Tomo 03 — Capítulo 13: Celebrações no Oásis da Flor Prateada
Acordando ao lado da criança ainda adormecida, Elric ficou surpreso ao se sentir tão revigorado. O báculo dos sonhos, que os ajudara a alcançar substância no Reino dos Sonhos, seguia firme em suas mãos entrelaçadas e, olhando para a criança, viu Oone começando a se mexer.
— Você falhou?
Era a voz de Raik Na Seem, cheia de tristeza resignada.
— O quê? — Oone olhou para Varadia.
Enquanto a observavam, sua pele começou a reluzir com uma saúde normal e seus olhos se abriram para ver seu pai ansioso observando-a. Ela sorriu. Era o sorriso simples e sincero com o qual Oone e Elric já haviam se familiarizado.
O Primeiro Ancião do Clã Bauradim começou a chorar. Chorou como chorara o senescal da Corte da Pérola; chorou de alívio e de alegria. Tomou a filha em seus braços e não conseguiu falar por causa da alegria que havia em seu coração. Tudo o que pôde fazer foi estender a mão para seus amigos, o homem e a mulher que haviam entrado no Reino dos Sonhos para libertar o espírito de sua filha, para onde ela havia fugido para escapar da maldade dos mercenários de Lorde Gho.
Os dois tocaram sua mão e saíram da Tenda de Bronze. Caminharam juntos pelo deserto e então ficaram cara a cara, olhando nos olhos um do outro.
— Temos um sonho em comum agora. — disse Elric. Sua voz era gentil, cheia de carinho. — Creio que a memória será boa, senhora Oone.
Oone estendeu a mão para segurar o rosto de Elric.
— Você é sábio, Príncipe Elric, e é corajoso, mas há certo tipo de experiência comum que lhe falta. Espero que tenha sucesso em encontrá-la.
— Essa é a razão pela qual vago por este mundo, minha senhora, e deixo meu primo Yyrkoon como Regente no Trono Rubi. Estou ciente de mais de uma deficiência.
— Fico feliz por termos sonhado juntos. — disse ela.
— Você perdeu seu verdadeiro amor, acredito. — Elric lhe disse. — Fico feliz por tê-la ajudado a aliviar a dor dessa separação.
Oone ficou perplexa por um momento, então as rugas sumiram de sua testa.
— Fala de Alnac Kreb? Gostava dele, meu senhor, porém era mais um irmão para mim do que um amante.
Elric ficou envergonhado.
— Perdoe minha presunção, senhora Oone.
Oone olhou para o céu. A Lua de Sangue ainda não havia desaparecido. Seus raios vermelhos eram lançados na areia, no bronze brilhante da tenda onde Raik Na Seem recebia sua filha de volta.
— Não amo facilmente do jeito que quis dizer. — sua voz era significativa, seguida de um suspiro. — Ainda planeja retornar para Melniboné e sua noiva?
— Devo fazê-lo. — disse ele. — Eu a amo. E meu dever está em Imrryr.
— Doce dever!
Seu tom era sarcástico e deu um ou dois passos para se afastar, com a cabeça baixa e a mão no cinto. Chutou a poeira da cor de sangue velho.
Elric havia se disciplinado contra a dor de seu coração por muito tempo. Só podia ficar parado e esperar até que ela voltasse para o seu lado. E agora ela estava sorrindo.
— Bem, Príncipe Elric, se juntaria aos ladrões de sonhos e ganharia a vida por um tempo desse modo?
Elric balançou a cabeça.
— É uma vocação que exige muito de mim, minha senhora. Contudo, sou grato pelo que esta aventura me ensinou, tanto sobre mim como sobre o mundo dos sonhos. Sigo entendo apenas um pouco de tudo, não estou totalmente certo de onde viajamos ou o que encontramos, e não sei quanto no Reino dos Sonhos foi criação de dama Varadia e quanto foi sua. Foi como se tivesse testemunhado uma batalha de inventores.
— Oh, sem você, acredite em mim, Príncipe Elric, acho que teria falhado. Você viu tanto de outros mundos! E leu muito mais. Não adianta analisar muito de perto as criaturas e os lugares que encontramos no Reino dos Sonhos, no entanto tenha certeza de que deu sua contribuição, talvez, mais do que jamais imaginará.
— Será que a realidade pode ser feita a partir da estrutura desses sonhos? — ele se perguntou.
