domingo, 18 de agosto de 2024

Elric de Melniboné: A Fortaleza da Pérola — Tomo 02— Capítulo 10

Tomo 02 — Capítulo 10: A Tristeza de uma Rainha que Não Pode Governar


A poderosa barreira de rocha obsidiana de repente começou a fluir. Uma massa verde vítrea inundou a água, que sibilou e começou a cheirar mal, e montanhas de vapor se ergueram à frente deles. À medida que o vapor se dissipou gradualmente, outro rio foi revelado. Este, fluindo através das paredes estreitas de um desfiladeiro profundo, parecia ter origem natural e Elric, com a mente agora inclinada a encontrar interpretações, perguntou-se se não seria o mesmo rio que tinham atravessado antes, quando lutou contra o Guerreiro da Pérola na ponte.

Então a barcaça, que parecia tão robusta, pareceu de repente frágil à medida que as águas a agitavam, rugindo incessante para baixo até Elric pensar que acabariam por chegar ao âmago do mundo.

De pé com senhora Sough na proa do barco, Oone e Elric ajudaram-na a usar o leme para manter um rumo quase constante. E então, à frente, o rio terminava sem aviso, o que os levou a tombarem em uma cachoeira e, antes que percebessem, o rio estava pousando pesadamente em águas mais calmas. A barcaça balançava como um pedaço de pão em um lago, e no alto puderam ver um céu como se estivesse doente, em que coisas escuras e coriáceas voavam e se comunicavam com gritos desolados acima de palmeiras, cujas folhas nada mais pareciam do que peles verdianas estendidas à espera de um sol que nunca nasce. Havia um cheiro rico e podre no local e o barulho constante e distante da água preenchia um silêncio quebrado apenas pelas criaturas voadoras acima das rochas e pela folhagem que as cercava.

Estava quente, todavia Elric estremeceu. Oone levantou a gola do gibão e até a senhora Sough apertou mais as vestes sobre si mesma.

— Você conhece esta terra, senhora Oone? — Elric perguntou. — Sei que já visitou este reino antes, mas parece tão surpresa quanto eu.

— Sempre há novos aspectos. É da natureza do reino. Talvez a senhora Sough possa nos contar mais. — e Oone se virou cortesmente para a navegadora.

Senhora Sough prendeu os véus com mais firmeza. Parecia infeliz por Elric ter visto seu rosto.

— Sou a Rainha desta terra. — respondeu, sem demonstrar orgulho ou qualquer outra emoção.

— Então tem servos que podem nos ajudar?

— É um reinado, entretanto não exerço poder sobre ele, apenas a proteção da terra. É aqui que vocês chamam Falador.

— E é um lugar de loucura?

— Tem muitas defesas.

— Eles mantêm afastado o que também pode querer sair. — disse Oone, quase para si mesma. — Tem medo daqueles que protegem Falador, senhora Sough?

— Eu sou a Rainha Sough agora. — ergueu o corpo com dignidade, porém Elric não sabia se era uma paródia ou se era sério. — Estou protegida, contudo vocês não estão. Mesmo eu não sou capaz de protegê-los aqui.

A barcaça continuou a flutuar devagar ao longo do curso de água. O lodo das rochas parecia mudar e mover-se como se estivesse vivo e havia formas na água que perturbavam Elric, que teria desembainhado a espada se não parecesse rude.

— O que devemos temer aqui? — perguntou à rainha.

Agora flutuavam abaixo de um grande esporão de rocha sobre o qual um cavaleiro se posicionara. Era o Guerreiro da Pérola, olhando para baixo com a mesma mistura de zombaria e insensatez. Ergueu um longo bastão ao qual havia amarrado o chifre afiado e retorcido de algum animal. A Rainha Sough o conteve com um gesto da mão.

— Guerreiro da Pérola não faça isso! O Guerreiro da Pérola não pode desafiar, mesmo aqui!

O guerreiro soltou sua risada horrível e afastou o cavalo da rocha. Então desapareceu.

— Vai nos atacar? — Oone perguntou à Rainha.

A Rainha Sough estava concentrada no leme, guiando o barco de forma sutil ao longo de um curso de água menor, longe do rio principal. Talvez já pretendesse evitar qualquer conflito.

— Não é permitido. — disse ela. — Ah!

A água tinha ficado vermelho-rubi e agora havia bancos de musgo marrom brilhante, subindo com suavidade em direção às paredes rochosas. Elric estava convencido de que via rostos antigos o encarando tanto das margens como dos penhascos, no entanto não se sentia ameaçado. O líquido vermelho parecia vinho e havia uma doçura inebriante aqui. A Rainha Sough conhecia todos os lugares secretos e tranquilos deste mundo e os estava guiando para evitar seus perigos?

— Aqui meu amigo Edif tem influência. — contou-os. — Ele é um governante cujo principal interesse é a poesia. Estará aqui agora? Não sei.

Eles rapidamente se acostumaram com suas estranhas formas de falar e estavam achando-a mais fácil de ser compreendida, embora não tivessem ideia de quem poderia ser Edif. Cruzaram por suas terras até um lugar onde o deserto apareceu de repente em ambos os lados, além das palmeiras, como se avançassem em direção a um oásis. Todavia, nenhum oásis se materializou.

Logo o céu estava de novo com a cor do fígado estragado e as paredes rochosas haviam se erguido ao seu redor. Então surgiu um odor pegajoso e nauseabundo que lembrou a Elric as antecâmaras de alguma corte decadente. Como um perfume outrora doce, mas agora envelhecido; comida que antes dava água na boca, porém que agora estava velha demais; flores que já não realçavam, mas lembravam apenas a morte.

As paredes de ambos os lados agora tinham grandes cavernas irregulares onde a água ecoava e batia. A Rainha Sough parecia nervosa ao vê-las e manteve a barcaça cuidadosamente no centro do rio. Elric viu sombras movendo-se dentro das cavernas, tanto acima como abaixo da água. Viu bocas vermelhas abrindo e fechando, e olhos pálidos que encaravam fixos, sem piscar. Seus aspectos eram das criaturas nascidas do Caos e desejou de todo coração por sua espada rúnica, por seu patrono, o Duque do Inferno, por seu repertório de feitiços e encantamentos.

O albino não ficou nada surpreso quando por fim uma voz vazou de uma das cavernas.

— Eu sou Balis Jamon, Senhor do Sangue, e desejo ter alguns rins.

— Nós navegamos! — gritou a Rainha Sough em resposta. — Não sou sua comida e nunca serei.

— Os rins deles! Os rins deles! — a voz exigiu, implacável. — Faz muito tempo que não me alimento de comida verdadeira. Alguns rins! Alguns rins!

Elric desembainhou a espada e a adaga. Oone fez o mesmo.

— Você não vai querer o meu, senhor. — disse o albino.

— Nem o meu. — disse Oone, procurando a origem da voz. Não estavam certos de qual das muitas cavernas abrigava o orador.

— Sou Balis Jamon, Senhor do Sangue. Vocês pagarão um pedágio aqui em minha terra. Dois rins para mim!

— Em vez disso, ficarei com o seu, senhor, se quiser! — disse Elric com voz desafiadora.

— Você vai, agora?

Houve um grande movimento vindo da caverna mais distante e a água espumava para dentro e para fora. Então alguma coisa se abaixou e entrou no meio do rio, seu corpo carnudo enfeitado com plantas quase decompostas e flores arruinadas, seu focinho com chifres erguido para que pudesse olhá-los através de dois minúsculos olhos negros. As presas no focinho estavam quebradas, amarelas e pretas, e uma língua vermelha as lambeu, jogando pequenos pedaços de carne podre na água. Ele segurou uma grande pata sobre o peito e quando a pata foi abaixada revelou um buraco escuro e aberto onde deveria estar o coração.

— Sou Balis Jamon, Senhor do Sangue. Vejam o que devo preencher para viver! Tenham piedade, criaturinhas. Um ou dois rins e os deixo passarem. Não tenho nada aqui, enquanto vocês estão completos. Precisam fazer justiça e compartilhar comigo.

— Esta é a minha única justiça para você, Lorde Balis. — disse Elric, gesticulando com uma espada, que parecia uma coisa fraca até para o próprio Elric.

— Você nunca estará completo, Balis Jamon! — gritou a Rainha Sough. — Não até que saiba mais sobre misericórdia!

— Eu sou justo! Um rim basta!

A pata começou a se estender na direção de Elric, que cortou, mas errou, depois cortou outra vez e sentiu a espada atingir a pele da criatura, que mal mostrava qualquer marca. A pata agarrou a espada. Elric retirou-a. Balis Jamon rosnou com uma mistura de frustração e auto piedade e estendeu as duas patas na direção do albino.

— Pare! Aqui está o seu rim! — Oone ergueu algo que pingava. — Aqui está, Balis Jamon. Agora nos deixe passar. Estamos de acordo.

— Acordado. — a criatura se virou, evidentemente apaziguado, pegou com delicadeza o que ela lhe entregou e enfiou no buraco em seu peito. — Bom. Vão!

E ele avançou passivamente de volta para sua caverna, com sua honra e fome satisfeitas.

Elric ficou perplexo, embora grato por Oone ter salvado sua vida.

— O que você fez, senhora Oone?

Um sorriso surgiu em seus lábios.

— Um grande feijão. Algumas das provisões que ainda carregava na bolsa. Parecia um rim, ainda mais quando mergulhado em água. E duvido que vá perceber a diferença. Parecia uma criatura simples.

Os olhos da Rainha Sough ergueram-se para cima enquanto conduzia a barcaça passando pelas cavernas e entrando numa extensão de água mais ampla onde os búfalos erguiam a cabeça de onde bebiam e olhavam-nos com uma curiosidade cautelosa.

Elric seguiu o olhar da navegadora, porém viu apenas o mesmo céu cor de chumbo. Ele embainhou sua espada.

— Essas criaturas do Caos parecem bastante simples. Menos inteligente em alguns aspectos das outras que encontrei.

— Sim. — Oone disse, sem ficar surpresa. — Creio que é provável. Ela estaria...

O barco foi levantado de repente e por um segundo Elric pensou que Lorde Balis tinha regressado para se vingar por o terem enganado. Contudo pareciam estar na crista de uma onda enorme. O nível da água subiu em pouco tempo entre as paredes viscosas e agora, nas bordas das falésias, surgiam figuras. Tinham todos os tipos de formas distorcidas e tamanhos improváveis ​​e Elric lembrou-se um pouco da população mendiga de Nadsokor, pois estes também estavam vestidos com trapos e traziam evidências de automutilação, bem como de doenças, ferimentos e descuido negligente. Estavam imundos. Gemeram. Olharam avidamente para o barco e lamberam os lábios.

Agora, mais do que nunca, Elric desejava ter Stormbringer consigo. A espada rúnica e um pouco de ajuda elemental teriam afastado essa turba aterrorizada. Todavia tinha apenas as lâminas capturadas dos Aventureiros Feiticeiros. Teria de confiar nelas, em sua aliança com Oone e em suas habilidades de luta naturalmente complementares. Ouviu-se um tremor vindo do fundo da barcaça e a onda recuou tão de repente quanto havia subido, mas agora estavam encalhados no topo do penhasco, com a horda disforme ao seu redor, ofegando, grunhindo e farejando sua presa.

Elric não perdeu tempo em negociar, saltou em seguida da proa do barco e atacou os dois primeiros que tentaram o agarrar. A lâmina, ainda afiada o suficiente, cortou suas cabeças e ele ficou sobre seus corpos sorrindo como o lobo que às vezes era chamado.

— Eu quero todos vocês. — disse, usando a bravata de batalha que aprendeu com os piratas do Estreito de Vilmirian. Tornou a avançar e investiu, acertando outra criatura do Caos no peito. — Devo matar cada um de vocês antes de ficar satisfeito!

Aqueles seres não esperavam isso. Acabaram se agitando. Entreolharam-se. Viraram as armas nas mãos, ajustaram os trapos e puxaram os membros.

Agora Oone estava ao lado de Elric.

— Quero minha parte justa disso. — ela gritou. — Deixe alguns para mim, Elric.

Então ela também avançou e cortou uma coisa com cara de macaco que carregava um machado coberto de joias e de belo acabamento, claramente roubado de uma vítima anterior.

A Rainha Sough gritou de trás.

— Eles não atacaram vocês. Apenas ameaçam. É esta a coisa verdadeira que devem fazer?

— É nossa única escolha, Rainha Sough! — gritou Elric por cima do ombro e fintou mais duas coisas meio-humanas.

— Não! Não! Não é heroico. O que pode fazer o guardião, que não é mais um herói?

Mesmo Oone não conseguiu compreender o sentido daquelas palavras e quando Elric olhou, a encarou nos olhos com expressão interrogativa, ela balançou a cabeça.

A turba agora ganhava alguma confiança, se aproximando. Focinhos farejavam-nos. Línguas lamberam a saliva dos lábios frouxos. Olhos ardentes e sujos, injetados de sangue e pus, semicerraram seu ódio.

Depois começaram a se aproximar e Elric sentiu a sua lâmina encontrar resistência, pois já a tinha embotado nas duas primeiras criaturas. Mesmo assim, partiu o pescoço de um dos seres e a cabeça caiu para o lado, olhando fixamente, com as mãos agarradas. Oone estava de costas para Elric e juntos se moveram de modo que ficaram protegidos de um lado pelo barco, que a turba parecia não querer tocar. A Rainha Sough, em clara angustia, chorou enquanto observava, porém sem poder exercer autoridade sobre as criaturas do Caos.

— Não! Não! Isso não a ajuda a dormir! Não! Não! Ela está precisando deles, eu sei!

Foi nesse momento que Elric ouviu o som de cascos e viu, por cima das cabeças da multidão que os cercava, a armadura branca do Guerreiro da Pérola.

— São suas criaturas! — exclamou com compreensão repentina. — Este é o seu próprio exército e agora quer se vingar de nós!

— Não! — a voz da Rainha Sough estava agora distante, como se estivesse muito distante. — Isso não pode ser útil! É o seu exército. Eles serão leais. Sim.

Ao ouvi-la, Elric conheceu uma clareza inesperada. Será que ela não era de fato humana? Todas essas criaturas eram apenas algum tipo de metamorfose, disfarçando-se de humanos? Isso explicaria sua estranha mentalidade, a lógica peculiar, as frases estranhas.

Contudo não havia tempo para especulações, pois agora as criaturas se lançavam em sua direção e de Oone, de modo que dificilmente seria possível brandir as lâminas para mantê-los afastados. O sangue fluiu, pegajoso e fétido, espirrando nas lâminas e nos braços e os fazendo engasgar. Elric sentiu que poderia ser dominado pelo fedor antes de ser derrotado pelas armas.

Estava claro que não conseguiriam resistir à turba e Elric estava amargurado, sentindo que haviam chegado muito perto do objeto de sua busca apenas para serem detidos pelo mais miserável dos habitantes do Caos.

Então mais corpos caíram a seus pés e percebeu que não os havia matado. Oone também ficou surpresa com essa reviravolta.

Os dois olharam para cima. Não conseguiam entender o que estava acontecendo.

O Guerreiro da Pérola cavalgava entre as fileiras da turba, cortando de um lado para o outro, golpeando com sua lança improvisada, cortando com sua espada, gargalhando e gritando a cada nova vida que tirava. Seus olhos horríveis reluziam com algum tipo de diversão e até seu cavalo atacava a multidão com os cascos, mordiscando-os com os dentes.

— Esta é a coisa certa! — a Rainha Sough bateu palmas. — Isso é o certo. Assim assegurará honra para você!

Gradualmente rechaçados pelo Guerreiro da Pérola, por Elric e Oone à medida que retomavam o ataque, a turba começou a se dispersar.

Logo toda a terrível multidão estava correndo para a beira do penhasco, saltando no abismo em vez de morrer pela lança de osso do Guerreiro da Pérola e sua espada de prata.

Sua risada continuou enquanto conduzia o restante para sua destruição. Ele gritou sua zombaria para eles. Considerou-os covardes e tolos.

— Coisas feias. Feias! Feias! Vão! Pereçam! Vão! Vão! Vão! Banidos agora. Banidos para isso! Sim!

Elric e Oone se encostaram à barcaça tentando recuperar o fôlego.

— Estou grato a você, Guerreiro da Pérola. — disse o albino enquanto o cavaleiro blindado se aproximava. — Salvou nossas vidas.

— Sim. — o Guerreiro da Pérola fez um aceno forte, com os olhos extraordinariamente pensativos. — É verdade. Agora seremos iguais. Então saberemos a verdade. Não sou livre, como você. Acredita nisso? — sua última pergunta foi dirigida a Oone.

Ela assentiu.

— Acredito, Guerreiro da Pérola. Eu também estou feliz que tenha nos ajudado.

— Sou eu quem protege. Isso deve ser feito. Você prosseguirá? Eu era seu amigo.

Oone olhou para onde a Rainha Sough estava balançando a cabeça, os braços estendidos em algum tipo de oferenda.

— Aqui não sou seu inimigo. — disse o Guerreiro da Pérola, como se estivesse instruindo os simplórios. — Se estivesse completo, nós três seríamos uma trindade de grandeza! Sim! Você sabe! Não tenho o pessoal. Estas palavras são dela. Assim acredito.

E com esse pronunciamento particularmente misterioso ele virou o cavalo e partiu.

— Defensores demais, talvez protetores insuficientes. — Oone parecia tão estranha quanto os outros. Antes que Elric pudesse interrogá-la a respeito, ela voltou sua atenção para a Rainha Sough. — Minha senhora? Convocou o Guerreiro da Pérola para nos ajudar?

— Creio que foi ela quem o convocou.

A Rainha Sough parecia quase em transe. Foi estranho ouvi-la falando de si mesma na terceira pessoa. Elric perguntou-se se este era o modo normal aqui e novamente lhe ocorreu que todas as pessoas deste reino não eram humanas, mas tinham assumido a forma humana.

Eles agora estavam encalhados bem acima do rio. Indo para a beira do abismo, Elric olhou para baixo. Apenas viu alguns corpos que haviam ficado presos nas rochas, outros flutuando rio abaixo. Ficou feliz por seu barco não ter de navegar em águas entupidas com tantos cadáveres.

— Como podemos continuar? — perguntou a Oone.

Então teve uma visão sua e dela na Tenda de Bronze, da criança entre os dois. Todos estavam morrendo. Sentiu uma pontada de necessidade, como se a droga o estivesse chamando, lembrando-o de seu vício. Lembrou-se de Anigh em Quarzhasaat e de Cymoril, sua noiva, esperando em Imrryr. Estava certo ao deixar Yyrkoon governar em seu lugar? Cada uma de suas decisões parecia tola agora. Sua autoestima, nunca elevada, estava mais baixa do que conseguia se lembrar. Sua falta de premeditação, seus fracassos, suas loucuras, tudo o lembrava de que não só era fisicamente deficiente, como também lhe faltava o bom senso comum.

— É da natureza do herói. — disse a Rainha Sough em relação a nada. Então olhou para eles e seus olhos eram maternais, gentis. — Vocês estão seguros!

— Acho que há alguma urgência. — disse Oone. — Eu sinto isso. E você?

— Sim. Existe perigo no reino que deixamos?

— Talvez. Rainha Sough, estamos longe do Portão Sem Nome? Como podemos continuar?

— Por meio das mariposas noturnas. — respondeu ela. — As águas sempre sobem aqui e tenho minhas mariposas noturnas. Só temos que esperá-las. Estão a caminho. — seu tom era prático. — Era aquela turba que poderia ter sido sua. Não mais. Contudo não posso antecipar nada. Cada nova armadilha é tão misteriosa para mim quanto é para você. Posso navegar, como você navega. Isso é junto, sabia?

Contra o horizonte havia luzes de arco-íris piscando e brilhando, como uma aurora. A Rainha Sough suspirou ao vê-las. Estava contente.

— Bom. Bom. Não é tarde! Só o outro.

As cores enchiam o céu agora. À medida que se aproximavam, Elric percebeu que pertenciam a asas enormes e transparentes que sustentavam corpos esbeltos, mais borboletas do que mariposas, de tamanho enorme. Sem hesitação, as feras começaram a descer até que os três e a barcaça foram engolfados por asas macias.

— Para o barco! — gritou a Rainha Sough. — Rápido. Nós vamos voar.

Eles se apressaram em obedecê-la e a barcaça se ergueu no ar em seguida, aparentemente carregada nas costas das grandes mariposas que voaram ao lado do desfiladeiro por um tempo antes de mergulhar no abismo.

— Observei, mas não havia nada. — disse a Rainha Sough como explicação para Elric e Oone. — Agora vamos retomar.

Com surpreendente gentileza, as criaturas depositaram a barcaça no rio e voaram por entre as paredes do desfiladeiro, enchendo todo o lugar sombrio com uma luz brilhante e multicolorida antes de desaparecerem. Elric esfregou a testa.

— Esta é verdadeiramente a Terra da Loucura. — falou. — E acredito que sou eu quem está louco, senhora Oone.

— Está perdendo a confiança em si mesmo, Príncipe Elric. — Oone replicou com firmeza. — Essa é a armadilha específica desta terra. Passa a acreditar que é você, e não o que o rodeia, que tem pouca lógica. Já impusemos nossa sanidade a Falador. Não se desespere. Não pode demorar muito até chegarmos ao portão final.

— E o que há ali? — Elric foi sarcástico. — Razão sublime?

Ele sentiu a mesma estranha sensação de exaustão. Seu corpo ainda era capaz de continuar, porém sua mente e seu espírito estavam esgotados.

— Não consigo antecipar o que encontraremos na Terra Sem Nome. — disse ela. — Os ladrões de sonhos têm pouco poder sobre o que ocorre além do sétimo portão.

— Percebi sua considerável influência aqui! — respondeu sorrido, embora não queria ofendê-la.

À frente ouvia-se um uivo tão doloroso que até a Rainha Sough cobriu os ouvidos. Era como o latido de algum cão monstruoso, ecoando para cima e para baixo no abismo e ameaçando sacudir as próprias rochas das paredes. Quando o rio os levou até a curva, viram a fera parada ali, uma besta grande e peluda, parecida com um lobo, com a cabeça erguida enquanto uivava de novo. A água corria em torno de suas enormes pernas, espumando contra seu corpo. Ao voltar seu olhar para eles, a fera desapareceu por completo. Agora ouviam apenas o eco do seu uivo. A velocidade da água aumentou. A Rainha Sough tirou as mãos do leme para tapar os ouvidos. O barco oscilou na água e quicou ao bater em uma pedra. Ela não fez nenhuma tentativa de dirigi-lo. Elric agarrou o leme, no entanto não conseguiu fazer nada com o barco apesar de usar toda a sua força. Após algum tempo também desistiu.

O rio corria cada vez mais para baixo. Descendo para um desfiladeiro tão profundo que logo quase não havia luz alguma. Então viram rostos sorrindo para eles. Sentiram mãos estendidas para tocá-los. Elric se convenceu de que todas as criaturas mortais que já morreram vieram aqui para assombrá-lo. Na rocha escura viu seu próprio rosto muitas vezes, e o de Cymoril e Yyrkoon. Velhas batalhas foram travadas enquanto observava. E emoções antigas e agonizantes voltaram para assombrá-lo. Sentiu a perda de tudo o que sempre amou, o desespero da morte e da deserção, e logo sua própria voz se juntou ao balbucio geral e uivou tão alto quanto o cão uivara, até que Oone o sacudiu e gritou com ele e o trouxe de volta da loucura que ameaçava engoli-lo.

— Elric! O último portão! Estamos quase lá! Resista, Príncipe de Melniboné. Você tem sido corajoso e engenhoso até agora. Isso o exigirá ainda mais, e deve estar preparado!

Elric começou a rir. Riu do seu próprio destino, do destino da Jovem Santa, do destino de Anigh e do de Oone. Riu ao pensar em Cymoril esperando-o na Ilha do Dragão, sem saber até agora se ele viveria ou morreria, se era livre ou escravo.

Quando Oone gritou novamente, ele riu dela.

— Elric! Você trai todos nós!

Sua risada parou por tempo suficiente para dizer baixinho, quase em triunfo.

— Sim, senhora, é assim mesmo. Eu traio todos vocês. Vocês não ouviram? É meu destino trair!

— Pois a mim não irá trair, senhor! — ela deu um tapa em seu rosto, em seguida deu um soco. Chutou as pernas. — Você não deve me trair e não deve trair a Jovem Santa!

Elric experimentou a dor intensa, não dos golpes, mas de sua própria mente. Gritou e então começou a soluçar.

— Oh, Oone. O que está acontecendo comigo?

— É Falador. —limitou-se a dizer. — Está recuperado, Príncipe Elric?

Os rostos ainda falavam com ele da rocha. O ar ainda estava vivo com tudo o que temia, tudo o que mais detestava em si mesmo.

Seu corpo tremia. Não conseguia encarar Oone nos olhos, e percebeu que estava chorando.

— Eu sou Elric, o último da linhagem real de Melniboné. — disse. — Contemplei o horror e cortejei os Duques do Inferno. Por que devo ter medo agora?

Oone não respondeu e Elric tão pouco esperava resposta.

O barco subiu, tornou a balançar, subiu e mergulhou.

De repente, se sentiu calmo. Tomou a mão de Oone num gesto de simples afeto.

— Creio que já me recobrei. — disse.

— Ali está o portão. — disse a Rainha Sough de trás dos dois. Apontou com a mão para frente enquanto retomava o leme.

— Ali está a terra que vocês chamam de Terra Sem Nome. — disse ela. Sua fala era clara agora, diferente da forma enigmática que usara desde que a conheceram. — Lá encontrará a Fortaleza da Pérola. Ela não pode dá-los as boas vindas.

— Quem? — perguntou Elric. As águas estavam calmas novamente, deslizando em direção a um grande arco de alabastro, cujas bordas eram enfeitadas por folhas macias e arbustos. — A Jovem Santa?

— Ela pode ser salva. — disse a Rainha Sough. — Só por vocês dois, eu acho. Eu a ajudei a permanecer aqui, aguardando resgate. Porém é tudo que posso fazer. Estou com medo.

— Nós nos ocuparemos da tarefa. — disse Elric emocionado.

O barco foi apanhado por novas correntes e viajou ainda mais devagar, como se relutasse em entrar no último portão do Reino dos Sonhos.

— Já não posso ajudá-los... — disse a Rainha Sough. — Poderia até ter conspirado. Foram aqueles homens. Eles vieram. Depois vieram mais. Só houve retirada depois disso. Gostaria de poder conhecer essas palavras. Você as entenderia se eu as tivesse. Ah, é difícil aqui!

Elric, olhando em seus olhos agonizantes, percebeu que ela provavelmente era mais prisioneira neste mundo do que ele e Oone. Parecia-lhe que desejava escapar e só era mantida ali por seu amor pela Jovem Santa, por suas emoções protetoras. Contudo, certamente já estava aqui muito antes de Varadia chegar.

O barco começara a passar sob o arco de alabastro. Havia um sabor salgado e agradável no ar, como se estivessem se aproximando do oceano.

Elric decidiu que deveria fazer a pergunta que estava em sua mente.

— Rainha Sough... — começou. — Você é a mãe de Varadia?

A dor nos olhos ficou ainda mais intensa quando a mulher velada se afastou. Sua voz era um soluço de angústia e ele ficou chocado com isso.

— Oh, quem sabe? — soluçou. — Quem sabe?

***

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