quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Slayers — Volume 03 — Capítulo 12

Capítulo 12: Ataque à vista!
















A luz do sol da tarde brilhava nas lâminas nuas e no tilintar da armadura prateada. Meu companheiro Gourry e eu demos um profundo suspiro ao ver pouco menos de uma dúzia de guerreiros totalmente armados bloqueando o caminho à nossa frente.

“Enfim localizamos vocês, malfeitores!” seu líder proclamou, apontando para nós.

Haah, que saco... Este é o quinto grupo de aspirantes a heróis que veio para nos ‘vencer’ hoje.

“Atenção, criminosos abomináveis ​​Lina Inverse e Gourry Gabriev! Seus legados hediondos chegam ao fim agora!”

Tá, tá. Tanto faz, cara... Com minha capa balançando ao vento, deixei as palavras do aspirante a herói entrarem por um ouvido e saírem pelo outro. Esses caras já nos consideravam os piores vilões da história ou algo do tipo, então sabia que não fazia sentido tentar argumentar.

Caso você esteja se perguntando, toda essa bagunça começou há alguns dias.

———

Acordei e me vi capturada. ‘Sim, quase o seu típico cenário de abdução’, foi o primeiro pensamento que minha cabeça confusa conseguiu organizar. Minhas mãos e pernas estavam amarradas, e meus captores fizeram questão de me amordaçar também. A sensação do chão frio contra minha bochecha era agradável, mas o cheiro de mofo me enojava bem mais.

Eu parecia estar em algum tipo de armazém. Olhei em direção à porta e vi dois homens na frente dela, provavelmente guardas. Eles estavam de pé, eretos, porém segurando algum tipo de arma de concussão... Uma aparência bem abobalhada, se me perguntar.

“Está acordada, Lina?”

Quando ouvi meu nome, olhei em volta outra vez e encontrei outro homem deitado por perto. Como eu, estava bem amarrado e sua espada foi despojada. A única diferença parecia ser que ele não estava amordaçado.

Leitor, conheça Gourry: loiro, bonito, despretensioso. É também um mestre espadachim, contudo talvez tenha menos atividade cerebral do que um zumbi comum. Hah, que boa, Lina! (Ok, talvez isso fosse um pouco demais...) De qualquer forma, parecia que Gourry também havia sido capturado e...

Espere, capturado?

Guh! Estúpida Lina! Não é hora para uma tranquila montagem de cenário!

“Mmmrmph! Hmmrgh!”

Lutei em pânico, no entanto eles me amarraram bem. O melhor que consegui foi me debater e me contorcer como uma enérgica lagarta.

“Ah, parece que a garota também está acordada.” disse o Guarda A.

“S-Sim.” respondeu o Guarda B, com um leve tremor em sua voz. Ele lançou um olhar nervoso em minha direção. “Mas... Ela não parece muito perigosa para mim.”

“Isso é o que a torna tão assustadora. Parece toda inocente, então você baixa a guarda e... Sabe o que quero dizer?” o Guarda A disse com conhecimento de causa, embora fosse um absurdo.

O Guarda B fez um aceno taciturno.

“Ei, pessoal...” uma voz interrompeu, provocando um choque cômico nos guardas. Seus olhares se voltaram para a fonte da voz, Gourry, em pânico. “Se importariam de nos contar o que está acontecendo aqui?”

Sua pergunta foi tão casual que fica difícil dizer se de fato entendia a gravidade da situação. Os guardas apenas o encararam, com os olhos cheios de apreensão. Por fim, o Guarda A rompeu o silêncio.

“E-Ei! Não se faça de idiota, senão... Já sabe, né?”

Mais bobagem...

“Vamos, n-não perca seu tempo com uma escória como essa.” repreendeu o Guarda B.

“Sim, tem razão...”

Com isso, o Guarda A ficou quieto de novo. Se eu mesma pudesse ter falado, poderia ter conseguido arrancar algumas informações boas, porém...

“Agora...” o Guarda A disse, seus olhos caindo sobre mim.

E-Espere um instante! Não me olhe como um pervertido! É realmente assim que tem que ser?

“Quanto à garota, seria um desperdício só entregá-la às autoridades, não seria?”

Sim, lá vamos nós de novo! Sei que sou tão adorável quanto o dia é longo e tudo mais, então posso entender que desperto certos impulsos na maioria dos homens. Contudo já está ficando repetitivo...

E espere! As autoridades? Espera aí! Sei que fui chamada de Assassina de Bandidos e Rainha dos Mortos, contudo apenas pelos vilões que merecem minha ira! O que as autoridades poderiam querer comigo?

Espere um minuto. Poderia ser... Gourry?

Será que o Sr. Despretensioso aqui recebeu uma recompensa por ele em algum momento? Pensando bem, estávamos viajando juntos há apenas alguns meses. Era bastante raro Gourry falar sobre si mesmo, então não fazia ideia de que tipo de vida o homem levava antes de nos conhecermos.

Sério, não seria tão surpreendente se ele tivesse algum tipo de passado. Sim, com certeza é tudo culpa do Gourry! Sim, sim... Tem que ser. Faz todo o sentido para mim!

Eu intencionalmente olhei para Gourry... Apenas para encontrá-lo me olhando! ‘O que você fez desta vez?’ seu olhar parecia dizer.

Grr... Não me olhe desse jeito!

Infelizmente, minha mordaça me impediu de lhe dizer o que penso. No entanto, uma coisa que esta pequena farsa deixou claro foi que Gourry era tão ignorante quanto eu sobre a nossa situação atual.

“U-Um desperdício? Quer dizer...” o Guarda B respirou, olhando para meia distância enquanto tentava entender o que o Guarda A queria dizer.

“Eles vão enforcá-la ou algo do tipo no momento em que a entregarmos. Quem vai reclamar se eu me divertir um pouco com ela primeiro?”

Geez, não sei, amigo! Talvez eu?

É óbvio que esses imbecis nos confundiram com criminosos perigosos, e não vou aceitar um mísero ‘Oh, desculpe por todas as apalpadas!’ assim que o mal-entendido vier à tona.

“Ta-Talvez você não devesse.” o Guarda B se preocupou.

Era bastante óbvio que estava preocupado, mais por medo do que pela bondade de seu coração, mas se conseguisse fazer com que seu amigo desistisse, então eu não iria usar isso contra ele. Vai, vai, B! Continue assim, B! Diga umas boas para aquele velho e desagradável Guarda A!

“Não seja um covarde. Apenas saia e vigie. Se alguma coisa acontecer comigo, você vem e bate na maldita cabeça dela.”

“O... Ok...”

Agh! Não, não desista! Defenda-se, homem! Seja firme!

“De qualquer forma, não é como se fosse desamarrá-la ou tirar a mordaça. Só vou despojá-la um pouco. Não é grande coisa, certo?”

