sábado, 17 de agosto de 2024

Elric de Melniboné: A Fortaleza da Pérola — Tomo 02— Capítulo 09

Tomo 02 — Capítulo 09: A Intervenção de uma Navegadora


Surpreendido pela sua própria falta de confusão, cheio de uma aparente clareza, Elric atravessou, lado a lado com Oone, o portão prateado e cintilante que levava a Imador, misteriosamente chamada pelos ladrões de sonhos de Terra da Nova Ambição, e encontrou-se no topo de um majestoso lance de escadas que descia em direção a uma planície que se estendia em direção a um horizonte que se tornava de um azul pálido e enevoado e que quase poderia ter confundido com o céu. Por um momento pensou que estavam sozinhos naquela vasta escadaria e então viu que estava lotada de gente. Alguns estavam envolvidos em conversas agitadas, alguns negociando, alguns abraçando, enquanto outros estavam reunidos em torno de homens santos, oradores, sacerdotisas, contadores de histórias, ouvindo com avidez ou discutindo.

Os degraus que desciam para a planície estavam repletos de todos os tipos de relações humanas. Elric viu encantadores de serpentes, iscadores de ursos, malabaristas e acrobatas. Vestiam trajes típicos das terras desérticas: enormes calças de seda verde, azul, dourada, vermelhão e âmbar; casacos de brocado ou veludo; turbantes, alburnos e cocares dos mais intrincados bordados; metal polido e prata, ouro, joias preciosas de todo tipo. E havia abundância de animais, barracas, cestos transbordando de produtos, de tecidos, de artigos de couro, cobre e latão.

— Como eles são lindos! — exclamou.

É verdade que embora fossem de todas as formas e tamanhos, as pessoas tinham uma beleza que não era fácil de ser definida. Suas peles eram todas saudáveis, seus olhos brilhantes, seus movimentos dignos e ágeis. Eles se portavam com confiança e bom humor e, embora fosse evidente que notaram Oone e Elric descendo as escadas, os cumprimentaram sem fazer nenhum grande esforço para cumprimentá-los ou perguntar-lhes o que os trazia ali. Cães, gatos e macacos corriam no meio da multidão e as crianças brincavam de jogos enigmáticos que todas as crianças brincam. O ar estava quente e ameno e cheio de aromas de frutas, flores e outros produtos vendidos.

— Gostaria que todos os mundos fossem assim. — acrescentou Elric, sorrindo para uma jovem que lhe ofereceu um pano bordado.

Oone comprou laranjas de um menino que correu até ela e entregou uma para Elric.

— Este é realmente um reino doce. Não esperava que fosse tão agradável.

Mas ao morder a fruta, cuspiu-a na mão.

— Não tem gosto!

Elric experimentou a sua própria laranja e também achou que era uma coisa seca e sem sabor.

A decepção que sentiu foi desproporcional ao ocorrido. Sua laranja foi jogada fora. Caiu alguns degraus mais para baixo e girou até desaparecer de vista.

A planície verde-acinzentada parecia despovoada. Havia uma estrada larga e bem pavimentada, porém não havia um único viajante visível, apesar da grande multidão.

— Eu me pergunto por que a estrada está vazia. — questionou a Oone. — Todas essas pessoas dormem à noite nestas escadas? Ou desaparecem em outro reino quando os negócios aqui terminam?

— Sem dúvida essa pergunta será respondida para nós em breve, meu senhor.

Ela entrelaçou o braço no dele. Desde que fizeram amor na floresta, um sentimento de considerável camaradagem e simpatia mútua cresceu entre ambos. Elric não experimentava qualquer culpa; sabia em seu coração que não havia traído ninguém e estava claro que Oone estava tão tranquila quanto. De alguma forma estranha, haviam restaurado um ao outro, fazendo com que a energia combinada deles fosse algo mais do que a soma. Esse era o tipo de amizade que nunca conhecera antes e estava grato por isso. Acreditava ter aprendido muito com Oone e que a ladra de sonhos lhe ensinaria mais coisas que seriam valiosas para quando retornasse a Melniboné para reivindicar seu trono de volta de Yyrkoon.

À medida que desciam os degraus, Elric teve a impressão de que os trajes se tornavam cada vez mais elaborados, as joias, os cocares e as armas mais ricos e exóticos, enquanto a estatura das pessoas aumentava e elas ficavam ainda mais bonitas.

Por curiosidade, ele parou para ouvir um contador de histórias que mantinha uma multidão em transe, contudo o homem falava numa língua desconhecida, alta e monótona, que não significava nada para ele. Os dois voltaram a parar, ao lado de uma vendedora de contas, a quem perguntou educadamente se os que estavam reunidos nos degraus eram todos da mesma nação.

A mulher franziu a testa e balançou a cabeça, respondendo ainda em outro idioma. Parecia haver poucas palavras, que repetiam muitos sons. Somente quando foram parados por um vendedor de sorvete, um menino, é que puderam fazer a pergunta e serem compreendidos.

O rapaz franziu a testa, como se estivesse traduzindo as palavras em sua cabeça.

— Sim, nós somos o povo dos degraus. Cada um de nós tem um lugar aqui, um abaixo do outro.

— Você fica mais rico e mais importante à medida que desce, hein? — perguntou.

O garoto ficou intrigado com a pergunta.

— Cada um de nós tem um lugar aqui. — repetiu, e, como que alarmado com as perguntas, correu para a densa multidão acima. Também aqui havia menos pessoas e Elric podia ver que o seu número diminuía cada vez mais à medida que os degraus se aproximavam da planície.

— Isso é uma ilusão? — murmurou para Oone. — Tem o aspecto de um sonho.

— É o nosso senso do que deveria ser que se intromete aqui. — disse ela. — E suponho que isso influencia a nossa percepção do lugar.

— Não é uma ilusão?

— Não é o que você chamaria de ilusão. — ela fez um esforço para encontrar as palavras, no entanto acabou balançando a cabeça. — Quanto mais parece uma ilusão para nós, mais se torna uma. Faz sentido?

— Creio que sim.

Por fim estavam chegando ao fim da escada. Eles estavam nos últimos degraus quando olharam para cima e viram um cavaleiro cavalgando em sua direção pela planície, criando uma enorme coluna de poeira ao avançar.

Houve um grito das pessoas vindo de trás. Elric olhou para trás e viu todos correndo escada acima e seu impulso foi acompanhá-los, mas Oone o deteve.

— Lembre-se de que não podemos voltar. — disse ela. — Devemos enfrentar esse perigo da melhor maneira possível.

Gradualmente, a figura do cavalo tornou-se distinguível. Era o mesmo guerreiro com armadura de madrepérola, marfim e carapaça de tartaruga ou idêntico a este. Ele levava uma lança branca com uma ponta de osso afiado na ponta e a coisa estava apontada direto para o coração de Elric.

O albino saltou para frente numa manobra destinada a confundir o atacante. Estava quase sob os cascos do cavalo quando atacou para cima com sua espada rapidamente desembainhada e cortou a lança. A força do golpe fez com que o cavaleiro cambaleasse para o lado enquanto Oone, reagindo com uma coordenação quase telepática, quase como se fossem controlados por um único cérebro, saltava e investia por baixo do braço esquerdo levantado, em busca do coração do agressor.

Seu golpe foi defendido por um movimento repentino da mão direita enluvada do cavaleiro e ele a chutou. Agora, pela primeira vez, Elric viu o seu rosto com clareza. Era magro, exangue, com olhos como a carne de um peixe morto há muito tempo e um corte zombeteiro na boca, abrindo-se agora numa careta de desprezo. Todavia, com choque, viu também algo de Alnac Kreb! A lança balançou para atingir o ombro de Oone e derrubá-la também ao chão.

Elric se levantou de novo antes que a lança pudesse dirigir-se em seu contra, sua espada cortando a cilha do cavalo em um velho truque aprendido com os bandidos de Vilmirian, porém ele foi bloqueado por uma perna blindada e a lança voltou a atacá-lo enquanto disparava para longe dando a Oone sua oportunidade.

Embora Elric e Oone lutassem como uma entidade única, seu atacante era quase presciente, parecendo adivinhar cada movimento seu.

Elric começou a acreditar que o cavaleiro era de origem totalmente sobrenatural e, mesmo enquanto realizava outra finta, enviou sua mente para os reinos dos elementais, buscando qualquer ajuda que pudesse estar disponível. Contudo não houve nenhuma. Era como se todos os reinos estivessem desertos, como se, da noite para o dia, todo o mundo dos elementais, demônios e espíritos tivesse sido banido para o Limbo. Arioch não o ajudaria. Sua feitiçaria era completamente inútil aqui.

Oone gritou bruscamente e Elric viu que ela havia sido jogada para trás no degrau mais baixo. Tentou ficar de pé, no entanto algo a tinha paralisado. Ela mal conseguia mover os membros.

O cavaleiro pálido riu e começou a avançar para matá-la.

Elric soltou seu antigo grito de guerra e correu em direção ao oponente, tentando distraí-lo. O albino ficou horrorizado com a possibilidade de dano à mulher por quem sentia profundo amor e camaradagem e estava disposto a morrer para salvá-la.

— Arioch! Arioch! Sangue e almas!

Mas não tinha nenhuma espada rúnica para ajudá-lo aqui. Nada exceto sua própria inteligência e habilidades.

— Alnac Kreb. É isso que resta de você?

O cavaleiro se virou, quase impaciente, e atirou a lança no homem que corria. Sua resposta.

Elric não havia previsto tal reação. Tentou jogar o corpo para o lado, entretanto o cabo da lança atingiu seu ombro e ele caiu pesadamente na poeira, perdendo o controle do sabre pouco familiar. Começou a lutar enquanto via o cavaleiro sacar sua longa lâmina e continuar em direção à indefesa Oone. Elric se apoiou sobre um joelho e lançou seu punhal com uma precisão desesperada. A lâmina acertou em cheio, entre as placas da armadura traseira do cavaleiro, e a espada levantada caiu.

Elric alcançou seu sabre, levantou-se e viu, para seu horror, que o cavaleiro estava empinado sobre Oone, a espada outra vez erguida, ignorando o ferimento em seu ombro.

— Alnac?

Mais uma vez Elric tentou apelar para qualquer parte de Alnac Kreb que estivesse presente, todavia desta vez foi ignorado. Aquela mesma risada horrível e desumana encheu o ar, o cavalo bufou, seus cascos pateando a mulher enquanto ela lutava no degrau.

Mal consciente do seu próprio movimento, Elric alcançou o cavaleiro e saltou para cima, arrastando-o pelas costas, tentando desmontá-lo do cavalo. O cavaleiro rosnou e conseguiu virar. Sua espada sibilante foi defendida pela de Elric e o albino o derrubou. Juntos, os dois caíram na areia, a poucos centímetros de onde Oone estava deitada. A mão que segurava a espada de Elric foi esmagada sob as costas blindadas do atacante, mas conseguiu libertar o punhal com a mão esquerda e teria golpeado aqueles horríveis olhos mortos se os dedos do homem não tivessem fechado sobre seu pulso.

— Terá de me matar antes de machucá-la! — a voz normalmente melódica de Elric era um grunhido de ódio. Porém o guerreiro apenas riu de novo, o fantasma de Alnac desaparecendo de seus olhos.

Eles lutaram assim por vários momentos, sem obter qualquer vantagem real. Elric podia ouvir a própria respiração, o grunhido do homem de armadura, o relincho do cavalo e o suspiro de Oone enquanto tentava se erguer.

— Guerreiro da Pérola!

Era outra voz. Não de Oone, e sim de uma mulher; e carregava autoridade considerável.

— Guerreiro da Pérola! Você não deve cometer mais violência contra esses viajantes!

O guerreiro grunhiu, contudo ignorou a mulher. Seus dentes tentaram se fechar na garganta de Elric, e tentou virar o punhal em direção ao coração do albino. Agora havia gotas de saliva espumosa em seus lábios, gotas brancas contornando sua boca.

— Guerreiro da Pérola!

De repente, o guerreiro começou a falar, sussurrando para Elric como se fosse um colega conspirador.

— Não de ouvidos a ela. Posso te ajudar. Por que não vem conosco e aprende a explorar a Grande Estepe, onde toda a caça é rica? E há melões, com gosto das mais delicadas cerejas. Posso oferecê-lo roupa maravilhosa. Não de ouvidos. Sim, eu sou Alnac, seu amigo.

Elric se sentiu repelido pela balbuciação insana, mais do que pela aparência horrível da criatura e pela sua violência.

— Pense em todo o poder que há ali. Eles temem você. Temem a mim, Elric. Eu te conheço. Não sejamos rivais. Juntos podemos ter sucesso. Não sou livre, porém você poderia viajar por nós dois. Não sou livre, contudo você não terá de suportar responsabilidades. Não sou livre, todavia, Elric, tenho tantos escravos à minha disposição. Eles são seus. Ofereço-te novas riquezas e novas filosofias, novas formas de realizar todos os desejos. Te temerei e tu me temerás. Então nós nos uniremos, um ao outro. É o único laço que alguma vez significará alguma coisa. Eles sonham com você, até eu, que não sonho...

— Guerreiro da Pérola!

Com um chocalho de osso e marfim, de tartaruga e madrepérola, o guerreiro de pele leprosa se desvencilhou de Elric.

— Juntos podemos derrotá-la. — ele murmurou com urgência. — Não haveria força para nos resistir. Te oferecerei minha ferocidade!

Enjoado por tudo, Elric se levantou devagar, virando-se para olhar na mesma direção de Oone, que agora estava sentada no degrau, cuidando dos membros aos quais a vida parecia ser restaurada pouco a pouco.

Uma mulher, mais alta que Elric ou Oone, estava ali. Estava velada e encapuzada. Seus olhos se moveram dos dois para aquele que chamava de Guerreiro da Pérola e então ergueu o grande bastão que segurava na mão direita e bateu no chão com este.

— Guerreiro da Pérola! Você deve me obedecer!

O Guerreiro da Pérola ficou furioso.

— Eu não desejo isso! — ele rosnou e, fazendo barulho, roçou o peitoral. — Você me enoja, senhora Sough.

— Estes estão baixo minha responsabilidade e sob minha proteção. Vá, Guerreiro da Pérola. Mate em outro lugar. Mate os verdadeiros inimigos da Pérola.

— Não quero que me de ordens! — ele se mostrava ranzinza, de mau humor como uma criança. — Todos são inimigos da Pérola. Você também, senhora Sough.

— Tal criatura estúpida! Vá embora!

E ergueu o cajado para apontar para além da escada, onde a rocha nebulosa podia ser vista, erguendo-se eternamente.

Ele falou novamente, em advertência.

— Você me enoja, senhora Sough. Sou o Guerreiro da Pérola. Tenho a força da Fortaleza. — seu olhar se voltou para Elric como se fosse um camarada. — Alie-se a mim e nós a mataremos agora. Então nós governaremos, você em sua liberdade, eu em minha escravidão. Tudo isso e muitos outros reinos, desconhecidos para ladrões de sonhos. A segurança estará aqui para sempre. Seja meu. Nós nos casaremos. Sim, sim, sim...

Elric estremeceu e deu as costas ao Guerreiro da Pérola. Depois, foi ajudar Oone a se levantar.

Oone conseguiu mover todos os seus membros, mas ainda estava atordoada. Seu olhar se virou outra vez para os degraus que desapareciam no alto. Nem uma única das pessoas que ocupavam aquela vasta escadaria era visível.

Perturbado, Elric olhou para a recém-chegada. Suas vestes eram de diferentes tons de azul, com fios prateados passando por elas, com bainhas douradas e verdes escuras. Sua postura exalava extraordinária graça e dignidade, e olhava para Oone e Elric com ar de regozijo. Por sua vez, o Guerreiro da Pérola levantou-se e ficou de lado, desafiante, encarando alternadamente senhora Sough e oferecendo a Elric um hediondo sorriso conspiratório.

— Para onde foram todas as pessoas dos degraus? — Elric perguntou.

— Simplesmente retornaram para casa, meu senhor. — disse senhora Sough. Sua voz, quando se dirigiu a ele, era calorosa e plena, porém manteve toda a autoridade com que ordenara ao Guerreiro da Pérola que parasse o ataque. — Eu sou a senhora Sough e dou-lhe as boas-vindas a esta terra.

— Estamos gratos pela sua intervenção, minha senhora. — Oone falou pela primeira vez, embora com certa suspeita. — Você é a governante aqui?

— Sou apenas uma guia e uma navegadora.

— Aquela coisa louca ali aceita o seu comando. — Oone levantou-se, esfregando os braços e as pernas, olhando para o Guerreiro da Pérola, que sorriu com desdém, encarando-a furtivamente quando senhora Sough lhe deu sua atenção.

— Está incompleto. — senhora Sough foi desdenhosa. — Ele guarda a Pérola. No entanto tem uma inteligência tão insubstancial que não consegue entender a natureza de sua tarefa, nem quem é aliado ou quem é inimigo. Só pode fazer as escolhas mais limitadas, pobre ser corrompido. Aqueles que o colocaram para este trabalho tinham, por si só, apenas uma vaga compreensão do que era necessário em tal guerreiro.

— Ruim! Eu não vou! — o Guerreiro da Pérola começou a rir de novo. — Nunca! É por isso! É por isso!

— Vá! — gritou senhora Sough, gesticulando mais uma vez com seu cajado, os olhos brilhando acima do véu. — Você não tem nada a ver com estes.

— Morrer não é sensato, senhora. — disse o Guerreiro da Pérola, erguendo o ombro num gesto de arrogância desafiadora. — Cuidado com a sua própria corrupção. Todos nós podemos nos dissolver se estes alcançarem seu propósito.

— Vá, bruto estúpido! — ela apontou para o cavalo. — E deixe essa lança para trás, ser destrutivo, insensível e grotesco.

— Estou enganado. — disse Elric. — Ou sua fala carece de sentido?

— É possível... — murmurou Oone. — Porém pode ser que fale mais da verdade do que aqueles que nos protegeram.

— Qualquer coisa pode acontecer e terá que ser resistida! — disse o Guerreiro da Pérola sombriamente enquanto montava. Ele começou a cavalgar até onde sua lança havia caído depois de atirá-la em Elric. — É por essa razão pelo que somos!

— Vá! Vá embora!

Ele se inclinou na sela, alcançando a lança.

— Não... — disse ela com firmeza, como se falasse com uma criança mal criada. — Disse que você não deveria tomá-la. Veja o que fez, Guerreiro da Pérola! Você está proibido de atacar essas pessoas novamente.

— Nenhuma aliança, então. Agora não! Entretanto logo essa liberdade será perdida e todos voltarão a se reunir! — outra risada terrível meio enlouquecida soou e cravou as esporas nos flancos do cavalo, galopando na direção por onde viera. — Haverá laços! Ah, sim!

— Suas palavras fazem sentido para você, senhora Sough? — Elric perguntou com amabilidade, quando o guerreiro desapareceu.

— Algumas sim. — respondeu. Parecia que estava sorrindo por trás do véu. — Não é culpa dele que seu cérebro esteja malformado. Existem poucos guerreiros neste mundo, sabe. Ele talvez seja o melhor.

— O melhor?

A pergunta sarcástica de Oone ficou sem resposta. Senhora Sough estendeu a mão na qual brilhavam joias delicadamente coloridas e acenou para elas.

— Aqui sou uma navegadora. Posso levá-lo a ilhas doces onde dois amantes poderiam ser felizes para sempre. Tenho um lugar escondido e seguro. Posso levá-los até lá?

Elric olhou para Oone, perguntando-se se talvez se sentisse atraída pelo convite oferecido. Por um segundo esqueceu seu propósito aqui. Seria maravilhoso passar um breve idílio na companhia de Oone.

— Estamos em Imador, correto, senhora Sough?

— É o lugar que os ladrões de sonhos chamam de Imador, sim. Nós não o chamamos por esse nome. — ela parecia desaprovadora.

— Estamos gratos pela sua ajuda neste assunto, minha senhora. — disse Elric, achando Oone um pouco brusca e procurando se desculpar pelos modos da companheira. — Eu sou Elric de Melniboné e esta é senhora Oone da Guilda dos Ladrões de Sonhos. Você sabia que procuramos a Fortaleza da Pérola?

— Sim, sei. E esta estrada é reta para vocês. Pode levá-lo até a Fortaleza. Porém pode não levá-lo pelo melhor caminho. Guiá-los-ei por qualquer caminho que desejarem.

Ela parecia um pouco distante, quase como se a mesma estivesse meio adormecida. Seu tom se tornou sonhador e Elric imaginou que estava ofendida.

— Devemos muito a você, senhora Sough, e seu conselho é valioso para nós. O que nos sugeriria?

— Que crie um exército primeiro, suponho. Para sua própria segurança. Existem defesas terríveis na Fortaleza da Pérola. Ora, e antes disso também. Vocês são corajosos, os dois. Existem vários caminhos para o sucesso. E a morte está no final de muitos outros caminhos, disso você está, tenho certeza, consciente...

— Onde poderíamos recrutar tal exército? — Elric ignorou o olhar de advertência de Oone. Sentiu que estava sendo obstinada, desconfiada demais daquela mulher digna.

— Há um oceano não muito longe daqui. Há uma ilha nele. O povo daquela ilha anseia por lutar. Seguirão qualquer um que lhes prometa perigo. Quer ir até lá? É muito bom. Há calor e muralhas seguras, jardins e muito para comer.

— Suas palavras parecem inspiradoras. — disse Elric. — Talvez valesse a pena fazer uma pausa em nossa busca para recrutar esses soldados. E o Guerreiro da Pérola me ofereceu uma aliança. Ele nos ajudará? É confiável?

— Pelo que almeja fazer? Sim, creio que sim. — sua testa franziu. — Eu acho.

— Não, senhora Sough. — Oone falou de repente e com força considerável. — Somos gratos por sua orientação. Você nos levará ao Portão Falador? Conhece?

— Conheço o que chama de Portão Falador, jovem. E quaisquer que sejam suas perguntas ou desejos, me corresponde responder e cumprir.

— Qual é o nome pelo qual chamam esta terra?

— Nenhum. — ela parecia confusa com a pergunta de Oone. — Não existe nenhum. É este lugar. Está aqui. Mas posso guiá-lo através dele.

— Acredito em você, minha senhora. — a voz de Oone suavizou. Ela pegou Elric pelo braço. — Nosso outro nome para esta terra é Terra da Nova Ambição. Todavia novas ambições podem enganar. Nós as inventamos quando a antiga ambição parece muito difícil de alcançar, não é?

Elric a entendeu e se sentiu um tolo.

— Você oferece uma diversão, senhora Sough?

— Não exatamente. — a mulher velada balançou a cabeça. O movimento continha toda a sua graciosidade e parecia um pouco magoada pela franqueza da pergunta. — Às vezes é preferível um novo objetivo quando a estrada fica intransitável.

— Mas a estrada não é intransitável, senhora Sough. — disse Oone. — Ainda não.

— Isso é verdade. — senhora Sough inclinou ligeiramente a cabeça. — Eu ofereço a você toda a verdade sobre este assunto. Todos os seus aspectos.

— Manteremos o aspecto do qual temos mais certeza. — continuou Oone em um suave tom. — E muito obrigada pela sua ajuda.

— É sua, senhora Oone. Vamos.

A mulher virou-se, suas vestes se erguendo como se agitadas num vendaval, e os conduziu para longe dos degraus até um lugar onde o chão mergulhava e revelava, quando estavam mais próximos, um rio raso. Ali estava um barco atracado. O barco tinha uma proa curva de madeira dourada, não muito diferente do báculo curvado dos sonhos de Oone, e suas laterais eram cobertas por uma fina camada de ouro batido, bronze e prata. O latão brilhava nos trilhos, no mastro único, e uma vela azul com fios prateados, como as vestes de senhora Sough, estava enrolada no braço da verga. Não havia tripulação visível.

Senhora Sough apontou com seu cajado.

— Aqui está o barco com o qual encontraremos o portão que buscam. Tenho a vocação, senhora Oone, Príncipe Elric, de protegê-los. Não tenham medo de mim.

— Não temos minha senhora. — disse Oone com grande sinceridade.

Sua voz era gentil. Elric ficou perplexo com seus modos, porém aceitou que ela tinha uma noção clara da situação deles.

— O que isto significa? — Elric murmurou enquanto senhora Sough descia em direção ao seu barco.

— Acho que significa que estamos perto da Fortaleza da Pérola. — disse Oone. — Ela tenta nos ajudar, contudo não tem certeza da melhor forma de fazê-lo.

— Confia nela?

— Se confiarmos em nós mesmos, creio que podemos confiar nela. Só devemos saber quais são as perguntas certas a fazer.

— Confiarei em você, Oone, se confiar nela. — disse Elric sorrindo.

Ao aceno insistente da mulher, os dois subiram no lindo barco, que balançava apenas ligeiramente nas águas escuras do que parecia a Elric um canal quase artificial, reto e profundo, movendo-se numa curva ampla até desaparecer de vista a um ou dois quilômetros de distância deles. Ele olhou para cima, ainda sem saber se estava olhando para um céu estranho ou para o teto da maior caverna de todas. Podia ver as escadas se estendendo ao longe e se perguntou de novo o que havia acontecido com os habitantes quando fugiram do ataque do Guerreiro da Pérola.

Senhora Sough ocupou o grande leme do barco. Com um único movimento guiou a embarcação até o centro do canal. Quase imediatamente o terreno se nivelou de modo que era possível ver o deserto cinzento por todos os lados, enquanto à frente havia folhagens, vegetação, a sugestão de colinas. Havia algo na luz que lembrou a Elric uma noite de setembro. Quase conseguia sentir o cheiro das rosas do início do outono, das árvores em floração, dos pomares de Imrryr. Sentado perto da proa do barco com Oone ao seu lado, apoiada em seu ombro, ele suspirou de prazer, aproveitando o momento.

— Se o resto da nossa busca for conduzido dessa maneira, ficarei feliz em acompanhá-la em muitas dessas aventuras, senhora Oone.

Ela também estava de bom humor.

— Sim. Então todo o mundo desejaria ser ladrão de sonhos.

O barco contornou uma curva do canal e foram alertados por figuras em pé em ambas as margens. Essas pessoas tristes e silenciosas, vestidas de branco e amarelo, olhavam para a barcaça com os olhos cheios de lágrimas, como se assistissem a um funeral. Elric tinha certeza de que não choravam por ele ou por Oone. Chamou-os, mas estes não pareciam ouvi-lo. Desapareceram em seguida e passaram por terraços suavemente elevados, cultivados para vinhas, figos e amêndoas. O ar estava doce com as colheitas maduras e uma vez uma pequena criatura parecida com uma raposa correu ao seu lado por um tempo antes de se desviar para um arbusto. Um pouco mais tarde, homens nus e de pele morena rondavam de quatro até que também se cansaram e desapareceram na vegetação rasteira. O canal começou a torcer cada vez mais e senhora Sough foi forçada a lançar todo o seu peso sobre a cana do leme para manter o barco no curso.

— Por que um canal seria construído assim? — Elric a perguntou quando estavam mais uma vez em um trecho reto de água.

— O que estava acima de nós agora está à frente e o que estava abaixo está agora atrás. — respondeu ela. — Essa é a natureza disto. Eu sou a navegadora e sei. Porém à frente, onde fica mais escuro, o rio é inflexível. Isto é feito para ajudar na compreensão, creio.

Suas palavras eram quase tão confusas quanto às do Guerreiro da Pérola, e Elric tentou dar-lhe sentido fazendo-lhe mais perguntas.

— O rio nos ajuda a entender o quê, senhora Sough?

— A natureza deles, a natureza dela, o que você deve encontrar... Ah, veja!

O rio estava se alargando rapidamente em um lago. Agora havia juncos crescendo nas margens, garças prateadas voando contra o céu suave.

— À distância até a ilha de que falei não é grande. — disse senhora Sough. — Temo por você.

— Não... — disse Oone com determinada bondade. — Pegue o barco para atravessar o lago em direção ao Portão Falador. Obrigado.

— Este agradecimento é... — senhora Sough balançou a cabeça. — Eu não gostaria que você morresse.

— Não morreremos. Estamos aqui para salvá-la.

— Ela está com medo.

— Nós sabemos.

— Aqueles outros disseram que iriam salvá-la. Mas eles a obrigaram... Deixaram tudo escuro e ela ficou presa...

— Nós sabemos. — repetiu Oone, e colocou a mão reconfortante no braço da senhora Sough enquanto a mulher velada guiava o barco para o lago aberto.

Elric disse.

— Você fala da Jovem Santa e dos Aventureiros Feiticeiros? O que a aprisiona? Como podemos libertá-la? Trazê-la de volta para seu pai e seu povo?

— Ah, é mentira! — senhora Sough quase gritou, apontando para onde, nadando diretamente em direção a eles, vinha uma criança. Porém a pele do menino era metálica, de um prateado brilhante, e seus olhos prateados imploravam por ajuda. Então a criança sorriu, estendeu a própria cabeça para fora da água e submergiu.

— Estamos perto do Portão Falador. — disse Oone severamente.

— Aqueles que a possuem também a protegem. — disse senhora Sough de repente. — Contudo ela não é deles.

— Eu sei. — disse Oone.

Seu olhar estava fixo no que estava à frente deles. Havia uma névoa no lago. Era como a névoa mais fina que se forma na água numa manhã de outono. Havia um ar de tranquilidade do qual claramente desconfiava. Elric olhou para a navegadora, no entanto os olhos desta estavam inexpressivos, não oferecendo nenhuma pista sobre os perigos que poderiam enfrentar em breve.

O barco virou um pouco e havia terra visível através da neblina. Elric viu árvores altas se erguendo acima de um amontoado de pedras. Havia pilares brancos de calcário, brilhando levemente sob aquela luz adorável. Ele viu montes de grama e abaixo pequenas enseadas. Elric se perguntou se, afinal, haviam sido trazidos para a ilha que fora mencionada e estava prestes a interrogá-la quando viu o que parecia ser uma porta maciça de pedra esculpida e mosaicos intrincados, com um ar de idade considerável.

— O Portão Falador. — disse a senhora Sough, não sem uma pitada de apreensão.

Então o portão se abriu e um vento horrível surgiu de dentro, balançando seus cabelos e roupas, arranhando suas peles, gritando e gemendo em seus ouvidos. O barco balançou e Elric temeu que virasse. Correu para a popa para ajudar com o leme. O véu da senhora Sough havia sido arrancado de seu rosto. Ela não era uma mulher jovem, todavia tinha uma semelhança surpreendente com a menina que haviam deixado na Tenda de Bronze, a Jovem Santa dos Bauradim. E Elric, tomando o leme enquanto senhora Sough recolocava o véu, lembrou-se de que nunca tinha sido feita qualquer menção à mãe de Varadia.

Oone estava baixando a vela. A força inicial do vento havia cessado e era possível seguir gradualmente em direção à entrada escura e de cheiro estranho que fora revelado quando a porta de mosaico se abriu.

Três cavalos apareceram lá. Cascos agitavam-se no ar. Suas caudas chicoteavam. Então galoparam pela água na direção do barco. Passaram por ela e desapareceram na névoa. Nenhum dos animais possuindo cabeça.

Agora Elric experimentará uma sensação de terror. Entretanto era um terror familiar e em segundos recuperou o controle de si mesmo. Sabia que, qualquer que fosse o nome, estava prestes a entrar numa terra onde o Caos governava.

Foi só quando o barco navegou sob as rochas esculpidas e entrou na gruta que se lembrou de que não tinha nenhum de seus feitiços e encantamentos familiares; nenhum de seus aliados, nem seu patrono, o Duque do Inferno, estava disponível para ele aqui. Só tinha sua experiência, coragem e sensibilidades comuns. E naquele momento duvidou que fossem suficientes.

***

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