Tomo 02 — Capítulo 07: Em Marcha até o Limite do Coração
À medida que Elric sentia os seus ossos reformarem-se e a carne retomar o seu peso e contorno familiares, notou que a terra onde estavam não parecia muito diferente daquela que haviam acabado de deixar. O deserto vermelho se estendia à sua frente, com montanhas vermelhas situadas ao fundo. A paisagem era tão familiar que Elric olhou para trás, esperando ver a Tenda de Bronze, mas logo atrás se abria um abismo tão vasto que nenhum outro lado podia ser visto. Sentiu uma vertigem repentina e verificou o equilíbrio, para o entretenimento de Oone.
A ladra de sonhos estava vestida com os mesmos veludos e sedas funcionais e pareceu um pouco entretida com sua reação.
— Sim, Príncipe Elric! Agora estamos realmente no limite do mundo! Temos apenas algumas escolhas aqui e elas não incluem retirada!
— Eu não tinha pensado nisso, senhora.
Ao olhar com mais atenção, percebeu que as montanhas eram consideravelmente mais altas e estavam todas inclinadas na mesma direção, como se curvadas por ventos gigantescos.
— São como os dentes de algum predador antigo. — comentou Oone com o estremecimento de alguém que poderia de fato ter encarado uma mandíbula dessas em algum momento de sua carreira. — Sem dúvida a primeira etapa da nossa jornada nos trouxe até aqui. Este é o território que nós chamamos de Sadanor. A Terra dos Sonhos-em-Comum.
— Mesmo assim você parece não estar familiarizada com o cenário.
— O cenário varia. Conhecemos apenas a natureza da terra. Seus detalhes podem mudar, porém o local para onde viajamos é frequentemente perigoso, não porque não seja familiar, mas por causa de sua familiaridade. Essa é a segunda lei do ladrão de sonhos.
— Cuidado com o familiar.
— Vejo que aprende bem. — ela pareceu excessivamente satisfeita com sua resposta, como se tivesse duvidado de sua própria descrição das qualidades e estivesse feliz por tê-las confirmadas. Elric começou a perceber o grau de desespero envolvido nesta aventura e foi tomado por aquele descuido selvagem, aquela vontade de se entregar ao momento, a qualquer experiência, que tanto o diferenciava dos outros senhores de Melniboné, cujas vidas eram governadas pela tradição e pelo desejo de manter o seu poder a qualquer custo.
Sorrindo, com os olhos iluminados com toda a antiga vitalidade, ele inclinou-se em um gesto irônico.
— Então siga em frente, senhora! Vamos começar nossa jornada em direção às montanhas.
Oone, um pouco assustada com seu humor, franziu a testa. Contudo começou a andar por uma areia tão leve que se agitava como água ao redor de seus pés. E o albino a seguiu.
— Devo admitir... — começou Elric, depois de terem caminhado talvez por uma hora, sem notar qualquer mudança na posição da luz. — Quanto mais estou neste lugar, mais ele começa a me perturbar. Pensei que o sol estava oculto, no entanto agora percebo que não há sol no céu.
— Essas normalidades vêm e vão na Terra dos Sonhos-em-Comum. — disse Oone.
— Me sentiria mais seguro com minha espada ao meu lado.
— Espadas são fáceis de conseguir aqui. — respondeu.
— Bebedoras de almas?
— Talvez. Mas você sente necessidade dessa forma peculiar de sustento? Deseja a droga de Lorde Gho?
Elric admitiu, para sua própria surpresa, que não havia perdido energia. Talvez pela primeira vez na sua vida adulta teve a sensação de que era fisicamente igual às outras pessoas, capaz de se sustentar sem recorrer a qualquer forma de artifício.
— Ocorre-me... — disse ele. — Que seria aconselhável morar aqui.