“A-Acho que não. Nesse caso... Talvez me junte também...”

Whoa, esperem aí, pessoal! Vocês dois não venham com esses sorrisos lascivos! Ei! Fique longe, maldição!

Segurando-me com facilidade enquanto me contorcia, o Guarda A segurou meu queixo com a mão. Posso ter velocidade e habilidade ao meu lado, porém tendo a perder em termos de força física. Claro que, como uma brilhante espadachim-feiticeira, posso cuidar disso com um pouco de magia... Exceto que a mordaça em minha boca tornava-o impossível.

“Sem ressentimentos, ok? Aposto que você já fez muito pior...”

Não! Não fiz!

“Agora... Vamos começar?”

O homem estendeu a mão lentamente e então...

“Pare.”

Oh, doce salvação! Essa foi a voz de Gourry! Os dois guardas, intimidados pela aura que ele agora projetava, recuaram por instinto.

“Não toque nela. Se você fizer isso...” ele disse, olhando para os dois guardas com uma violência nos olhos que faria um ogro fugir.

Se... Se Gourry conseguisse intimidar esses caras para que recuassem, eu estaria salva. Contudo se não... Bem, digamos apenas que não tenho muita fé na possibilidade de que Gourry pudesse acalmá-los.

Um silêncio tenso pairou no ar por um tempo.

“Hah!” o Guarda A zombou, frustrando minhas últimas esperanças.

Que infelicidade, pobre Lina Inverse! Depois de tudo estaria sujeita aos abusos dos homens? Er, não era hora de se deixar levar por essas narrativas clichês! Esta é uma notícia seriamente ruim!

“Você não me a-assusta!” o Guarda A declarou.

Sua voz está tremendo, idiota!

“Estando todo amarrado aí, não vai conseguir nem se agachar. No entanto vou te dar uma chance, então vá em frente... O que vai acontecer se colocar minhas mãos nela, hein?”

“Vou dizer de novo: Não. Toque. Nela. Se o fizer...”

“Se o fizer?”

Gourry respondeu com voz baixa e clara.

“Vai ser contagiado.”

Chk!

Eu podia ouvir o ar na sala ficar abaixo de zero. Depois de uma longa pausa, os dois homens, paralisados ​​no lugar, voltaram os olhos para mim...

Shuffle, shuffle, shuffle!

Se eu não tivesse sido amordaçada, meu queixo teria caído no chão.

“Pensando bem...” um sorriso tenso apareceu no rosto do Guarda A quando se virou para o Guarda B. “V-Você pode estar certo. Não é legal tocar nas pessoas sem a permissão delas.”

“Sim... Todo mundo sabe disso.”

Eles compartilharam uma risada rouca e depois se encararam por algum tempo antes de soltarem um grande suspiro.

“Diga, por que não ficamos de guarda lá fora?”

“S-Sim... Ela pode ser contagiosa mesmo daqui.”

Ei!

Com isso, os dois guardas saíram pela porta, lançando olhares de soslaio para mim enquanto saíam.


“Whew. Parece que eles se foram agora, Lina.” disse Gourry.

Shing! Virei um olhar mortal em sua direção, então silenciosamente comecei a me contorcer em direção a ele. Seus lábios se curvaram em um sorriso estranho.

“O-Olha, foi a melhor coisa que consegui pensar...”

Mexendo... Mexendo...

“O que importa é que você está segura e... Ei, espere! Lina!”

Wham!

Plantei um chute duplo no rosto de Gourry.

———

“Então, o que exatamente fiz para merecer ser chutado daquele jeito?” Gourry reclamou enquanto puxava minha mordaça com os dentes.

“Blugh! Sério? Não poderia ter inventado uma desculpa melhor? Fez parecer que estou... Resmunga, resmunga.”

“O que mais deveria fazer? Apenas me sentar e deixar te agarrarem?”

“Erk... Bem...” hesitei, incapaz de encontrar uma resposta.

“Viu?”

“Certo, tudo bem! Você tem um ponto! Mas... Hmph! Vou aceitar que estava errada só desta vez!” concedi um pedido de desculpas honesto, uma raridade para mim.

“Nossa, quem te criou para ser assim?”

“Cala a boca! Agora... Precisamos descobrir uma maneira de sair desse problema. É verdade que deve ser bastante fácil com a opção da magia de volta à mesa.”

E então comecei a entoar um feitiço. Obviamente não queria que os guardas do lado de fora ouvissem, então mantive minha voz no mesmo sussurro abafado que usava para falar com Gourry.

“Bram Fang!”

Este era um feitiço que disparava uma flecha cortante de vento, porém não era muito poderoso. Tudo que faria é produzir um leve arranhão, e nem isso se o seu oponente estivesse usando uma armadura de couro. Aprendi esse feitiço com uma senhora feiticeira que conheci em uma cidade uma vez, como uma forma de afastar os apalpadores, entretanto era tudo pra que servia... Embora também pudesse concentrar vários deles em um só lugar para cortar através da corda.

No instante em que Gourry ficou livre, fiz com que me desamarrasse também.

“Acho que é melhor encontrarmos nossas espadas agora, hein?” ele perguntou enquanto exercitava seu ombro rígido.

“Sim.” respondi, sacudindo minha capa enquanto me levantava. “E uma explicação, já que estamos nessa situação.”

———

O sol já havia mergulhado abaixo das montanhas quando chegamos à cidade. Os habitantes locais nos olhavam com desconfiança, mas não lhes demos muita atenção. A rota que estávamos tomando, a Estrada do Falcão, só havia sido estendida pela área há cerca de cinco anos, e uma vila pequena e isolada não deixaria de considerar todos os forasteiros como ladrões para recebê-los assim. Imaginando que ficaríamos bem desde que estivéssemos fora da cidade ao amanhecer, consegui quartos para Gourry e para mim na pousada, porém...

Depois de algumas mordidas no jantar, fui atingida por uma onda de sonolência. E a próxima coisa que percebi foi que estávamos amarrados em um armazém.

“Agora, por que não nos conta exatamente o que está acontecendo aqui? Oh, e nada de gritar, ok? Um pio seu e juro...” ameacei, olhando direto nos olhos do homem que Gourry havia imobilizado.

“Eeeek! P-Por favor, me poupe! Não me mate! Estou te implorando!” lamentou o Guarda A como um bebê.

O guarda B já estava caído na porta. Bastou Gourry dar uma cutucada na nuca para deixar o cara inconsciente assim que saímos.

“Ei, não precisa ter medo.” disse Gourry no tom de um pai tranquilizador enquanto segurava o Guarda A rapidamente por trás. “Seu amigo não está morto nem nada. Está apenas dormindo.”