— Havia um aventureiro dos Reinos Jovens chamado Conde Aubec. — disse ela. — Sabia o quão poderosa a mente humana pode ser como criadora da realidade. Alguns dizem que ele e seu grupo ajudaram a criar o mundo dos Reinos Jovens.
Elric assentiu.
— Já ouvi essa lenda. Entretanto acho-a tão substancial quanto à história de Chamog Borm, minha senhora.
— Deve pensar o que quiser.
Ela se afastou para olhar a Tenda de Bronze. O ancião e sua filha estavam emergindo. De algum lugar lá dentro, os tambores da tenda começaram a soar. Ouviu-se um canto maravilhoso, uma dúzia de melodias interligadas, entrelaçadas. Lentamente, todas as pessoas que permaneceram na Tenda de Bronze vigiando o corpo da Jovem Santa começaram a se reunir em torno de Raik Na Seem e Varadia. Suas canções eram canções de intensa alegria. Suas vozes encheram o deserto com a vida mais linda e fizeram ecoar até as montanhas distantes.
Oone entrelaçou braços com Elric, num gesto de camaradagem, de reconciliação.
— Venha. — falou. — Vamos participar das celebrações.
Os dois tinham apenas andado mais alguns passos antes de serem erguidos nos ombros da multidão e logo foram carregados, rindo e contagiados pela alegria geral, pelo deserto em direção ao Oásis da Flor Prateada.
As comemorações começaram imediatamente, como se os Bauradim e todos os outros clãs do deserto estivessem se preparando para esse momento. Todo tipo de comida deliciosa foi preparada até que o ar ficou rico com uma enorme variedade de cheiros de dar água na boca. Parecia que todos os grandes armazéns de especiarias do mundo tinham sido abertos para liberar seu conteúdo. Fogos para cozinhar ardiam por toda parte, assim como grandes tochas, lamparinas e velas, e de Kashbeh Moulor Ka Riiz, com vista para o grande oásis, cavalgavam os guardiões Aloum’rit com toda a glória de suas antigas armaduras, seus capacetes vermelho-ouro e couraças, suas armas de bronze, latão e aço. Levavam grandes barbas bifurcadas e enormes turbantes enrolados nas pontas dos elmos. Usavam sobretudos elaborados de brocado e tecido prateado e suas botas de cano alto eram bordadas com desenhos quase tão intrincados quanto os de suas camisas. Eram homens orgulhosos e bem-humorados que cavalgavam ao lado de suas esposas, que também usavam armaduras e carregavam arcos e lanças delgadas. Todos logo se misturaram à enorme multidão que ergueu uma grande plataforma e colocou sobre ela uma cadeira esculpida e sentou a sorridente Varadia na cadeira para que todos pudessem ver a Jovem Santa dos Bauradim devolvida ao seu clã, trazendo de volta sua história, seu orgulho e seu futuro.
Raik Na Seem ainda chorava. Sempre que via Oone e Elric, os agarrava e puxava-os para si, agradecendo-lhes, dizendo-lhes, o melhor que podia, o que significava para ele ter tais amigos, tais salvadores, tais heróis.
— Seus nomes serão lembrados pelos Bauradim para sempre. E qualquer favor que nos pedir, desde que seja honroso, como sabemos que será, então nós o concederemos. Se estiver em perigo, há dez mil quilômetros de distância, enviem uma mensagem aos Bauradim e partiremos em seu auxílio. Enquanto isso, devem saber que libertaram o espírito de uma criança de bom coração do cativeiro sombrio.
— E essa é a nossa recompensa. — disse Oone, sorrindo.
— Nossa riqueza é sua. — disse o ancião.
— Não precisamos de riqueza. — disse-lhe Oone. — Acredito que descobrimos recursos melhores.
Elric concordou.
— Além disso, há um homem em Quarzhasaat que me prometeu meio império se eu lhe prestasse um pequeno serviço.
Oone entendeu a referência de Elric e riu.
Raik Na Seem ficou um pouco perturbado.
— Vai ir para Quarzhasaat? Ainda tem negócios lá?
— Sim... — disse Elric. — Há um garoto que espera ansiosamente meu retorno.
— Mas terá tempo para comemorar conosco, para conversar, para festejar comigo e com Varadia? Você mal trocou uma palavra com a criança!
— Acho que a conhecemos muito bem. — disse Elric. — O suficiente para tê-la em alta consideração. Ela é de fato o maior tesouro dos Bauradim, meu senhor.
— Conseguiram falar com ela naquele reino sombrio onde foi mantida prisioneira?
Elric pensou em esclarecer o Primeiro Ancião, porém Oone foi rápida em interromper, tão familiarizada estava com essas questões.