— Ah, agora você começa a cair em outra armadilha deste reino. — Oone apontou. — Primeiro há suspeita e talvez medo. Depois há relaxamento, uma sensação de que sempre pertenceu a este lugar, de que este é seu lar natural, ou seu lar espiritual. Todas essas são ilusões comuns ao viajante, como tenho certeza que já sabe. Aqui, essas ilusões devem ser resistidas, pois são mais do que sentimentos. Elas podem ser armadilhas preparadas para capturá-lo e destruí-lo. Seja grato por ter mais energia aparente do que normalmente possui, porém lembre-se de outra lei do ladrão de sonhos: todo ganho é pago, antes ou depois do evento. Todo benefício aparente poderia muito bem ter sua desvantagem contrária.
Em seu coração, Elric ainda achava que o preço por tal sensação de bem-estar poderia valer a pena.
Foi nesse momento que viu a folha.
Ela desceu acima de sua cabeça, uma larga folha de carvalho vermelho-dourado, caindo suave como qualquer folha comum de outono, e pousou na areia a seus pés. Sem encontrar a princípio nada de extraordinário nisso, abaixou-se para pegar a folha.
Oone também tinha visto e fez menção de alertá-lo, mas depois mudou de ideia.
Elric colocou a folha na palma da mão. Não havia nada de incomum, exceto que não havia nenhuma árvore visível em nenhuma direção. Quando estava prestes a pedir a Oone que explicasse esse fenômeno, percebeu que ela estava olhando para além dele, por cima do ombro.
— Desejo-os uma boa tarde. — disse uma voz alegre. — É realmente uma sorte encontrar alguns companheiros mortais em um deserto tão miserável. Que truque da Roda terá nos trazido até aqui?
— Saudações. — respondeu Oone, com um sorriso cada vez maior. — Você está mal vestido, senhor, para este deserto.
— Não me disseram nem sobre meu destino nem sobre o fato de que eu estava partindo...
Elric se virou e, para sua surpresa, viu um homem pequeno, cujas feições marcantes e alegres eram sombreadas por um enorme turbante de seda amarela. Este cocar, pelo menos tão largo quanto os ombros do homem, era decorado com um alfinete contendo uma grande joia verde e dali brotava diversas penas de pavão. Parecia estar vestindo muitas camadas de roupas, todas coloridas, de seda e linho, incluindo um colete bordado e uma longa jaqueta de retalhos azuis lindamente costurados, cada tom com sutis diferenças dos seguintes. Nas pernas usava calças largas de seda vermelha e nos pés calçados sandálias enroladas de couro verde e amarelo. O homem estava desarmado, porém segurava nas mãos um assustado gato preto e branco, em cujas costas estavam dobradas um par de asas negras e sedosas.
O homem fez uma reverência quando viu Elric.
— Saudações, senhor. Presumo que seja a encarnação do Campeão neste plano. Eu sou... — ele franziu a testa como se por um segundo tivesse esquecido seu próprio nome. — Sou algo que começa com ‘J’ e algo que começa com ‘C’. Recordarei em algum momento. Ou outro nome ou evento ocorrerá, tenho certeza de que sou seu... O quê? — seu olhar se voltou para o céu. — Este é um daqueles mundos sem sol? Não teremos noite alguma?
Elric olhou para Oone, que não parecia desconfiada dessa aparição.
— Eu não pedi um secretário, senhor. — disse ao homenzinho. — Nem esperava receber um. Minha companheira e eu estamos em uma missão neste mundo...
— Uma missão, é claro. É seu papel, assim como é o meu acompanhá-lo. Isso é uma ordem, senhor. Meu nome é... — contudo seu próprio nome tornou a lhe escapar. — O seu é?
— Sou Elric de Melniboné e esta é Oone, a Ladra de Sonhos.
— Então suponho que esta é a Terra que os ladrões de sonhos chamam de Sadanor. Bom, então meu nome é Jaspar Colinadous. E o nome do meu gato é Bigodes, como sempre.
Diante disso, o gato deu voz a um ruído pequeno e inteligente, ao qual seu dono ouviu atentamente e assentiu.
— Reconheço esta terra agora. — disse ele. — Estão buscando o Portão Marador, hein? Para a Terra dos Antigos Desejos.
— Você também é um ladrão de sonhos, Sir Jaspar? — Oone perguntou com alguma surpresa.
— Tenho parentes que são.
— No entanto como veio aqui? — Elric perguntou. — Através de um médium? Por acaso usou uma criança mortal, como nós fizemos?