Já era meio da noite, então nossa única luz vinha das estrelas e da lua fina acima. Como imaginei, estávamos sendo mantidos em um antigo armazém nos arredores da cidade. É provável que a vila estivesse dormindo agora, já que não havia uma única luz acesa à distância. Tudo o que pude ver foram as silhuetas tênues dos telhados no escuro. Sem surpresa, não havia sinal de mais ninguém por perto.

“Então fale logo. Por que nos capturaram?”

“P-Por causa da recompensa por suas cabeças, é claro!”

“O quê?”

Gourry e eu nos entreolhamos.

“Tenho certeza de que este é apenas um caso de identidade trocada. Eu sou Lina Inverse e ele é...”

“G-Gourry Gabriev, certo?”

Gourry e eu trocamos outro olhar. Ou havia alguns malfeitores astutos por aí que roubaram nossas identidades, ou alguém colocou uma recompensa por nossas cabeças de má fé... De qualquer forma, teríamos que fazer algo a respeito.

“Quem colocou a recompensa em nós?”

“N-Não sei... Há cartazes de procurados por aí prometendo um bom dinheiro por trazê-los vivos...”

Vivos, hein? Isso torna as coisas ainda mais estranhas. Quem poderia querer capturar a mim e a Gourry vivos? Achei que o Guarda A não saberia nada sobre isso, então decidi me concentrar em assuntos mais urgentes.

“Agora, onde colocou nossas espadas?”

“Elas estão... Na casa do prefeito...” ele disse hesitante.

Supus que estava dizendo a verdade, seu semblante parecia de alguém bastante assustado para fazer o contrário.

“E onde fica a casa do prefeito?” perguntei.

Mais uma vez, sua resposta veio em seguida. Se fôssemos vilões de verdade, esse cara estaria colocando o prefeito em sério perigo ao denunciar daquela forma, contudo estava preocupado apenas com sua própria sobrevivência no momento. Ele parecia o típico valentão, age durão quando está em vantagem, no entanto desiste rapidamente quando a situação muda.

“Hmm, acho que entendi. Vamos, Gourry.”

“Ok.”

Gourry soltou o homem e cutucou-o de leve na nuca, o que foi o suficiente para nocauteá-lo. Em seguida, deixamos os dois guardas adormecidos cochilando sob o céu estrelado enquanto nos dirigíamos para a casa do prefeito.

———

“Fique quieto.”

“Sem barulhos altos, ok?”

O velho não pareceu muito surpreso com a nossa visita repentina. Ele apenas se sentou na cama e olhou para nós à luz fraca do lampião.

“Oh, são vocês dois...” ele disse como se estivesse nos esperando. Sua atitude casual me pegou desprevenida.

“Vo-Você acha que poderíamos recuperar nossas espadas, talvez?” me peguei perguntando educadamente.

“A prateleira de cima ali.” disse o velho com um aceno de cabeça. “Pode pegar.”

Gourry estendeu a mão para a prateleira indicada em busca do nosso objetivo. (Eu não era alta o suficiente.)

“Por que está sendo tão cooperativo?” não pude deixar de perguntar.

“Confesso que fui eu quem disse ao estalajadeiro para drogá-los, porém quando te vi dormindo, me pareceu que poderia ter havido algum tipo de engano.”

Achou mesmo?

“Vocês só não pareciam vilões para mim. Claro, existem pessoas perversas neste mundo que não se parecem com o que são, contudo ainda assim tendem a ter um certo ar... Um ar que vocês dois não possuem.”

“E não lhe ocorreu contar isso aos seus lacaios?”

O velho balançou a cabeça desamparadamente e depois se virou para Gourry.

“Jovem, aquela prateleira que guarda suas espadas... Tem uma gaveta bem no fundo. Sim, essa. Traga-me o papel aí, por favor.”

Gourry fez o que lhe foi pedido e entregou o papel ao velho, que o segurou diante da lâmpada para que pudéssemos vê-lo... E quando o fizemos, ficamos boquiabertos.

“Isso é...”

Era um pôster de procurado e dois dos três rostos eram sem dúvida os nossos. Abaixo de cada um havia uma quantia de dinheiro absurda. Nem mesmo um renegado assassino de reis conseguiria uma recompensa como essa.

E aqueles retratos... Estavam desenhados com expressões sanguinárias e assassinas, no entanto éramos eu e Gourry, sem qualquer chance de confusão. Até nossos nomes foram rotulados juntos.

Entretanto o que mais me surpreendeu foi o terceiro homem procurado no cartaz. Houve apenas um incidente em que nós três estivemos envolvidos juntos. Poderia ser...?

“E-Ei, Lina. Esse cara aqui...” chamou Gourry, apontando para o terceiro rosto. “Nós ao menos o conhecemos?”

Argh! Senti todo o meu corpo ficar mole.

“Seu estúpido… Como pôde esquecer alguém tão memorável?”

“Foi a recompensa...” suspirou o mais velho. “Poderíamos sobreviver ao próximo inverno sem qualquer problema com uma quantia de dinheiro assim. As pessoas estavam tão felizes... Como posso lhes dizer: ‘Não acho que isto esteja certo. Deveríamos libertá-los’?”

Não tive resposta para sua colocação.

“Por outro lado, o homem que patrocinou a recompensa não é do tipo que faz falsas afirmações... Nunca o conheci em pessoa, mas sua excelente reputação o precede.”

“Então sabe quem colocou a recompensa por nossas cabeças?” perguntei, com expectativa.

“Tenho certeza de que você também o conhece...” respondeu o prefeito com um aceno firme. “O santo dos tempos modernos... O santo errante Rezo, o Sacerdote Vermelho. Consegue imaginar o que ele iria querer com vocês?”

Ok, isso exigiria alguma explicação... Não, risque isso. Se realmente explicasse nossa história com Rezo, soaria como uma história complicada. Se outra pessoa me contasse, eu com certeza não acreditaria.

Se resumisse às partes mais verossímeis, seria mais ou menos assim: há dois meses, bem na época em que conheci Gourry, acabei tendo a posse de um determinado item. Porém, havia outro grupo que queria esse item, então acabamos entrando em conflito. O referido grupo incluía o chamado santo, Rezo, o Sacerdote Vermelho, e o espadachim mágico chamado Zelgadis a seu serviço.

Zelgadis era a terceira pessoa no pôster.

Depois de algumas idas e vindas entre nossos grupos, Zelgadis se voltou contra Rezo, todavia mesmo assim o item em questão caiu nas mãos de Rezo. O Sacerdote Vermelho então passou por uma transformação perversa, e Gourry, Zelgadis e eu trabalhamos juntos para enfim derrotá-lo.

Em outras palavras, Rezo deveria estar morto agora.

“Senhor prefeito, a oferta naquele cartaz deve ser nula e vazia.” falei. “Posso estar enganada... No entanto ouvi dizer que o Sacerdote Vermelho morreu há dois meses.”