— Um pouco, meu senhor. Ficamos impressionados com sua inteligência e coragem.
A testa de Raik Na Seem franziu quando outro pensamento lhe ocorreu.
— Meu filho. — disse a Elric. — Você foi capaz de se sustentar naquele reino sem sofrer dor?
— Sem dor, sim. — disse Elric. Então percebeu o que havia sido dito. Pela primeira vez entendeu o que de bom havia resultado de sua aventura. — Sim, senhor. Há benefícios em ajudar um ladrão de sonhos. Grandes benefícios que eu não tinha apreciado até agora!
Com prazer, Elric juntou-se agora ao banquete, valorizando estas horas com Oone, os Bauradim e todos os outros clãs nômades. Mais uma vez sentiu como se tivesse voltado para casa, tão acolhedoras eram as pessoas, e desejou poder passar a vida aqui, aprendendo seus costumes, suas filosofias e desfrutando de seus passatempos.
Mais tarde, deitado sob uma grande tamareira, enrolando uma das flores prateadas entre os dedos, olhou para Oone, que estava sentado ao seu lado, e disse.
— De todas as tentações que enfrentei no Reino dos Sonhos, esta é talvez a maior, Oone. Esta é uma realidade simples e estou relutante em abandoná-la.
— Creio que não temos mais destino juntos. — ela suspirou. — Pelo menos não nesta vida, nem neste mundo, talvez. Primeiro você será uma lenda, depois não restará ninguém que o recorde.
— Meus amigos vão todos morrer? Ficarei sozinho?
— Acredito que sim. Enquanto servir ao Caos.
— Sirvo a mim mesmo e ao meu povo.
— Se acredita nisso, Elric, deve fazer mais para alcançá-lo. Você criou uma pequena realidade e talvez crie um pouco mais. Todavia o Caos não pode ser um amigo sem que ele o traia. No final, só podemos nos ver em nós mesmos. Nenhuma causa, nenhuma força, nenhum desafio jamais substituirá essa verdade...
— É para ser eu mesmo que viajo como viajo, senhora Oone. — lembrou-a. Seu olhar se voltou para o deserto, para as águas tranquilas do oásis. Respirou o ar fresco e perfumado do deserto.
— E sairá daqui em breve? — ela perguntou.
— Amanhã. — respondeu. — Devo fazê-lo. Mas estou curioso para saber que realidade criei.
— Oh, acho que um ou dois sonhos se tornaram realidade. — disse Oone de forma enigmática, beijando-lhe a bochecha. — E outro se tornará realidade em breve.
Elric não prosseguiu com a pergunta, pois ela havia tirado a grande Pérola da bolsa que trazia no cinto e a estendeu para ele.
— Existe! Não era a quimera que acreditávamos que fosse! Você ainda a tem!
— É para você. — ela disse. — Use-a como quiser. Porém foi a pérola que o trouxe aqui ao Oásis da Flor Prateada. Foi o que o trouxe até mim. Acho que não vou negociá-la no Mercado dos Sonhos. Gostaria que a tomasse. Acho que pode ser sua por direito, Elric. Seja como for, a Jovem Santa me deu e agora a dou a você. Foi por isso que Alnac Kreb morreu, pelo que todos aqueles assassinos morreram...
— Pensei que tivesse dito que a Pérola não existia antes dos Aventureiros Feiticeiros procurarem encontrá-la.
— É verdade. Contudo existe agora. Aqui está. A Pérola no Coração do Mundo. A grande pérola da lenda. Não tem utilidade para isso?
— Você deve me explicar... — ele começou, no entanto foi interrompido.
— Não me pergunte como os sonhos ganham substância, Príncipe Elric. Essa é uma questão que preocupa os filósofos de todas as épocas e de todos os lugares. Então, torno a lhe perguntar... Não tem utilidade para isso?
Elric hesitou, depois estendeu a mão para pegar o encantador objeto. Segurou-o com as duas mãos, rolando-o para frente e para trás, maravilhado com sua riqueza e pálida beleza.
— Sim. — respondeu. —Acho que sei como utilizá-la.
Depois de colocar a joia em sua própria bolsa, Oone disse muito suavemente.
— Acho que a Pérola é uma coisa maligna.
Ele concordou com sua afirmação.
— Também acho. Todavia às vezes o mal pode ser usado para combater o mal.
— Não posso aceitar esse argumento. — ela parecia perturbada.
— Estou ciente... — disse ele. — Você já me disse antes.
E então foi a sua vez de se aproximar dela e beijá-la ternamente nos lábios.
— O destino é cruel, Oone. Seria melhor se nos fornecesse um caminho inalterável. Em vez disso, nos força a fazer escolhas e nunca saber se essas escolhas foram as melhores.
— Somos mortais. — respondeu com um encolher de ombros. — Essa é a nossa condenação particular.
Ela acariciou sua testa.
— Você tem uma mente perturbada, meu senhor. Acho que vou roubar alguns dos sonhos menores que o inquietam.
— Pode roubar a dor, Oone, e transformá-la em algo para vender no seu mercado?
— Oh, frequentemente. — confirmou.
Ela repousou a cabeça dele no colo e começou a massagear suas têmporas. Seu olhar era terno.
Elric disse sonolento.
— Não posso trair Cymoril. Não posso...
— Não peço mais nada de você, a não ser que durma. Um dia terá muito do que se arrepender e conhecerá o verdadeiro remorso. Até lá, posso tirar um pouco do que não é importante.
— Sem importância? — sua voz estava arrastada enquanto ela gradualmente o acariciava até adormecer.
— Para você, suponho, meu senhor. Embora não para mim...
E a ladra de sonhos começou a cantar. Cantou uma canção de ninar. Cantou sobre uma criança doente e um pai enlutado. Cantou sobre a felicidade encontrada nas coisas simples.
E Elric dormiu. E enquanto dormia, a ladra de sonhos executou sua magia e roubou apenas algumas das lembranças meio esquecidas que haviam estragado suas noites no passado e poderiam estragar as que ainda estavam por vir.
E quando Elric acordou na manhã seguinte foi com o coração leve e a consciência tranquila, apenas as mais tênues lembranças de suas aventuras no Reino dos Sonhos, uma afeição contínua por Oone e uma determinação de chegar a Quarzhasaat o mais rápido possível e levá-lo ao Lorde Gho o que mais desejava em todo o mundo.
Suas despedidas ao povo dos Bauradim foram sinceras e sua tristeza pela despedida foi retribuída. Eles imploraram que ele voltasse, que se juntasse em suas viagens, que caçasse com eles como Rackhir, seu amigo, havia caçado uma vez.
— Tentarei regressar um dia. — disse. — Mas primeiro tenho mais de um juramento a cumprir.
Um garoto nervoso lhe trouxe sua grande lâmina negra de batalha. Quando afivelou Stormbringer, a espada pareceu gemer com considerável satisfação por se reunir com seu portador.
Foi Varadia, apertando suas mãos e beijando-as, quem lhe deu a bênção de seu clã. Foi Raik Na Seem quem lhe disse que agora era irmão de Varadia, seu próprio filho, e então Oone, a Ladra de Sonhos, deu um passo à frente. Ela havia decidido permanecer um pouco como convidada dos Bauradim.
— Adeus, Elric. Espero que possamos nos encontrar novamente... Em melhores circunstâncias.
— Melhores circunstâncias? — perguntou, em regozijo.
— Para mim, pelo menos. — ela sorriu, batendo desdenhosamente no punho de sua espada rúnica. — E desejo-lhe boa sorte em suas tentativas de se tornar o mestre desta coisa.
— Creio que já sou seu mestre agora. — disse ele.
Oone encolheu os ombros.
— Vou acompanhá-lo até um pouco acima da Estrada Vermelha.
— Eu adoraria sua companhia, minha senhora.
Lado a lado, como haviam feito no Reino dos Sonhos, Elric e Oone cavalgaram juntos. E, embora não se lembrasse de como se sentira antes, Elric sentiu certa ressonância de reconhecimento, como se tivesse encontrado a satisfação da sua alma, de modo que foi com tristeza que acabou por se separar dela para seguir sozinho em direção a Quarzhasaat.
— Adeus, boa amiga. Sempre me recordarei de como você derrotou o Guerreiro da Pérola na Fortaleza da Pérola. Essa é uma memória que acho que nunca irá desaparecer.
— Fico lisonjeada. — havia um toque de ironia melancólica em sua voz. — Adeus, Príncipe Elric. Confio que encontrará tudo o que precisa e que conhecerá a paz quando retornar a Melniboné.
— É minha firme intenção, senhora.
Saudou-a com um gesto de sua mão, não querendo prolongar a tristeza, e esporeou o cavalo para frente.
Com olhos que se recusavam a chorar, Oone observou-o subir a longa Estrada Vermelha até Quarzhasaat.
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