— Suas palavras são misteriosas para mim, senhor. — Jaspar Colinadous ajustou o turbante, o gatinho cuidadosamente enfiado sob uma volumosa manga de seda. — Viajo entre os mundos, ao aparente acaso, na maior parte das vezes a mando de alguma força que não entendo, e com frequência para me encontrar guiando ou acompanhando aventureiros como vocês. Nem sempre... — acrescentou com sentimento. — Vestido de maneira adequada para o reino ou no momento da minha chegada. Sonhei, creio, que era o sultão de alguma cidade fabulosa, onde possuía a mais surpreendente variedade de tesouros. Onde era servido... — aqui ele corou e desviou o olhar de Oone. — Perdoe-me. Foi um sonho. Acordei dele agora. Infelizmente as roupas me seguiram desde o sonho...
Elric acreditava que as palavras do homem eram quase absurdas, todavia Oone não teve dificuldade em compreendê-las.
— Então, conhece uma estrada para o Portão Marador?
— Certamente devo, se esta é a Terra dos Sonhos-em-Comum.
Com cuidado Jaspar colocou o gato em seu ombro e então começou a remexer em suas mangas, dentro de sua camisa, nos bolsos de suas diversas roupas, ao mesmo tempo em que tirava todo tipo de pergaminhos, papéis, livrinhos, caixas, compactos, instrumentos de escrita, pedaços de corda e carretéis de linha, até que um dos pedaços de pergaminho enrolados o fez gritar de alívio.
— Ah! Acho que aqui está! Nosso mapa. — ele recolocou todos os outros itens no exato lugar de onde os havia tirado e desenrolou o pergaminho. — De fato, é este! Isso nos mostra o caminho através das montanhas.
— Ofertas de orientação... — começou Elric.
— E cuidado com o que é familiar. — disse Oone suavemente. Então fez um gesto de desdém. — Aqui já temos conflito, sabe, pois o que não é familiar a você é altamente familiar para mim. Faz parte da natureza desta terra. — ela se virou para Jaspar Colinadous. — Senhor? Posso ver seu mapa?
Sem hesitar, o homenzinho entregou o mapa.
— Uma estrada reta. É sempre uma estrada reta, hein? E apenas uma. Essa é a alegria desses Reinos dos Sonhos. Pode-se interpretá-los e controlá-los de forma tão simples. A menos, é claro, que o traguem por completo. O que eles estão acostumados a fazer.
— Você tem vantagem sobre mim. — disse Elric. — Pois nada sei sobre este mundo. Nem sabia que existem outros como ele.
— Aha! Então há maravilhas que o aguardam, senhor! Tantas maravilhas ainda para testemunhar. Poderia contar sobre elas, mas minha própria memória não é o que deveria ser. Frequentemente tenho apenas as mais vagas lembranças. Porém há uma infinidade de mundos, alguns que ainda não nasceram, alguns tão velhos que se tornaram senis, alguns nascidos de sonhos, alguns destruídos por pesadelos. — Jaspar Colinadous fez uma pausa, desculpando-se. — Estou ficando muito entusiasmado. Não pretendo confundi-lo, senhor. Apenas saiba que também estou um pouco confuso. Sou sempre assim. Meu mapa faz sentido para você, dama ladra de sonhos?
— Sim. — assentiu Oone com uma carranca sobre o pergaminho. — Existe apenas uma passagem através dessas montanhas, que são chamadas de Mandíbulas do Tubarão. Se presumirmos que as montanhas estão ao norte, então devemos seguir para o nordeste e lá encontrar a Goela do Tubarão, como é chamada aqui. Estamos muito agradecidos, Mestre Jaspar Colinadous.
Ela enrolou o mapa e devolveu-o ao homem. O pergaminho desapareceu em uma de suas mangas e o gato desceu e deitou-se, ronronando, em seu braço dobrado.
Por um momento, Elric teve o instinto mais forte de que esse indivíduo simpático havia sido convocado por Oone a partir de sua própria imaginação, embora fosse impossível acreditar que este não existisse por direito próprio, pois era uma personalidade tão autoconfiante. Na verdade, Elric teve a vaga impressão de que talvez ele próprio fosse a fantasia.