Deixei de fora a parte sobre como o matamos, pois só complicaria as coisas. Mesmo assim, o prefeito olhou para mim com desconfiança.

“Curioso, mas acredito que esteja enganada. As autoridades só nos trouxeram estes cartazes na semana passada. Disseram que foram emitidos há cerca de meio mês.”

Há meio mês? Não é possível. Gourry e eu nos entreolhamos outra vez.

“E-Então, Senhor Prefeito... Saberia onde o Sacerdote Vermelho está neste momento?”

“Receio que não.” disse ele balançando lentamente a cabeça. “Porém se vocês dois são de fato inocentes, deveriam ir para a cidade de Crimson, a oeste. É onde o autor da postagem diz que a recompensa será paga, então podem descobrir mais lá. Talvez possa até falar com o Sacerdote Vermelho e esclarecer essa confusão sozinha.”

É muito pior do que apenas um simples caso de confusão, contudo balancei a cabeça em concordância de qualquer maneira.

“Os mal-entendidos... Sem dúvidas não geram nada além de tristeza.” disse o prefeito com um longo suspiro e um olhar distante.

Não pude deixar de me perguntar que tipo de passado complicado ele próprio teve.

“Obrigado, senhor.” disse Gourry calmamente. Fiquei perplexa com o quão normal ele consegue agir em momentos como este. “Tenho certeza de que só causaremos problemas se ficarmos aqui por muito tempo, então vamos nos despedir agora.”

“Claro.” disse o velho com um pequeno aceno de cabeça.

E então nós dois deixamos a cidade adormecida para trás.

———

“O que acha que realmente está acontecendo, Gourry?”

Já era no dia seguinte, por volta do meio-dia. Havíamos acampado naquela noite, depois de sairmos da cidade. Tomamos um café da manhã tardio e agora estávamos a caminho de Crimson.

“Fala sobre o Sacerdote Vermelho Rezo estar vivo?”

Balancei a cabeça com firmeza.

“Sinto que existem algumas possibilidades.” comentou, cruzando os braços enquanto caminhava. Fiquei um pouco atrás, esperando que explicasse.

A estrada de paralelepípedos se estendia diante de nós. Montanhas verdes erguiam-se ao longe. O campo gramado balançava ao vento. Pássaros canoros gorjeavam por toda parte.

Espere um minuto...

“Gourry, isso era tudo que você tinha a dizer?”

Ele coçou a cabeça, um sorriso tímido no rosto.

“Heh...”

Não me venha com ‘heh’!

“Droga... Você tem que trabalhar seus músculos cerebrais e pensar de verdade pelo menos uma vez, ou toda a sua cabeça vai virar molho tártaro!”

“O que diabos é molho tártaro?”

“De qualquer forma, existem de fato algumas possibilidades. A primeira é que este ‘Rezo’ é falso. Dado que a recompensa é por nós três, é mais provável que seja obra de um de seus subordinados tentando vingar Rezo... Embora, na realidade, duvido que este seja um plano de vingança real, já que querem que nos levem até eles vivos.”

“A próxima possibilidade mais provável é que tudo seja apenas um caso de mau momento. Quando fugi com Zelgadis, ficamos fugindo por alguns dias antes de nos encontrarmos com você. É possível que, durante esse período, Rezo tenha pedido a um de seus homens que nos oferecesse uma recompensa. Talvez tenha havido algum tipo de atraso e os pôsteres só saíram agora. Embora, se fosse esse o caso, não havia razão para especificar que nos queria vivos...”

“Há outra possibilidade...” disse Gourry, com expressão séria.

Me peguei ficando carrancuda em reflexo. Sabia o que queria dizer e não fiquei entusiasmada com a perspectiva. Virei meu olhar para cima, para os céus.

“Rezo, o Sacerdote Vermelho, pode de fato estar vivo. E se estiver...” sussurrei para o céu azul sem nuvens. “Não posso vencê-lo desta vez.”

———

Se ao menos essa especulação sombria pudesse ter sido o culminar dos nossos dias... Mas, infelizmente, há sempre mais porcarias para lidar. Os aspirantes a heróis que faziam fila para ‘nos vencer’ vinham aumentando em número desde a nossa captura. Estávamos a seis dias de distância de Crimson e, se as brigadas locais de benfeitores continuassem a proliferar nesse ritmo, estaríamos lidando com cerca de trezentos deles por dia quando chegássemos lá.

Bem, ok, isso era bastante implausível. Porém ainda assim, estavam ficando irritantes como só o diabo. É assim que é ser um Lorde das Trevas? Esta interminável cavalgada de guerreiros totalmente armados vindo em sua direção do nada, seguindo o mesmo velho roteiro brega? Do mesmo jeito que foi com os caras com quem estávamos lidando agora...

“Nós somos os Oito Cavaleiros Prateados do Principado de Lenos, ordenados pelos céus...”

Se fossem apenas alguns vilões aleatórios, seria aqui que eu os atacaria com um feitiço e continuaria andando. Contudo as coisas eram um pouco mais complicadas dessa vez, visto que esses caras pensavam que éramos os vilões. Quer dizer, ainda vou colocá-los no seu devido lugar, no entanto mostraria pelo menos um pouco de misericórdia, sabe?

Em vez de serem assassinados, podem acabar aleijados ou mutilados. Escute, não sou muito boa nessa coisa de misericórdia, ok? Não ria! De onde venho, eles dizem: “Mesmo quando se segurar, bata com sinceridade”. Isso mesmo. Cresci com um bando de pessoas duronas. Minha irmã mais velha, por exemplo. Cara, ela pode ser mais quieta que eu, mas... Não, não vou falar. Se alguma vez chegar aos seus ouvidos, eu estaria morta.

“Nossa história começa há dez anos...”

Lancei um olhar para os cavaleiros, que ainda não haviam terminado sua apresentação. Invoquei um feitiço em voz baixa e...

“Bomba Divisora!”

Ba-ba-boosh!

“Gyaaah!”

Meu ataque muito misericordioso, se é que posso dizer isso, fez os sete cavaleiros voarem. Hã? Eram oito, você disse? Olha, isso importa neste momento?

“Sabe, Lina... Às vezes me pergunto se você sabe o que significa ‘misericórdia’.” resmungou Gourry, parecendo um pouco enojado.

“Claro que sei o que significa! Se não tivesse mostrado nenhuma piedade agora, aqueles sete cavaleiros... Ou seriam oito? Que seja! Eles teriam sido feitos em pedaços, com armadura e tudo!”

“Suponho que pelo menos estejam vivos, porém...”

Lá, Gourry lançou um olhar de pena para os cavaleiros dispersos, que estavam jogados no chão se contorcendo e gemendo sozinhos.

“Ahh... Isto é o fim?”

