Tomo 03 — Capítulo 12: A Destruição na Fortaleza
Oone montou em seu cavalo prateado e ergueu sua espada, enquanto gritava.
— Elric, faça como eu! — e incitou o garanhão a galopar de modo que seus cascos chacoalharam como um trovão na câmara.
Preparado para morrer com coragem, mesmo no momento de aparente triunfo, Elric subiu na sela, pegou uma lança na mão que segurava as rédeas e com a espada já balançando atacou os invasores.
Somente quando se aglomeraram ao seu redor, machados, maças, lanças e espadas erguidas para atacar, é que Elric compreendeu que a ação de Oone não tinha sido ditada por mero desespero. Essas meias-sombras moviam-se devagar, seus olhos estavam embaçados, tropeçavam e seus golpes eram fracos.
A matança agora tornou-se repugnante. Seguindo o exemplo de Oone, cortou e esfaqueou de um lado para o outro, quase mecanicamente. Cabeças caíam dos corpos como frutas podres; membros eram cortados com a mesma facilidade que folhas de um graveto; torsos desabaram sob o golpe de uma lança ou espada. O sangue viscoso, já o sangue dos mortos, grudava em armas e armaduras e seus gritos de dor eram patéticos aos ouvidos de Elric. Se não tivesse jurado seguir Oone, teria voltado e deixado que ela continuasse sozinha o trabalho. Havia pouco perigo para eles enquanto os homens velados continuavam a atravessar as paredes e se deparavam com aço afiado e inteligência astuta.
De suas costas, em torno da coluna da Pérola, os cortesãos observavam. Era perceptível que estes não sabiam que ameaça medíocre os dois guerreiros com armaduras prateadas enfrentavam.
Por fim tudo terminou. Corpos decapitados e sem membros estavam empilhados por todo o salão. Elric e Oone saíram daquela matança e estavam sombrios, infelizes, nauseados pelas suas próprias ações.
— Está feito. — disse Oone. — Os Aventureiros Feiticeiros foram mortos.
— Vocês são verdadeiros heróis! — a Rainha Sough desceu os degraus em direção a eles, com os olhos brilhantes de admiração e os braços estendidos.
— Nós somos quem somos. — disse Oone. — Somos combatentes mortais e destruímos a ameaça à Fortaleza da Pérola.
Suas palavras assumiram um tom ritualístico e Elric, confiando nela, se contentou em ouvi-la.
— Vocês são filhos de Chamog Borm, irmão e irmã da Lua de Osso, Filhos da Água e da Brisa Fresca, Pais das Árvores...
O senescal deixou cair seus sacos de ouro e ficou abalado pelo choro. Ele chorou de alívio e de alegria e Elric viu o quanto o homem se parecia com Raik Na Seem.
Oone, descendo do cavalo, foi abraçada pela Rainha Sough. Por sua vez, um arrastar de pés e gargalhadas anunciaram a aproximação do Guerreiro da Pérola.
— Isso não é mais para mim. — disse. Os olhos mortos de Alnac não continham nada além de resignação. — Isto é para a dissolução...
E ele caiu de frente no chão de mármore, sua armadura toda quebrada, seus membros esparramados, e não havia mais carne em seu corpo, apenas ossos, de modo que o que restava do Guerreiro da Pérola parecia pouco mais do que restos não comestíveis de um caranguejo, o jantar de algum gigante marinho.
A Rainha Sough veio em direção a Elric, com os braços estendidos, e parecia muito menor do que quando a encontrou pela primeira vez. Sua cabeça mal lhe alcançava o queixo abaixado. O abraço era caloroso e sabia que ela também estava chorando. Então o véu caiu-lhe do rosto e Elric viu que ela tinha perdido anos, que era pouco mais que uma menina.
Atrás da Rainha Sough, senhora Oone sorria em sua direção enquanto uma compreensão atônita o enchia. Gentilmente sua mão tocou o rosto da garota, as conhecidas dobras de seu cabelo, e respirou fundo.
Era Varadia. Era a Jovem Santa dos Bauradim. A criança cujo espírito prometeram libertar. Oone juntou-se, colocando a mão protetora no ombro de Varadia.
— Agora sabe que somos verdadeiramente seus amigos.
Varadia assentiu, olhando para os cortesãos, que haviam assumido suas posturas congeladas anteriores.
— O Guerreiro da Pérola foi o melhor que existiu. — disse ela. — Eu não poderia invocar ninguém melhor. Chamog Borm falhou comigo. Os Aventureiros Feiticeiros eram fortes demais para ele. Agora posso libertá-lo de seu exílio.
— Combinamos a força dele com a nossa. — disse Oone. — Sua força e nossa força. Foi assim que conseguimos.
— Nós três não somos sombras. — disse Varadia, sorrindo, como se diante de uma revelação. — Foi assim que conseguimos.
Oone concordou com a cabeça.
— Foi assim que conseguimos, Jovem Santa. Agora devemos considerar como trazê-la de volta para a Tenda de Bronze, para o seu povo. Você carrega todo o orgulho e história deles.
— Estou ciente. Tinha que protegê-lo. Pensei que tinha falhado.
— Você não falhou. — disse Oone.
— Os Aventureiros Feiticeiros não tornarão a atacar?
— Nunca. — disse Oone. — Não aqui, nem em qualquer lugar. Elric e eu nos certificaremos disso.
E então Elric percebeu com admiração que tinha sido Oone, no final, quem convocou os Aventureiros Feiticeiros, convocou aquelas sombras pela última vez; convocou-os para que pudesse demonstrar sua derrota.
Oone o encarou e avisou com os olhos para não falar muito. No entanto agora percebera que tudo o que haviam enfrentado, exceto talvez um pouco do Guerreiro da Pérola e dos Aventureiros Feiticeiros, tinha sido um sonho de criança. O herói da lenda, Chamog Borm, não pôde salvá-la porque ela sabia que este não era real. Da mesma forma, o Guerreiro da Pérola, principalmente sua própria invenção, não poderia salvá-la. Todavia ele e Oone eram reais. Tão reais quanto à própria criança! Em seu sonho profundo, no qual se disfarçou de rainha, buscando o poder, mas não conseguindo encontrá-lo, exatamente como havia descrito, ela conheceu a verdade. Incapaz de escapar do sonho, ainda reconhecera a diferença entre a sua própria invenção e aquela que não inventara: ela mesma, Oone e Elric. Porém Oone teve que mostrar que poderia derrotar o que restava da ameaça original e, ao demonstrar a derrota, libertou a criança.
E ainda assim seguiam estando dentro do sonho, todos os três. A grande Pérola pulsava tão poderosamente como antes, a Fortaleza com todos os seus labirintos, passagens e câmaras entrelaçadas seguia sendo a sua prisão.
— Você entendeu. — disse Elric a Oone. — Sabia do que eles falavam. A linguagem era uma linguagem infantil, uma linguagem que buscava poder e falhava. A compreensão que uma criança tem do poder.
Contudo uma vez mais Oone, com um olhar, advertiu-o ao silêncio.
— Varadia sabe agora que o poder nunca é descoberto em retirada. Tudo o que se pode esperar fazer ao recuar é deixar um poder destruir outro ou esconder-se como alguém se esconde de uma tempestade que não pode controlar, até que a força passe. Não se pode ganhar nada, salvar a si mesmo. E, em última análise, é preciso sempre enfrentar o mal que nos destruiria.
Era quase como se a própria estivesse em transe e Elric imaginou que ela repetia as lições aprendidas na prossecução do seu ofício.
— Você não veio para roubar a Pérola, mas para me salvar de sua prisão. — disse Varadia enquanto Oone pegava suas mãos jovens e as segurava com força. — Meu pai os enviou para me ajudar?
— Ele pediu nossa ajuda e nós a oferecemos de boa vontade. — disse Elric, por fim embainhando a espada prateada. Sentiu-se um pouco tolo na armadura de um herói de conto de fadas.
Oone reconheceu seu desconforto.
— Devolveremos tudo a Chamog Borm, meu senhor. Ele tem permissão para retornar à Fortaleza, dama Varadia?
A criança sorriu.
— Claro!
Ela bateu palmas e pela porta do Pátio da Pérola, caminhando cheio de orgulho, ainda com as roupas de seu exílio, veio Chamog Borm, ajoelhando-se aos pés de sua senhora.
— Minha Rainha. — disse ele. Havia forte emoção em sua voz maravilhosa.
— Devolvo a você sua armadura e suas armas, seus cavalos gêmeos, Tadia e Taron, e toda a sua honra, Chamog Borm. — Varadia falou com caloroso orgulho.
Logo Elric e Oone retiraram a armadura e tornaram a vestir apenas suas roupas comuns. Chamog Borm estava com seu peitoral e grevas cravejados de prata e ouro, seu elmo de prata brilhante, suas espadas e lanças em suas bainhas no quadril e no cavalo. Sua outra armadura amarrou nas costas de Tadia. Finalmente estava pronto. Tornou a se ajoelhar diante de sua rainha.
— Minha senhora. Que tarefa gostaria que eu realizasse para você?
Varadia disse deliberadamente.
— Fique livre para viajar para onde quiser, grande Chamog Borm. Porém saiba apenas isto: deve continuar a lutar contra o mal onde quer que o encontre e nunca mais deve permitir que os Aventureiros Feiticeiros ataquem a Fortaleza da Pérola.
— Juro que assim o farei.
Com uma reverência a Oone e Elric, o herói lendário saiu lentamente da Corte, com a cabeça erguida de orgulho e propósito nobre.
Varadia estava contente.
— Eu o tornei outra vez o que era antes de chamá-lo. Agora sei que as lendas em si não têm poder. O poder vem dos usos que os vivos fazem da lenda. As lendas representam apenas um ideal.
— Você é uma criança sábia. — disse Oone com admiração.
— Não deveria, senhora? Sou a Jovem Santa dos Bauradim. — Varadia falou com considerável ironia e bom humor. — Não sou o Oráculo da Tenda de Bronze? — ela baixou os olhos, talvez com súbita melancolia. — Serei criança só por mais um pouco de tempo. Acho que sentirei falta do meu palácio e de todos os seus reinos...
— Algo sempre se perde aqui. — Oone colocou uma mão reconfortante no ombro da criança. — Contudo também se ganha muito.
Varadia olhou de novo para a Pérola. Seguindo seu olhar, Elric viu que toda a Corte havia desaparecido, assim como a multidão havia desaparecido na grande escadaria quando foram atacadas pelo Guerreiro da Pérola pouco antes de conhecerem a Rainha Sough. Agora percebia que, naquele disfarce, a própria os guiara em seu próprio resgate, da melhor maneira que pôde. Havia se aproximado deles, lhes mostrou a maneira pela qual poderiam, com sua inteligência e coragem, realizar sua salvação.
Varadia subia a escada com as mãos estendidas em direção à Pérola.
— Esta é a causa de todo o nosso infortúnio. — falou. — O que podemos fazer com isso?
— Destrui-la, talvez. — disse Elric.
No entanto Oone balançou a cabeça.
— Enquanto permanecer um tesouro oculto, os ladrões irão procurá-la sem parar. Esta é a causa da prisão de Varadia no Reino dos Sonhos. Foi isso que trouxe os Aventureiros Feiticeiros até ela. É por isso que a drogaram e tentaram sequestrá-la. Todo o mal vem não da Pérola em si, mas do que os homens maus fizeram dela.
— O que devemos fazer então? — perguntou Elric. — Negociar no Mercado dos Sonhos na próxima vez?
— Talvez seja o que eu deva fazer. Entretanto não seria o meio de garantir a segurança de Varadia no futuro. Compreende?
— Embora a Pérola seja uma lenda, sempre haverá aqueles que perseguirão a lenda?
— Exatamente, Príncipe Elric. Portanto, acredito que não devemos destruí-la. Aqui não.
Elric não se importou. Ele ficou tão absorto no sonho, na revelação dos níveis de realidade existentes no Reino dos Sonhos, que esqueceu sua busca original, a ameaça à sua vida e à de Anigh em Quarzhasaat.
Cabia a Oone lembrá-lo.
— Lembre-se, há aqueles em Quarzhasaat que não são apenas seus inimigos, Elric de Melniboné. São os inimigos desta garota. Os inimigos dos Bauradim. Você ainda tem mais uma tarefa a cumprir, mesmo quando retornarmos à Tenda de Bronze.
— Então você deve me aconselhar, senhora Oone. — disse Elric. — Pois sou um novato aqui.
— Não posso aconselhá-lo com muita clareza. — ela desviou os olhos dele, quase com modéstia, talvez com dor. — Mas posso tomar uma decisão aqui. Devemos reivindicar a Pérola.
— Tal e como entendo, a Pérola não existia antes dos senhores de Quarzhasaat a conceberem, antes de alguém descobrir a lenda, antes da chegada dos Aventureiros Feiticeiros.
— Porém existe agora. — disse Oone. — Dama Varadia, poderia me dar a Pérola?
— De boa vontade. — disse a Jovem Santa, e subiu correndo os degraus restantes, pegou o globo do pedestal e jogou-o no chão de modo que cacos de vidro leitoso se estilhaçaram por toda parte, misturando-se com os ossos e a armadura do Guerreiro da Pérola. Ela pegou a Pérola com uma das mãos, como uma criança comum agarraria uma bola perdida e jogou-a de palma em palma, deliciada, não temendo mais.
— É muito bonita. Não admira que a tenham procurado.
— Eles a fizeram, depois usaram para prendê-la. — Oone estendeu a mão e pegou-a enquanto Varadia a jogava em sua direção. — É uma pena que aqueles que puderam conceber tal beleza estavam dispostos a comentar tais atrocidades para possuí-la...
Varadia franziu a testa, olhando ao redor com súbita preocupação. A luz estava desaparecendo na Corte da Pérola.
De todos os lados veio um barulho terrível, um gemido angustiado; um grande rangido e lamento, um grito torturado, como se todas as almas atormentadas em todo o multiverso tivessem subitamente se posto a gritar.
O estrondo parecia perfurar seus cérebros. Os três taparam os ouvidos. Olhavam aterrorizados, observando enquanto o piso da Corte irrompia e ondulava, enquanto as paredes de marfim com todos os seus maravilhosos mosaicos e esculturas começavam a apodrecer diante de seus olhos, desmoronando e caindo, como o tecido de uma tumba exposta de repente à luz do dia.
E então, acima de todos os outros ruídos, ouviram as risadas.
Foi uma risada doce. Foi o riso não afetado de uma criança.
Foi o riso de um espírito liberto. Era de Varadia.
— Enfim está se dissolvendo. Está tudo se dissolvendo! Oh, meus amigos, não sou mais uma escrava!
Através de toda a sujeira que caía, através de toda a decadência e dissolução que desmoronava sobre eles, através da carcaça destruída da Fortaleza da Pérola, Oone veio em direção aos dois. Foi apressada, contudo cuidadosa. Ela segurou uma das mãos de Varadia.
— Ainda não! Muito em breve! Poderíamos todos nos dissolver nisso!
Ela fez Elric pegar a outra mão da criança e a conduziram através da escuridão estridente, para fora da câmara, pelos corredores oscilantes, passando pelos pátios onde as fontes agora jorravam detritos e onde as próprias paredes eram construídas de carne putrefata que começou a apodrecer até virar nada enquanto passavam. Então Oone os fez correr, até que o portão final estivesse a sua frente.
Chegaram à ponte e à estrada de mármore. Havia uma ponte à frente deles. Oone quase arrastou os outros dois em sua direção, correndo o mais rápido que podia, com a Fortaleza da Pérola caindo no nada, rugindo como uma fera moribunda ao fazê-lo.
A ponte parecia infinita. Elric não conseguia ver o outro lado. Todavia finalmente Oone parou de correr e permitiu que andassem, pois haviam chegado a um portão.
O portão foi esculpido em arenito vermelho. Foi decorado com azulejos geométricos e imagens de gazelas, leopardos e camelos selvagens. Tinha uma aparência quase prosaica depois de tantas portas monumentais, no entanto Elric sentiu alguma apreensão ao atravessá-lo.
— Estou com medo, Oone. — disse ele.
— Você teme a mortalidade. — ela continuou. — Você tem muita coragem, Príncipe Elric. Faça uso dela agora, eu imploro.
Ele reprimiu seus terrores. Seu aperto na mão da criança era firme e reconfortante.
— Vamos para casa, não vamos? — disse a Jovem Santa. — O que você não quer encontrar lá, Príncipe Elric?
Elric sorriu para a garota, grato por sua pergunta.
— Nada demais, dama Varadia. Talvez nada mais do que eu mesmo.
Eles cruzaram o portão juntos.
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