— Note que há perigos naquela passagem. — alertou Jaspar Colinadous em tom casual, ao sentar-se ao lado dos dois. — Vou deixar Bigodes explorar por nós, se quiserem, quando chegarmos mais perto.
— Ficaríamos muito gratos, senhor. — disse Oone.
Continuaram a viagem através da paisagem desnuda, com Jaspar Colinadous contando histórias de aventuras anteriores, a maioria das quais só conseguia recordar uma parte, de pessoas que conhecera, cujos nomes lhe escapavam, e de grandes momentos nas histórias de mil mundos cuja importância agora lhe fugira. Ouvi-lo era como voltar aos antigos salões de Imrryr, na Ilha do Dragão, onde antigamente enormes séries de janelas contavam em imagens as histórias dos primeiros melnibonianos e como chegaram ao lar atual. Agora eram meros fragmentos, pequenos fragmentos da história, detalhes brilhantes cujo contexto mal era imaginável e cujas informações haviam desaparecido para sempre. Elric deixou de tentar acompanhar a conversa de Jaspar Colinadous, contudo como aprendera a fazer com os fragmentos de vidro, se permitiu apreciá-los pela textura e depois pela cor.
A consistência da luz começou a perturbá-lo e, por fim, interrompeu o fluxo da conversa do homenzinho e perguntou-lhe se também não se sentia desconfortável com isso.
Jaspar Colinadous aproveitou a oportunidade para parar e tirar as sandálias, sacudindo a areia delas enquanto Oone esperava à frente deles, com uma postura impaciente.
— Não, senhor. Os mundos sobrenaturais são frequentemente sem sol, pois não obedecem a nenhuma das leis que conhecemos no nosso. Podem ser planos, meio-esféricos, ovais, circulares, até mesmo em forma de cubos. Eles existem apenas como satélites para esses reinos que chamamos de “reais” e, portanto, não dependem de qualquer sol ou lua ou sistema planetário para seu ordenamento, mas das demandas... Espirituais, imaginativas, filosóficas e assim por diante, de mundos que, de fato, requerem um sol para aquecê-los e uma lua para mover suas marés. Existe até uma teoria de que nossos mundos são os satélites e que esses mundos sobrenaturais são os locais de nascimento de todas as nossas realidades.
Com seus calçados livres da areia, Jaspar Colinadous começou a seguir Oone, que estava a alguma distância, recusando-se a esperá-los.
— Talvez esta seja a terra governada por Arioch, meu patrono, Duque do Inferno. — disse Elric. — A terra de onde surgiu a Espada Negra.
— Oh, é muito provável, Príncipe Elric. Pois, veja, há uma espécie de criatura infernal se aproximando de sua amiga neste exato momento e não dispomos de qualquer arma!
Um pássaro de três cabeças devia ter voado a uma altura tão grande que não foi visto aproximar-se, entretanto agora se aproximava a uma velocidade assustadora e Oone, alertada pelo grito de Elric, começou a correr, talvez na esperança de desviar de sua descida sobre ela. Era como um corvo gigantesco, com duas cabeças enfiadas profundamente no pescoço, enquanto a outra se esticava para ajudar no voo descendente, as asas abertas atrás de si, as garras estendidas, prontas para agarrar a mulher.
Elric começou a correr, gritando com a coisa. Esperava que esta ação perturbasse a criatura o suficiente para fazê-la perder o ímpeto.
Com um grasnado terrível que parecia preencher todos os céus, o monstro diminuiu um pouco a velocidade de sua descida para atingir a mulher com mais precisão.
Foi então que Jaspar Colinadous gritou atrás de Elric.
— Jack Três Bicos, seu pássaro travesso!
A fera oscilou no ar, virando todas as cabeças para a figura de turbante que caminhava decidido em direção a ela pela areia, com o gato alerta em seu braço.
— O que é isso, Jack? Achei que você fosse proibido de comer carne viva! — a voz de Jaspar sou desdenhosa, familiar. Bigodes rosnava e balbuciava para a coisa, embora esta fosse muitas vezes maior que o gatinho.