“N-Nós deveríamos ter ido atrás daqueles bandidos...”

“Aguentem firmes, homens... Não morram...”

Ok, sim, posso ter exagerado.

“Explique-me como essa situação é diferente da maneira como costuma trata os bandidos, por favor?” Gourry perguntou cansado.

Estalei a língua, balancei o dedo para ele e proclamei.

“Usei um feitiço diferente.”

Gourry soltou um grande suspiro.

———

Foi uma noite tranquila. Eu estava me revirando na cama, sem conseguir dormir. Apesar de nosso status de procurados, cidades grandes sempre tinham muitas pousadas dispostas a nos receber pelo preço certo.

Mas algo estava mexendo no fundo do meu peito. Sentia isso cada vez mais ultimamente, sempre que acabava sozinha no final do dia.

Tenho passado muitas noites sem dormir nos últimos dias e sabia com certeza o que estava causando essa comoção. Estava pensando em Gourry no quarto ao lado do meu.

As coisas têm sido assim desde o dia em que o conheci. Ele estava acordado agora? Cada vez que esse pensamento passava pela minha mente, a dor no meu peito ficava mais forte.

Hahh...

Desisti de dormir e saí da cama. Fui até a parede fina que separava nossos quartos e pressionei a mão nela, depois a bochecha. Não conseguia ouvir sua respiração lenta e medida dormindo... Significava que seguia acordado, afinal? Se sim, então...

“Durma!”

Enviei um feitiço através da parede! Que venha o rugido de um dragão ou o lamento de um banshee¹, nada o acordaria esta noite!

Ok! Sorri e comecei a fazer meus preparativos.

Vesti meu roupão branco e calça preta, amarrei minha bandana na testa e calcei minhas botas e luvas pretas compridas. Uma capa preta pendia de minhas grandes ombreiras de casco de tartaruga raspada e uma espada curta em meu cinto.

Pronta! E! Preparada! Mwahaha... Mwahahahaha...

Um grande sorriso se espalhou pelo meu rosto. Isso mesmo! Por que negar a mim mesma? Desde que conheci Gourry, fiquei muito preocupada com seu julgamento por me envolver em minha habitual intimidação de bandidos, o que me deixou com um grande caso de bolas azuis².

Estava especialmente ruim esta noite. Os cavaleiros que eletrocutei esta manhã mencionaram algo sobre bandidos, e era tudo o que as pessoas falavam no restaurante quando Gourry e eu chegamos à cidade... Agora não conseguia evitar. Estava ansiosa por ação.

Assim, saí da pousada sem ser vista e segui em direção ao meu destino. Já podia imaginar a localização da base dos bandidos, graças aos rumores que ouvi na pousada. Só um idiota não teria sido capaz de encontrá-los.

A floresta estava silenciosa a esta hora. Segui um caminho vago que parecia um pouco com uma trilha de animal, cortando a vegetação rasteira enquanto corria.

Eu estava certa. Este era sem dúvida o caminho certo.

———

Perto de algumas ruínas dilapidadas, pude ver um fogo vermelho e laranja queimando... Uma fogueira de bandidos. Vários homens estavam preguiçosamente ao redor, parecendo entediados enquanto tomavam goles de bebida e riam de nada em particular. Cada um carregava uma cimitarra e vestia uma túnica preta.

Tive que me perguntar. Por que esses caras nunca mostram originalidade em seus guarda-roupas? Não que me importe na verdade, contudo... Faria mal se pelo menos tentassem?

O mais provável é que os que estavam perto do fogo fossem vigias, com a base real escondida nas ruínas atrás deles. Parecia que seria muito fácil forçar minha entrada, no entanto um feitiço de ataque muito poderoso poderia derrubar tudo e enterrar qualquer tesouro que estivesse dentro.

Então, se não quisesse estragar todo o objetivo desta viagem... O mais importante primeiro, teria que atrair todo mundo para fora. Tirei o cinto da espada e as ombreiras e enrolei-os na minha capa. Segurando com cuidado o pacote em meus braços, caminhei um pouco de volta pelo caminho. Então respirei fundo e...

“Socorro!” gritei enquanto comecei a correr.

Os bandidos se apressaram para ver o que estava acontecendo. Corri até eles e fiz uma grande demonstração de tropeço. Claro, mantive meu pacote de capa bem firme.

“Socorro... Gasp... Socorro!”

Respirando pesadamente (atuando, é claro!), agarrei-me ao bandido mais próximo. Todos pareciam confusos com a minha chegada repentina.

“E-Ei, o que houve?” alguém perguntou.

“Ele está vindo! Ele é... Por favor, me ajude! Temos que escapar! Vai nos matar! Vai matar todos nós! Assim como ele o matou!” ofeguei, dizendo todos os tipos de coisas evocativas, mas ambíguas.

Os vigias trocaram olhares. Um deles anunciou que iria verificar as coisas e depois saiu correndo para a floresta.

Enquanto tremia nos braços do bandido mais próximo, sussurrei baixinho o que seria indecifrável para uma pessoa comum... Sim, foi um feitiço de ataque rápido.

“(Silêncio) Megamarca!”

Blam! Uma faixa de terreno próxima explodiu com um som alto, deixando os bandidos em pânico imediato.


“Bwahh!”

“Ele está aqui! Está aqui!” gritei, apontando aleatoriamente para a floresta.

“O quê?”

“Onde?”

Recitei silenciosamente meu próximo feitiço enquanto cerca de dez homens saíam das ruínas para investigar a comoção.

“O que está acontecendo? O que é toda essa confusão?”

E só então...

“(Ainda em silêncio) Vício Chamejante!”

Ba-boom! A fogueira que os vigias estavam alimentando explodiu de repente.

“O quê?”

“O que está acontecendo?”

Os bandidos corriam como galinhas com as cabeças cortadas. Eu os tinha justo onde os queria.

———

“Hehehe! Funcionou melhor do que imaginei!”

Neutralizei os bandidos que saíram das ruínas e agora localizei o seu tesouro bem no fundo das ruínas. Não estava bem empilhado até o teto, mas havia muito ouro e prata para reivindicar. Levantei minha capa e tirei um pedaço de forro de linho de um bolso interno escondido. Em seguida, amarrei as bordas e voilà³! Uma mochila simples!

O enigma restante, então, era o que levar. Se fosse muito gananciosa e enchesse minha bolsa com muito ouro, ficaria pesada e chamativa. Se fosse muito descuidada, poderia até estourar os cordões no caminho para casa e perder tudo. Então, devo optar por pedras preciosas, obras de arte ou itens mágicos?

Enquanto estava contemplando minhas opções...

“Ei, o que você está fazendo aí?” uma voz irritada chamou da porta.

Urk! Eu me encolhi.

Se fosse apenas mais um bandido, teria o acertado no rosto com um feitiço e acabado com tudo. Porém tal tática não funcionaria contra este homem. Devagar, e com cautela, me virei, e então...

“Ohhh, Gourry! Bom te ver!” murmurei enquanto cerrei os punhos sob o queixo e pisquei os olhos para ele.

“Não há nada de bom nisso.” disse ele, coçando a cabeça de forma perturbada. “Por que diabos você está aqui?”

“Teehee! Não vou contar!”

“Não tente fazer graça.”

Tudo bem... Se insiste.

Estufei o peito e declarei.

“Estou caçando bandidos.”

“Não tente justificar.”

Então o que quer que eu faça?

“Esqueça! Vamos sair daqui.”

Sem qualquer espaço para objeções, Gourry agarrou minha mão e começou a me arrastar para longe.

“E-Ei! Espere! Meu tesouro...!”

———

“Vamos, você está fazendo uma grande cena por nada!” repreendi Gourry enquanto caminhávamos lado a lado pela estrada.

“‘Nada’?” Gourry perguntou sem sequer olhar em minha direção.

Pois é, ele estava bravo mesmo...

“Saindo da pousada no meio da noite... O que estava pensando? Pelo amor de...”

“Estava planejando meu futuro brilhante.” respondi sem hesitação. “Além do mais, o que há de errado em espancar um bando de bandidos sem vergonhas? Esses caras saqueiam tesouros, sabia? Se os deixasse em paz, continuariam roubando das pessoas!”

“E tenho certeza que pretende receber uma comissão para si mesma.” disse Gourry com um grande suspiro.

“Bom, não é como se eu soubesse a quem pertencia antes! E se deixasse todo aquele tesouro por aí, o senhor local acabaria por confiscá-lo! Ou pior, as pessoas começariam a brigar por sua causa! Então, pegá-lo e gastá-lo é a maneira mais rápida de colocar a economia de volta nos trilhos!”

“Sua forma de ver as coisas é bem conveniente, sabia disso?”

“De qualquer forma, pensei que você estivesse dormindo na pousada, Gourry...”

O que eu realmente queria perguntá-lo era: ‘Meu feitiço para dormir não funcionou em você?’, contudo não posso fazer uma perguntar dessas. Nope. Sem chance.

“Fui à latrina e, no caminho de volta, ouvi alguns barulhos vindos do seu quarto. Então fui até o meu e abri a janela a tempo de te ver usar um feitiço de Levitação para cair no chão e fugir.”

Bem, isso explicava tudo.

Tch. Bastardo sortudo...

“Bem, vamos para assuntos mais importantes.” falei enquanto Gourry e eu paramos.

Os insetos zumbiam nas árvores e um leve raio de luz das estrelas descia pelas folhas escuras.

“Por que não se apresenta pra nós?” disse em voz baixa, olhando para o fundo do mato.

Com minha deixa, Gourry colocou a mão no punho da espada.

“Você com certeza não é sutil, não é?” perguntou alguém atrás de mim.

Impossível! Ninguém estava lá há um minuto. Tenho certeza. Gourry e eu nos viramos... E ficamos ali, atordoados.

Lá estava ele, um clérigo vestido com vestes da cor do sangue, como se estivesse envolto em sombras vermelhas. Sua capa flutuava ao vento. A maior parte de seu rosto estava escondida, no entanto dois olhos espiavam por um capuz puxado para baixo... Dois olhos bem fechados.

“Rezo, o Sacerdote Vermelho...” sussurrei, quase em falsete.

“Já faz algum tempo... Estou feliz que vocês dois estejam bem.” ele disse descaradamente, sua expressão completamente ilegível. “Não deve ser fácil ser assediado dia após dia.”

“Graças a uma certa pessoa que está distribuindo aqueles lindos pôsteres de procurados.” respondi.

Naquele momento, percebi algo estranho. Ainda não conseguia sentir a presença de Rezo. Não havia razão para que mascarasse sua presença quando estava bem na minha frente, então o que estava acontecendo?

“Oh, quer dizer meu convite... No atual momento estou hospedado com o Sumo Sacerdote de Sairaag, sabe.”

Sairaag fica a cerca de cinco dias ao norte daqui. Era conhecida como a Cidade da Magia, até ser destruída pela besta Zanaffar, há mais de um século. Consequentemente, as pessoas a chamaram de Cidade dos Mortos por um tempo, mas o herói que matou a fera plantou uma árvore no meio da cidade caída. À medida que a árvore crescia, também cresciam os esforços de reconstrução, e ela agora era um símbolo da metrópole recém-próspera.

Porém... Se Rezo estava em Sairaag, então com o que estávamos conversando agora?

Por fim me lembrei do nome do feitiço.

“Visão.”

Tal feitiço permitia que você manifestasse sua semelhança a longas distâncias, como se de fato estivesse lá, permitindo que conversasse com alguém de longe. Era um dos feitiços mais convenientes que existiam se soubesse como usá-lo. Contudo para que funcionasse, precisava ter um feiticeiro no local atuando como um retransmissor para sua projeção... O que significa que Rezo tinha um lacaio escondido por perto.

“Então... Quer que a gente vá para Sairaag, hein?” Gourry perguntou.

“Só se você quiser.” respondeu o Sacerdote Vermelho num tom zombeteiro. “Contudo se não o fizer, viverá como fugitivo pelo resto de seus dias. Isso é tudo.”

“Isso é tudo, hein?” me peguei estremecendo. “Gourry pode não se importar, no entanto não estou ansiosa pela experiência.”

“Vamos, também não quero algo assim...”

“Então esperarei sua chegada. Por mais banal que a frase possa parecer, desejo um acerto de contas.” disse ele, desaparecendo num piscar de olhos.

Gourry e eu apenas nos encaramos por um tempo.

“Aquilo foi...” comecei a dizer quando...

“Você o ouviu.” uma voz misteriosa surgiu, me interrompendo.

Nós dois nos viramos de novo e vimos um homem de estatura e constituição mediana, vestido com seu traje comum de feiticeiro, com capa preta e capuz. Sua única característica distintiva era um rubi do tamanho de uma unha incrustado em sua testa. Ele estava justo onde havíamos sentido a presença originalmente, o que significa que deve ter ficado escondido ali o tempo todo enquanto contava nossa conversa com Rezo.

“Aha...” dei uma olhada no cara; eu poderia dizer à primeira vista que era um bandido. “Um lacaio de Rezo, certo?”

“Silêncio, pirralha.” ele bufou. “Você não causará mais problemas para o Senhor Rezo... Pois eu, Vrumugun, administrarei agora seus últimos ritos!”

Espere um segundo! Rezo não nos queria em Sairaag? Esse cara estava passando por cima do líder?

Acho que dá pra dizer que se encontra esse tipo de vez em quando... Pessoas que agem sem pensar porque acham que é o melhor, mesmo que no final das contas estejam causando problemas para os outros.

“Não tentaria se estivesse no seu lugar.” falei, acenando com desdém e aborrecimento. “Você não tem nenhuma chance. Entretanto, o crédito é devido por nos rastrear.”

“Agradeço o elogio, contudo depois daquela confusão que causou no meio da noite, encontrá-la foi brincadeira de criança.”

Ora, mas que atrevido.

“Agora vamos ver quem não tem chance!” o homem gritou, colocando a mão direita atrás das costas. “Hah!”

Não perdi tempo e me abaixei, desviando de algo preto que veio em direção à minha cabeça.

Thunk! Com um som abafado, uma árvore com cerca de duas vezes a espessura de um dos braços de Gourry logo atrás de mim se partiu ao meio.

“Um chicote de corrente?” Gourry exclamou, identificando-o de relance.

Como o próprio nome sugeria, era uma corrente em forma de chicote com um pequeno peso na ponta. Seu poder também era fácil de ver. Se usado corretamente, pode ser mais perigoso que qualquer espada.

E enquanto desferia ataques combinados com ele, Vrumugun começou a entoar um feitiço. Parecia... Uma Bola de Fogo?

Bola de Fogo era um feitiço de ataque indiscriminado. O lançador solta uma bola de luz que explodiria ao atingir alguma coisa, espalhando chamas por toda parte. Esse idiota estava falando sério? Usar uma aqui no meio da floresta significaria um incêndio florestal em nossas mãos... Pode até acabar se assando!

Ugh! Comecei meu próprio canto quando uma bola vermelha de luz se formou na mão esquerda de Vrumugun. Terminamos nossos feitiços quase ao mesmo tempo.

“Bola de Fogo!”

“Esfera Congelante!”

Nossas esferas de luz de cores diferentes colidiram de frente.

Zing! Houve um som alto e claro, como metal se partindo, e ambos os orbes foram extintos.

“O quê?” Vrumugun gritou de surpresa.

Parecia que ele não sabia que os feitiços poderiam se anular. Foi algo que descobri por acidente, certa vez, em um trabalho com uma colega feiticeira.

Porém só para você saber, não funciona necessariamente com todos os feitiços de propriedades opostas. Também havia maneiras de combinar feitiços para produzir algo muito mais poderoso. Só acontece que eu sabia que Bola de Fogo e Esfera Congelante iriam negar um ao outro. Teria gostado de estudar mais combinações, contudo mesmo um gênio como eu precisava de um parceiro para esse tipo de coisa, e a feiticeira que conheci fugiu sozinha algum tempo antes de eu conhecer Gourry.

De qualquer forma, a maioria dos praticantes de magia não sabia sobre o fenômeno do cancelamento mútuo, então não me surpreendeu que Vrumugun tivesse ficado tão surpreso. Ele parou por um momento, incapaz de compreender o que acabara de testemunhar. Gourry não deixou de aproveitar a oportunidade, se aproximando do feiticeiro num piscar de olhos e fazendo voar a arma perigosa em sua mão.

“Tch!”

Vrumugun se apressou em saltar para trás. Gourry o perseguiu. Comecei a entoar um feitiço. O feiticeiro estendeu a mão direita para trás de novo como se fosse agarrar alguma coisa... No entanto Gourry o chutou no plexo solar antes que pudesse.

“Ugh...”

O feiticeiro se dobrou ao meio e caiu de joelhos assim que terminei meu canto.

“Lança Elemekia!”

Vrumugun dobrou-se como um terno barato. O feitiço que acabei de usar atingia diretamente a forma astral do alvo. Não era fatal para uma pessoa normal, todavia drenaria seu espírito e o faria dormir por um tempo. Para sua sorte, usei uma versão de baixa potência.

Por que peguei leve, você pergunta? Bem, não quero apagá-lo. Tenho perguntas para nosso amiguinho Vrumugun aqui, sabe.

Assim como antecipei, o feiticeiro em questão caiu no chão, mal conseguindo se mover. Ainda seguia consciente, entretanto não estava em condições de causar problemas.

“Deveria saber que foi imprudente enfrentar nós dois ao mesmo tempo.” falei enquanto fazia uma careta para o rosto do feiticeiro. “É importante conhecer seus próprios limites... Mas chega de palestra.”

Gourry estava ouvindo nossa conversa com cautela, perto o suficiente para decepar a cabeça do feiticeiro no instante em que tentasse alguma gracinha. Saber que ele estava atrás de mim me deu confiança para ir sem me segurar com nosso amigo feiticeiro aqui.

“Então, quem era?” perguntei.

“Quem era quem?” Vrumugun perguntou por sua vez, suas sobrancelhas finas se contraindo de leve. “Não me diga que não conhece Lorde Rezo...”

Tornei a falar, pronunciando cada sílaba.

“Nos matamos Rezo. Dois meses atrás.”

Depois de um momento, um sorriso frio apareceu no rosto de Vrumugun.

“Hah! Que mentira absurda... Se fosse verdade, então quem lhe ofereceu um convite para Sairaag agora há pouco?”

“É isso que estou perguntando, amigo.” respondi.

Ele parecia ter a impressão inabalável de que o cara com quem conversamos era o verdadeiro Rezo, o que significava que seria inútil pressioná-lo mais sobre sua verdadeira identidade.

“Não seja ridícula. Criaturas insignificantes como vocês nunca poderiam derrotar Lorde Rezo!”

Uma afirmação forte, vinda de um cara cujo traseiro acabamos de chutar.

“Aww, você é engraçado. Como exatamente sou insignificante?”

O feiticeiro me olhou direto nos olhos e disse.

“Na parte do peito, para começar.”

“Ah, cale a boca!”

Estourei e mandei o feiticeiro voando.

———

Gourry e eu saímos da pousada pouco antes do amanhecer do dia seguinte e caminhamos lado a lado pela estrada coberta pela neblina matinal. Ainda estávamos com um pouco de sono, mas o inimigo sabia onde estávamos e para onde íamos. O que significava que tínhamos que agir rápido.

Tínhamos deixado Vrumugun amarrado a uma árvore na floresta. Parte de mim pensava que deveríamos eliminá-lo enquanto tínhamos chance, porém nem mesmo eu poderia justificar matar um oponente indefeso.

“Então, o que acha? Sobre Rezo ontem à noite, quero dizer.” perguntei.

“Para ser honesto.” respondeu Gourry com uma rara expressão pensativa. “Pensei que poderia ser apenas um sósia.”

Justo, só que...

“É possível que não tenha sido ele, mas sim algo próximo.” pensei.

“Quer dizer... Como um membro da família?”

“Bem, também é uma possibilidade, porém estou pensando que é algum tipo de cópia do Rezo.”

“Cópia?”

“Lembra de todos aqueles homúnculos correndo pela Cidade Atlas?”

“Hmm... O nome é meio familiar, contudo nunca entendi qual era o problema deles.”

De repente, percebi que nunca havia explicado a Gourry o que era um homúnculo.

“São formas de vida artificiais criadas com magia. Pode usar o sangue de uma pessoa para fazer uma, e ela se parecerá com ela, com todas as suas habilidades e outras coisas.”

A palavra ‘homúnculo’ em sua origem se referia a um diabinho criado a partir dos fluidos corporais de um homem, no entanto hoje em dia a definição era um pouco mais ampla. Pode-se misturar ossos de animais em pó com dezenas de outros ingredientes em certas proporções, combiná-los com sangue humano e depois através de vários procedimentos e rituais... O resultado final será um ser humano artificial idêntico ao doador de sangue.

Eles foram feitos com um processo diferente e produziram resultados diferentes do tipo original de homúnculo, então seria de se esperar que tivessem um nome diferente, todavia o feiticeiro que os criou ergueu as mãos e disse: “Por que não os chamamos de homúnculos?”, e pegou. Então, é um pouco chato, entretanto agora tínhamos os antigos homúnculos ‘pequenos’ e os homúnculos ‘cópia’ mais recentes.

Os do tipo cópia costumam ser usados ​​como cobaias e guardas de segurança, mas ultimamente as pessoas estavam levantando questões éticas sobre seu tratamento. Afinal, pareciam e agiam tal qual pessoas, porém, a menos que seu criador lhes concedesse isso especificamente, os homúnculos exemplares não tinham vontade ou memória própria; eram, de forma generalizada, golens de carne.

“Então, se alguém pegasse meu sangue, poderia criar um guerreiro com minha habilidade?” Gourry perguntou.

Balancei a cabeça e expliquei.

“Seria idêntico a você em termos de musculatura, velocidade, reflexos... Contudo um homúnculo baseado na sua pessoa não teria sua técnica de espada ou instintos de batalha. Veja, é possível replicar o físico de alguém, só que não pode replicar seu comportamento aprendido, hábitos, maneira de falar, etc. Um criador teria que imprimir isso especificamente... E mesmo assim, há limitações. Por exemplo, os homúnculos não vêm com personalidade. No entanto se puder ensinar alguém a falar e agir...”

“Então poderia fazer algo parecido com o que vimos ontem à noite?”

“Sim.” respondi com um aceno firme. “Além do mais, nunca conhecemos o verdadeiro Rezo tão bem. Então, mesmo que fosse um clone ou gêmeo, como saberíamos a diferença? Nós só o vimos através de um feitiço de Visão também, então quem sabe sobre sua aura?”

“Então, basicamente, está dizendo que é falso de qualquer maneira?”

“Sim. Quero dizer, mesmo que seja uma pessoa real, não é Rezo.”

“Então o que diabos está acontecendo aqui?”

“Bem... Esta é apenas minha teoria atual, entretanto acho que um dos capangas de Rezo fez uma cópia dele e agora está usando-a para reunir seus subordinados e nos atrair para Sairaag. Talvez para vingar Rezo, ou como falei antes, para fazer um nome pra si.”

“Hmm...” Gourry murmurou, olhando para longe com a mão no queixo.

“Não acha que seja o caso?” perguntei.

“Bem, você meio que acertou zero na questão das deduções precisas.”

Ugh...

“E-Esqueça isso, ok? Qualquer que seja a verdade, a nossa única opção é prosseguir para Sairaag. As coisas devem ficar mais claras lá.”

“Só temos que ir, hein?” ele sussurrou sem entusiasmo enquanto olhava para a névoa matinal que se desvanecia.

———

“Guh!”

Gourry enterrou o punho no plexo solar do homem enquanto eu derrubava um de seus amigos com uma Lança Elemekia. Este foi o nosso sexto grupo de aspirantes a heróis hoje.

“Realmente gostaria que pudéssemos fazer algo sobre isso...” Gourry disse irritado. “Não é nem meio-dia e já lutamos contra seis bandos de autoproclamados benfeitores. Quantos teremos que combater antes de chegarmos a Sairaag?”

“Quer comprar alguns disfarces na próxima cidade? Pode ser nossa melhor aposta.”

“Talvez, mas primeiro...”

“Sim. Parece que o time número sete já está aqui.” Falei enquanto olhava para a estrada.

Os paralelepípedos azuis subiam uma colina baixa antes de desaparecerem no topo dela. O velho estalajadeiro com quem conversamos antes de partir esta manhã nos disse que encontraríamos a próxima cidade do outro lado.

Havia um pequeno trecho de floresta do lado direito da estrada que ficava sobre um campo de trigo. Acima dela e da colina, podia ver os picos de montanhas distantes. Contudo agora, a figura escura na orla da floresta chamou minha atenção. Estava trajado com vestes negras de feiticeiro e o capuz puxado sobre os olhos.

“Ok, vamos começar logo!” declarei, marchando para frente um pouco imprudentemente.

“Obrigado por ontem à noite.” disse o feiticeiro. Parecia jovem.

Mas espere, só lutamos com um feiticeiro ontem à noite...

“Já se esqueceu de Vrumugun?” perguntou.

“Hmm...” fiz uma careta em resposta.

Gourry, ao meu lado, reagiu da mesma maneira. É claro que não tinha me esquecido de Vrumugun... No entanto esse cara emitia uma vibração totalmente diferente do cara que encontramos antes. Sua voz parecia diferente, até...

Ainda assim, se afirma que é, certamente tinha que ser, certo? Eu não via nenhum benefício em se passar pelo cara. Todavia nesse caso... Como nos alcançou?

“Tudo bem... Entendi, porém...” falei enquanto coçava a cabeça. “Você deveria mesmo aprender sua lição. Não pode ter esquecido o quão fácil perdeu para nós.”

“Ah, eu trouxe ajuda hoje. Saiam, rapazes.”

“Ok...”

“Ugh, mandando em mim...”

Por ordem de Vrumugun, duas figuras emergiram da floresta.

“Espere, vocês são...” eu me peguei gritando.


Notas:
1. Banshee é um ente fantástico da mitologia celta. As banshee provêm da família das fadas, e é a forma mais obscura delas. As banshees eram como seres que previam a morte, seu grito poderia ser ouvido a quilômetros de distância, e poderia estourar até mesmo um crânio.
2. Bolas azuis é uma expressão popular que se refere à condição temporária de congestão de fluido na região dos testículos, causada por um longo período de excitação sexual masculina. No caso, Lina se refere ao fato de estar se contendo a muito tempo de seu “esporte de caça de bandidos”, levando a sua frustração atual.
3. Do francês, o termo significar mostrar, assinalar algo ou chamar atenção para o que se pretende demonstrar ou falar.


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