Tomo 03 — Capítulo 14: Certos Assuntos Resolvidos em Quarzhasaat
Quando Elric de Melniboné entrou em Quarzhasaat, seu corpo estava mole na sela, mal controlando o cavalo, e as pessoas que se reuniram ao seu redor se perguntaram se estava doente, enquanto alguns temiam que trouxesse a peste para sua bela cidade e queriam levá-lo para fora naquele mesmo instante.
O albino ergueu a cabeça apenas o tempo suficiente para pronunciar o nome do seu patrono, Lorde Gho Fhaazi, e dizer que tudo o que lhe faltava era um certo elixir que aquele nobre possuía.
— Preciso desse elixir. — disse-lhes ele. — Ou estarei morto antes de concluir minha tarefa...
As antigas torres e minaretes de Quarzhasaat eram lindas sob os raios esmaecidos de um enorme sol vermelho e havia certa paz na cidade, que surge quando os negócios do dia terminam e antes de entregar-se aos seus prazeres.
Um rico comerciante de água, ansioso por agradar alguém que em breve poderia ser eleito para o Conselho, conduziu pessoalmente o cavalo de Elric pelas vielas elegantes e avenidas impressionantes até chegarem ao grande palácio, todo dourado e verde desbotado, de Lorde Gho Fhaazi.
O mercador foi recompensado com a promessa de um servente de mencionar o seu nome ao nobre, e Elric, ora resmungando e choramingando consigo mesmo, ora gemendo um pouco e lambendo os lábios ansiosos, atravessou os encantadores jardins que cercavam o palácio principal.
O próprio Lorde Gho veio ao encontro do albino. O homem estava rindo muito ao ver Elric em tão más condições.
— Saudações, saudações, Elric de Nadsokor! Saudações, ladrão de palhaços de rosto branco. Oh, você não está tão orgulhoso hoje! Você foi perdulário com o elixir que lhe dei e agora volta para implorar por mais... Em piores condições do que quando chegou aqui pela primeira vez!
— O menino... — sussurrou Elric, enquanto os servos o ajudavam a descer do cavalo. Seus braços pendiam frouxos enquanto o carregavam nos ombros. — Está vivo?
— Com melhor saúde do que o senhor! — os pálidos olhos verdes de Lorde Gho Fhaazi estavam cheios de uma malícia requintada. — E em perfeita segurança. Sua atitude foi bastante inflexível quanto a isso antes de partir. E sou um homem de palavra.
O político acariciou os cachos da barba oleosa e riu sozinho.
— E você, Senhor Ladrão, também cumpre sua palavra?
— Ao pé da letra. — murmurou o albino. Seus olhos vermelhos rolaram para trás e por um segundo pareceu que havia morrido. Então lançou um olhar doloroso na direção de Lorde Gho. — Vai me entregar o antídoto e tudo o que prometeu? A água? A riqueza? O menino?
— Sem dúvida, sem dúvida. Mas agora está em uma péssima posição de negociação, ladrão. E quanto à Pérola? Encontrou-a? Ou está aqui para relatar o fracasso?
— Eu a encontrei. E escondi. — disse Elric. — O elixir...
— Sim, sim. Sei o que o elixir faz. Sua constituição deve ser fundamentalmente forte para poder falar agora.
O quarzhasaatiano supervisionou os homens e mulheres que carregaram Elric para o fresco interior do palácio e colocaram-no em grandes almofadas de veludo escarlate e azul com borlas, e deram-lhe água para beber e comida para comer.
— O desejo piora, não é? — Lorde Gho sentiu um prazer considerável com o desconforto de Elric. — O elixir deve se alimentar de você, assim como você parece se alimentar dele. Que astuto de sua parte, hein, Senhor Ladrão? Escondeu a Pérola, não é? Não confia em mim? Eu sou um nobre da maior cidade de o mundo!
Elric, todo empoeirado da longa viagem, esparramou-se nas almofadas e limpou lentamente as mãos num pano.
— O antídoto, meu senhor...
— Sabe que não vou deixá-lo ficar com o antídoto até que a Pérola esteja em minhas mãos... — Lorde Gho era condescendente enquanto olhava para sua vítima. — Para falar a verdade, ladrão, não esperava que fosse tão coerente quanto é! Gostaria de outro gole do meu elixir?
— Traga se quiser.
Elric parecia estar despreocupado, porém Lorde Gho compreendeu o quão desesperado devia estar. Ele se virou para dar instruções aos seus escravos de que trouxessem o líquido.
Então Elric disse.
— Contudo traga o menino. Traga o menino para que eu possa ver que não sofreu nenhum dano e ouvir de seus próprios lábios o que aconteceu enquanto estive fora...
— É um pequeno pedido. Muito bem. — Lorde Gho Fhaazi sinalizou para um escravo. — Traga o menino Anigh.
O nobre foi até uma grande cadeira, colocada num pequeno estrado entre toldos de brocado, e deixou-se cair nela enquanto esperavam.
— Eu mal esperava que você sobrevivesse à jornada, Senhor Ladrão, e muito menos conseguisse encontrar a Pérola. Nossos Aventureiros Feiticeiros são os mais corajosos e habilidosos dos guerreiros, treinados em todas as artes de feitiçaria e encantamento. No entanto, aqueles que enviei, e todos os seus irmãos, falharam! Oh, este é um dia feliz para mim. Eu vou revivê-lo, prometo, para que possa me contar tudo o que aconteceu. O que foi dos Bauradim? Matou muitos? Terá de me contar tudo para que, quando apresentar a Pérola para obter minha posição, possa contar a história que a acompanha. Isso aumentará seu valor, sabe? Quando for eleito, tenho certeza que me será solicitado muitas vezes que conte esta história. O Conselho ficará com muita inveja... — ele lambeu os lábios pintados de vermelho. — Você teve que matar aquela criança? Qual foi a primeira coisa que testemunhou, por exemplo, quando chegou ao Oásis da Flor Prateada?
— Um funeral, pelo que me lembro... — Elric mostrou um pouco mais de animação. — Sim, foi isso.
Dois guardas trouxeram um menino que se contorcia e que não pareceu muito feliz quando viu Elric estirado nas almofadas.
— Oh, mestre! Você está mais miserável do que antes.
O garoto parou de lutar e tentou esconder sua decepção. Não havia marcas de tortura e parecia não ter sido ferido.
— Tudo bem, Anigh?
— Sim. Meu principal problema tem sido passar o tempo. Ocasionalmente, Sua Senhoria vinha para me dizer o que faria se você não conseguisse trazer a Pérola de volta, mas percebi essas coisas nas paredes das paliçadas lunáticas e não eram novidade para mim.
Lorde Gho fez uma careta.
— Tenha cuidado, garoto...
— Você deve ter retornado com a Pérola. — disse Anigh, olhando ao redor. — É verdade, meu senhor? Ou não estaria aqui, certo? — seu tom ficou um pouco mais aliviado. — Devemos ir agora?
— Ainda não! — rosnou Lorde Gho.
— O antídoto... — disse Elric. — Você o tem aqui?
— Quão impaciente, Senhor Ladrão. E sua astúcia é igualada à minha. — Lorde Gho deu uma risadinha e levantou um dedo de advertência. — Preciso ter alguma prova de que possui a Pérola. Poderia me dar sua espada como garantia, talvez? Afinal, está muito fraco para empunhá-la. Ela não lhe será de muita serventia.
Lorde Gho estendeu a mão gananciosa em direção ao quadril do albino e Elric fez um movimento fraco para se afastar.
— Vamos Senhor Ladrão. Não tenha medo de mim. Somos parceiros nesse assunto. Onde está a Pérola? O Conselho se reúne esta noite na Grande Casa de Reunião. Se eu puder trazer a Pérola para eles, então... Oh, serei poderoso ainda esta noite!
— O verme tem muito orgulho de ser o rei do esterco. — disse Elric.
— Não o irrite, mestre! — gritou Anigh alarmado. — Ainda precisa saber onde o antídoto está guardado!
— Eu preciso da Pérola! — Lorde Gho tornou-se petulante em sua impaciência. — Onde a escondeu, ladrão? No deserto? Em algum lugar da cidade?
Lentamente, Elric levantou o corpo sobre as almofadas.
— A Pérola foi um sonho. — respondeu. — Foram necessários seus assassinos para torná-la real.
Lorde Gho Fhaazi franziu a testa, coçando a testa esbranquiçada e demonstrando ainda mais nervosismo. Ele olhou desconfiado para Elric.
— Se quer mais elixir, é melhor não me insultar, Ladrão. Nem jogar nenhum jogo. O menino poderia morrer em um instante, e você o acompanharia, e eu não estaria em pior posição do que agora.
— Porém creio que poderia estar melhor, meu senhor. Com o preço de um lugar no Conselho. — Elric pareceu reunir forças e agora estava de pé sobre o veludo luxuoso, sinalizando para o menino vir em sua direção. Os guardas olharam interrogativamente para seu mestre, contudo este encolheu os ombros. Anigh caminhou, com a testa franzida de curiosidade, em direção ao albino. — Está sendo ganancioso, meu senhor. Você seria o dono de todo o seu mundo. Este patético monumento ao orgulho arruinado de sua raça!
Lorde Gho o encarnou.
— Ladrão, se você se recuperar, se tomar o antídoto para se livrar da droga que eu te dei, será mais educado comigo...
— Ah, sim. — disse Elric pensativo, enfiando a mão no gibão. Ele puxou uma bolsa de couro. — O elixir que me tornaria seu escravo!
Ele sorriu, e abriu a bolsa.
Na palma da mão estendida rolava agora a joia pela qual Gho Fhaazi oferecera metade da sua fortuna, pela qual enviara cem homens para a morte, pela qual estivera preparado para raptar e matar uma criança e aprisionar outra.
O quarzhasaatiano começou a tremer. Seus olhos pintados se arredondaram. Ele engasgou e se inclinou para frente, quase desmaiando.
— É verdade... — disse ele. — Você encontrou a Pérola no Coração do Mundo...
— Apenas um presente de uma amiga. — disse Elric. A Pérola ainda exibida em sua mão, levantou-se e colocou um braço protetor em volta do menino. — Ao obtê-la, descobri que meu corpo perdeu a necessidade do elixir e, portanto, não preciso do seu antídoto, Lorde Gho.
Lorde Gho quase não o ouviu. Seus olhos estavam fixos na grande Pérola.
— É monstruosamente grande... Ainda maior do que eu tinha ouvido... É real. Posso ver que é real. A cor... Ah...
E ele se esticou na direção dela.
Elric retirou a mão. Lorde Gho franziu a testa e olhou para o albino com olhos ardentes de ganância.
— Ela morreu? Estava, como alguns disseram, em seu corpo?
Anigh estremeceu ao lado de Elric. Cheia de ódio, a voz de Elric seguia suave.
— Ninguém morreu pelas minhas mãos que já não estivesse morto. Como você está, meu senhor. Foi o seu funeral que testemunhei no Oásis da Flor Prateada. Agora sou o agente da profecia Bauradim. Devo vingar todas as tristezas que você trouxe para eles e para sua Jovem Santa.
— O quê? Todos os outros enviaram seus soldados também! Todo o Conselho e metade dos candidatos tinham seitas de Aventureiros Feiticeiros em busca da Pérola. Todos. A maioria desses guerreiros falhou ou foi morta. Ou foram executados por seu fracasso. Você não matou um, é o que disse. Bem, então não há sangue em suas mãos, eh.
Tremendo de desejo, Lorde Gho estendeu a mão rechonchuda para pegar a Pérola.
Elric sorriu e, para espanto de Anigh, deixou o nobre tirar a Pérola da palma de sua mão.
Respirando pesadamente, Lorde Gho acariciou seu prêmio.
— Oh, é linda. Oh, é tão boa...
Elric tornou a falar, tão nivelado quanto antes.
— E nossa recompensa, Lorde Gho?
— O quê? — ele olhou para cima distraidamente. — Ah, sim, claro. Suas vidas. Pelo que disse, vocês não precisam mais do antídoto. Excelente. Então podem ir.
— Acredito que também me ofereceu uma grande fortuna. Todo tipo de riqueza. Grande estatura entre os senhores de Quarzhasaat, certo?
Lorde Gho rejeitou isso.
— Bobagem. O antídoto teria bastado. Você não é o tipo de pessoa capaz de apreciar tais coisas. É necessária alcurnia para que sejam usadas com sabedoria e discrição apropriada. Não, não. Deixarei que partam, tanto você quanto o menino.
— Não cumprirá seu acordo original, meu senhor?
— Houve conversa, mas não houve acordo. O único acordo envolvia a liberdade do menino e o antídoto para o elixir. Está se equivocando.
— Não se lembra de nada de suas promessas...?
— Promessas? Certamente não.
A barba cacheada e o cabelo estremeceram.
— E a minha?
— Não, não. Está me irritando. — seus olhos ainda estavam voltados para a Pérola. Lorde Gho acariciou-a como qualquer outro acariciaria um filho querido. —Vá, senhor. Enquanto ainda estou satisfeito com seu trabalho.
— Tenho muitos juramentos a cumprir... — disse Elric. — E não quebro minha palavra.
Lorde Gho ergueu os olhos, com uma expressão endurecida.
— Muito bem. Já estou cansado disso. Esta noite serei membro dos Seis e Um Outro. Ao me ameaçar, ameaça ao Conselho. Vocês são, portanto, inimigos de Quarzhasaat. São traidores do Império e devem ser eliminados de acordo!
— Oh, que sujeito tão tolo. — disse Elric. Então Anigh gritou, pois, ao contrário de Lorde Gho, não tinha se esquecido do poder da Espada Negra.
— Faça o que ele exige, Lorde Gho! — gritou Anigh, temendo tanto por si mesmo quanto pelo nobre. — Eu imploro, grande senhor! Faça o que diz!
— Não é assim que se trata um membro do Conselho. — o tom de Lorde Gho era o de um indivíduo perplexo e razoável. — Guardas, tirem-nos do meu salão imediatamente. Mandem estrangulá-los ou cortar suas gargantas, não me importo...
Os guardas não sabiam nada sobre a espada rúnica. Eles viram apenas um homem esbelto que poderia ser um leproso, e viram um menino jovem e indefeso. Sorriram, como se estivessem contando uma piada de seu mestre, e então sacaram as lâminas, avançando quase com naturalidade.
Elric empurrou Anigh para trás dele. Sua mão foi para a empunhadura da Stormbringer.
— Vocês não são sensatos em fazer isso. — alertou os guardas. — Não tenho nenhum desejo particular de matá-los.
Atrás dos soldados, uma das criadas abriu a porta e saiu para o corredor. Elric a observou partir.
— É melhor que façam o mesmo. — disse. — Ela tem alguma ideia, creio, do que acontecerá se nos ameaçar ainda mais...
Os guardas riram abertamente agora.
— Ficou louco. — disse um dos guardas. — Lorde Gho está farto dele!
Eles avançaram com pressa contra Elric, e então a espada rúnica uivou no ar fresco daquela câmara luxuosa, uivando como um lobo faminto libertado de uma gaiola e desejando apenas matar e se alimentar.
Elric sentiu o poder o preencher quando a lâmina atingiu o primeiro guarda, dividindo-o da cabeça ao esterno. O outro tentou mudar de direção de ataque para fuga, tropeçou para frente e foi empalado na ponta da lâmina, seus olhos horrorizados ao sentir sua alma sendo sugada para a espada rúnica.
Lorde Gho se encolheu na sua grande cadeira, assustado demais para se mexer. Numa das mãos segurava a grande Pérola. Sua outra mão estava com a palma voltada para frente, como se esperasse se defender do golpe de Elric.
Todavia o albino, fortalecido pela energia emprestada, embainhou a lâmina negra e deu cinco passos rápidos pelo salão para subir no estrado e olhar para o rosto de Lorde Gho, que se contorceu de terror.
— Leve a Pérola de volta. Pela minha vida... — sussurrou o quarzhasaatiano. — Pela minha vida, ladrão...
Elric aceitou a joia oferecida, mas não se mexeu. Sua mão adentrou a bolsa que trazia no cinto e tirou um frasco do elixir que Lorde Gho lhe dera.
— Você gostaria de algo para ajudá-la a engolir?
Lorde Gho estremeceu. Sob a substância calcária da pele, seu rosto ficou ainda mais pálido.
— Eu não o entendo, ladrão.
— Quero que coma a Pérola, meu senhor. Se conseguir engoli-la e viver, bem, ficará claro que a profecia de sua morte foi prematura.
— Engolir? É muito grande. Mal posso colocá-la na boca! — Lorde Gho deu uma risadinha, esperando que o albino estivesse brincando.
— Não, meu senhor. Acho que pode. E acho que pode engoli-la. Afinal, de que outra forma teria entrado no corpo de uma criança?
— Foram eles... Disseram que era u-um sonho...
— Sim. Talvez você possa engolir um sonho. Talvez possa entrar no Reino dos Sonhos e assim escapar de seu destino. Deve tentar, meu senhor, ou então minha espada rúnica beberá sua alma. O que prefere?
— Oh, Elric. Poupe-me. Isso não é justo. Fizemos um acordo.
— Abra a boca, Lorde Gho. Quem sabe? A Pérola pode encolher ou sua garganta se expandir como a de uma cobra. Uma cobra poderia facilmente engolir a Pérola, meu senhor. E você, sem sombra de dúvidas, é superior a uma cobra, certo?
Anigh sussurrou da janela para onde estivera olhando com olhar estudado, sem vontade de encarar uma vingança que considerava justa, porém desagradável.
— A serva, Lorde Elric, alarmou a cidade.
Por um segundo, uma esperança desesperada surgiu nos olhos verdes de Lorde Gho e depois desapareceu quando Elric colocou o frasco no braço da grande cadeira e puxou parcialmente a espada rúnica da bainha.
— Sua alma me ajudará a lutar contra esses novos soldados, Lorde Gho.
Devagar, chorando e choramingando, o grande Senhor de Quarzhasaat começou a abrir a boca.
— Aqui está a Pérola de novo, meu senhor. Coloque-a. Faça o seu melhor, meu senhor. Assim terá alguma chance de vida desta forma.
A mão de Lorde Gho tremeu. Contudo por fim começou a forçar a linda joia entre os lábios avermelhados. Elric tirou a tampa do elixir e derramou um pouco do líquido nas bochechas distorcidas do nobre.
— Agora engula, Lorde Gho. Engula a Pérola que teria matado uma criança para possuir. E então lhe direi quem sou...
Poucos momentos depois, as portas se abriram e Elric reconheceu o rosto tatuado de Manag Iss, líder da Seita Amarela e parente da senhora Iss. Manag Iss olhou de Elric para as feições distorcidas de Lorde Gho. O nobre falhou completamente em engolir a Pérola.
Manag Iss estremeceu.
— Elric. Ouvi dizer que havia retornado. Disseram que estava perto da morte. É claro que isso foi um truque para enganar Lorde Gho.
— Sim. — disse Elric. — Eu tinha esse garoto para libertar.
Manag Iss gesticulou com sua própria espada desembainhada.
— Encontrou a Pérola?
— Encontrei.
— Minha senhora Iss me enviou para lhe oferecer qualquer coisa que desejasse.
Elric sorriu.
— Diga a ela que estarei na Casa de Reunião do Conselho em meia hora. Levarei a Pérola comigo.
— Contudo os outros estarão lá. Ela deseja negociar em particular.
— Não seria sensato leiloar algo tão valioso? — perguntou Elric.
Manag Iss embainhou a espada e sorriu um pouco.
— Você é astuto. Não acho que eles saibam o quão astuto é. Nem quem é. Ainda não os contei sobre essa especulação em particular.
— Oh, pode contar a eles o que acabei de dizer a Lorde Gho. Que sou o imperador hereditário de Melniboné. — disse Elric casualmente. — Pois essa é a verdade. Creio que meu Império sobreviveu com muito mais sucesso do que o seu.
— Isso poderia irritá-los. Estou disposto a ser seu amigo, melniboniano.
— Obrigado, Manag Iss, no entanto não preciso de mais amigos de Quarzhasaat. Por favor, faça o que falei.
Manag Iss olhou para os guardas massacrados, para o falecido Lorde Gho, que adquirira uma cor estranha, para o rapaz nervoso, e saudou Elric.
— A Casa de Reunião em meia hora, Imperador de Melniboné.
Ele girou nos calcanhares e saiu da câmara.
Depois de dar certas instruções específicas a Anigh sobre viagens e produtos de Kwan, Elric saiu para o pátio. O sol havia se posto e havia tochas queimando por toda Quarzhasaat, como se a cidade estivesse esperando um ataque.
O palácio de Lorde Gho estava deserto de empregados. Elric foi aos estábulos e encontrou seu cavalo e sua sela. Vestiu o garanhão dos Bauradim, colocando com cuidado uma trouxa pesada sobre o arção, depois montou e cavalgou pelas ruas, em busca da Casa de Reunião onde Anigh lhe dissera que seria.
A cidade estava envolta em um silêncio não natural. Era evidente que alguma ordem havia sido dada para manter o toque de recolher, pois não havia sequer guardas nas ruas.
Elric cavalgou a meio galope ao longo da ampla Avenida do Sucesso Militar, ao longo do Boulevard das Antigas Realizações e de meia dúzia de outras avenidas grandiosamente nomeadas, até que viu o longo edifício baixo à sua frente que, em sua simplicidade, só poderia ser a sede do Poder dos quarzhasaatianos.
O albino fez uma pausa. Ao seu lado, a espada rúnica negra cantava um pouco, quase exigindo mais sangue.
— Tenha paciência... — disse Elric. — Pode ser que não haja necessidade de combater.
Ele pensou ter visto sombras movendo-se entre as árvores e arbustos ao redor da Casa de Reunião, todavia não as prestou atenção. Não se importava com o que eles tramavam ou com quem o espionava. Havia uma missão a cumprir.
Finalmente chegou às portas do edifício e não ficou surpreso ao encontrá-las escancaradas. Desmontou, jogou a trouxa sobre os ombros e entrou com passos pesados em uma sala grande e simples, sem decoração nem ostentação, onde estavam colocadas sete cadeiras de espaldar alto e uma mesa de carvalho caiado. Parados em um semicírculo em uma extremidade da mesa estavam seis figuras vestidas com mantos e véus não muito diferentes de certas seitas dos Aventureiros Feiticeiros. A sétima figura usava um chapéu alto e cônico que cobria seu rosto por completo. Foi essa figura quem falou. Elric não ficou surpreso ao ouvir o tom de voz de uma mulher.
— Eu sou o Outro. — disse a mulher. — Acredito que nos trouxe um tesouro para aumentar a glória de Quarzhasaat.
— Se acredita que este tesouro é adicionado à sua glória, então minha jornada não foi infrutífera. — disse Elric. Ele deixou cair o fardo no chão. — Manag Iss contou tudo o que eu pedi para que contasse?
Um dos Conselheiros mexeu-se e disse, quase como um juramento.
— Que você é descendente da afundada Melniboné, sim!
— Melniboné não está afundada. Também não se isola das realidades do mundo tanto quanto vocês. — Elric era desdenhoso. — Vocês desafiaram nosso poder há muito tempo e derrotaram a si mesmos por sua própria insensatez. Agora, através de sua ganância, me trouxeram de volta a Quarzhasaat, quando eu teria facilmente passado despercebido por sua cidade.
— Está nos acusando. — uma mulher velada ficou indignada. — Não foste tu quem nos causou tantos problemas? Você, que é do sangue daquela raça degenerada e não humana que se acasala com feras para seus prazeres e produz... — ela apontou para Elric. — Seres como você!
Elric não se comoveu.
— Manag Iss disse para ter cuidado comigo? — ele perguntou baixinho.
— Disse que tem em sua posse a Pérola e uma espada mágica. Mas também disse que estava sozinho. — o Outro pigarreou. — Disse que nos trouxe a Pérola no Coração do Mundo.
— Trouxe isso e aquilo que a contém. — disse Elric. Este se abaixou e puxou o veludo de sua trouxa para revelar o cadáver de Lorde Gho Fhaazi, o rosto ainda contorcido, o grande nó na garganta fazendo parecer que tinha um pomo de Adão enormemente aumentado. — Aqui está quem primeiro me encarregou de encontrar a Pérola.
— Ouvimos dizer que o assassinou. — disse o Outro com desaprovação. — Porém está seria uma ação bastante normal para um melniboniano.
Elric não fez o menor caso de suas palavras.
— A Pérola está na goela de Lorde Gho Fhaazi. Querem que eu a corte para vocês, meus nobres? — Elric viu pelo menos um dos membros do conselho estremecer e sorriu. — Você encomenda assassinos para matar, torturar, sequestrar e praticar todas as outras formas de mal em seu nome, contudo não veria um pouco de sangue derramado? Dei a Lorde Gho uma escolha. E está foi sua escolha. Ele falava tanto, comia e bebia tão abundantemente que pensei que poderia conseguir colocar a Pérola no estômago, no entanto engasgou um pouco e temo que isso tenha sido o seu fim.
— Você é um ladino cruel! — um dos homens se adiantou para olhar para seu suposto colega. — Sim, esse é Gho. Eu diria que sua cor melhorou.
Esta brincadeira não obteve a aprovação do líder.
— Devemos licitar por um cadáver, então?
— A menos que queira libertar a Pérola, sim.
— Manag Iss. — disse uma das mulheres veladas, levantando a cabeça. — Adiante!
O Aventureiro Feiticeiro emergiu de uma porta no fundo do corredor. Encarou Elric quase se desculpando. Sua mão foi até a faca.
— Não permitiremos que um melniboniano derrame mais sangue de um quarzhasaatiano. — disse o Outro. — Manag Iss libertará a Pérola.
O líder da Seita Amarela respirou fundo e depois se aproximou do cadáver. Rapidamente fez o que lhe foi ordenado. O sangue escorria por seu braço enquanto segurava a Pérola no Coração do Mundo.
O Conselho ficou impressionado. Vários dos membros engasgaram e murmuraram entre si. Elric acreditava que eles suspeitavam que tivesse mentido, já que mentiras e intrigas eram uma segunda natureza para eles.
— Segure firme, Manag Iss... — disse o albino. — É isso que todos vocês desejaram com tanta avidez que estavam dispostos a pagar com o que restava de sua honra.
— Tenha cuidado, senhor! — gritou o Outro. — Temos sido pacientes com você agora. Diga seu preço e depois vá embora.
Elric riu. Não foi uma risada agradável. Foi uma risada melniboniana. Naquele momento ele era um puro habitante da Ilha do Dragão.
— Muito bem. — falou. — Desejo esta cidade. Nem seus cidadãos, nem nenhum de seus tesouros, nem seus animais, nem mesmo sua água. Desejo apenas a cidade em si. Como pode ver, é minha por direito hereditário.
— O quê? Isso é um absurdo. Como poderíamos concordar?
— Devem concordar... — disse Elric. — Ou terão de lutar comigo.
— Lutar com você? Se só há você aqui.
— Não vale a pena discutir. — disse outro Conselheiro. — Está louco. Deve ser sacrificado como um cão raivoso. Manag Iss, chame seus irmãos e seus homens.
— Não acredito que seja aconselhável, prima. — disse Manag Iss, dirigindo-se claramente a senhora Iss. — Acredito que seria sensato negociar.
— O quê? Está se acovardando? Esse ladino tem um exército consigo?
Manag Iss esfregou o nariz.
— Minha senhora...
— Chame seus irmãos, Manag Iss!
O capitão da Seita Amarela esfregou um braço vestido de seda e franziu a testa.
— Príncipe Elric, entendo que nos forçou a um desafio. Mas não o ameaçamos. O Conselho veio honestamente aqui para fazer uma oferta pela Pérola...
— Manag Iss, está repetindo as mentiras deles. — disse Elric. — E isso não é uma coisa honrosa de se fazer. Se não queriam me fazer mal, por que você e todos os seus irmãos estavam aqui?
— Foi apenas uma precaução. — disse o Outro. Ela se virou para seus colegas conselheiros. — Eu disse que achei estúpido convocar tantos tão cedo.
Elric respondeu em uma voz serena.
— Tudo o que fizeram, meus nobres, foi estúpido. Vocês foram cruéis, gananciosos, descuidados com a vida e a vontade dos outros. Foram cegos, irrefletidos, provincianos e carentes de imaginação. Parece-me que um governo tão descuidado com qualquer coisa que não seja a sua própria gratificação deveria ser pelo menos substituído. Quando todos tiverem deixado à cidade, considerarei eleger um governador que saberá melhor como servir Quarzhasaat. Então, talvez mais tarde, deixarei que retornem para a cidade...
— Oh, mate-o de uma vez! — gritou o Outro. — Não perca mais tempo com isso. Quando for feito, poderemos decidir entre nós quem será o dono da Pérola.
Elric suspirou quase arrependido e disse.
— Melhor negociar comigo agora, senhora, antes que eu mesmo perca a paciência. Depois de desembainhar minha lâmina, não serei um ser racional e misericordioso...
— Mate-o! — ela insistiu. — E termine com isso!
Manag Iss tinha o rosto de um homem condenado a mais do que a morte.
— Senhora...
Ela avançou, balançando o chapéu cônico, e puxou a espada da bainha. Ergueu a lâmina para decapitar o albino.
Elric estendeu a mão sem perder tempo. Seu braço era uma serpente impressionante, agarrando o pulso.
— Não, senhora! Estou, eu juro, lhe dando um aviso justo...
Stormbringer murmurou ao seu lado e se mexeu.
A mulher largou a espada e se virou, cuidando do pulso machucado.
Agora Manag Iss pegou sua lâmina caída, fazendo menção de embainhá-la, e então, com um movimento sutil, tentou levantar a arma e acertar Elric na virilha, uma expressão de resignação cruzando suas feições aterrorizadas como o albino, antecipando-o, se esquivou e no mesmo ato sacou a Espada Negra, que começou a cantar sua estranha canção demoníaca e a brilhar com um terrível brilho negro.
Manag Iss engasgou quando seu coração foi perfurado. A mão que ainda segurava a Pérola pareceu esticar-se, oferecendo-a de volta a Elric. Então a joia rolou de seus dedos e caiu no chão. Três conselheiros avançaram, viram os olhos moribundos de Manag Iss e recuaram.
— Agora, agora, agora! — gritou o Outro e, como Elric esperava, de todos os cantos da Casa de Reunião vieram membros das várias seitas de Aventureiros Feiticeiros, com suas armas em punho.
E o albino começou a sorrir com seu horrível sorriso de batalha, seus olhos vermelhos brilharam e seu rosto era a caveira da Morte, sua espada era a vingança de seu próprio povo, a vingança dos Bauradim e de todos aqueles que haviam sofrido sob a injustiça de Quarzhasaat ao longo dos milênios.
E ofereceu as almas que ceifou ao seu patrono, o Duque do Inferno, o poderoso Duque Arioch, que ficaria satisfeito com tantas vidas dedicadas a ele por Elric e sua lâmina negra.
— Arioch! Arioch! Sangue e almas para meu senhor Arioch!
Então a verdadeira matança começou.
Foi um massacre como para fazer com que todos os outros eventos desse tipo se tornassem insignificantes. Foi uma matança que nunca seria esquecida em todos os anais dos povos do deserto, que saberiam desta através daqueles que fugiram de Quarzhasaat naquela noite, atirando-se no deserto sem água, em vez de enfrentarem o demônio risonho branco montado num cavalo Bauradim que galopava subindo e descendo suas lindas ruas e ensinando-lhes qual poderia ser o preço da complacência e da crueldade impensada.
— Arioch! Arioch! Sangue e almas!
Os que fugiram contam de uma criatura de rosto branco vinda do Inferno, cuja espada irradiava um brilho anormal, cujos olhos vermelhos reluziam com uma raiva hedionda, que parecia possuído ele próprio por alguma força sobrenatural, que não era mais mestre dela do que suas vítimas. Este matou sem piedade, sem distinção, sem crueldade. Matou como um lobo louco mata. E enquanto matava, lançava grandes risadas.
Essas risadas nunca deixariam Quarzhasaat. Permaneceriam no vento que vinha do Deserto Sussurrante, na música das fontes, no tilintar dos martelos dos metalúrgicos e dos joalheiros enquanto confeccionavam suas mercadorias. E assim permaneceria o cheiro de sangue, juntamente com a memória do massacre, aquela terrível perda de vidas que deixou a cidade sem Conselho e sem exército.
Todavia nunca mais Quarzhasaat promoveria a lenda do seu próprio poder. Nunca mais trataria os nômades do deserto como menos que feras. Nunca mais conheceria aquele orgulho autodestrutivo tão familiar a todos os grandes impérios em declínio.
E quando a matança terminou, Elric de Melniboné desceu na sela, embainhando uma Stormbringer saciada, e ofegou com o poder demoníaco que ainda pulsava através dele e tirou uma grande Pérola do cinto, segurando-a contra o sol nascente.
— Agora creio que pagaram um preço justo.
Ele jogou a joia na sarjeta, onde um cachorrinho lambeu o sangue coagulado.
Acima, os abutres, convocados de uma distância de mil milhas ao redor pela perspectiva de um banquete memorável, começavam a cair como uma nuvem escura sobre as belas torres e jardins de Quarzhasaat.
O rosto de Elric não demonstrava nenhum orgulho por sua conquista enquanto esporeava seu cavalo para o oeste e para o lugar na estrada onde havia dito a Anigh para esperá-los com ervas Kwani, água, cavalos e comida suficientes para cruzar o Deserto Sussurrante e buscar novamente as políticas e feitiçarias mais familiares dos Reinos Jovens.
Não olhou para trás, para a cidade que, em nome dos seus antepassados, tinha sido enfim conquistada.
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