Com um grasnido de desafio, o pássaro caiu na areia e começou a correr a uma velocidade considerável em direção a Oone, que havia parado para testemunhar esse evento bizarro. Agora, tornando a se virar, retomou a corrida com o corvo de três cabeças em sua perseguição.
— Jack! Jack! Lembre-se do castigo.
O grito do pássaro era quase zombeteiro. Elric começou a tropeçar no deserto, na esperança de encontrar meios de salvar a ladra de sonhos.
Foi então que sentiu algo cortar o ar acima de sua cabeça, abanando-o com uma frescura inesperada, e uma forma escura acelerou em perseguição da coisa que Jaspar Colinadous chamara de Jack Três Bicos.
Era o gato preto e branco. O felino lançou seu corpinho na região central do pescoço do pássaro e cravou todos os quatro conjuntos de garras nas penas. Com um grito estridente, o gigantesco corvo de três cabeças girou, as outras cabeças tentando bicar o gato tenaz, mas não conseguindo alcançá-lo.
Para espanto de Elric, o gato parecia inchar cada vez mais, como se estivesse se alimentando da substância vital do corvo, enquanto o corvo parecia ficar menor.
— Jack Três Bicos! Jack Malvado! — a figura quase ridícula de Jaspar Colinadous aproximou-se da coisa, balançando um dedo de advertência diante dos bicos que estalavam, porém que não ousavam morder. — Você foi avisado. E agora terá de perecer. Como chegou aqui? Suponho que tenha me seguido quando deixei meu palácio. — ele coçou a cabeça. — Não que eu me lembre de ter saído do palácio. Ah, bem...
Jack Três Bicos grasnou novamente, olhando com olhos loucos e assustados na direção de sua presa original. Oone estava se aproximando.
— Esta criatura é seu animal de estimação, Mestre Jaspar?
— Certamente não, senhora. É meu inimigo. Ele sabia que tinha recebido seu último aviso. Contudo acho que não esperava me encontrar aqui e acreditou poder atacar uma presa viva com total impunidade. Não é assim, hein, Jack?
O grasnido em resposta era quase patético agora. O pequeno gato preto e branco parecia nada mais do que um morcego vampiro se alimentando, pois sugava e absorvia a substância vital do monstro.
Oone observou horrorizada enquanto pouco a pouco o corvo se reduzia a uma coisa minúscula e enrugada. Bigodes finalmente se recostou, enorme e redondo, e começou a se limpar, ronronando com considerável prazer. Em clara satisfação com seu animal de estimação, Jaspar Colinadous estendeu a mão para acariciar sua cabeça.
— Bom rapaz, Bigodes. Agora, o pobre Jack não tem nem molho para o pão de um velho. — ele sorriu com orgulho para seus dois novos amigos. — Este gato salvou minha vida em muitas ocasiões.
— Como descobriu o nome daquele monstro? — perguntou Oone, cujas lindas feições estavam coradas e ela sem fôlego. Elric lembrou-se de súbito de Cymoril, embora não conseguisse identificar ao certo a semelhança.
— Ora, foi Jack que assustou o principado que visitei antes disso. — Jaspar Colinadous exibiu suas roupas ricas. — E como fui tão favorecido pelo povo daquele lugar... Jack Três Bicos sempre conheceu o poder de Bigodes e tinha medo dele. Quando cheguei, este não fazia outra coisa se não aterrorizar as pessoas. Eu domestiquei e nomeei Jack — ou sendo mais específico, Bigodes o fez, no entanto o deixei viver, já que era um útil comedor de carniça e a província sofria de um calor terrível no verão. Quando viajei a partir daquele rasgo específico na estrutura do Multiverso, ele deve ter me seguido, sem perceber que eu estava aqui com Bigodes. Não há muito mistério nisso, senhorita Oone.
Oone respirou fundo.
— Bem, estou grata pela sua ajuda, senhor.
— Agora... — disse Jaspar inclinando a cabeça. — Não será melhor seguirmos em direção ao Portão Marador? Há mais perigos, embora menos inesperados, à nossa frente na Goela do Tubarão. O mapa os marca.
— Gostaria de ter uma arma ao meu lado. — disse Elric se lamentando. — Ficaria mais confiante, fosse uma ilusão ou não!
Mas o albino marchou ao lado dos outros enquanto eles avançavam em direção à montanha.
O gato ficou para trás, lambendo as patas e se limpando, como se fosse uma criatura doméstica comum que tivesse matado um rato invasor de uma despensa.
Por fim, o terreno começou a subir quando chegaram ao sopé das Mandíbulas do Tubarão, e viram à frente uma grande e escura fissura nas montanhas, a Goela, que os levaria à próxima terra da sua viagem. No calor da região árida, a passagem parecia fresca e quase acolhedora, embora mesmo daqui Elric pensasse poder ver formas movendo-se nela. Sombras brancas tremeluziam contra o preto.
— Que tipo de pessoas vivem aqui? — perguntou Elric a Oone, que não lhe mostrara o mapa.
— Se trata, em maior parte, daqueles que se perderam ou ficaram com muito medo de continuar a jornada para dentro. O outro nome para essa passagem é Vale das Almas Tímidas. — explicou com um movimento de encolher os ombros. — Porém suspeito que não será por causa deles que estaremos em perigo. Pelo menos não muito. Eles se aliarão a qualquer poder que governe a passagem.
— E o mapa não diz nada sobre a sua natureza?
— Só que devemos ser cautelosos.
Ouviu-se um barulho atrás dos três e Elric se virou, esperando uma ameaça, todavia era apenas Bigodes, parecendo um pouco mais gordinho, um pouco mais elegante, entretanto de volta ao seu tamanho normal, que enfim os alcançou.
Jaspar Colinadous riu e se inclinou para deixar o gato saltar-lhe para o ombro.
— Não precisamos de armas, hein? Não com uma fera tão bonita para nos defender!
O gato lambeu seu rosto.
Elric estava espiando a passagem escura, tentando determinar o que poderia encontrar ali. Por um momento, pensou ter visto um cavaleiro na entrada, um homem montado num cavalo cinza prateado, vestindo uma estranha armadura de diferentes tons de branco, cinza e amarelo. O cavalo do guerreiro empinou quando ele o virou e cavalgou de volta para a escuridão e Elric teve uma sensação de mau pressentimento, embora nunca tivesse visto a figura antes.
Oone e Jaspar Colinadous não perceberam a aparição e continuaram com passos incansáveis na direção do passo.
Elric não disse nada sobre o cavaleiro, porém em vez disso perguntou a Oone como é que todos tinham caminhado durante horas e não sentiam fome nem cansaço.
— É uma das vantagens deste território — respondeu. — As desvantagens são consideráveis, contudo, uma vez que a noção do tempo é fácil de perder e pode-se esquecer da direção e os objetivos. Além do mais, é aconselhável ter em mente que, embora não pareça perder energia física ou sentir fome, outras formas de energia estão sendo gastas. Podem ser psíquicas e espirituais, não entanto são tão valiosas quanto, como tenho certeza que você aprecia. Conserve esses recursos específicos, Príncipe Elric, pois terá necessidade urgente deles em breve!
Elric se perguntou se ela também teria avistado o guerreiro pálido, todavia, por uma razão que não conseguia entender, relutou em perguntar.
As colinas ficavam cada vez mais altas ao seu redor à medida que, sutilmente, avançavam para a Goela do Tubarão. A luz já estava mais fraca, bloqueada pelas montanhas, e Elric sentiu um arrepio que não era de todo resultado da sombra.
Percebeu um som impetuoso e Jaspar Colinadous correu em direção ao alto de um punhado de pedras para espiar por cima delas e olhar para baixo. Um pouco perplexo, sua face se virou para os outros.
— Um abismo profundo. Um rio. Precisamos encontrar uma ponte antes de podermos prosseguir.
Ele murmurou para seu gato alado, que em seguida voou sobre o abismo e logo se perdeu na escuridão além.
Forçado a fazer uma pausa, Elric sentiu um pessimismo repentino. Incapaz de avaliar suas necessidades físicas, sem saber quais acontecimentos se desenrolavam no mundo que havia deixado, perturbado pelo conhecimento de que o tempo estava se esgotando e que Lorde Gho sem dúvida cumpriria sua palavra de torturar o jovem Anigh até a morte, e começou a acreditar que poderia muito bem estar em uma missão tola, embarcado em uma aventura que só poderia terminar em desastre para todos. Perguntou-se por que confiara tanto em Oone. Talvez porque estivesse tão desesperado, tão chocado com a morte de Alnac Kreb...
Ela tocou-lhe no ombro.
— Lembre o que lhe contei. Seu cansaço não é físico aqui, mas se manifesta em seu humor. É preciso buscar sustento espiritual com a mesma assiduidade com que buscaria comida e água.
Elric olhou em seus olhos, vendo calor e bondade ali. Imediatamente seu desespero começou a se dissipar.
— Devo admitir que começava a ter fortes dúvidas...
— Quando esse sentimento o dominar, tente me contar. — aconselhou ela. — Estou familiarizada com este e talvez possa ajudá-lo...
— Então estou inteiramente em suas mãos, senhora. — ele falou sem ironia.
— Achei que tivesse entendido isso quando concordou em me acompanhar. — disse ela num suave tom.
— Sim.
Virou-se a tempo de ver o gatinho voltar e pousar no ombro de Jaspar Colinadous. O homem de turbante ouviu com atenção e inteligência, e Elric teve certeza de que o gato estava falando. Por fim, Jaspar Colinadous assentiu.
— Há uma boa ponte a menos de quatrocentos metros daqui e leva a uma trilha que serpenteia direto até a passagem. Bigodes me disse que a ponte é guardada por um único guerreiro montado. Suponho que podemos esperar que ele nos deixasse atravessar.
Eles seguiram o curso do rio enquanto o céu ficava cada vez mais escuro e Elric desejou que, junto com a falta de fome e o cansaço, não sentisse a rápida queda de temperatura que fazia seu corpo tremer. Apenas Jaspar Colinadous não foi afetado pelo frio.
A parede áspera de rochas na beira do abismo desmoronou gradualmente, curvando-se para dentro em direção à passagem, e logo viram a ponte à frente, um estreito esporão de pedra natural empurrando-se para fora sobre o rio espumante abaixo. E ouviram o eco da água que mergulhava ainda mais fundo no desfiladeiro. Porém, em nenhum lugar havia o guarda que o gatinho havia denunciado.
Elric se moveu com precaução na liderança, mais uma vez desejando ter uma arma para lhe dar segurança. Chegou à ponte e pisou nela. Ao fundo, ao pé das paredes de granito do abismo, a espuma cinzenta saltava e dançava e o rio dava voz à sua canção peculiar, meio triunfo, meio desespero, quase como se fosse uma coisa viva.
Elric estremeceu e deu outro passo. Ainda assim, não viu nenhuma figura naquela escuridão cada vez mais profunda. Mais um passo e estava bem acima da água, recusando-se a olhar para baixo para que a água não o chamasse. Era ciente do fascínio de tais torrentes e como alguém poderia ser atraído para elas, hipnotizado por sua agitação e barulho.
— Ve algum guarda, Príncipe Elric? — perguntou Jaspar Colinadous.
— Nada. — respondeu o albino, e deu mais dois passos.
Oone estava atrás dele agora, seguindo-o tão cautelosa quanto ele. Elric olhou para o outro lado da ponte. Grandes blocos de rocha úmida, cobertas de líquenes e trepadeiras de cores estranhas, erguiam-se e desapareciam no ar escuro acima. O som do rio fez com que pensasse ter ouvido vozes, pequenos sons de deslizamento, o arrastar de membros ameaçadores, contudo mesmo assim não viu nada.
Elric estava a meio caminho da ponte quando detectou a sugestão de um cavalo nas sombras do desfiladeiro, o mais leve indício de um cavaleiro, talvez usando uma armadura da cor da sua própria pele branca como osso.
— Quem é? — o albino levantou a voz. — Viemos em paz. Não temos intenção de prejudicar ninguém aqui.
Mais uma vez, pode ter sido que a água o fez acreditar ter ouvido uma risada fraca e desagradável.
Então pareceu que o barulho da água ficou mais alto e percebeu que ouviu o som de cascos na rocha. Formada como se fosse pelos respingos, uma figura apareceu de repente do outro lado da ponte, avançando sobre ele, com sua longa e pálida espada pronta para atacar.
Não havia para onde ir. A única maneira de evitar o guerreiro era saltar da ponte para a torrente abaixo. Elric teve a visão turva enquanto se preparava para avançar, na esperança de agarrar as rédeas do cavalo e pelo menos deter o cavaleiro.
Então, uma vez mais, houve um zumbido de asas e algo se fixou no elmo do atacante, cortando o rosto por dentro. Era Bigodes, bufando e uivando como qualquer gato de rua comum brigando por um pedaço de peixe fresco.
O cavalo empinou. O cavaleiro soltou um grito de raiva e dor e soltou a rédea para tentar arrancar o gato de seu casco. Bigodes alçou voo, para fora de seu alcance. Elric vislumbrou olhos brilhantes e prateados, uma pele que reluzia com a marca do leproso, e então o cavalo, fora de controle, escorregou na rocha molhada e caiu de lado. Por um momento, tentou se levantar, o cavaleiro gritando e rugindo como se estivesse demente, a longa espada branca ainda em sua mão. E então ambos passaram da borda da ponte e caíram, uma mistura caótica de braços e cascos, no abismo ecoante para serem engolidos pelas águas distantes e turvas.
Elric estava ofegante. Jaspar Colinadous veio agarrar seu braço e firmá-lo, ajudando-o e a Oone a atravessar para o outro lado da ponte rochosa e a ficar na margem, ainda mal conscientes do que lhes tinha acontecido.
— Estou grato novamente a bigodes. — disse Elric com um sorriso inquieto. — Esse é um animal de estimação valioso que você tem, Mestre Colinadous.
— Mais valioso do que você imagina. — disse o homenzinho, emocionado. — ele desempenhou um papel crucial na história de mais de um mundo. — sua mão acariciou o gato enquanto o animal voltava para seus braços, ronronando e satisfeito consigo mesmo. — Estou feliz por termos sido úteis para vocês.
— Estamos livres do guardião da ponte. — Elric olhou para a espuma. — Teremos de enfrentar mais ataques desse tipo, minha senhora?
— Com certeza. — assentiu Oone, com a testa franzida como se estivesse perdida em algum enigma que só ela percebeu.
Jaspar Colinadous franziu os lábios.
— Aqui... — falou. — Veja como o desfiladeiro se estreita. Torna-se um túnel.
Era verdade. Agora podiam ver como as rochas se inclinavam umas sobre as outras, de modo que a passagem era pouco mais que uma caverna grande o suficiente para permitir que Elric entrasse sem inclinar a cabeça. Uma série de degraus toscos levava até lá e de vez em quando aparecia um pequeno lampejo de fogo amarelo dentro, como se o lugar estivesse iluminado por tochas.
Jaspar Colinadous suspirou.
— Eu esperava viajar com você mais longe do que isso, mas devo voltar agora. Não posso ir além do Portão Marador, que é o que parece ser. Fazê-lo seria me destruir. Devo encontrar outros companheiros agora, na Terra dos Sonhos-em-Comum.
Pelo seu tom, parecia genuinamente arrependido.
— Adeus, Príncipe Elric, senhora Oone. Desejo-lhes sucesso em sua aventura.
E de repente o homenzinho se virou e caminhou com pressa de volta pela ponte, sem olhar para trás. Jaspar os deixou quase tão repentinamente quanto quando havia chegado e voltou para a escuridão antes que qualquer um dos dois pudesse falar, junto com seu gato.
Oone pareceu aceitar isso e, ao olhar interrogativo de Elric, disse.
— Essas pessoas vêm e vão aqui. Outra regra que o ladrão de sonhos aprende é “Não dependa de nada além de sua própria alma”. Entendeu?
— Entendo que deve ser uma coisa solitária ser um ladrão de sonhos, senhora. E com essas palavras Elric começou a subir os grandes degraus toscos que conduziam ao Portão Marador.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário