Tomo 01 — Capítulo 02: A Pérola no Coração do Mundo
Numa sala através da qual a suave luz do sol se inclinava em faixas empoeiradas a partir de uma enorme grade instalada profundamente no vistoso telhado pintado de um lugar chamado Goshasiz, cuja arquitetura complicada estava manchada por algo mais sinistro que o tempo, Lorde Gho Fhaazi entreteve seu convidado com novos sorvos do misterioso elixir e comida que, em Quarzhasaat, era pelo menos tão valiosa quanto à mobília.
Banhado e vestindo roupas limpas, Elric possuía uma nova vitalidade, os azuis escuros e verdes de suas sedas enfatizando a brancura de sua pele e cabelos longos e finos. A espada rúnica embainhada estava apoiada no braço esculpido de sua cadeira e ele estava preparado para desembainhá-la e usá-la caso a audiência se mostrasse uma elaborada armadilha.
Lorde Gho Fhaazi estava penteado e vestido com elegância. Seu cabelo e barba pretos eram penteados em cachos simétricos, os longos bigodes eram encerados e pontiagudos, as sobrancelhas pesadas eram descoloridas de loiro acima dos olhos verdes claros com uma pele embranquecida artificialmente até se parecer com a do próprio Elric. Os lábios estavam pintados de um vermelho vivo. Estava sentado na extremidade de uma mesa com uma sutil inclinação em direção ao convidado, de costas para a luz, de modo que quase parecia um magistrado julgando um criminoso.
Elric reconheceu a deliberação em que se havia disposto tudo, e não se impressionou. Lorde Gho ainda era um tanto jovem, com trinta e poucos anos, e tinha uma voz agradável e ligeiramente aguda. Seus dedos rechonchudos apontaram para os pratos de figos e tâmaras em folhas de hortelã, de gafanhotos com mel, que estavam entre eles, empurrou o frasco prateado de elixir na direção de Elric com uma estranha demonstração de hospitalidade, seus movimentos revelando que executava tarefas que em seu cotidiano reservava para seus servos.
— Meu caro amigo. Mais. Tome mais. — não tinha certeza de Elric, quase desconfiava dele, e ficou claro para o albino que havia alguma urgência envolvida no assunto que Lorde Gho ainda não havia proposto, nem revelado através do mensageiro que enviara ao casebre — Talvez haja alguma comida favorita que não o oferecemos?
Elric levou o linho amarelo aos lábios.
— Estou grato a você, Lorde Gho. Não tenho comido tão bem desde que deixei as terras dos Reinos Jovens.
— Aha, melhor assim. A comida é abundante lá, pelo que ouvi.
— Tão abundante quanto diamantes em Quarzhasaat. Já visitou os Reinos Jovens?
— Nós, de Quarzhasaat, não precisamos viajar. — Lorde Gho falou com alguma surpresa. — O que há no exterior que poderíamos desejar?
Elric refletiu que o povo de Lorde Gho tinha muito em comum com o seu. Sua mão se estendeu e pegou outro figo do prato mais próximo e, enquanto o mastigava aos poucos, saboreando sua doce suculência, lançou um olhar franco para Lorde Gho.
— Como soube de Nadsokor?
— Nós não viajamos, porém, é claro, os viajantes vem até nós. Alguns levam caravanas para Karlaak e outros lugares. Eles trazem de volta escravos ocasionais e nos contam mentiras assombrosas! — ele riu tolerantemente. — Contudo há um pouco de verdade, sem dúvida, em algumas coisas que dizem. Embora os ladrões de sonhos, por exemplo, sejam reservados e cautelosos sobre suas origens, ouvimos dizer que ladrões de todas as terras são bem-vindos em Nadsokor. Portanto, se necessita pouca inteligência para tirar a conclusão óbvia...
— Especialmente se alguém for abençoado com apenas as informações mais básicas sobre outras terras e povos. — Elric sorriu.
Lorde Gho Fhaazi não reconheceu o sarcasmo do albino, ou talvez o tenha ignorado.
