprendi essas táticas com minha mãe, que foi uma guerreira melhor do que eu jamais serei.
— Sua mãe era uma ladra de sonhos?
— Não. — disse Oone distraidamente enquanto inspecionava sua espada arruinada e depois pegava a do Guerreiro da Pérola. — Ela era uma rainha.
Oone testou o peso da lâmina da criatura morta e descartou a sua própria, testando-a na bainha e descobrindo que era um pouco larga demais. Sem se preocupar muito, enfiou-a no cinto e desenganchou a bainha, jogando-a no chão. A água da fonte estava agora em volta de seus tornozelos e inquietava os cavalos.
Conduzindo os corcéis, eles passaram sob um arco em forma de coração e entraram em outro pátio. Aqui também havia fontes, porém estas não jorravam água. Pareciam esculpidas em marfim, como grande parte da Fortaleza, e representavam garças estilizadas, com os bicos se encontrando num ponto acima de suas cabeças. Elric teve uma vaga lembrança da arquitetura de Quarzhasaat, embora esta não tivesse nada da decadência daquele lugar, nada do aspecto de velhice senil que caracterizava o pior da cidade. Teria a Fortaleza sido construída pelos antepassados dos atuais senhores de Quarzhasaat, o Conselho dos Seis e Um Outro? Será que algum grande rei fugiu da cidade milênios antes e viajou para cá, para o Reino dos Sonhos? Foi assim que a lenda da Pérola chegou a Quarzhasaat?
Pátio após pátio, cada um à sua maneira e de extraordinária beleza, seguiam até que Elric começou a perguntar-se se este caminho os estava apenas a conduzir através da Fortaleza para o outro lado.
— Para um edifício tão grande, é um tanto subpovoado. — comentou com Oone.
— Creio que encontraremos os habitantes em breve. — murmurou Oone.
Agora subiam por uma passagem em espiral que contornava uma enorme cúpula central. Embora o palácio tivesse um clima e uma aparência de austeridade, Elric não achou sua arquitetura fria e havia algo quase orgânico, como se tivesse sido formado de carne e depois petrificado.
Com os cavalos ainda os acompanhando, o som agora abafado pelo tapete luxuoso, percorreram corredores e salas cujas paredes estavam cobertas de tapeçarias e decoradas com mosaicos, embora não vissem imagens de seres vivos, apenas desenhos geométricos.
— Acho que estamos perto do coração da Fortaleza. — disse-lhe Oone num sussurro. Era como se temesse ser ouvida, mas os dois não haviam visto ninguém. Ela olhou além das colunas altas, através de uma série de salas aparentemente iluminadas pela luz solar. Seguindo o olhar de Oone, Elric teve a impressão de um tecido azul passando por uma porta e desaparecendo.
— O que foi aquilo?
— Tanto faz. — disse Oone para si mesma. — Tudo o mesmo.
Sua espada foi desembainhada, e sinalizou para que Elric fizesse o mesmo. Eles entraram em outro pátio. Este parecia estar aberto para o céu, o mesmo céu cinzento que tinham visto pela primeira vez nas montanhas. Galeria após galeria erguiam-se ao seu redor, muitos andares até o topo. Elric pensou ter visto rostos o observando, então algo líquido atingiu seu rosto e quase inalou a substância vermelha e doentia que cobria seu corpo. Mais sangue caía sobre eles de todas as partes da galeria e o pátio já estava mergulhado até os joelhos no que parecia a Elric ser sangue humano. Ouviu um murmúrio lá em cima, uma risada suave, um grito.
— Já basta! — gritou, caminhando para o lado da câmara. — Estamos aqui para negociar. Tudo o que queremos é a Jovem Santa! Devolva-nos o seu espírito e partiremos!
Sua resposta foi mais uma chuva de sangue, e puxou seu cavalo em direção à porta ao lado. Havia um portão do outro lado. Tentou levantá-lo. Ele tentou soltá-lo de suas montagens. Olhou para Oone, que, limpando o líquido vermelho de si mesma, juntou-se em seu esforço. Ela estendeu os dedos longos e encontrou algum tipo de botão. O portão abriu devagar, quase com relutância, mas abriu. Ela sorriu para ele.
— Como a maioria dos homens, você se torna um bruto quando entra em pânico, meu senhor.
Ele ficou magoado com a piada.
— Eu não tinha ideia de que deveria encontrar um meio de abrir o portão, minha senhora.
— Pense nessas coisas no futuro e terá mais chances de sobreviver nesta Fortaleza. — disse ela.
— Por que eles não negociam conosco?
— Talvez não acreditem que estamos prontos para negociar. — respondeu, e acrescentou em seguida. — Na realidade, só posso adivinhar qual é a sua lógica. Cada aventura de um ladrão de sonhos é diferente das outras, Príncipe Elric. Venha.
Conduzindo-o, passaram por uma série de piscinas cheias de água morna de onde subia um pouco de vapor. Não havia banhistas nas piscinas. Então Elric pensou ter visto criaturas, talvez peixes, nadando nas profundezas, e se inclinou para olhar, porém Oone o puxou de volta.
— Eu te avisei. Sua curiosidade pode trazer a sua destruição e a minha.
Algo se debateu e borbulhou na piscina e depois desapareceu. De repente, os quartos começaram a tremer e a água espumava. Rachaduras apareceram no chão de mármore. Seus cavalos bufaram de medo e ameaçaram perder o equilíbrio. O próprio Elric quase caiu em uma das fissuras que se abriram. Foi como se um terremoto tivesse atingido repentinamente as montanhas. Contudo, enquanto corriam para a galeria seguinte, que dava para um gramado tranquilo, todos os sinais do terremoto haviam desaparecido.
Um homem se aproximou dos dois. No porte, se parecia com a Rainha Sough, no entanto era mais baixo e mais velho. Sua barba branca pendia sobre uma túnica de tecido dourado e na mão segurava uma bandeja sobre a qual estavam colocadas duas bolsas de couro.
— Você aceitará a autoridade da Fortaleza da Pérola? — perguntou. — Eu sou o senescal deste lugar.
— A quem você serve? — Elric perguntou bruscamente. Sua espada ainda estava empunhada e não fez nenhum esforço para disfarçar sua prontidão para usá-la.
O senescal parecia perplexo.
— Sirvo a Pérola, é claro. Esta é a Fortaleza da Pérola!
— Quem governa aqui, ancião? — Oone perguntou em um tom incisivo.
— A Pérola. Já os disse.
— Ninguém governa a Pérola? — Elric ficou perplexo.
— Não mais, senhor. Agora, pode pegar este ouro e ir embora? Não temos nenhum desejo de gastar mais de nossas energias com vocês. Eles enfraquecem, todavia não estão exaustos. Creio que serão dissolvidos em breve.
— Derrotamos todos os seus defensores. — disse Oone. — Por que deveríamos querer ouro?
— Você não deseja a Pérola?
Antes que Elric pudesse responder, Oone silenciou-o com um gesto de advertência.
— Viemos apenas para garantir a libertação da Jovem Santa.
O senescal sorriu.
— Todos eles fizeram essa afirmação, mas o que querem é a Pérola. Não posso acreditar em suas palavras, senhora.
— Como podemos provar nossas palavras?
— Não pode. Já sabemos a verdade.
— Não temos interesse em negociar com você, Sir Senescal. Se serve a Pérola, a quem a Pérola serve?
— A criança, suponho.
Sua testa franziu. Sua pergunta o confundiu, porém para Elric parecia tão simples. Sua admiração pela habilidade da ladra de sonhos aumentou.
— Veja, podemos ajudá-lo nisso. — disse Oone. — O espírito da criança está aprisionado. E enquanto está aprisionada, você também é mantido em cativeiro.
O velho tornou a oferecer os sacos de ouro.
— Tome isso e nos deixe.
— Não creio que o faremos. — disse Oone com firmeza, e conduziu o cavalo para frente, passando pelo velho. — Venha, Elric.
O albino hesitou.
— Devíamos interrogá-lo mais, Oone?
— Ele não poderia responder mais.
O senescal correu até ela, balançando as bolsas pesadas, a bandeja caindo no chão com um estrondo.
— Ela não está! Vão lhe fazer dano! Isso não vai acontecer. A dor virá! Dor!
Elric sentiu simpatia pelo ancião.
— Oone. Devíamos ouvi-lo.
Ela não fez qualquer pausa.
— Vamos. Devemos ir.
Elric aprendeu a confiar no julgamento de Oone, e também passou pelo velho, que bateu em seu corpo com os sacos de ouro e chorou, as lágrimas escorrendo pelo rosto e pela barba. Foi necessária uma coragem diferente para realizar aquela ação específica.
À frente deles havia outro grande portão curvo, todo elaborado em treliças e mosaicos, delimitado por faixas de jade, esmalte azul e prata. Duas grandes portas de madeira escura, com dobradiças e tachas de latão, bloqueavam o caminho.
Ninguém bateu. Oone estendeu a mão suavemente em direção às portas e colocou as pontas dos dedos contra elas. Pouco a pouco, tal como aconteceu com o outro portão, as portas começaram a se abrir. Ouviram um leve ruído vindo de dentro, quase um gemido. As portas se abriram cada vez mais até ficarem completamente de volta às dobradiças.
Por um momento, Elric ficou impressionado com o que viu.
Um brilho cinza-dourado encheu a grande câmara que lhes fora revelada. O resplendor vinha de uma coluna da altura de um homem alto, encimada por um globo. No centro do globo brilhava uma pérola de tamanho enorme, quase tão grande quanto o punho de Elric. Pequenos lances de escadas conduziam à coluna por todos os lados, e em torno desses degraus havia o que à primeira vista pareciam fileiras de estátuas. Então Elric percebeu que eram homens, mulheres e crianças, vestidos com todos os tipos de trajes, embora a maioria deles nos estilos preferidos em Quarzhasaat e pelos clãs do deserto.
O velho veio tropeçando atrás dos dois.
— Não machuquem isso!
— Nós nos defendemos, Sir Senescal. — disse-lhe Oone sem se virar para olhá-lo. — É tudo que precisa saber de nós.
Entraram na câmara devagar, ainda conduzindo os cavalos prateados, com as espadas prateadas nas mãos, a luz da pérola tocando suas armaduras prateadas e seus elmos, fazendo com que estes também brilhassem com um brilho suave.
— Isto não é para destruir. Não é para derrotar. Não é para despojar.
Elric estremeceu ao ouvir a voz. Olhou para as paredes distantes da sala e lá estava o Guerreiro da Pérola, sua armadura toda rachada e manchada de sangue, seu rosto um hematoma terrível, os olhos parecendo alternar entre desbotar e incendiar. E às vezes eram os olhos de Alnac.
As próximas palavras do guerreiro foram quase patéticas.
— Eu não posso lutar com você. Não mais.
— Não estamos aqui para ferir. — tornou a dizer Oone. — Estamos aqui para libertá-los!
Houve um movimento entre as figuras estáticas. Uma mulher com véu azul apareceu. Os próprios olhos da Rainha Sough pareciam lágrimas.
— Vocês vieram com isto? — ela indicou as espadas, os cavalos, as armaduras. — Mas nossos inimigos não estão aqui.
— Estarão aqui em breve. — disse Oone. — Em breve, minha senhora.
Ainda perplexo, Elric olhou para trás, como se fosse ver seus inimigos. Fez um movimento em direção à Pérola no Coração do Mundo, apenas para admirar uma maravilha. Imediatamente todas as figuras ganharam vida, bloqueando seu caminho.
— Você vai roubar! — o ancião parecia ainda mais miserável do que antes, ainda mais impotente.
— Não... — disse Oone. — Não é nosso propósito. Devem compreender isso. — ela falou com urgência. — Raik Na Seem nos enviou para encontrá-la.
— Ela está segura. Diga a ele que está segura.
— Não, não está segura. Em breve se dissolverá. — Oone voltou seu olhar para a multidão sussurrante. — Está separada, assim como nós estamos separados. A Pérola é a causa.
— Isso é um truque. — disse a Rainha Sough.
— Um truque. — ecoou o Guerreiro da Pérola ferido, e houve uma leve risada de sua garganta.
— Um truque. — disse o senescal, e estendeu os sacos de ouro.
— Não viemos para roubar nada. Viemos para defender. Veja! — Oone fez um movimento circular com a espada para mostrar-lhes o que evidentemente ainda não tinham visto.
Emergindo pelas paredes da câmara, com as mãos cheias de todas as armas imagináveis, surgiram os soldados encapuzados e tatuados de Quarzhasaat. Os Aventureiros Feiticeiros.
— Não podemos combatê-los. — disse Elric calmamente a sua amiga. — Há muitos deles.
E ele se preparou para a morte.
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