Capítulo 01
Tsuneo Asai estava em uma viagem de negócios para a região de Kansai quando ouviu a notícia.
Eram por volta das 20h30, ele estava jantando e bebendo no salão de banquetes de um restaurante de alta classe com empresários da indústria de processamento de alimentos. Asai era chefe de seção no Departamento de Alimentos Básicos do Ministério da Agricultura e Florestas. Havia chegado a Kobe no dia anterior, acompanhando o novo diretor-geral do ministério em uma excursão de inspeção. Fazia apenas um mês que o diretor-geral Shiraishi havia sido promovido de um departamento diferente, e ainda não estava muito familiarizado com os aspectos práticos do trabalho. Nos últimos dias, ambos estavam visitando instalações de enlatamento e plantas de processamento de presunto na área de Osaka-Kobe, e partiriam para Hiroshima no dia seguinte. Esta noite, estavam aproveitando a hospitalidade de alguns dos empresários locais.
O ambiente estava começando a decair. Shiraishi, que era três anos mais velho que Asai, estava sentado em frente ao presidente da Associação de Fabricantes de Alimentos. Os dois homens estavam discutindo golfe. O diretor-geral era conhecido por seu baixo handicap¹. Além disso, era um especialista em Go e shogi, e uma lenda dentro do ministério por suas habilidades em mahjong. Asai estava ao seu lado, bebendo saquê, fingindo estar absorto na história de seu chefe. Acreditava que ouvir fielmente a conversa fiada do gerente era um sinal de respeito. A voz de Shiraishi estava ficando mais alta, lubrificada pelo uísque que estava bebendo. Ele se tornou diretor-geral aos quarenta e cinco anos, uma rápida ascensão na hierarquia. Ao contrário de Asai, Shiraishi se formou no departamento de direito da elite da Universidade de Tóquio e era o favorito do vice-ministro, líder de uma das principais facções políticas do ministério.
Antes da mudança de pessoal, Asai havia abordado os fabricantes para avisá-los de que o novo diretor-geral estava planejando apenas uma parada temporária de dois anos... Bem, talvez um ano e meio, no cargo antes de ser transferido de volta para um dos principais departamentos do ministério, e não se esforçaria muito no trabalho.
— Ele não estará familiarizado com o lado comercial das coisas. — explicou Asai. — Mas não se preocupem; ele vai depender de mim para tudo. Podem deixá-lo comigo. Agora, é possível que tente fazer algum tipo de façanha impressionante para chamar mais atenção para si mesmo, porém estarei lá como um guia. Serei capaz de controlá-lo, não se preocupem.
Os fabricantes, ansiosos para obter sua certificação governamental, estavam muito felizes em confiar na experiência veterana de Asai. Asai havia desenvolvido um relacionamento de perfeito entendimento com eles, contudo frente ao Diretor-Geral Shiraishi se esforçava em dissimulá-lo. Shiraishi passou seu tempo livre na Universidade de Tóquio aprimorando seu Go, shogi, mahjong e golfe; Asai, o garoto de uma família pobre que lutou para se formar em uma pequena universidade particular e subir na hierarquia do serviço público, era uma espécie totalmente diferente.
Também havia cerca de vinte gueixas² presentes; estando a mais destacada destas em uma almofada em frente ao diretor-geral. Acontece que ela também era uma jogadora de golfe e se juntou à conversa. A festa estava começando a acabar, e sua presença em frente à Shiraishi parecia uma manobra do vice-presidente da Associação local de Fabricantes de Alimentos, o Sr. Yagishita. Pelo menos era o que Asai suspeitava. Yagishita era um grande nome no negócio de fabricação de presunto e salsicha. Um pouco antes, Asai o viu observando a reação do diretor-geral à gueixa. De repente, alguém sussurrou algo no ouvido de Asai, e este pensou que se tratava de Yagishita, que havia se levantado de seu lugar ao lado do presidente. No entanto não era Yagishita que estava sussurrando em seu ouvido, era uma das camareiras.
— Há um telefonema para o senhor de Tóquio.
Asai não se levantou em seguida. Seria desrespeitoso com o diretor-geral se saísse correndo. Ele pegou seu copo de saquê da mesa e tomou um gole. Ainda fingindo interesse na história de golfe de seu chefe, se perguntou o que poderia ser tão importante para alguém chamá-lo tão tarde. Tinha feito todos os tipos de viagens de negócios, mas sua esposa, Eiko, quase nunca ligava para ele. E ela era seu único membro da família. Sempre que Asai fazia uma longa viagem, sua esposa convidava sua irmã mais nova para ficar e lhe fazer companhia. Esta era uma viagem de cinco dias, então a cunhada de Asai deveria estar lá. Dessa forma, não conseguia pensar em nenhuma razão para Eiko precisar entrar em contato. Tinha saído durante o dia, é claro, entretanto o que poderia ser tão urgente para que ligasse para o restaurante?
Depois de cerca de um minuto, Asai levantou-se devagar de sua almofada no chão. Seu chefe estava de costas, conversando com o presidente. A gueixa dirigiu-lhe um olhar, mas em seguida voltou sua atenção para o diretor geral. Saltava a sua vista que aquela jovem por volta dos vinte e sete ou vinte e oito anos, com bochechas redondas, era o tipo de Shiraishi.
Fora do salão de banquetes, Asai seguiu a camareira pelo corredor, virando duas esquinas até uma cabine telefônica com porta de vidro. O telefone estava fora do gancho.
— Olá, sou eu... — começou, porém não havia ninguém do outro lado da linha. Seu coração começou a bater mais forte. Podia ouvir outras vozes ao fundo, fracas demais para entender as palavras, contudo tinha certeza de que havia algum tipo de comoção. Perto, pensou ter ouvido uma mulher soluçando. Reconheceu como a voz de sua cunhada, Miyako. Foi por isso que não houve resposta... Miyako estava em lágrimas.
— Miyako! O que foi? — havia um leve tremor em sua voz. Percebeu que algo devia ter acontecido com Eiko para não ter ido chamá-lo em pessoa.
— Eiko...
Asai não conseguiu acompanhar o resto. Miyako estava tão emocionada que era difícil dizer se estava rindo ou chorando.
Então pensou ter entendido a palavra ‘morta’.
— O quê? — perguntou. — O que você disse?
— Eiko está morta.
— Morta? Tem certeza?
Uma camareira passou pelo corredor do lado de fora da cabine de vidro. A porta estava bem fechada, e ela sequer reparou nele.
— Quando?
A fala de Miyako foi distorcida por uma enorme onda de soluços.
— Faz quatro horas.
Sua mulher estava morta há mais de quatro horas, e só agora estava ouvindo sobre isso? Quando saiu para sua viagem, fez questão de anotar sua agenda e os números de telefone dos hotéis em que ficaria hospedado. Miyako teria ligado para o hotel e recebido o número do restaurante. Deveria ter ligado para ele aqui imediatamente. Deve ter havido um acidente, isso teria causado um atraso. E não poderia ter acontecido em casa, sua esposa deve ter morrido em outro lugar, caso contrário Miyako teria ligado procurando-o pouco depois. Ainda se a tivessem levado para o hospital, com certeza alguém teria ligado para avisá-lo.
— Foi um acidente de trânsito? — ele perguntou.
— Sou eu. — o pai de Eiko estava na linha. — Não, não foi um acidente de trânsito.
Então seu sogro já havia chegado do subúrbio.
— Eiko teve um ataque cardíaco. Foi muito repentino.
O sogro de Asai, de setenta anos, parecia abalado. Ele não conseguia parar de tossir.
— Ela estava andando na rua, de repente foi tomada pela dor e desmaiou em uma loja próxima. A dona ligou para Miyako e ela pegou um táxi direto para lá, mas já era tarde demais.
— A lojista chamou uma ambulância?
Asai estava lutando para manter suas emoções sob controle.
— Não, não chamou. Havia uma clínica particular a cerca de duzentos metros de distância, então chamou o médico para vir imediatamente, porém o coração de Eiko já tinha parado de bater.
Eiko tinha um coração fraco. Ela já havia sofrido um leve ataque cardíaco dois anos atrás.
— Onde Eiko está agora?
— Eles a trouxeram de volta para casa há cerca de uma hora. Miyako ligou para o seu hotel para descobrir onde você estava.
Asai ainda podia ouvir Miyako chorando, e o que parecia ser seu cunhado ao fundo também.
— Então, em que trem pretende voltar? — perguntou o pai de Eiko.
— Não haverá mais trens-bala esta noite. Voarei de volta se conseguir chegar ao aeroporto a tempo. Caso contrário, será o trem noturno que chega a Tóquio pela manhã.
— Estaremos todos esperando. Eu simplesmente não consigo acreditar. É um choque. Você deveria... — seu sogro ia dizer para tentar manter a calma e voltar para casa, contudo sua voz sumiu. Era quase como se a dor de causar problemas para seu genro fosse mais difícil de lidar do que a morte de sua filha.
Asai saiu da cabine telefônica e chamou uma das camareiras.
— Posso ir ao aeroporto para pegar um voo para Tóquio hoje à noite?
A camareira dobrou a manga violeta de seu quimono e olhou para seu relógio de pulso.
— São quase nove e dez agora. O último voo é às nove e meia, então duvido que consiga.
O restaurante estava acostumado a receber clientes da capital, então o pessoal conhecia de memória os horários dos voos.
— Você precisa voltar imediatamente?
— Sim. Que tal um trem expresso?
— Há um saindo de Sannomiya às dez e quinze e chega a Tóquio por volta das 9h30 da manhã.
— Vou pegar esse. Pode me chamar um táxi?
— Para uma pessoa?
— Sim, só eu. É uma emergência.
Enquanto voltava para o salão, decidiu que pediria ao vice-presidente Yagishita da Associação dos Fabricantes de Alimentos para cuidar de Shiraishi. Não havia como pedir ao ministério para enviar um substituto. Seu chefe teria que completar os últimos dois dias da excursão de inspeção sozinho. Para um homem que gostava de parecer grandioso e digno, seria insuportável não ter um assistente em um trabalho como esse. Talvez devesse pedir alguém da filial de Hiroshima... Todavia se não fosse alguém da sede, bem, não seria respeitoso nem com o diretor geral nem com os empresários...
Nem mesmo o choque de perder sua esposa poderia distrair Asai completamente dos assuntos de trabalho.
Quando retornou ao salão de banquetes, eles chegaram ao último prato, arroz. Seu gerente estava ocupado comendo uma tigela de arroz ochazuke com besugo e chá verde. A gueixa de bochechas redondas ainda estava o acompanhando. Ela observou Asai se curvar para Shiraishi e se sentar de novo antes de lhe oferecer a escolha de ochazuke ou arroz cozido no vapor.
Asai já estava fora há muito tempo e, ao olhar para o perfil de seu chefe, detectou um olhar de desagrado. Ele se sentou e brincou com sua tigela de arroz quente, pensando na melhor forma de abordar o assunto. De fato não tinha tempo a perder; o choro de Miyako ainda ecoava em seus ouvidos.
Pousou com cuidado a tigela de ochazuke intocado na mesa, se ajoelhou e se arrastou um pouco mais para perto do diretor geral.
— Sr. Shiraishi, senhor. — disse Asai em voz baixa. — Sinto muito ter que lhe dizer...
Seu chefe se inclinou em sua direção, franzindo a testa para indicar que o ouvia.
— Espero manter isso em segredo do resto dos convidados...
As coisas não estavam tão animadas quanto quando o álcool foi servido antes, entretanto a festa seguia a todo vapor.
— De qualquer forma, acabei de receber um telefonema da minha casa em Tóquio. Parece que minha esposa faleceu inesperadamente.
Shiraishi não pareceu ter ouvido direito e se inclinou um pouco mais perto, com uma expressão confusa no rosto.
— Um ataque cardíaco. Algumas horas atrás.
Dessa vez, o diretor geral entendeu. Seus olhos se arregalaram e se apressou em colocar sua tigela de arroz na mesa. Seu olhar correu por um instante pela sala antes de se fixar no rosto de Asai.
— Tem certeza? — sua voz assumiu um tom grave e sombrio que a situação requeria.
— Temo que sim. — Asai acrescentou, em pouco mais que um murmúrio. — Acabei de ouvir do meu sogro e da minha cunhada.
— Sua esposa estava com problemas de saúde? — perguntou seu chefe, ajustando sua própria voz ao nível de Asai.
— Não, senhor, estava bem de saúde. Foi um ataque cardíaco repentino enquanto caminhava e desmaiou em uma loja próxima. Parece que, ela morreu no local.
— Santo céu...
Como Asai havia pedido para esconder a notícia do resto do grupo, Shiraishi abaixou um pouco a cabeça. Seu olhar anterior de irritação logo se transformou em uma mistura de simpatia e desconforto.
— Bem, é melhor você voltar para Tóquio agora mesmo. — ele deu a ordem em voz baixa.
— Oh, obrigado, senhor. Lamento muito não poder mais atendê-lo nesta viagem.
— Oh, por favor. Não se preocupe com isso. Bem... — Shiraishi olhou para o relógio. — Não haverá mais voos esta noite.
— Certo.
— Há algum trem?
— Ouvi de uma das camareiras do restaurante que haverá um trem noturno às dez e pouco.
— Isso não lhe dá muito tempo. Eu vou ficar bem. É melhor ir embora.
— Muito obrigado. Sinto muito por todo o inconveniente que estou lhe causando.
— Não, não sinta. Não se preocupe comigo.
Os representantes da indústria de processamento de alimentos estavam comendo e bebendo alheios a conversa, mas lançavam olhares ocasionais na direção dos dois homens falando em sussurros. A gueixa tinha aproveitado a deixa para sair e estava conversando calmamente com uma de suas companheiras.
— Sinto muito por isso.
— Eu irei prestar meus respeitos à sua família quando voltar para Tóquio.
— Oh, não, senhor, não é necessário... Bem, eu agradeço. Sei o quão ocupado você está.
— De qualquer forma, é melhor ir. Depois que for embora, encontrarei o momento certo para explicar a todos.
— Oh, não, senhor. Por favor, não se incomode. Vou chamar o vice-presidente Yagishita para o corredor e explicá-lo a situação. Vou pedir para que informe aos outros.
— Ah, tudo bem então.
O diretor geral aceitou sem hesitar. Parecia decididamente aliviado por não ter que executar uma tarefa tão desagradável sozinho.
— Sobre o resto do passeio, senhor. Para as inspeções de Hiroshima, devo pedir ao diretor da divisão de Assuntos Gerais do escritório local para acompanhá-lo? Se for aceitável para você, posso pedir a Yagishita para providenciá-lo.
— Por favor, não se preocupe com tudo. Vou me virar muito bem.
— Contudo se não resolvermos agora...
— Não se preocupe. Apenas siga seu caminho. Você ainda tem que ir buscar suas coisas no hotel, não é?
— Ah, sim... Bom, acho que é melhor eu ir embora.
Agora todos tinham notado que algo estava acontecendo. Trinta pares de olhos seguiram Asai enquanto se levantava. Este lançou um olhar para Yagishita e correu para o corredor. Yagishita seguiu logo atrás.
O vice-presidente ficou surpreso ao ouvir a história de Asai. Para economizar tempo, os dois conversaram no caminho para a saída.
— Achei um pouco estranho, todo aquele sussurro entre você e o diretor geral, mas nunca imaginei que pudesse ser algo tão horrível. Não sei o que dizer.
Yagishita abaixou sua cabeça calva e curvou-se profundamente para Asai.
— Obrigado. Foi um choque completo.
— Deve ter sido. Como um pesadelo, suponho. Quando eu contar a todos, acho que ficarão bem chocados também.
— Não achei apropriado anunciar durante o jantar, contudo poderia encontrar o momento certo e deixar todos saberem?
— Claro que sim, não se preocupe. No entanto, Sr. Asai, não havia necessidade de se conter. Nós todos o conhecemos há anos, está entre amigos aqui! Deveria se sentir em casa aqui.
— Sinto muito... Tenho mais um pedido. Depois que eu for embora, o diretor geral viajará sozinho. Não haveria alguém que pudesse cuidar dele? É tarde demais para chamar alguém do ministério, entretanto amanhã de manhã poderia ligar para o escritório de Hiroshima e pedir para o diretor de Assuntos Gerais encontrá-lo na estação e acompanhá-lo pelo resto da viagem?
— É claro, não será nenhum problema. Porém você realmente não deveria se preocupar com trabalho em um momento como este.
Havia pena na voz de Yagishita.
— Não, não. Está tudo bem. Afinal, é meu trabalho. Tenho que entregar as rédeas de forma responsável. Não posso ser visto distraído por questões pessoais.
— Mas sua esposa faleceu. Este não é um assunto pessoal qualquer, é diferente.
— Acho que sim. Entretanto sigo tendo que fazer uma distinção entre questões pessoais e profissionais. Depois que for embora, o diretor geral vai ficar sozinho, e isso não vai fazer com que ele pareça nada bem.
— É, bem, acho que tem razão, no entanto...
— Enfim, poderia fazer isso por mim?
— Claro. Sem problemas. Espero que tenha uma viagem segura para casa!
Asai parou de andar por um momento e se inclinou para sussurrar no ouvido de Yagishita.
— O que acha da garota sentada em frente ao Sr. Shiraishi? Acha que alguma coisa vai sair disso?
Yagishita parecia atordoado. Aparentemente, quando se tratava de seus chefes, nada escapava da atenção de Asai.
— Sr. Asai. Não está se preocupando com esse tipo de coisa em um momento como esse, está?
Só muito mais tarde Asai finalmente começou a se recuperar do choque. Abalado pelo movimento do trem noturno, ficou acordado e começou a pensar. Onde Eiko estava quando teve o ataque cardíaco? Ele tinha se esquecido de perguntar.
Notas:
1. Handicap é a avaliação do nível de um jogador (mais propriamente da sua potencialidade em determinado momento) e que permitirá a esse jogador um número de pancadas suplementar para atingir o Par de um campo. À medida que o nível de jogo melhora o handicap, naturalmente, baixa.
2. Uma gueixa é uma artista tradicional japonesa cujas funções consistem em entreter em festas, reuniões ou banquetes, sejam exclusivamente femininos ou masculinos, ou mistos. Seu aprendizado geralmente começa na idade de quinze anos, ou às vezes em idades mais tenras.
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