— Nadsokor é sua cidade natal ou você a adotou? — perguntou.
— Na melhor das hipóteses, um lar temporário. — disse-lhe Elric com sinceridade.
— Vejo que tem uma aparência superficial parecida com o povo de Melniboné, cuja ganância nos levou à situação atual. — informou Lorde Gho. — Existe sangue melniboniano em sua ascendência, talvez?
— Não tenho dúvidas a esse respeito. — Elric perguntou-se por que razão Lorde Gho não conseguiu tirar a conclusão mais óbvia. — O povo da Ilha do Dragão ainda é odiado pelo que fez?
— A tentativa deles contra nosso império, é o que quer dizer? Suponho que sim. Contudo a Ilha do Dragão há muito afundou sob as ondas, vítima de nossa vingança mágica, e seu insignificante império com ela. Por que deveríamos pensar muito em uma raça morta que foi devidamente punida por sua infâmia?
— De fato.
Elric percebeu que Quarzhasaat havia explicado tão minuciosamente sua derrota como fornecido para si mesma uma razão para não tomar nenhuma ação, que havia condenado todo o seu povo ao esquecimento em suas lendas. Ele não poderia, portanto, ser melniboniano, pois Melniboné não existia mais. Nesse aspecto, pelo menos, poderia ter alguma paz de espírito. Além do mais, essas pessoas estavam tão desinteressadas pelo resto do mundo e seus habitantes que Lorde Gho Fhaazi não teve mais curiosidade a seu respeito. Os quarzhasaatianos decidiram quem e o que Elric era e ficaram satisfeitos. O albino refletiu sobre o poder da mente humana para construir uma fantasia e depois defendê-la com total determinação como realidade.
O principal dilema de Elric residia agora no fato de não ter qualquer noção clara da profissão que pensava exercer ou da tarefa que Lorde Gho desejava que desempenhasse.
O nobre quarzhasaatiano baixou as mãos numa tigela de água perfumada e lavou a barba, deixando o ostensivo líquido cair sobre os mosaicos geométricos do chão.
— Meu servo me disse que você entendeu suas referências. — disse ele, enxugando-se em uma toalha transparente. Mais uma vez ficou claro que costumava empregar escravos para esta tarefa, mas escolheu jantar sozinho com Elric, talvez por medo de que seus segredos fossem ouvidos. — As palavras reais da profecia são um pouco diferentes. Já as conhece?
— Não. — disse Elric com franqueza imediata. O albino se perguntou o que aconteceria se Lorde Gho percebesse que estava aqui sob falsos pretextos.
— Quando a Lua de Sangue acender a Tenda de Bronze, o Caminho para a Pérola será revelado.
—Ah. — disse Elric. — Só então.
— E os nômades nos dizem que a Lua de Sangue aparecerá sobre as montanhas em pouco menos de uma semana. E brilhará sobre as Águas da Pérola.
— Exatamente. — assentiu Elric. — E assim o caminho para a Fortaleza será, é claro, revelado. — Elric assentiu com seriedade e como se confirmasse.
— E um homem como você, com um conhecimento ao mesmo tempo sobrenatural e não sobrenatural, que pode caminhar entre a realidade e a irrealidade, que conhece os caminhos ao longo das fronteiras dos sonhos e da vigília, pode romper as defesas, subjugar os guardiões e roubar a Pérola! — a voz de Lorde Gho era uma mistura de lascívia, venalidade e excitação ardente.
— De fato. — disse o Imperador de Melniboné.
Lorde Gho interpretou a reticência de Elric como discrição.
— Estaria disposto a roubar aquela pérola para mim, senhor Ladrão?
Elric deu uma aparente consideração ao assunto antes de falar.
— Suponho que há um perigo considerável no roubo.
— Claro. Claro. Nosso povo agora está convencido de que ninguém, exceto um de seus ofícios, é capaz de entrar na Fortaleza, muito menos alcançar a própria Pérola!
— E onde fica esta Fortaleza da Pérola?
— Suponho que no Coração do Mundo.
Elric franziu a testa.
— Afinal... — seguiu Lorde Gho com alguma impaciência. — A joia é conhecida como a Pérola no Coração do Mundo, não é?
— Compreendo o seu raciocínio. — disse Elric, e resistiu à vontade de coçar a nuca. Em vez disso, considerou tomar mais um gole do maravilhoso elixir, embora estivesse ficando cada vez mais perturbado, tanto pela conversa de Lorde Gho quanto pelo fato de o líquido pálido lhe resultar tão delicioso. — Porém não me cabe a menor dúvida de que dever haver alguma outra pista...
— Pensei que essas coisas eram de sua incumbência, senhor Ladrão. Você deve ir, é claro, ao Oásis da Flor Prateada. É o momento em que os nômades realizam uma de suas reuniões. Algo relacionado, sem dúvida, com a Lua de Sangue. O mais provável é que seja no Oásis da Flor Prateada que o caminho seja aberto. Já ouviu falar do oásis, certo?
— Receio que não tenha nenhum mapa. — informou-lhe Elric, um pouco sem jeito.
— Será providenciado. Nunca viajou pela Estrada Vermelha?
— Como já expliquei. Sou um estranho em seu império, Lorde Gho.
— Contudo suas geografias e histórias devem estar relacionadas conosco!
— Temo que sejamos um pouco ignorantes, meu senhor. Nós, dos Reinos Jovens, há tanto tempo à sombra da perversa Melniboné, não tivemos a oportunidade de descobrir as alegrias do aprendizado.
Lorde Gho ergueu as sobrancelhas pouco naturais.
— Sim. — disse. — Seria esse o caso, claro. Bem, bem, senhor Ladrão, nós lhe forneceremos um mapa. No entanto a Estrada Vermelha é bastante fácil de seguir, pois leva de Quarzhasaat ao Oásis da Flor Prateada e além são apenas as montanhas que os nômades chamam de Colunas Acidentadas. Elas não são de interesse para você, eu acho, a menos que o Caminho da Pérola o leve por elas. Se trata de um caminho bastante misterioso e não está marcado em qualquer mapa convencional, pelo menos nenhum que possuímos. E nossas bibliotecas são as mais sofisticadas do mundo.
Elric estava tão determinado a tirar o melhor proveito de seu adiamento que estava preparado para continuar com esta farsa até que estivesse livre de Quarzhasaat e cavalgasse novamente para os Reinos Jovens.
— Espero que também me proporcione uma montaria.
— A melhor. Precisará repor seu báculo curvado? Ou é apenas uma espécie de sinal de sua vocação?
— Posso encontrar outro.
Lorde Gho pôs a mão na sua barba peculiar.
— Como prefira, senhor Ladrão.
Elric decidiu mudar de assunto.
— Você falou pouco sobre a natureza dos meus honorários.
Esvaziou a taça e, desajeitadamente, Lorde Gho encheu-a outra vez.
— O que normalmente perguntaria? — questionou o quarzhasaatiano.
— Bem, esta é uma comissão incomum. — Elric tornou a se divertir com a situação. — Entende que há muito poucos com minha habilidade ou mesmo posição, mesmo nos Reinos Jovens, e menos ainda que venham para Quarzhasaat...
— Se me trouxer aquela Pérola específica, senhor Ladrão, terá todo tipo de riqueza. Pelo menos o suficiente para torná-lo um dos homens mais poderosos dos Reinos Jovens. Eu lhe forneceria uma casa inteira de nobre. Roupas, joias, um palácio, escravos ou, se desejar continuar suas viagens, uma caravana capaz de comprar uma nação inteira nos Reinos Jovens. Assim poderia se tornar um príncipe lá, possivelmente até um rei!
— Uma perspectiva inebriante. — disse o albino com sarcasmo.
— Acrescente a isso o que já paguei e pagarei e acredito que julgará a recompensa bastante atraente.
— Sim. Generoso, sem dúvida. — Elric franziu a testa, olhando ao redor da grande sala, com suas cortinas, seus ricos trabalhos de pedras preciosas, seus mosaicos de pedras preciosas, suas cornijas e pilares com elaborados ornamentais. Ele tinha em mente negociar mais, porque achava que isso era esperado de sua parte. — Mas se eu tiver uma noção do valor da Pérola para você, Lorde Gho, o que ela lhe trará aqui, admitirá que o preço que oferece não é necessariamente alto.
Lorde Gho Fhaazi também se divertiu.
— A Pérola me comprará o lugar no Conselho dos Seis, que em breve ficará vago. O Sétimo Inominável deu a Pérola como seu preço. Esta é a razão pela qual devo tê-la tão cedo. Já está prometida. Como bem adivinhou, há rivais, porém nenhum que tenha oferecido tanto.
— E esses rivais sabem da sua oferta?
— Com certeza há rumores. Contudo o alerto de que deve manter silêncio sobre a natureza de sua tarefa...
— Não teme que eu possa procurar um negócio melhor em outro lugar da sua cidade?
— Oh, haverá aqueles que lhe ofereceriam mais, se você fosse tão ganancioso e tão desleal. No entanto estes não poderiam lhe oferecer o que eu ofereço, senhor Ladrão.
E Lorde Gho Fhaazi deixou sua boca formar um sorriso terrível.
— Por que não? — Elric sentiu-se repentinamente preso e seu instinto foi alcançar Stormbringer.
— Eles não possuem isto. — Lorde Gho empurrou o frasco para o albino e Elric ficou um pouco surpreso ao ver que já havia bebido outra taça do elixir. Ele encheu a xícara mais uma vez e bebeu seu conteúdo com ar pensativo. Um pouco da verdade estava chegando até ele e temia que fosse certo o que pensava.
— O que pode ser tão raro quanto a Pérola? — o albino largou a taça. Acreditava ter uma ideia da resposta.
Lorde Gho o observava atentamente.
— Creio que compreenda. — tornou a sorrir Lorde Gho.
— Sim. — Elric sentiu seu ânimo afundar e sentiu um arrepio de profundo terror misturado com uma raiva crescente. — O elixir, suponho...
— Oh, isso é relativamente fácil de fazer. É, claro, um veneno. Uma droga que se alimenta de seu usuário, dando-lhe apenas um aspecto de vitalidade. Eventualmente, não resta mais nada para a droga se alimentar e a morte que resulta é quase sempre desagradável. Que miseráveis são os homens e mulheres que apenas uma semana antes se acreditavam poderosos o suficiente para governar o mundo! — Lorde Gho começou a rir, com os pequenos cachos balançando no rosto e na cabeça. — Todavia, mesmo morrendo, eles implorarão e implorarão pela coisa que os matou. Não é uma ironia, senhor Ladrão? O que é tão raro quanto a Pérola, você pergunta. Por que, a resposta deve lhe estar clara agora, certo? A vida de um indivíduo, não é verdade?
— Então estou morrendo. Por que então deveria servi-lo?
— Porque existe um antídoto, é óbvio. Algo que substitui tudo o que a outra droga rouba, que não causa desejo em quem bebe, que devolve a saúde plena ao usuário em questão de dias e afasta a necessidade pela droga original. Então, senhor Ladrão, minha oferta não foi de forma alguma vazia. Posso lhe dar o elixir suficiente para permitir que complete sua tarefa e, desde que retorne aqui a tempo, posso lhe dar o antídoto. Terá ganhado muito, hein?
Elric se endireitou na cadeira e colocou a mão no punho da Espada Negra.
— Já informei ao seu mensageiro que minha vida tem apenas um valor limitado para mim. Há certas coisas que valorizo mais.
— Eu compreendo. — disse Lorde Gho Fhaazi com cruel jovialidade. — E respeito seus princípios, senhor Ladrão. Seu ponto de vista está bem colocado. Entretanto há outra vida a considerar, não é? A do seu cúmplice?
— Não tenho cúmplice, senhor.
— Não? Não tem, senhor Ladrão? Você viria comigo?
Elric, desconfiado do homem, ainda não via razão para não segui-lo quando passou arrogantemente pela enorme e curva porta do salão. Em seu cinto, mais uma vez, Stormbringer grunhia e se agitava como um cão desconfiado.
As passagens do palácio, revestidas de mármore verde, marrom e amarelo para dar a sensação de uma floresta fresca, perfumada com os mais requintados arbustos floridos, levaram-nos a passar por salas de criados, zoológicos, tanques de peixes e répteis, um serralho e um arsenal, até que Lorde Gho chegou a uma porta de madeira guardada por dois soldados de armadura, nada prática, barroca de Quarzhasaat, com as próprias barbas untadas com óleo e bifurcadas em formas fantasticamente exageradas. Eles apresentaram suas alabardas gravadas quando Lorde Gho se aproximou.
— Abra isto. — ordenou. E um dos soldados tirou uma chave enorme de dentro do peitoral, inserindo-a na fechadura.
A porta dava para um pequeno pátio contendo uma fonte extinta, um pequeno claustro e um conjunto de alojamentos no outro lado.
— Onde está? Onde você está meu pequeno? Mostre-se! Rápido, agora! — Lorde Gho estava impaciente.
Houve um tilintar de metal e uma figura emergiu da porta. Levava um pedaço de fruta em uma das mãos, um ou dois laços de corrente na outra, e andava com dificuldade porque os elos estavam presos a uma faixa de metal rebitada em sua cintura.
— Ah, mestre. — disse a Elric. — Você não me serviu como eu esperava.
O sorriso de Elric era sombrio.
— Mas talvez como mereça, certo, Anigh? — ele deixou transparecer sua raiva. — Não o aprisionei, garoto. Acredito que a escolha, na realidade, tenha sido sua. Tentou lidar com um poder que claramente não reconhece nenhuma decência.
Lorde Gho não se comoveu ante o comentário.
— O garoto abordou o criado de Raafi as-Keeme. — disse, olhando para o menino com certo interesse. — E ofereceu seus serviços. Disse que estava agindo como seu agente.
— Bem, estava mesmo. — concordou Elric, seu sorriso mais simpático em vista do evidente desconforto de Anigh. — Porém isto vai em contra de suas leis?
— Certamente que não. Na verdade, demonstrou excelente iniciativa.
— Então por que está preso?
— Apenas uma questão de conveniência. Você aprecia isso, senhor Ladrão?
— Noutras circunstâncias, suspeitaria de alguma infâmia menor. — disse Elric, precavido. — Contudo sei que você, Lorde Gho, é um nobre. Não manteria esse garoto para me ameaçar. Seria indigno de sua posição.
— Espero que assim me considere, senhor. No entanto, em tempos como estes, nem todos os nobres desta cidade estão sujeitos aos antigos códigos de honra. Não quando tais apostas são disputadas. Estou seguro que é capaz de compreender, mesmo que não seja um nobre. Ou mesmo, suponho, um cavalheiro.
— Em Nadsokor sou considerado um. — disse Elric em tom sereno.
— Ah, mas é claro. Em Nadsokor. — Lorde Gho apontou para Anigh, que sorriu incerto de um para o outro, sem acompanhar a conversa. — E em Nadsokor, tenho certeza, manteriam um refém conveniente, se pudessem.
— Porém é injusto, senhor. — a voz de Elric tremia de raiva e teve que se controlar para não estender a mão direita na direção da Espada Negra em seu quadril esquerdo. — Se eu for morto em busca de meu objetivo, o menino morrerá, como se eu tivesse escapado.
— Bem, sim, isso é verdade, querido ladrão. Todavia espero que retorne, sabe? Se não... Bom, o menino ainda será útil para mim, tanto vivo quanto morto.
Anigh não sorriu mais. O terror surgiu lentamente em seus olhos.
— Oh, mestres!
— Ele não sofrerá dano algum... — Lorde Gho colocou a mão fria e empoada nos ombros de Elric. — Pois você retornará com a Pérola no Coração do Mundo, não é?
Elric respirou profundamente, controlando-se. Sentia uma forte necessidade em seu interior; uma necessidade que não conseguia identificar agora. Sede de sangue? Queria desembainhar a Espada Negra e sugar a alma desse degenerado astuto? Ao falar, o fez num tom sereno.
— Meu senhor, se libertar o menino, lhe garantirei meus melhores esforços... Eu juro...
— Bom ladrão, Quarzhasaat está cheia de homens e mulheres que dão as mais completas garantias e que, tenho certeza, são sinceros quando o fazem. Farão grandes e importantes juramentos sobre tudo o que é mais sagrado para eles. Todavia, se as circunstâncias mudam, esquecem esses juramentos. Acredito ser sempre útil lembrá-los das obrigações assumidas. Estamos, você perceberá, jogando pelas apostas mais altas, um lugar no Conselho.
Esta última frase foi enfatizada sem zombaria. É evidente que Lorde Gho Fhaazi não via objetivo maior.
Desgostoso com o sofisma do homem e desdenhoso do seu provincianismo, Elric deu as costas a Lorde Gho e se dirigiu ao rapaz.
— Como pôde ver, Anigh, pouca sorte recai sobre aqueles que se aliam a mim. Eu o avisei sobre isso. Ainda assim, tentarei retornar e salvá-lo. — sua próxima frase foi proferida no jargão de ladrão. — Até tal, não deposite vossa confiança nesta sórdida criatura e empenhai todos os esforços que julgueis sensatos para escapar por conta própria.
— Sem hipocrisia da sarjeta aqui! — exclamou Lorde Gho, alarmado. — Ou ambos morreram ao mesmo tempo!
Era evidente que não havia compreendido a mensagem que havia sido repassada.
— Será melhor não me ameaçar, Lorde Gho. — Elric levou sua mão ao punho da espada.
O nobre riu.
— O quê? Tanta beligerância! Não entende, senhor Ladrão, que o elixir que bebeu já está te matando? Tudo que dispõe são de três semanas antes que apenas o antídoto o salve! Não sente a necessidade persistente da droga em suas entranhas? Se tal elixir fosse inofensivo, ora, senhor, todos nós deveríamos usá-lo e nos tornarmos deuses!
Elric não tinha certeza se era sua mente ou seu corpo que sentia as dores. Percebeu que ainda quando seus instintos o levaram a matar o nobre quarzhasaatiano, seu desejo pela droga ameaçava dominá-lo. Mesmo perto da morte, quando seus próprios medicamentos falharam, nunca desejou tanto algo. Ele ficou com todo o corpo tremendo enquanto tentava dominá-lo de volta. Sua voz estava gelada.
— Isso é mais do que uma pequena infâmia, Lorde Gho. Felicito-o. Você é um homem da mais cruel e desagradável astúcia. Todos aqueles que servem no Conselho são tão corruptos quanto?
Lorde Gho ficou ainda mais cordial.
— Quão indigno de você, senhor Ladrão. Tudo o que estou fazendo é me assegurar de que seguirá meus interesses por um tempo. — tornou a rir. — Eu me assegurei, de fato, que durante este período de tempo seus interesses se tornarão meus. O que há de tão errado nisso? Não me parece que seria adequado a um ladrão confesso insultar um nobre de Quarzhasaat apenas porque este sabe como fazer um bom negócio!
O ódio de Elric pelo homem, de quem originalmente apenas não gostava, ainda ameaçava consumi-lo. No entanto um humor novo e mais frio tomou conta quando o controle sobre suas próprias emoções retornou.
— Então está dizendo que sou seu escravo, Lorde Gho.
— Se quiser dizer assim. Pelo menos até me trazer de volta a Pérola no Coração do Mundo.
— E se eu encontrar esta Pérola para você, como posso saber se me fornecerá o antídoto do veneno?
Lorde Gho encolheu os ombros.
— Caberá a sua pessoa determinar. Você é um homem inteligente para um forasteiro, e sobreviveu tanto tempo, tenho certeza, com sua inteligência. Mas não se engane. Esta poção é preparada apenas para mim e não encontrará receita idêntica em qualquer outro lugar. Melhor cumprir nosso acordo, senhor Ladrão, e partir daqui como um homem rico, com seu amiguinho inteiro.
O humor de Elric mudou para um humor sombrio. Com sua força devolvida, não importa quão artificial fosse, poderia causar uma destruição considerável a Lorde Gho e, na verdade, a toda a cidade, se quisesse. Como se estivesse lendo sua mente, Stormbringer pareceu se mexer em seu quadril e Lorde Gho se permitiu um olhar pequeno e nervoso em direção à grande espada rúnica.
Porém, Elric não queria morrer e nem desejava a morte de Anigh. Decidiu esperar, fingir, pelo menos, servir Lorde Gho até descobrir mais sobre o homem e as suas ambições, e descobrir mais, se possível, sobre a natureza da droga que tanto ansiava. Talvez o elixir não matasse. Talvez fosse uma poção comum a Quarzhasaat e muitos possuíam o antídoto. Contudo não tinha amigos aqui, além de Anigh, nem mesmo aliados temporários servindo interesses preparados para ajudá-lo contra Lorde Gho como um inimigo comum.
— Quem sabe... — disse Elric. — Não me importe com o que acontecerá com o menino.
— Oh, acho que li seu personagem muito bem, senhor Ladrão. Sua postura é como os nômades. E os nômades são como as pessoas dos Reinos Jovens. Atribuem valores anormalmente elevados às vidas daqueles com quem se associam. Eles têm uma fraqueza por lealdades sentimentais.
Elric não pôde deixar de considerar a ironia disso, pois os melnibonianos se consideravam igualmente acima de tais lealdades e ele era um dos poucos que se importava com o que acontecia com aqueles que não eram de sua família imediata. Era a razão pela qual estava aqui agora. O destino, refletiu, estava lhe ensinando algumas lições estranhas. Elric suspirou, esperava que não o matassem.
— Se o garoto for prejudicado quando eu voltar, Lorde Gho, se for ferido de alguma forma, você sofrerá um destino mil vezes pior do que qualquer outro que lhe tenha concedido. Ou, devo acrescentar, a mim!
Ele voltou os olhos vermelhos e brilhantes para o aristocrata. Parecia que o fogo do Inferno ardia dentro daquele crânio.
Lorde Gho estremeceu e depois sorriu para esconder o medo.
— Não, não, não! — exclamou franzindo o cenho. — Não cabe a você me ameaçar! Eu expliquei os termos. Não estou acostumado com isso, senhor Ladrão, estou avisando.
Elric riu e o fogo em seus olhos não desapareceu.
— Vou fazer com que se acostume com tudo aquilo à que acostumou os outros, Lorde Gho. Aconteça o que acontecer. Está entendendo? Este menino não será prejudicado!
— Já te disse...
— E eu o avisei. — as pálpebras de Elric caíram sobre seus olhos terríveis, como se fechasse uma porta para um Reino do Caos, mas mesmo assim Lorde Gho deu um passo para trás. A voz de Elric era um sussurro frio. — Com todo o poder que comando, me vingarei de você. Nada impedirá essa vingança. Nem toda a sua riqueza. Nem a morte em si.
Essa vez, quando Lorde Gho tentou sorrir, falhou.
Anigh sorriu de repente, como a criança feliz que era antes desses acontecimentos. Era evidente que acreditara nas palavras de Elric.
O príncipe albino moveu-se como um tigre faminto em direção a Lorde Gho. Logo cambaleou um pouco e respirou fundo. Era perceptível que o elixir estava perdendo força ou exigindo mais dele, Elric não sabia dizer. Não havia experimentado nada parecido antes. Ansiava por outro trago. Sentia dores na barriga e no peito, como se ratos o mastigassem por dentro. Sua respiração era ofegante.
Agora Lorde Gho encontrou um vestígio do seu antigo humor.
— Recuse-se a me servir e sua morte será inevitável. Eu o aconselharia a ser mais educado, senhor Ladrão.
Elric empertigou-se com alguma dignidade.
— Tenha certeza disso, Lorde Gho Fhaazi. Se trair qualquer parte do nosso acordo, manterei meu juramento e trarei tanta destruição sobre você e sua cidade que se arrependerá de ter ouvido meu nome. E só ouvirá quem sou, Senhor Gho Fhaazi, antes de morrer, sua cidade e todos os seus habitantes degenerados juntos.
O quarzhasaatiano fez menção de responder, todavia conteve as palavras, dizendo apenas.
— Três semanas são tudo que dispõem.
Com sua força restante, Elric sacou Stormbringer de sua bainha. O metal negro pulsava, a luz negra emanava dela enquanto as runas gravadas na lâmina giravam e dançavam e uma canção hedionda e antecipatória começou a soar naquele pátio, ecoando por todas as antigas torres e minaretes de Quarzhasaat.
— Esta espada bebe almas, Lorde Gho. Ela poderia beber a sua agora e me dar mais força do que qualquer poção. Porém você tem uma pequena vantagem sobre mim no momento. Concordarei com seu acordo. Contudo se mentir...
— Eu não minto! — Lorde Gho recuou para o outro lado da fonte árida. — Não, senhor Ladrão, não minto! Você deve fazer o que eu digo. Traga-me a Pérola no Coração do Mundo e lhe retribuirei com toda a riqueza que prometi, com sua própria vida e a do menino!
A Espada Negra rosnou, numa clara exigência da alma do nobre naquele momento.
Com um grito, Anigh desapareceu no quartinho.
— Vou embora de manhã. — relutantemente, Elric embainhou a espada. — Diga-me qual dos portões da cidade devo usar para viajar pela Estrada Vermelha até o Oásis da Flor Prateada. E quero seu conselho honesto sobre a melhor forma de racionar aquele elixir envenenado.
— Venha. — Lorde Gho falou com uma ansiedade nervosa. — Há mais no corredor. Espera por você. Não queria estragar nosso encontro com falta de educação...
Elric lambeu os lábios que já estavam desagradavelmente secos. Ele fez uma pausa, olhando para a porta de onde o rosto do menino podia ser visto.
— Venha, senhor ladrão. — disse Lorde Gho colocando a mão sobre o ombro de Elric. — No corredor. Mais elixir. Agora, agora. Está ansiando por isso, não é?
Era verdade, no entanto Elric deixou seu ódio controlar seu desejo pela poção.
Ele gritou.
— Anigh! Jovem Anigh!
Aos poucos o garoto emergiu.
— Sim, mestre.
— Juro que não sofrerá nenhum dano por qualquer ação minha. E esse degenerado imundo agora entende que se te machucar de alguma forma enquanto eu estiver fora, morrerá no mais terrível tormento. E ainda assim, garoto, deve se lembrar de tudo o que lhe disse, pois não sei aonde esta aventura me levará. — e Elric acrescentou na hipocrisia da sarjeta. — Talvez até a morte.
— Tudo bem. — disse Anigh na mesma língua. — Mas imploro a ti, mestre, que não morra. Tenho algum interesse em que você permaneça vivo.
— Já basta! — Lorde Gho atravessou o pátio sinalizando para Elric acompanhá-lo. — Venha. Vou lhe fornecer tudo que precisa para encontrar a Fortaleza da Pérola.
— E eu ficaria muito grato se você não me deixasse morrer. Ficaria muito grato, mestre. — disse Anigh atrás deles enquanto a porta se fechava.
***
Para aqueles que puderem e quiserem apoiar a tradução do blog, temos agora uma conta do PIX.
Chave PIX: mylittleworldofsecrets@outlook.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário