Tomo 01 — Capítulo 04: Um Funeral no Oásis
— O Oásis da Flor Prateada é muito mais do que uma simples clareira no deserto, como descobrirá. — disse Alnac Kreb, enxugando delicadamente seu lindo rosto com um lenço enfeitado com renda brilhante. — É um ótimo ponto de encontro para todas as nações nômades, e muita riqueza chega até lá para ser comercializada. É frequentado por reis e príncipes. Os casamentos são arranjados e muitas vezes acontecem lá, assim como outras cerimônias. Grandes decisões políticas são tomadas. Alianças são mantidas e novas alianças são estabelecidas. Notícias são trocadas. Todo tipo de coisa é negociada. Nem tudo é convencional, nem todo desejo é material. É um lugar vital, ao contrário de Quarzhasaat, que os nômades visitam com relutância apenas quando a necessidade ou a ganância exigem.
— Por que não vimos nenhum desses nômades, amigo Alnac? — perguntou Elric.
— Eles evitam Quarzhasaat. Para eles o lugar e seu povo equivalem ao Inferno. Alguns até acreditam que as almas dos condenados são enviadas para Quarzhasaat. A cidade representa tudo o que temem e tudo o que está em desacordo com o que mais valorizam.
— Estou inclinado a concordar com esses nômades. — Elric permitiu-se um sorriso. Ainda livre do elixir, seu corpo tornara a ansiar por ele. A energia que sua espada lhe deu normalmente o teria sustentado por um tempo consideravelmente mais longo. Esta foi mais uma prova de que o elixir, conforme explicado por Manag Iss, se alimentava de sua própria força vital para lhe dar força física temporária. Começava a suspeitar que estava alimentando o elixir e também sua própria vitalidade. A destilação quase representou uma criatura senciente, como a espada. No entanto, a Espada Negra nunca lhe deu a mesma sensação de estar sendo invadido. Não o bastante, buscava manter sua mente livre de tais pensamentos tanto quanto possível.
— Já sinto certa afinidade com eles. — acrescentou.
— Sua esperança, Príncipe Elric, é que o considerem aceitável! — e Alnac riu. — Embora um antigo inimigo dos Senhores de Quarzhasaat deva ter certas credenciais. Tenho conhecidos entre alguns dos clãs. Permita-me apresentá-lo, quando chegar a hora.
— De boa vontade. — disse Elric. — Embora ainda não tenha explicado como me reconheceu.
Alnac assentiu como se tivesse esquecido o assunto.
— Não é complicado e, todavia, é extremamente complexo, se não entende o funcionamento fundamental do Multiverso. Como já lhe disse, sou um ladrão de sonhos. Sei mais do que a maioria porque estou familiarizado com os sonhos de muitos. Vamos apenas dizer que ouvi falar a seu respeito em um sonho e que às vezes é meu destino ser seu companheiro, embora não por muito tempo, suponho, na minha forma atual.
— Em um sonho? Ainda não me contou o que um ladrão de sonhos faz.
— Ora, roubar sonhos, é claro. Duas vezes por ano levamos nosso espólio para um determinado mercado para negociar, assim como os nômades negociam.
— Negociar sonhos? — Elric estava incrédulo.
Alnac gostou do seu espanto.
— Existem negociantes no mercado que pagam bem por certos sonhos. Por sua vez, eles os vendem para aqueles infelizes que não conseguem sonhar ou têm sonhos tão banais que desejam algo melhor.
Elric balançou a cabeça.
— Você fala em parábolas, certo?
— Não, Príncipe Elric, falo exatamente a verdade. — ele tirou do cinto o báculo com uma estranha curvatura. Lembrava a Elric um cajado de pastor, embora fosse mais curto. — Ninguém adquire isso sem ter estudado as habilidades básicas do ofício do ladrão de sonhos. Não sou o melhor em meu ofício, nem provavelmente algum dia serei, mas neste reino, neste tempo, este é o meu destino. Há muitos poucos neste reino, por razões que sem dúvida aprenderá, e apenas os nômades e o povo de Elwher reconhecem nossa arte. Não somos conhecidos, exceto por algumas pessoas sábias nos Reinos Jovens.
— Por que não se aventura lá?
— Não somos solicitados a fazer isso. Alguma vez já ouviu falar de alguém que procurou os serviços de um ladrão de sonhos nos Reinos Jovens?
— Nunca. Porém por que é assim?
— Talvez porque o Caos tenha muita influência no Ocidente e no Sul. Lá, os pesadelos mais terríveis podem facilmente se tornar realidade.
— Temes o Caos?
— Que ser racional não o teme? Tenho medo dos sonhos daqueles que o servem. — Alnac Kreb desviou o olhar para o deserto. — Elwher e o que vocês chamam de Leste Não Mapeado têm lá um conjunto de habitantes menos complicados. A influência de Melniboné nunca foi tão forte. Nem foi, é claro, no Deserto Sussurrante.
— Então é meu povo quem você teme?
— Temo qualquer raça que se entregue ao Caos; que faça pactos com os mais poderosos dos sobrenaturais; com os próprios Duques do Caos; com os próprios Governantes da Espada! Não considero tais negociações como saudáveis ou sãs. Oponho-me a Caos.
— Você serve a Lei?
— Sirvo a mim mesmo. Suponho que sirvo ao Equilíbrio. Acredito que é possível viver e deixar viver e celebrar a variedade do mundo.
— Essa filosofia é invejável, Mestre Alnac. Eu mesmo aspiro a ela, embora suponho que não acredite em mim.
— Sim, acredito em suas palavras, Príncipe Elric. Sou parte de muitos sonhos e você ocorre em alguns deles. E os sonhos são realidade e vice-versa em outros reinos. — o ladrão de sonhos olhou com simpatia para o albino. — Deve ser difícil para alguém que conheceu milênios de poder tentar renunciar a tal.
— Vejo que me entende bem, senhor Ladrão de Sonhos.
— Oh, meu entendimento é apenas do tipo mais amplo em tais assuntos. — Alnac Kreb encolheu os ombros e fez um gesto autodepreciativo.
— Passei muito tempo buscando o significado da justiça, visitando terras onde se diz que ela existe, tentando descobrir a melhor forma de realizá-la, como pode ser estabelecida para que todo o mundo se beneficie. Alguma vez ouviu falar de Tanelorn, Alnac Kreb? Diz-se que lá a justiça governa, os Senhores Cinzentos, aqueles que mantêm o equilíbrio do mundo, têm sua maior influência.
— Tanelorn existe. — disse o ladrão de sonhos em tom sereno. — E tem muitos nomes. Contudo, em alguns domínios, temo, não passa de uma ideia de perfeição. Essas ideias são o que nos mantêm na esperança e alimentam o nosso desejo de tornar os sonhos realidade. Às vezes temos sucesso.
— A justiça existe?
— Claro que sim. No entanto não é uma abstração. Deve ser trabalhada para ser alcançada. A justiça é o seu demônio, creio eu, Príncipe Elric, mais do que qualquer Senhor do Caos. Você escolheu um caminho cruel e infeliz. — ele sorriu delicadamente enquanto olhava à frente deles, para a longa trilha vermelha que se estendia até o horizonte.
— Mais cruel, penso, do que a Estrada Vermelha para o Oásis da Flor Prateada.
— Não está sendo muito encorajador, Mestre Alnac.
— Já deve ser de seu conhecimento que há pouca justiça no mundo que não seja conquistada com dificuldade, ganhada e mantida com muito esforço. É de nossa natureza mortal tornar tal fardo a responsabilidade de outros ou, na verdade, buscar forças mais poderosas e esperar que, ao se aliar ao seu poder, sobreviva melhor. Com frequência, a experiência prova que estão certos, pelo menos em curto prazo. Todavia, pobres criaturas como você continuam a tentar renunciar ao poder enquanto adquirem cada vez mais responsabilidades. Alguns diriam que é admirável fazer o que tenta fazer, pois isso constrói o caráter e a força de propósito, que alcança uma forma mais elevada de sanidade...
— Sim. E outros diriam que é a forma mais pura de loucura, em desacordo com todos os impulsos naturais. Não sei o que anseio, senhor Ladrão de Sonhos, mas sei que espero por um mundo onde os fortes não esmaguem os fracos como insetos miseráveis, onde as criaturas mortais podem atingir a sua maior realização possível, onde todos são dignos e saudáveis, nunca vítimas de alguns mais fortes do que eles...
— Neste caso está servindo aos mestres errados no Caos, Príncipe. Pois a única justiça reconhecida pelos Duques do Inferno é a justiça de sua própria existência incontestada. Nesse aspecto, são como bebês recém-nascidos. Opõem-se a todos os seus ideais.
Elric ficou perturbado e falou baixo quando respondeu.
— Porém não se pode usar tais forças para derrotá-los... Ou pelo menos desafiar o seu poder e ajustar o equilíbrio?
— Somente o Equilíbrio lhe concederá o poder que deseja. E é um poder sutil, às vezes excepcionalmente delicado.
— Temo que não seja forte o suficiente no meu mundo.
— Forte o bastante quando houver um número suficiente daqueles que acreditam nele. Então será mais forte que o Caos e a Lei combinados.
— Bem, trabalharei pelo dia em que o poder do Equilíbrio domine, Mestre Alnac Kreb, contudo não tenho certeza se viverei para presenciá-lo.
— Se viver... — disse Alnac num tom calmo. — Suspeito que isso não acontecerá. No entanto muitos anos se passarão até que você seja chamado para tocar a trombeta de Roland.
— Uma trombeta? Que trombeta é essa? — entretanto a pergunta de Elric foi casual. Acreditava que o ladrão de sonhos estava fazendo outra alusão alegórica.
— Veja! — Alnac apontou para frente. — Ve ao longe? Há o primeiro sinal do Oásis da Flor Prateada.
À sua esquerda, o sol estava se pondo. Projetava sombras profundas sobre as dunas e as margens altas da Estrada Vermelha, enquanto o céu escurecia até adquirir um tom âmbar profundo no horizonte. No entanto, quase no limite da sua visão, Elric divisou outra forma, algo que não era nem uma sombra nem uma duna de areia, mas que poderia ter sido um grupo de rochas.
— O que é aquilo? O que reconhece?
— Os nômades chamam isso de kashbeh. Em nossa língua comum diríamos que era um castelo, talvez, ou uma vila fortificada. Não temos uma palavra exata para descrever algo assim, pois não a necessitamos. Aqui, no deserto, é uma necessidade. O Kashbeh Moulor Ka Riiz foi construído muito antes da extinção do Império Quarzhasaatiano e recebeu o nome de um rei sábio, fundador da dinastia Aloum’rit que ainda ocupa o lugar de comando dos clãs nômades e é respeitado por todos os povos do deserto. É um kashbeh que abriga qualquer pessoa necessitada. Qualquer um que seja fugitivo pode procurar abrigo lá e ter a certeza de um juízo justo.
— Então a justiça existe neste deserto, embora não exista em nenhum outro lugar?
— Esses lugares existem, como eu disse, em todos os âmbitos do Multiverso. Estes são mantidos por homens e mulheres que seguem os princípios mais puros e humanos...
— Então este kashbeh não é Tanelorn, cuja lenda me trouxe ao Deserto Sussurrante?
— Não é Tanelorn, pois Tanelorn é eterno. O Kashbeh Moulor Ka Riiz deve ser mantido por meio de vigilância constante. É a antítese de Quarzhasaat, e os senhores dessa cidade fizeram muitas tentativas para destruí-lo.
Elric sentiu as pontadas do desejo e resistiu a pegar um de seus frascos de prata.
— Isso também é chamado de Fortaleza da Pérola?
Com isso, Alnac Kreb riu de repente.
— Oh, meu bom príncipe, se faz nítido que tem apenas uma vaga noção do lugar e da coisa que procura. Deixe-me agora dizer que a Fortaleza da Pérola pode muito bem existir dentro daquele kashbeh e que o kashbeh também poderia ter uma existência dentro do Fortaleza. Porém eles não são de forma alguma iguais!
— Por favor, Mestre Alnac, rogo para que não me confunda ainda mais! Fingi saber algo sobre isso, primeiro porque desejava prolongar minha própria vida e depois porque precisava comprar a vida de outra pessoa. Ficaria grato por alguma iluminação. Afinal, Lorde Gho Fhaazi me tomou por um ladrão de sonhos, o que supõe que um ladrão de sonhos deveria saber da Lua de Sangue, da Tenda de Bronze e da localização do Lugar da Pérola.
— Sim, bem. Alguns ladrões de sonhos são mais bem informados do que outros. E se um ladrão de sonhos for necessário para esta tarefa, Príncipe, se, como me disse, os Aventureiros Feiticeiros de Quarzhasaat não conseguiram realizá-la, então suponho que a Fortaleza da Pérola é mais do que meras pedras e argamassa. Tem a ver com reinos familiares apenas a um ladrão de sonhos treinado, mas talvez muito mais sofisticado do que eu.
— Saiba, Mestre Alnac, que já viajei para reinos estranhos em busca de meus vários objetivos. Não sou completamente inexperiente em tais assuntos...
— Esses reinos são negados à maioria. — Alnac parecia relutante em dizer mais alguma coisa, mas Elric pressionou-o.
— Onde estão esses reinos? — seu olhar se voltou para frente, forçando os olhos para ver mais do Kashbeh Moulor Ka Riiz, porém não conseguiu, pois o sol estava agora quase abaixo do horizonte. — No Leste? Além de Elwher? Ou em outra parte do Multiverso?
Alnac Kreb estava arrependido.
— Juramos falar o mínimo que pudermos sobre nosso conhecimento, salvo nas circunstâncias mais cruciais e específicas. Contudo devo informar que esses reinos estão ao mesmo tempo mais próximos e mais distantes do que Elwher. Prometo que não irei mistificá-lo mais do que já o fiz. E se puder iluminá-lo e ajudá-lo em sua busca, isso também o farei. — ele começou a rir, para aliviar seu próprio humor. — Será melhor preparar-se para receber companhia, Príncipe. Teremos bastante companhia ao anoitecer, se não me engano.
A lua havia surgido antes que os últimos raios do sol tivessem desaparecido e sua prata exibia um brilho rosado, como o de uma pérola rara, quando chegaram a uma elevação na Estrada Vermelha e contemplaram agora mil fogueiras. Em silhueta contra elas havia muitas tendas altas, instaladas na areia de modo a parecerem insetos alados gigantescos, estendidas para receber o último calor vindo de cima. Dentro dessas tendas havia lâmpadas acesas enquanto homens, mulheres e crianças entravam e saíam. Um cheiro delicioso de ervas misturadas, temperos, vegetais e carnes vinha até eles e a fumaça suave das fogueiras subia e se curvava no céu acima das grandes rochas nas quais se erguia o Kashbeh Moulor Ka Riiz, uma torre enorme em torno da qual havia crescido um conjunto de edifícios, alguns de arquitetura maravilhosamente imaginativa, todos cercados por um muro com ameias de proporções irregulares, contudo tão monumentais quanto. Todos da mesma rocha vermelha, de modo que parecia crescer da própria terra e areia que o rodeava.
Em intervalos em torno dessas ameias, grandes tochas brilhavam, revelando homens que eram evidentemente guardas patrulhando as muralhas e os telhados, enquanto através de portões altos um fluxo constante de tráfego entrava e saía através de uma ponte escavada na rocha viva.
Tal como Alnac Kreb o avisara, este não era o simples local de descanso das caravanas primitivas que Elric esperava encontrar na Estrada Vermelha.
Não foram confrontados enquanto desciam em direção ao amplo lençol de água em torno do qual florescia uma rica variedade de palmeiras, ciprestes, choupos, figueiras e cactos, no entanto muitos olhavam para os dois com franca curiosidade. E nem todos os olhares curiosos eram amigáveis.
Seus cavalos eram de constituição semelhante aos de Elric, enquanto outros nômades montavam as criaturas bovinas preferidas por Alnac. Os sons de berros, grunhidos e cuspidas subiam de todos os lados e Elric pôde ver que além do campo de tendas havia currais onde estavam confinados animais de montaria, bem como ovelhas, cabras e outras criaturas.
Entretanto a visão que dominou esta cena extraordinária foi a de algumas centenas, ou mais, tochas ardendo num semicírculo à beira da água.
Cada tocha era segurada por uma figura encapuzada e cada uma queimava com uma chama branca e brilhante que lançava a mesma luz forte sobre um estrado de madeira esculpida bem no centro da reunião.
Elric e o seu companheiro puxaram as rédeas das montarias para observar, tão fascinados por esta visão como as dezenas de outros nômades que caminharam até à extremidade do semicírculo para testemunhar o que era claramente uma cerimônia de alguma importância. As testemunhas mantinham atitudes de respeito, suas diversas vestes e trajes identificavam seu clã. Os nômades eram de uma variedade de cores, alguns tão negros quanto Alnac Kreb, alguns de pele quase tão branca quanto Elric, com todos os tons intermediários, mas eram semelhantes em características, com rostos de ossos fortes e olhos profundos. Tanto os homens como as mulheres eram altos e comportavam-se com considerável graça. Elric nunca tinha visto tantas pessoas bonitas e ficou tão impressionado com a sua dignidade natural como ficou enojado com os extremos de arrogância e degradação que testemunhou em Quarzhasaat.
Agora uma procissão se aproximava colina abaixo e Elric viu que seis homens carregavam uma grande caixa abobadada sobre os ombros, avançando com grave lentidão até chegarem ao estrado.
A luz branca mostrou todos os detalhes da cena. Os homens pertenciam a clãs diferentes, embora todos tivessem a mesma altura e fossem de meia-idade. Um único tambor começou a soar, com uma batida nítida e clara no ar noturno. Depois outro se juntou a ele, depois outro, até que pelo menos vinte tambores ecoavam pelas águas do oásis e pelos telhados de Kashbeh Moulor Ka Riiz, suas vozes ao mesmo tempo lentas e obedecendo a padrões rítmicos complicados cuja sutileza não deixou de maravilhar Elric.
— É um funeral? — o albino perguntou ao seu novo amigo.
Alnac assentiu.
— Mas não sei a quem enterram. — sua mão apontou para uma série de túmulos simétricos ao longe, além das árvores. — Esses são os cemitérios nômades.
Agora, outro homem mais velho, com barba e sobrancelhas grisalhas sob o capuz, deu um passo à frente e começou a ler um pergaminho que tirou de sua manga, enquanto outros dois abriram a tampa do elaborado ataúde e, para espanto de Elric, cuspiram em seu interior.
O próprio Alnac engasgou. Ele ficou na ponta dos pés e espiou, pois a luz iluminava claramente o conteúdo do caixão. Então se virou, ainda mais perplexo, para Elric.
— Está vazio, Príncipe Elric. Ou então o cadáver é invisível.
O ritmo dos tambores aumentou em velocidade e complexidade. Vozes começaram a cantar, subindo e descendo como ondas no oceano. Elric nunca havia ouvido música igual. Percebeu que isso o estava levando a emoções obscuras. Sentiu raiva. Sentiu tristeza. Descobriu que estava perto de chorar. E, ainda assim, a música continuou, crescendo em intensidade. Ansiou por participar, porém não conseguia entender nada da linguagem que usavam. Parecia-lhe que as palavras eram muito mais antigas do que a linguagem de Melniboné, que era a mais antiga dos Reinos Jovens.
E então, de repente, a cantoria e os tambores cessaram.
Os seis homens pegaram o caixão do estrado e começaram a marchar, em direção aos túmulos, e os homens com as tochas o seguiram, a luz lançando sombras estranhas entre as árvores, iluminando manchas repentinas de uma brancura brilhante que Elric não conseguiu identificar.
Tão subitamente como tinha parado, os tambores e os cânticos recomeçaram, contudo desta vez com uma nota comemorativa e triunfante. Aos poucos, a multidão levantou a cabeça e de várias centenas de gargantas veio um uivo estridente, uma clara resposta tradicional.
Então os nômades começaram a voltar para suas tendas. Alnac parou uma, uma mulher trajando vestes verdes e douradas ricamente decoradas, e apontou para a procissão que desaparecia.
— O que é esse funeral, irmã? Não vi nenhum cadáver.
— O cadáver não está aqui. — disse a mulher, e sorria ante sua confusão. — É uma cerimônia de vingança, realizada por todos os nossos clãs por instigação de Raik Na Seem. O cadáver não está presente porque aquele a quem pertence não saberá que está morto, talvez por vários meses. Nós o enterramos agora porque não podemos alcançá-lo. Não é um de nós, não é do deserto. Está morto, mas apenas não tem consciência desse fato. Todavia não há qualquer equívoco.
— É um inimigo do seu povo, irmã?
— Sim, de fato. É um inimigo. Enviou homens para roubar nosso maior tesouro. Eles falharam, contudo nos causaram danos profundos em sua falha. Eu o conheço, não é? Você é quem Raik Na Seem esperava que retornasse. Ele mandou chamar um ladrão de sonhos. — e ela olhou de volta para o estrado, onde, sob a luz de uma única tocha, uma figura enorme estava de pé, curvada como se estivesse rezando. — Alnac Kreb é nosso amigo, que nos ajudou uma vez.
— Sim, tive o privilégio de prestar um serviço insignificante ao seu povo no passado. — Alnac Kreb admitiu o seu reconhecimento com a sua graça habitual.
— Raik Na Seem o aguarda. — disse a mulher. — Vá em paz e que a paz esteja com sua família e amigos.
Intrigado, Alnac Kreb se virou para Elric.
— Não sei por que Raik Na Seem me chama, no entanto me sinto obrigado a descobrir. Ficará por aqui ou me acompanhará, Príncipe Elric?
— Estou cada vez mais curioso sobre todo este assunto. — disse Elric. — E gostaria de saber mais, se for possível.
Os dois avançaram por entre as árvores até chegarem às margens do grande oásis, esperando respeitosamente enquanto o velho permanecia na posição que assumira desde que o caixão foi levado. Por fim, este se virou e ficou claro que estava chorando. Ao vê-los, endireitou-se e, ao reconhecer Alnac Kreb, sorriu, fazendo um gesto de boas-vindas.
— Meu caro amigo!
— Que a paz esteja com você, Raik Na Seem. — Alnac deu um passo à frente e abraçou o ancião, que era pelo menos uma cabeça e ombros mais alto que ele. — Trago comigo um amigo. Seu nome é Elric de Melniboné, daquele mesmo povo que foi o grande inimigo dos quarzhasaatianos.
— O nome tem substância em meu coração. — disse Raik Na Seem. — Que a paz esteja convosco, Elric de Melniboné. Seja bem-vindo aqui.
— Raik Na Seem é o Primeiro Ancião do Clã Bauradim. — disse Alnac. — E um pai para mim.
— Sou abençoado por ter um filho bom e corajoso. — Raik Na Seem gesticulou de volta para as tendas. — Venham. Tomemos um refresco em minha tenda.
— Com muito gosto. — disse Alnac. — Eu gostaria de saber por que está enterrando um caixão vazio e quem é seu inimigo para merecer uma cerimônia tão elaborada.
— Oh, é o pior dos vilões, não se engane.
Um suspiro profundo escapou do ancião enquanto os conduzia através da multidão de tendas até chegar a um enorme pavilhão para o qual os levou, com os pés pisando em tapetes ricamente estampados. O pavilhão era na verdade uma série de compartimentos, um levando ao outro, cada um ocupado por membros da família de Raik Na Seem, que parecia vasta o suficiente para ser quase uma tribo em si. O cheiro de comida deliciosa chegou até eles quando se sentaram em almofadas e lhes ofereceram tigelas de água perfumada para se lavarem.
Eventualmente, enquanto comiam, o velho contou sua história e, enquanto ela se desenrolava, Elric percebeu que o destino o trouxera ao Oásis da Flor Prateada em um momento auspicioso, pois aos poucos reconheceu o significado do que estava sendo dito. Segundo disse Raik Na Seem, na última Lua de Sangue, um grupo de homens veio ao Oásis da Flor Prateada perguntando sobre o caminho para o lugar da Pérola. Os Bauradim reconheceram o nome, pois estava em sua literatura, no entanto entenderam que as referências eram uma metáfora poética, algo para estudiosos e outros poetas discutirem e interpretarem. Eles contaram aos recém-chegados e esperavam que estes fossem embora, pois eram quarzhasaatianos, membros da Seita do Pardal de Aventureiros Feiticeiros e, como tal, notórios por sua magia obscura e crueldade. Os Bauradim, entretanto, não queriam causar briga com nenhum quarzhasaatiano, com quem negociavam. Os homens da Seita do Pardal, entretanto, não foram embora, mas continuaram a perguntar a todos que podiam sobre a Fortaleza da Pérola, e foi assim que souberam da filha de Raik Na Seem.
— Varadia? — perguntou Alnac Kreb alarmado. — Eles certamente não achavam que ela sabia alguma coisa sobre esta joia, certo?
— Eles ouviram que ela era nossa Jovem Santa, aquela que acreditamos que se tornará nossa líder espiritual e trará sabedoria e honra ao nosso clã. Porque dizemos que nossa Jovem Santa é o receptáculo de todo o nosso conhecimento, acreditaram que Varadia deveria saber onde esta pérola podia ser encontrada. E tentaram sequestrá-la.
Alnac Kreb rosnou com raiva repentina.
— O que fizeram, pai?
— Drogaram-na e depois a levaram. Soubemos do crime e os seguimos. Nós os alcançamos antes que completassem metade da extensão da Estrada Vermelha de volta a Quarzhasaat e, em seu terror, fomos ameaçados com o poder de seu mestre, o homem que os encarregou de procurar a Pérola e usar todos os meios para trazê-la de volta.
— O nome do homem era Lorde Gho Fhaazi? — perguntou Elric suavemente.
— Sim, Príncipe, era. — Raik Na Seem olhou para o albino com uma nova curiosidade. — Você o conhece?
— Eu o conheço. E conheço-o pelo que é. Esse é o homem que enterrou?
— Em efeito.
— Quando planeja matá-lo?
— Nós não planejamos nada. Foi-nos prometido isso. Os Aventureiros Feiticeiros tentaram usar suas artes contra nós, porém temos pessoas assim entre os nossos, e dessa forma foram facilmente combatidos. Não é algo que gostamos de usar, esse poder, contudo às vezes é necessário. Convocamos certa criatura do submundo. Ela devorou os homens da Seita do Pardal e antes de partir nos concedeu uma profecia de que seu mestre morreria dentro de um ano, antes que a próxima Lua de Sangue desaparecesse.
— Mas e Varadia? — perguntou Alnac Kreb com urgência. — O que aconteceu com sua filha, sua Jovem Santa?
— Ela foi drogada, como os contei, mas sobreviveu. Nós a trouxemos de volta.
— E se recuperou?
— Ela meio que acorda, talvez uma vez por mês. — respondeu Raik Na Seem, controlando sua tristeza. — Todavia o sono não a abandona. Pouco depois de encontrá-la, seus olhos se abriram e nos disse para levá-la para a Tenda de Bronze. Ali dorme, como dorme há quase um ano, e sabemos que apenas um ladrão de sonhos pode salvá-la. Foi por essa razão que enviei uma mensagem a todos os viajantes e caravanas que encontramos, pedindo por um ladrão de sonhos. Temos sorte, Alnac Kreb, por um bom amigo ter ouvido nossa oração.
O ladrão de sonhos balançou a bela cabeça.
— Não foi sua mensagem que me trouxe até aqui, Raik Na Seem.
— Ainda assim... — disse o ancião filosoficamente. — Você está aqui e pode nos ajudar.
Alnac Kreb parecia perturbado, contudo se apressou em disfarçar suas emoções.
— Farei o meu melhor, isso eu juro. Pela manhã visitaremos a Tenda de Bronze.
— Está bem protegida agora, pois mais quarzhasaatianos vieram desde aqueles primeiros malignos, e fomos forçados a defender nossa Jovem Santa contra eles. Essa foi uma questão bastante simples. No entanto, Príncipe Elric, você falou do inimigo que enterramos. O que sabe a seu respeito?
Elric pausou apenas alguns segundos antes de falar. Ele contou a Raik Na Seem tudo o que havia acontecido: como havia sido enganado por Lorde Gho, o que lhe disseram para encontrar, o domínio que Lorde Gho tinha sobre sua pessoa. O albino se recusou a mentir para o ancião, e o respeito que demonstrou a Raik Na Seem foi aparentemente retribuído, pois embora o rosto do Primeiro Ancião tenha escurecido de raiva com a história, estendeu a mão firme quando terminou e agarrou o braço de Elric com força, em um gesto de simpatia.
— A ironia, meu amigo, é que o Palácio da Pérola só existe na nossa poesia e nunca ouvimos falar da Fortaleza da Pérola.
— Saiba que eu jamais faria mal à sua Jovem Santa. — disse Elric. — E que se puder ajudá-lo e os seus de alguma forma, é o que farei. Minha busca terminou aqui e agora.
— Mas a poção de Lorde Gho irá matá-lo, a menos que encontre o antídoto. Então Lorde Gho matará seu amigo também. Não, não. Vamos olhar esses problemas de maneira mais positiva, Príncipe Elric. Nós temos problemas em comum, creio, pois somos todos vítimas daquele senhor que logo morrerá. Devemos pensar em como derrotar suas intrigas. É possível que minha filha realmente saiba alguma coisa sobre esta fabulosa Pérola, pois ela é o veículo de toda a nossa sabedoria e já aprendeu mais do que minha pobre cabeça poderia conter...
— Seu conhecimento e inteligência são tão impressionantes quanto sua beleza e amabilidade. — disse Alnac Kreb, ainda furioso com o que os quarzhasaatianos haviam feito a Varadia. — Se a conhecesse, Elric... — ele parou, com a voz trêmula.
— Penso que todos precisamos de descanso. — disse o Primeiro Ancião dos Bauradim. — Vocês serão nossos convidados e pela manhã os levarei à Tenda de Bronze, para lá contemplarem minha filha adormecida e esperarem, talvez com a soma de toda a nossa sabedoria, encontremos um meio de trazer sua mente desperta de volta a este reino.
Naquela noite, dormindo no luxo que só uma tenda de um nômade rico poderia proporcionar, Elric tornou a sonhar com Cymoril, presa em um sono de drogas por seu primo Yyrkoon, e parecia que ele dormia ao lado dela, que eles eram a mesma pessoa, como ele sempre sentirá quando estavam juntos. Porém agora viu a figura digna de Raik Na Seem de pé sobre ele e sabia que este era seu pai, não o tirano neurótico, a figura distante de sua infância, e entendeu por que estava obcecado com questões de moralidade e justiça, por foi esse Bauradim quem foi seu verdadeiro ancestral. Experimentou então uma espécie de paz, bem como algum tipo de emoção nova e perturbadora, e quando acordou pela manhã, reconciliou-se com o fato de que ansiava pelo elixir que ao mesmo tempo lhe trouxe vida e morte. Estendeu sua mão e alcançou o frasco, tomando um pequeno gole antes de se levantar, lavar-se e juntar-se a Alnac e Raik Na Seem na refeição matinal.
Feito isso, o ancião ordenou que fossem trazidas as montarias robustas pelas quais os Bauradim eram famosos, e os três partiram do Oásis da Flor Prateada, que fervilhava com todo tipo de atividade, onde comediantes, malabaristas e os encantadores de serpentes já estavam realizando suas proezas, e os contadores de histórias haviam reunido grupos de crianças cujos pais os haviam enviado para lá enquanto cuidavam de seus negócios. Os três cavalgaram em direção as Colunas Acidentadas, vistas vagamente no horizonte matinal. Essas montanhas foram erodidas pelos ventos do Deserto Sussurrante até se assemelharem, de fato, a enormes colunas de pedra vermelha irregular, como se devessem sustentar o próprio teto do céu. Ao princípio, Elric pensou que observava as ruínas de alguma cidade antiga, entretanto Alnac Kreb disse-lhe a verdade.
— Há, de fato, muitas ruínas por aqui. Fazendas, pequenas aldeias, cidades inteiras que o deserto às vezes revela, todas engolfadas pelas areias convocadas pelos tolos magos de Quarzhasaat. Muitas construídas aqui, mesmo depois da chegada das areias, na crença de que se dispersariam depois de um tempo. Temo que sonhos desamparados, como muitas das coisas construídas pelos homens.
Raik Na Seem continuou a liderá-los através do deserto, embora não usasse mapa ou bússola. Parecia conhecer o caminho apenas por hábito e instinto.
O grupo parou uma vez em um local onde um pequeno crescimento de cactos estava quase coberto pela areia e aqui Raik Na Seem pegou sua longa faca e cortou as plantas perto das raízes, descascando-as rapidamente e entregando as partes suculentas aos amigos.
— Houve uma vez um rio aqui. — falou. — E uma lembrança dele permanece, muito abaixo da superfície. Os cactos lembram.
O sol havia atingido o zênite. Elric começou a sentir o calor minando-o e foi forçado novamente a beber um pouco do elixir, apenas para acompanhar o ritmo dos outros dois. E foi só à noite, quando as Colunas Acidentadas estavam consideravelmente mais próximas, que Raik apontou para algo que brilhava sob os últimos raios do sol.
— Ali está a Tenda de Bronze, para onde vão os povos do deserto quando precisam meditar.
— É o seu templo? — perguntou Elric.
— É o que temos de mais próximo de um templo. E lá debatemos com o nosso eu interior. É também a coisa mais próxima que temos das religiões do Ocidente. E é lá que mantemos a nossa Jovem Santa, o símbolo de todos nossos ideais, o recipiente da sabedoria da nossa raça.
Alnac ficou surpreso.
— Você a mantém lá sempre?
Raik Na Seem balançou a cabeça, quase em regozijo.
— Só enquanto dorme neste sono anormal, meu amigo. Como sabe, antes disso ela era uma criança normal, uma alegria para todos que a conheceram. Talvez com a sua ajuda volte a ser aquela criança alegre.
A testa de Alnac nublou-se.
— Não espere muito de mim, Raik Na Seem. Sou, na melhor das hipóteses, um ladrão de sonhos inexperiente. Há aqueles com quem aprendi meu ofício que diriam isso a você.
— Mas você é nosso ladrão de sonhos. — Raik Na Seem sorriu tristemente e colocou a mão no ombro de Alnac Kreb. — E nosso bom amigo.
O sol já havia se posto quando se aproximaram da grande tenda que lembrava aquelas que Elric tinha visto no Oásis da Flor Prateada, porém era várias vezes maior, com paredes de bronze puro.
Agora a lua aparecia no céu logo acima deles. Parecia que os raios do sol a alcançavam mesmo quando começava a afundar-se no horizonte, tocando-a com a sua cor, pois brilhava com uma riqueza que Elric nunca tinha visto em Melniboné ou nas terras dos Reinos Jovens. Então engasgou de surpresa, percebendo a natureza específica da profecia.
Uma Lua de Sangue surgiu sobre a Tenda de Bronze. Aqui encontraria o caminho para a Fortaleza da Pérola.
Embora isso significasse que a sua própria vida poderia agora ser salva, o Príncipe de Melniboné descobriu que só ficou perturbado com esta revelação.
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